Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | RICARDO COSTA | ||
| Descritores: | AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DANOS PATRIMONIAIS DANOS NÃO PATRIMONIAIS INTERVENÇÃO PRINCIPAL COMPETÊNCIA MATERIAL EXTENSÃO DE COMPETÊNCIA TRIBUNAL ADMINISTRATIVO TRIBUNAL COMUM MUNICÍPIO LICENCIAMENTO DE OBRAS PRÉDIO URBANO TRIBUNAL COMPETENTE | ||
| Data do Acordão: | 05/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE | ||
| Sumário : | SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC) A acção destinada ao reconhecimento de propriedade e restituição do indevidamente apropriado em face de “esbulho” (“acção de reivindicação”: arts. 1311º-1312º do CCiv.) e ao decretamento de responsabilidade civil extra-contratual por facto ilícito e danos patrimonais e não patrimoniais (arts. 483º-496º do CCiv.), uma vez configurada com uma causa de pedir assente na ocupação indevida de imóvel na relação entre particulares, é da competência dos tribunais comuns (arts. 64º-65º, CPC; 40º, 1, 117º, 1, a) («juízo central cível»), 130º, 1, LOSJ), sem prejuízo da invocação de excepção peremptória (art. 576º, 3, CPC) que implique a intervenção provocada de município e a sindicação da legalidade do exercício das suas competências na emissão de actos administrativos conexos com a materialidade de tal excepção e pertinentes para a decisão da causa (art. 91º, 1 e 2, CPC: “extensão de competência”). | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. AA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB e cônjuge mulher CC, pedindo a final que, considerando-se provada e procedente a acção, se julgue: “a) declarar-se que a autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano descrito no artigo 1.º [da petição inicial], com a área total e as confrontações descritas nos artigos 11.º e 12.º, nos termos descritos no Registo Predial e de acordo com o alvará de Loteamento 8/2002; b) serem os réus condenados a reconhecer o direito de propriedade peticionado em a); c) serem os réus condenados a restituir à autora a parcela de terreno esbulhada e ocupada, devendo demolir a construção que fizeram no imóvel da autora, concretamente parte da moradia unifamiliar, deixando o imóvel desocupado, livre e devoluto de pessoas e bens; subsidiariamente d) devem ser os réus condenados a indemnizar a autora no montante de EUR 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), correspondente à diferença entre a situação patrimonial atual da autora e a que teria se não existissem danos, acrescidos dos juros moratórios vincendos desde a citação até integral pagamento; cumulativamente com os pedidos a) a c) ou d) d) devem os réus ser condenados a pagar à autora o montante de EUR 5.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.” 2. Os Réus apresentaram Contestação, com reconvenção e com pedido de intervenção principal provocada; suscitaram a excepção de ilegitimidade activa da Autora. 3. A Autora apresentou Réplica, pedindo a improcedência das excepções e do pedido reconvencional, sem oposição ao pedido de intervenção. 4. Foi proferido despacho que admitiu a intervenção principal provocada de DD e cônjuge mulher EE, assim como de FF e cônjuge mulher GG, com posterior apresentação pelos Intervenientes dos articulados admissíveis. A Autora apresentou Resposta à matéria de excepção e ao pedido reconvencional. 5. Considerando o “levantamento topográfico” junto pela Autora (doc. 7 da petição inicial), suscitando-se oficiosamente a questão, assim como o requerido pelos Intervenientes Principais DD e EE e após pronúncia de não oposição das demais partes, foