Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM HOMICÍDIO HOMICÍDIO QUALIFICADO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO TENTATIVA MEDIDA DA PENA MOTIVO FÚTIL ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE PREVENÇÃO ESPECIAL PREVENÇÃO GERAL | ||
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Data do Acordão: | 02/02/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. As questões colocadas pela recorrente, condenada pelo tribunal coletivo na pena de 7 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, dizem respeito à medida da pena e à pretensão de suspensão de execução da pena. II. O crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa agravada, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente. III. Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”; atuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”. IV. Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto. V. A ação motivada por “ciúmes” pode remeter para a figura do homicídio por “razões passionais” – para o denominado “homicídio passional”, entendido como cometido, em regra, repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito – que, pelas possibilidades de perturbação ou interferência na liberdade da formação e execução da vontade criminosa, podem relevar, não para a agravação da culpa, mas para a sua atenuação, por verificação dos requisitos do crime de homicídio privilegiado, em virtude de o agente ter agido “dominado por compreensível emoção violenta” (artigo 133.º do Código Penal), ou, mesmo, para a exclusão, nos casos mais graves (inimputabilidade, por traduzirem “perturbações profundas da consciência” – artigo 20.º do Código Penal). VI. Daqui não resulta, porém, que a atuação do agente, fora destes casos, deva considerar-se como sendo determinada por “motivo fútil”. Enquanto expressão de sentimentos profundos e complexos, determinados pela perda ou pelo receio ou medo, real ou imaginário, de perda da pessoa a quem o agente se encontra afetivamente ligado, o ciúme traduz-se, como revelam os estudos da área da psicologia, num estado envolvendo emoções, reações e comportamentos muito diversos, que não podem, em si mesmos, qualificar-se como expressões de mera futilidade. VII. Embora podendo justificar uma atenuação (ou exclusão) da culpa, nos casos mencionados, o estado emocional gerado pelo ciúme, traduzido em comportamento violento, pode dar lugar, fora desses casos, a situações que devam ser mais gravemente censuradas, por revelarem especial perversidade ou censurabilidade, nos termos do artigo 132.º do Código Penal, o que exigirá uma avaliação global do facto que permita identificar outras circunstâncias relevantes – que, neste caso, o acórdão recorrido afastou – que possam relacionar-se com esse estado emocional (como sucederá, por exemplo, quando, inexistindo motivo de atenuação ou exclusão da culpa, o homicídio é praticado através de ato de crueldade, com meio particularmente perigoso, determinado pelo prazer de matar ou de modo a fazer aumentar o sofrimento da vítima). VIII. Não ocorrendo circunstâncias de agravação (artigo 132.º) ou de privilegiamento (artigo 133.º), o homicídio reconduzir-se-á à previsão do tipo fundamental do artigo 131.º do Código Penal. IX. Pelo que, na consideração das circunstâncias relevantes por via da culpa e da prevenção, a que se refere o artigo 71.º do Código Penal, deverá a arguida ser condenada por um crime de homicídio da previsão do artigo 131.º do Código Penal, na forma tentada, na pena de 6 anos de prisão, a qual, nesta medida, contendo-se na medida culpa, se considera proporcional à gravidade do crime cometido em vista da realização das finalidades a que se refere o artigo 40.º do Código Penal. X. Sendo a pena de medida superior a 5 anos, não há que considerar a possibilidade de suspender a sua execução, por a isso se opor o artigo 50.º do Código Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório
1. Por acórdão proferido pelo tribunal coletivo ... Cível e Criminal ... (Juiz ...), da comarca ..., foi a arguida AA, com a identificação dos autos, condenada na pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal. 2. Não concordando com a pena aplicada, pretendendo a sua redução para medida não superior a cinco anos, com suspensão de execução, vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação de que extrai as seguintes conclusões (transcrição): «a) A recorrente foi condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, a sete anos de prisão. b) O limite máximo da pena fixa-se de acordo com a culpa do agente e o limite mínimo situa-se de acordo com as exigências de prevenção geral. c) A arguida, confessou de livre e espontânea vontade os factos a si imputados. d) O Tribunal a quo não o teve em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto do artigo 71.º do Código Penal. e) Ademais não valorizou convenientemente o tribunal outros fatores: f) A arguida não beneficiou de uma estrutura familiar normativa nem de um ambiente harmonioso em todo o seu percurso de vida. g) A arguida mostrou humildade e arrependimento desde o primeiro interrogatório até à audiência de discussão e julgamento. h) A arguida tem mantido uma postura calma e integrada desde que se encontra presa no estabelecimento prisional. i) Não tem averbado no seu registo criminal condenação por crime da mesma categoria. j) Apresenta-se consciente do crime que praticou e das consequências que daí advêm. k) Ficou assente no douto acórdão “a gravidade das consequências, que se afigura mediana, tendo por referência as lesões que resultaram provadas e sua cura, já que para além das cicatrizes descritas nos factos provados, não resultou para a vítima qualquer desfiguração grave e/ou permanente”. l) Na determinação concreta da determinação concreta da pena deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor, da arguida e contra ela. m) Assim, deverá a arguida se condenada numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto no Artigo 71.º do Código Penal. Assim, em douto Acórdão a produzir pelos Ilustres Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação ..., requer-se a revogação do douto acórdão que condenou a recorrente na pena de sete anos de prisão, por ser desproporcional às finalidades da punição e ser aplicada à recorrente pena não superior a cinco anos de prisão suspensa na sua execução no tempo que V. Ex.ªs acharem ser conveniente.» 3. Defendendo a improcedência do recurso, responde o Ministério Público, dizendo (transcrição na parte relevante): «1. Considerando os elementos descritos na fundamentação do Acórdão e ainda: 2. O grau de ilicitude muito elevado, expresso na existência de diversos golpes na cabeça da vítima, com um instrumento de elevada contundência e perigosidade, na intensidade do dolo, que se afigura de grau muito elevado e directo, pois provou-se que era propósito efectivo da arguida matar a BB, provocando um efectivo perigo para a vida desta. 3. A culpa, também de grau muito elevado: a arguida agiu com as próprias mãos, de forma traiçoeira, uma vez que desferiu o primeiro golpe quando BB estava de costas voltadas para a arguida, sem que tivesse sinalizado por qualquer forma o seu propósito de a matar, não lhe dando qualquer hipótese de se defender, só parando quando julgou que BB estava morta. 4. A forte necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas, gravemente atentatórias de direitos fundamentais e que geram forte repulsa na comunidade em geral. O aumento significativo deste tipo de crimes que se vem registando, ou pelo menos conhecendo, impõe que se desencoraje a sua prática, assim se repondo a confiança da comunidade na eficácia do ordenamento jurídico; 5. As condições pessoais do agente e a sua situação económica. 6. A conduta anterior aos factos: a arguida não possui antecedentes criminais sendo que essa é a situação comum à generalidade dos cidadãos. 7. Sopesando as circunstâncias indicadas, donde ressalta à evidência a preponderância das de cariz agravante verifica-se que o Tribunal Colectivo ponderou as circunstâncias de vida da arguida por esta indicadas, como inscrito na fundamentação do Acórdão, pelo que a aplicação de uma pena concreta de sete (7) anos, situada sensivelmente no limite do primeiro terço da moldura penal, como realizado no Acórdão recorrido, é justa, adequada e proporcional. 8. A pena aplicada não ultrapassa a culpa revelada pela arguida e as fortes exigências de prevenção geral e especial verificadas “in casu”, impedem que se aplique uma pena inferior. 9. A arguida pugna ainda por que se determine a suspensão da execução da pena o que não é legalmente possível, se se mantiver a pena concreta de sete (7) anos de prisão, de harmonia com o disposto no art.º 50.º, n.º 1, do Cód. Penal. 10. Na verdade, a arguida não apresenta na sua motivação nem nas conclusões qualquer argumento que sustente a sua pretensão de ver suspensa a execução da pena, que reconhece, tem de lhe ser aplicada. 11. Ainda que a medida da pena concreta aplicada à arguida venha a ser reduzida para não mais de cinco anos, o que se afigura não deve merecer provimento nos termos acima apontados, essa pena não pode ser suspensa na sua execução. 12. Uma vez que não se encontram reunidos os pressupostos exigidos no art.º 50.º, n.º 1, do Cód. Penal.» 4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer, também no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição): «1. (...) 2. Inconformada, a arguida interpôs recurso circunscrito à matéria de direito, que o Tribunal recorrido entendeu remeter a este Supremo Tribunal, de acordo com o disposto no art.º 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal. Questiona, essencialmente, a excessiva dureza da pena única, que entende dever ser fixada em quantum não superior a 5 anos de prisão, de forma a permitir a suspensão da respectiva execução. À sua argumentação respondeu, detalhada e fundadamente, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª instância, pugnando pela respectiva improcedência. 3. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o mesmo ser apreciado em sede de conferência, de acordo com o disposto no art.º 419.º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal. A precisão e exaustividade dos argumentos aduzidos na resposta do Exmo. Colega – que se acompanha inteiramente – dispensam-nos de maiores considerandos. 4. A arguida centra a sua discordância, como ficou dito, no quantum da pena única. Invoca, nomeadamente, a sua situação familiar, a humildade e arrependimento manifestados e o facto de ter confessado a prática dos ilícitos, bem como a circunstância de nunca, anteriormente, ter sido condenado pela prática de qualquer crime. Ora, é certo que a arguida não regista antecedentes criminais, o que o Tribunal valorou, tal como ponderou, igualmente, as suas circunstâncias pessoais e a postura em audiência. Porém, a Instância não deixou de lembrar as circunstâncias, de particular gravidade, em que decorreu o crime, como decorre dos seguintes segmentos do acórdão recorrido: “- a gravidade das consequências, que se afigura mediana, tendo por referência as lesões que resultaram provadas e sua cura, já que para além das cicatrizes descritas nos factos provados, não resultou para a vítima qualquer desfiguração grave e/ou permanente; - a gravidade da ilicitude, que é elevada atendendo ao número de lesões sofridas por BB, decorrente das múltiplas agressões de que foi vítima e às zonas do corpo onde tal se verificou; - a intensidade do dolo da arguida, que é elevada, uma vez que o arguida atuou com dolo direto (recorde-se que, por um lado, continuou a desferir pancadas na cabeça da vítima mesmo após esta se encontrar caída no chão, e, por outro lado, apenas deu por cessada a agressão por pensar que a ofendida estava morta); - a conduta da arguida imediatamente após os factos, ao não ter prestado socorro à vítima;” Na verdade, a arguida atingiu a vítima na cabeça, várias vezes, com um instrumento perigosíssimo – quando utilizado de tal forma – e nem sequer lhe prestou socorro quando se apercebeu de que mesma não havia morrido! Relembrar-se-á que a suspensão da execução da pena se justificará, tão só, quando o Tribunal puder “concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” – cfr. n.º 1 do art.º 50.º do Código Penal. In casu, suspender a execução da pena violaria claramente as expectativas da comunidade, incumprindo as necessidades de prevenção geral que se impõe acautelar. Perfeitamente razoável se afigura, pois, a forma como foi calculada a pena, somando-se, ao limite mínimo, cerca de um terço da diferença entre este e o limite máximo. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível da arguida em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes, tanto mais que está em causa um ilícito que causa justificado alarme junto da população. Com efeito, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade do comportamento da arguida tinham, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena inteiramente justa e que respeita as finalidades visadas pela punição. 5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que nos parece que o recurso não deverá merecer provimento.» 5. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a arguida não apresentou resposta ao parecer do Ministério Público. 6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. II. Fundamentação 7. Encontra-se estabelecida a seguinte matéria de facto: 7.1. Factos provados: “A. Da acusação 1. No dia … de abril de 2021, pelas 10H00, no interior da residência sita na Rua ..., ..., em ..., por sentir ciúmes da relação que achava que o seu ex-namorado CC tinha com BB, por não se conformar com o fim de relacionamento amoroso que havia mantido com CC e por estar convencida que BB e CC tinham passado a noite juntos em casa de BB, AA firmou o propósito de tirar a vida a BB. 2. De seguida, AA dirigiu-se a um dos quartos da residência, pegou num pé-de-cabra, de ferro, com setenta centímetros de comprimento e aproximou-se de BB, que se encontrava no corredor. 3. Ato contínuo, AA desferiu, com o pé-de-cabra que empunhava, fazendo força, uma pancada na cabeça de BB, que se encontrava de costas para si, a qual caiu ao chão. 4. Após, AA, exercendo força muscular, com o pé-de-cabra que empunhava, desferiu pancadas, em número não concretamente apurado, na cabeça de BB. 5. Só parando quando pensou que BB estava morta. 6. Não tendo AA socorrido BB, mesmo apercebendo-se, posteriormente, que a mesma não estava morta. 7. Em consequência direta e necessária da conduta de AA, BB sofreu: - traumatismo crânio-encefálico, com fratura linear temporal direita; - múltiplas feridas corto-contusas no crânio, com hemorragia abundante; - hematoma peri-orbitário direito; - paragem respiratória; - equimoses na face posterior do braço e antebraço direito; - dores físicas e - mal-estar psicológico. 8. Tendo ficado com: - cicatriz frontal na linha média orbitária, - quatro cicatrizes na região frontal abaixo da linha de implantação capilar; - quinze cicatrizes com crosta distribuídas na região fronto-parieto-occipital direita e região parieto-occipital esquerda; - duas cicatrizes na região malar direita, - cicatriz do pavilhão auricular direito, - equimoses na face posterior do braço e antebraço direito e - dores físicas e de mal-estar psicológico. 9. Lesões de que resultou perigo para a vida de BB. 10. E que determinaram catorze dias de doença, quatro com afetação da capacidade para o trabalho em geral e catorze com afetação da capacidade para o trabalho profissional. 11. Ao agir do modo descrito, AA agiu com o propósito de retirar a vida a BB, resultado que representou e quis e apenas não logrou alcançar por intervenção médico-cirúrgica tempestiva. 12. AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 13. AA admite ter agido do modo descrito, demonstrando arrependimento. B. Das condições pessoais, económico e sociais 14. O processo de socialização de AA decorreu no contexto da família de origem, constituído pelos pais, sendo a arguida a mais nova de uma fratria de cinco membros, cuja ambiência terá sido vivenciada de modo problemático decursivo dos comportamentos etílicos dos progenitores, bem como pautado por deficitárias condições económicas, e sem imposição de regras educativas. 15. O processo de crescimento da arguida desenrolou-se na região de ..., freguesia ..., num meio rural, sendo que o agregado não dispunha de condições de habitabilidade, residindo numa barraca. 16. Do mesmo modo, o núcleo familiar apresentava acentuada debilidade económica, atentos os parcos rendimentos auferidos pelos progenitores: a vida familiar centrava-se na sobrevivência, dependendo do trabalho do campo em período sazonal, nomeadamente da azeitona e vindima. 17. Nessas condições, por intervenção dos serviços da Segurança Social, desencadeou-se o internamento de AA em instituição de cariz social que visava contribuir para melhoramento da sua vida, cujo estádio infantil se encontrava potencialmente em risco. 18. AA foi então institucionalizada, primeiro na Santa Casa da Misericórdia de ..., depois na Associação de ... e da Família "...", em ..., o que se revestiu de grande sofrimento, designadamente pela dificuldade em se separar do seio familiar. 19. Durante o período que esteve institucionalizada, designadamente na infância e adolescência, frequentou o sistema de ensino público e adquiriu competências na organização da vida diária. 20. Concluiu o 9 º ano de escolaridade por volta dos 17 anos de idade. 21. Em termos do seu percurso laboral, este iniciou-se por volta dos 17-18 anos idade, na área das …, num restaurante no concelho .... 22. Ainda tentou certificação por via de curso técnico-profissional, na área da saúde, como …, com apoio dos serviços da segurança social, em articulação com o Centro de Emprego da sua área de residência, não obstante, tal iniciativa não chegou a concretizar-se e não concluiu o curso de formação profissional, que lhe dava equivalência ao 12º ano de escolaridade. 23. Nesse período, encontrava-se a viver em regime de união de facto há cerca de dois anos, mas por alegadas contrariedades retomou o agregado familiar de sua mãe. 24. Perante a indefinição de um projeto de vida estável, da dificuldade em gerir os condicionamentos de cariz social, profissional e pessoal, instalou-se um quadro depressivo, assinalando-se a sua adição no consumo de drogas psicoativas, nomeadamente no consumo cannabis e cocaína, desde os 16 anos e até aos 23 anos de idade. 25. Entretanto conheceu CC, com quem se começou a relacionar, tendo coabitado com o mesmo na Rua ..., ..., ..., ... ... ..., de novembro de 2020 até 19 de abril de 2021, sendo a relação caraterizada pela conflitualidade. 26. Em meio prisional, a arguida tem mantido um comportamento globalmente adequado. 27. Atualmente a arguida está a ser acompanhada pelos serviços de psiquiatria e psicologia do E.P. ..., seguindo a medicação prescrita. 28. Tem mantido contactos telefónicos com a família, em particular com seu irmão e com sua mãe. 29. No que concerne ao futuro, AA afirma pretender regressar a casa de sua mãe, na povoação de ..., proceder ao tratamento da toxicodependência e pretende organizar-se profissionalmente. 30. É parecer da DGRSP que a arguida “Encara a atual situação prisional de forma pouco racional, com algum sentido emocional, aparentemente parece reconhecer o impacto do crime de que está acusada na vítima, sendo capaz de identificar a ilicitude dos atos que em abstrato, estão relacionados com esse crime, justificando com a sua imaturidade, da falta de sentido de responsabilidade, sob o efeito do consumo de substâncias psicoativas, designadamente cocaína. Encara a atual situação prisional de forma tendencialmente autocentrada, revelando embargos emocionais, centrando-se sobretudo no impacto para consigo e de modo pouco determinado para com terceiros.” C. Dos antecedentes criminais 31. Do certificado do registo criminal da arguida nada consta.” 7.2. Factos não provados “Não resultou provado que: A. AA agiu com o propósito de provocar sofrimento físico e psíquico a BB.” Âmbito e objeto dos recursos 8. Nos termos do disposto nos artigos 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos citados n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º. O recurso tem por objeto um acórdão final proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, cujo conhecimento é da competência do Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), e n.º 2 do CPP]. Mostram-se satisfeitos os requisitos impostos pelos artigos 374.º e 375.º do CPP, nomeadamente quanto à fundamentação em matéria de facto e em matéria de direito, bem como quanto à escolha e determinação da medida das penas, não se revelando qualquer dos vícios de decisão a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, os quais, na previsão deste preceito, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e não ocorrem nulidades não sanadas que devam ser conhecidas. 9. As questões colocadas pela recorrente à apreciação e decisão deste tribunal dizem respeito à medida da pena e à pretensão de suspensão da pena. Quanto à qualificação jurídica dos factos 10. A determinação da medida da pena requer, num primeiro momento, o estabelecimento da respetiva moldura abstrata, definida em função do tipo de crime – “dentro dos limites definidos na lei”, na expressão do n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal. Na acusação, era imputada à arguida a prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. d), e) e h), do Código Penal. O tribunal julgou não verificadas as circunstâncias qualificativas referidas nas alíneas d) (emprego de tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima) e h) (utilização de meio particularmente perigoso), em decisão que não suscita controvérsia, mas considerou preenchida a da al. e) do n.º 2 do artigo 132.º, julgando que a arguida foi determinada por “motivo fútil” e condenando-a pelo crime de homicídio qualificado por esta circunstância, na forma tentada. 11. Diz o acórdão recorrido, nas partes diretamente relevantes: “(...) Dispõe o art. 131.º do Código Penal que: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.” Estabelece-se, deste modo, no art. 131.º do Código Penal, o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida. (...) O tipo objetivo de ilícito do crime de homicídio é, assim, causar a morte a outra pessoa, exigindo-se, porque estamos perante um crime material ou de resultado, a verificação de um nexo de causalidade entre o comportamento do agente e a morte da vítima de modo a que, nos termos do art. 10.º do Código Penal, se possa imputar objetivamente determinado resultado - no caso a morte - a uma concreta conduta do agente, sendo inúmeros os meios de atuação possíveis que podem levar ao cometimento de um crime de homicídio (...). No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, exige-se o dolo, em qualquer uma das modalidades mencionadas no art. 14.º do Código Penal. (...) A propósito do homicídio qualificado, importa notar que o dolo tem de referir-se aos exemplos-padrão, como, citando Jescheck e Wessels, sublinha Teresa Serra: “A existência do dolo fundamenta, nestas circunstâncias, a atitude particularmente censurável do agente, uma atitude desumana e desapiedada, suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, p. 78). (...) A partir do art. 131.º do Código Penal, fixam-se, nos preceitos seguintes, os homicídios cuja culpa do agente é particularmente agravada, como no caso do homicídio qualificado previsto no art. 132.º (...) Tem sido entendimento maioritário na doutrina e na jurisprudência que a qualificação prevista no art. 132.º do Código Penal, “não é determinada por razões de ilicitude ligadas à gravidade do resultado das ofensas, mas antes por razões de agravamento de culpa, derivado da especial censurabilidade ou perversidade do agente” (neste sentido, entre outros, Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 23 e ss., e Ac. do STJ de 1/3/2000, in CJ, Ac. do STJ, ano VIII, tomo 1, pg. 219). Nesta medida, e constituindo a enumeração das circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, uma enumeração meramente exemplificativa e não taxativa, não funcionando as mesmas de modo automático, o agravamento da pena resultaria, pois, do juízo que se faça da conduta do agente no sentido de se concluir que aquela revela especial censurabilidade ou perversidade. (...) No caso em apreço, importa analisar as alíneas d), e) e h). (...) Passando para a alínea e), subsume-se à mesma a conduta do agente que é determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil. No caso, está em causa a definição do que se possa considerar motivo torpe ou fútil. Como se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.04.2014, acessível em www.dgsi.pt: “Fútil é o motivo de importância mínima, o motivo frívolo, leviano, a «ninharia» que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida; o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. IV - O vector fulcral que identifica o «motivo fútil» não é, pois, tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva. (…) No que concerne à existência do denominado motivo fútil, referido na decisão recorrida, entendemos que, na esteira de decisões já proferidas, o mesmo é o motivo de importância mínima. Será, também, o motivo "frívolo, leviano, a “ninharia” que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida", o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. O vector fulcral que identifica o "motivo fútil" não é pois tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objetivou: no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. nº 1675/01-5). Efectivamente, o crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe está associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior, ou menor, compreensão da sua génese. Por outras palavras dir-se-á que, sendo sempre o objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que face à experiência comum poderia conduzir àquele desenlace (v.g. o confronto extremo para desagravo da honra: a defesa de bens que se consideram essenciais). Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos; são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.” O conceito de motivo fútil assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça, com os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. (...) No que concerne à tentativa preceitua o art. 22.º do mesmo diploma legal que: [transcrição] Estabelecendo ainda o art. 23.º que: [transcrição] (…). Tem merecido particular atenção da jurisprudência e da doutrina a questão de saber se é possível tipificar uma tentativa de homicídio qualificado, pois que o conceito de tentativa (previsto no citado artigo 22.º) não se relaciona com os elementos dos exemplos-padrão e não é possível considera-los, para este efeito, como se de elementos do tipo se tratasse (veja-se, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2000, p. 63/65, 78 e 83; Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, CEJ, 1998, p. 151 e ss..): [a questão] “só se coloca após a afirmação da existência de uma tentativa de homicídio simples. (…) para se afirmar a existência de uma tentativa de homicídio há-de ter-se verificado a prática pelo agente de actos de execução do homicídio, designadamente de actos idóneos a produzir o resultado morte. (…) Digamos que, nestes casos, uma vez que o modo e meios de execução são descritos, como que nos encontramos perante homicídios cuja execução deixa de ser livre para passar a ser vinculada”. Assim sendo, como afirma o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit. p. 76), “Se o tipo objectivo de ilícito do homicídio qualificado é exactamente o tipo objectivo do homicídio simples, nenhum problema especial há a assinalar quando, ocorrendo actos de execução de homicídio, não se verifica a morte da pessoa contra quem o agente pretende atentar e se mostra integralmente verificado um exemplo-padrão ou situação análoga qualificadores de homicídio. (…) Assim, questão será só saber se, tendo em conta a factualidade representada pelo agente, os actos de execução integram já por si um exemplo padrão ou situação equiparável e, para além disso, revelam já a especial censurabilidade do agente”. Logo, nada obstará à produção do efeito do exemplo padrão desde o início da execução (neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018, acessível em www.dgsi.pt). Delimitado o enquadramento jurídico da questão, importa atentar aos factos que resultaram provados. Assim, no caso em apreço nos autos, apurou-se que (...) [transcrição dos factos provados]. Face a esta factualidade, é manifesto o cometimento, pela arguida, de um crime de homicídio na forma tentada, tendo a mesma atuado com dolo direto. Com efeito, a arguida praticou atos de execução do crime de homicídio, sem que este se tenha consumado, sendo tais atos idóneos a produzir o resultado típico, ou seja, a morte da ofendida e sendo inequívoco que a sua vida esteve, efetivamente, em perigo, só não se produzindo o resulta morte por intervenção médico-cirúrgica tempestiva. No que concerne às qualificativas entendemos que relativamente às alíneas d) e h) a factualidade provada não se subsumem às mesmas (...). Pelo contrário, já no que concerne à alínea e), não se olvidando que o ciúme enquanto motivo torpe ou fútil terá de resultar de uma ponderação casuística, não pode deixar de se concluir que ao resultar provado que a arguida agiu motivada por sentir ciúmes da relação que achava o seu ex-namorado CC tinha com BB, por não se conformar com o fim de relacionamento amoroso que havia mantido com CC e por estar convencida que BB e CC tinham passado a noite juntos em casa de BB atuou de modo notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado, sendo igualmente evidente a desconformidade entre a gravidade e as consequências da ação cometida e o que impeliu a arguida a essa comissão, acentuando-se o desvalor da conduta da arguida por via do desvalor dos motivos que estiveram na sua origem e que determinaram, no caso concreto, a sua atuação nos moldes que resultaram provados. Com efeito, não era, de todo, expetável, para qualquer pessoa, que a arguida, por via de tal motivação, naquelas circunstâncias específicas, atuasse do modo que atuou, atentando contra a vida da vítima, sendo notória uma desproporcionalidade entre a conduta da vítima – nada foi alegado ou provado que a vítima tivesse feito -, e a atitude da arguida. Tal conduta da arguida é manifestamente atentatória do sentimento comunitário de justiça e dos padrões éticos geralmente aceites na comunidade, sendo, por conseguinte, suscetível de um juízo de especial perversidade e censurabilidade a que alude o art. 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e) do C.P.. (...) Assim, entendemos que todos os elementos objetivos do tipo se mostram preenchidos, advindo igualmente preenchidos os elementos subjetivos do tipo, resultando ainda demonstrado que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente. Os factos provados integram, pois, os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto nos arts. 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal no que se reporta à prática de um crime de homicídio qualificado tentado.” 12. A conclusão do tribunal a quo quanto à qualificação do homicídio por “motivo fútil”, convocando o acórdão deste tribunal de 19.4.2014, proc. 168/11.0GCCUB.S1 (que cita o acórdão de 18.1.2012, proc. 306/10.0JAPRT.P1.S1), assenta, pois, essencialmente e em substância, na “manifesta”, “flagrante” e “notória” “desconformidade,” “inadequação” e “desproporcionalidade” entre a ação e o seu resultado, ou seja, num juízo valorativo que incide sobre a relação entre o motivo que determina a vontade do agente e o resultado morte que este visa realizar através da ação determinada por esse motivo. Por outro lado, reconhece também que tais motivos devem ser “mínimos”, “de importância mínima”, constituindo “razões menores”, “razões fúteis”, em que inclui o ciúme, em resultado de uma “ponderação casuística” reveladora da desconformidade entre o motivo e o resultado, remetendo, de novo, para aquele juízo valorativo. Nos acórdãos citados estavam em causa situações distintas, em que o critério decisivo de valoração se expressou na “ausência de racionalidade”, na “ausência de um processo compreensível que, minimamente, convoque a lógica como explicação da conduta do arguido”, face a “um primitivismo de reações em que emergem pulsões primárias que indicam a desproporcionalidade entre [o resultado e] o motivo que despoleta o itinerário criminoso”. No acórdão de 19.4.2014, em que estava em causa uma situação em que o arguido visou “tirar desforço da ofensa corporal de que seu irmão tinha sido vítima”, um caso de “vingança pelas próprias mãos”, concluiu-se pela não existência de “motivo fútil” porque o quadro factual descrito não revelava essa “ausência de racionalidade”. Em contrário, no acórdão de 18.1.2012 concluiu-se pela existência de motivo fútil, também por “ausência de racionalidade”, numa situação em que, após breve troca de palavras, a vítima voltou as costas ao arguido, dizendo que se ia embora, porque não estava “para aturar malucos que não conheço de lado nenhum". Diferentemente, como se viu, o acórdão recorrido averiguou a futilidade, não a partir do motivo em si mesmo, da sua “irracionalidade” ou “incompreensibilidade”, para, a partir dele, afirmar a “desproporcionalidade” ou “desconformidade” perante o resultado, mas a unicamente a partir de um juízo valorativo sobre a relação entre o motivo e o resultado, em que identifica esta “desproporcionalidade”. 13. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, refletida no acórdão recorrido – e relembrando, nomeadamente, os recentes acórdãos de 27.05.2020, no Proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1. (https://blook.pt/caselaw) e de 27.11.2019, no Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1 (em www.dgsi.pt) –, o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração, não taxativa (de conformidade constitucional controversa – cfr. acórdão do TC n.º 852/2014, DR II, n.º 48/2015, de 10.3.2015, que, num caso concreto, julgou inconstitucional esta interpretação), dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, entre outros, o acórdão de 09.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM.E1.S1, e os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), de 2.4.2008, Proc. 07P4730 (Raul Borges), de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), e de 20.06.2018, Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2 (Vinício Ribeiro), em www.dgsi.pt, bem como os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojeto, Atas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, “O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998 Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008]. 14. A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se nos acórdãos de 27.11.2019 cit. e de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, relembrando o acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. (...) No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. (…) Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente. (...) A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete». E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmos acórdãos de 27.05.2020, de 27.11.2019 e de 12.07.2018): “O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da ação, quer numa motivação especialmente desprezível. (...) A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua atuação, sendo um tipo de culpa. (...) O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...) Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração ao nível da atitude do agente de formas de realização do ato especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação”. 15. Quanto ao “motivo torpe ou fútil”, indicado na al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, a doutrina e a jurisprudência vêm salientando unanimemente que se trata de um exemplo-padrão “estruturado com apelo a elementos estritamente subjetivos, relacionados com a especial motivação do agente”. Atuar determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que “o motivo da atuação, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana” (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Código Penal, Comentário Conimbricense, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 62). Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente [assim, entre outros, os acórdãos de 26.11.2008 Proc. 08P3706 (Fernando Fróis), de 10-12-2008, Proc. 08P3703 (Pires da Graça), de 06.01.2010 , Proc. 238/08.2JAAVR.C1.S1 (Oliveira Mendes), de 17-04-2013, Proc. 237/11.7JASTB.L1.S1 (Raul Borges), em www.dgsi.pt]. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral (Simas SANTOS /Leal Henriques, Código Penal Anotado, Vol. III, Rei dos Livros, 2016, p. 71, citando também Nelson Hungria). A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto. 16. Como se considerou no acórdão de 3.11.2021, Proc. 3613/19.3JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt), adverte-se, porém, que a situação reveladora de motivo fútil, relacionada com a motivação subjetiva do agente, pode ser “uma tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, maxime, por se ligar a um estado de afecto particularmente intenso” (v. g. o ciúme ligado à paixão) (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, loc. cit. p. 63). O que remete para a figura do crime de homicídio por “razões passionais” – para o “homicídio passional”, entendido como “cometido, em regra, repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito” (cfr. acórdão de 5.7.2012, proc. 2663/10.0GBABF.S1, e J. Curado Neves, Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, Coimbra Editora, p. 693) – que, pelas possibilidades de perturbação ou interferência na liberdade da formação e execução da vontade criminosa, podem relevar, não para a agravação da culpa, mas para a sua atenuação, por verificação dos requisitos do crime de homicídio privilegiado, em virtude de o agente ter agido “dominado por compreensível emoção violenta” (artigo 133.º do Código Penal), ou, mesmo, para a exclusão, nos casos mais graves (inimputabilidade, por traduzirem “perturbações profundas da consciência”, excesso de legítima defesa desculpante e estado de necessidade desculpante – artigos 20.º, 33.º e 35.º do Código Penal). 17. Daqui não resulta, porém, que a atuação do agente, fora destes casos, deva considerar-se como sendo determinada por “motivo fútil”. Enquanto expressão de sentimentos profundos e complexos, determinados pela perda ou pelo receio ou medo, real ou imaginário, de perda da pessoa a quem o agente se encontra afetivamente ligado, o ciúme traduz-se, como revelam os estudos da área da psicologia, num estado envolvendo emoções, reações e comportamentos muito diversos, que não podem, em si mesmos, qualificar-se como expressões de mera futilidade. Embora podendo justificar uma atenuação (ou exclusão) da culpa, nos casos mencionados, o estado emocional gerado pelo ciúme, traduzido em comportamento violento, pode dar lugar, fora desses casos, a situações que devam ser mais gravemente censuradas, por revelarem especial perversidade ou censurabilidade, nos termos do artigo 132.º do Código Penal. O que exigirá uma avaliação global do facto que permita identificar outras circunstâncias relevantes – que, neste caso, o acórdão recorrido afastou – que possam relacionar-se com esse estado emocional (como sucederá, por exemplo, quando, inexistindo motivo de atenuação ou exclusão da culpa, o homicídio é praticado através de ato de crueldade, com meio particularmente perigoso, determinado pelo prazer de matar ou de modo a fazer aumentar o sofrimento da vítima). Não ocorrendo circunstâncias de agravação (artigo 132.º) ou de atenuação (privilegiamento – artigo 133.º), o homicídio reconduzir-se-á, então, à previsão do tipo fundamental do artigo 131.º do Código Penal. Como se afirmou no acórdão de 31.1.2012 (Maia Costa), proc. 894/09.4PBBRR.S1, “(...) a motivação passional não constitui de forma nenhuma um motivo fútil. O estado de paixão (e concretamente o ciúme) envolve necessariamente as energias da pessoa, domina-a, determina em grande medida o seu comportamento, de forma que a “futilidade” do motivo não resulta, submetido à cláusula do n.º 1 do art.º. 132.º, especialmente censurável ou perverso. É óbvio que o motivo passional não poderá nunca ser valorado positivamente, em termos atenuativos, gerais ou especiais, como por vezes se pretende. Mas o mesmo se dirá em termos de qualificação do crime. Para que o homicídio possa ser qualificado como de especial censurabilidade ou perversidade é necessário que haja outras circunstâncias que a revelam, que não a mera intenção de eliminar o ‘rival’. Conclui-se, pois, que, ainda que entendido o crime praticado pelo arguido como motivado passionalmente, não existem circunstâncias que permitam, no caso, qualificar a motivação como especialmente censurável ou perversa, não podendo assim o arguido ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, antes devendo sê-lo pelo de homicídio simples, p. e p. pelo art.º. 131º do CP.” [no mesmo sentido, os acórdãos de 5.7.2012 (Arménio Sottomaior), proc. 2663/10.0GBABF.S1, e de 15.4.2015 (Gomes da Silva), proc. 176/13.7JAFAR.E1.S1]. 18. Em função do que vem de se expor, diferentemente do que se decidiu no acórdão recorrido, deverá a arguida ser condenada por um crime de homicídio da previsão do artigo 131.º do Código Penal, na forma tentada. O que implica que a moldura da pena, a partir da qual há que determinar a pena concreta (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), seja a correspondente a este crime (prisão de 8 a 16 anos), reduzida a um quinto, no seu limite mínimo, e de um terço no seu limite máximo [artigo 73.º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal], ou seja a partir da pena de 1 ano, 7 meses e 6 dias, no seu limite mínimo, a 12 anos e 8 meses de prisão, no seu limite máximo. Quanto à pena 19. A arguida AA vem condenada na pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, havendo que extrair as consequências devidas quanto à qualificação jurídica em virtude do afastamento da circunstância de qualificação do crime de homicídio. Resultando a alteração numa qualificação não desconhecida da arguida, não se justifica a necessidade de proceder à notificação a que se refere o artigo 424.º, n.º 3, do CPP (assim, o acórdão de 8.4.2004, proc. 3763/03, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016, p. 1360). 20. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena. O acórdão recorrido fundamenta a decisão nos seguintes termos: “2. Da medida da pena O crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Penal, é punido com pena de prisão de 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão a 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias. Dentro da moldura penal abstracta, a medida da pena é concretamente determinada em conformidade com o princípio regulador do art. 40.º, n.ºs 1 e 2, do CP, e com os critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, sendo, por conseguinte, ponderado o grau de culpa do arguido e, bem assim, todas as circunstâncias que, não fazendo parte integrante do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, mais acrescendo a ponderação das necessidades de prevenção. No caso em apreço nos autos cabe ponderar globalmente: - a gravidade das consequências, que se afigura mediana, tendo por referência as lesões que resultaram provadas e sua cura, já que para além das cicatrizes descritas nos factos provados, não resultou para a vítima qualquer desfiguração grave e/ou permanente; - a gravidade da ilicitude, que é elevada atendendo ao número de lesões sofridas por BB, decorrente das múltiplas agressões de que foi vítima e às zonas do corpo onde tal se verificou; - a intensidade do dolo da arguida, que é elevada, uma vez que o arguida atuou com dolo direto (recorde-se que, por um lado, continuou a desferir pancadas na cabeça da vítima mesmo após esta se encontrar caída no chão, e, por outro lado, apenas deu por cessada a agressão por pensar que a ofendida estava morta); - a conduta da arguida imediatamente após os factos, ao não ter prestado socorro à vítima; - as necessidades de prevenção geral, que são elevadas considerando quer a frequência com que este ilícito é praticado, quer a natureza do bem jurídico protegido pelo ilícito em causa, quer ainda o alarme e o sentimento de insegurança que este tipo de conduta causa na população e que exigem a reposição da confiança na validade e eficácia das normas violadas; - as necessidades de prevenção especial, que se revelam diminutas, já que a arguida não tem antecedentes criminais e demonstra arrependimento, o que, de certo modo, permite alvitrar que reconhece o desvalor da sua conduta. Contudo, sempre se dirá que a ausência de antecedentes criminais acaba por ter uma relevância mitigada já que o tipo de crime em análise não está normalmente associado à marginalidade ou a um comportamento socialmente desviante (neste sentido, acórdão do STJ de 09.07.2014, acessível em www.dgsi.pt); - o percurso de vida da arguida, já que ressalta à vista que a mesma não beneficiou de estrutura familiar normativa nem de um ambiente harmonioso securizante, conforme se conclui dos factos provados no que concerne ao percurso de vida da arguida, o que, pese embora não desculpabilize a sua conduta, deve ser atendido; - a conduta adequada da arguida em meio prisional, e, por último, - a conduta atual da arguida, já que confessou os factos verbalizando arrependimento, sendo, no entanto, de ter em consideração o teor do relatório social, onde se conclui que a perspetiva da arguida relativamente aos factos é, essencialmente autocentrada (facto 30., o que permite concluir que ainda não interiorizou, pelo menos totalmente, o impacto das suas condutas para terceiros, mormente, no caso em apreço, perante a vítima). Assim, por se mostrarem devidamente asseguradas as finalidades de punição que no caso se impõem, temos por adequada a condenação da arguida na pena de 7 (sete) anos de prisão.” 21. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal, sobre as finalidades das penas, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias – circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva – que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as indicadas no n.º 2 do artigo 71.º (n.º do mesmo preceito). Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º). A projeção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada (finalidade de prevenção; no caso, a vida humana), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado. A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). 22. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e, assim, avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, devendo evitar-se a dessocialização (sobre estes pontos, retomando o que se disse em acórdãos anteriores, entre outros, nos acórdãos de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, cfr., em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357)). 23. Como se sublinhou, entre outros, nos acórdãos de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit., é, pois, na determinação da presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, neste caso a vida, concretizada no ataque ao bem jurídico objeto da Acão levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação. Devendo, por conseguinte, a operação de determinação da pena alhear-se de considerações de natureza geral pressupostas pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração de fatores relevantes para a determinação da medida da pena (como se observou, designadamente, no acórdão de 11.09.2019, proc. 1032/18.8JAPRT.S1, sumário em https://www.stj.pt/wpcontent/uploads/2020/04/ criminal_sumarios _2019.pdf). 24. Considera a recorrente, em síntese, que, tendo confessado a prática dos factos, o que não foi tido em consideração, o tribunal “não valorizou convenientemente outros factores”, nomeadamente as circunstâncias de não ter beneficiado de “uma estrutura familiar normativa nem de um ambiente harmonioso em todo o seu percurso de vida”, de ter mostrado “humildade e arrependimento”, de ter mantido “uma postura calma e integrada desde que se encontra presa”, de não registar condenações por crimes de idêntica natureza, de estar “consciente do crime que praticou e das consequências que daí advêm” e a “mediana” gravidade das suas consequências, tendo em conta “que, para além das cicatrizes descritas nos factos provados, não resultou para a vítima qualquer desfiguração grave e/ou permanente. 25. Como se vê da fundamentação, todas estas circunstâncias, incluindo a confissão, foram ponderadas pelo tribunal a quo, que adequadamente considerou todos os fatores relevantes para a determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal. Não deve, como se disse, conferir-se relevância a elementos já considerados pelo legislador para a incriminação (bem jurídico protegido e gravidade abstrata do crime expressa na moldura penal), sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, devendo avaliar-se a concreta gravidade da conduta em função das circunstâncias relevantes por via da culpa e da prevenção. Para a medida da gravidade da culpa militam contra a arguida o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do crime e as suas consequências – o instrumento utilizado e a forma e o modo como o foi, o número, natureza e gravidade dos ferimentos causados, o abandono da vítima, o internamento hospitalar, a sujeição a tratamento e as consequências de carácter permanente (pontos 2 a 10 da matéria de facto) –, a elevada intensidade do dolo – dolo direto – e os motivos egoístas que o determinaram – ciúmes. Na consideração das exigências de prevenção, releva em particular, negativamente, a conduta posterior ao facto, em que não se identifica qualquer ato destinado a reparar as consequências do crime, o qual, no entanto, constitui um ato isolado motivado por razões momentâneas e por impulso de natureza passional. Das condições pessoais da arguida, de 23 anos de idade, de que se destacam a precariedade e as dificuldades de desenvolvimento pessoal e da sua situação económica e familiar e a ligação dos factos ao consumo de estupefacientes, do comportamento anterior ao crime, incluindo o facto de não se registarem antecedentes criminais, e demais elementos relativos à personalidade da arguida, que tinha 23 anos de idade à data da prática dos factos, mostrando alguma interiorização da gravidade da sua conduta, arrependimento, embora não concretizado em catos, e interesse na organização da sua vida profissional, não se extraem elementos que, decididamente, afastem um juízo que permita concluir no sentido de falta de preparação para manter uma conduta lícita. Revelam-se, todavia, necessidades de reforçar o pretendido reforço positivo do seu percurso de vida esta, sendo que o comportamento prisional da arguida e apoio psicológico que vem recebendo permite um juízo de prognose não desfavorável quanto à realização das finalidades de ressocialização. 26. Assim sendo, tudo ponderando, tendo em conta a nova moldura penal resultante da alteração da qualificação dos factos e as circunstâncias relevantes, nos termos expostos, afigura-se adequada a aplicação da pena de 6 anos de prisão, a qual, nesta medida, contendo-se na medida culpa, se considera proporcional à gravidade do crime cometido em vista da realização das finalidades da pena a que se refere o artigo 40.º do Código Penal. Sendo a pena de medida superior a 5 anos, não há que considerar a possibilidade de suspender a sua execução, por a isso se opor o artigo 50.º do Código Penal, segundo o qual só há lugar à suspensão de execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos. Quanto a custas 27. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. Não sendo o caso, não há lugar a condenação. III. Decisão 28. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, b) Alterar a decisão recorrida e, procedendo à alteração da qualificação jurídica dos factos, condenar a arguida na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal. Mantendo-se, no mais, o decidido. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 2 de fevereiro de 2022. José Luís Lopes da Mota (relator) Maria da Conceição Simão Gomes (assinado digitalmente) |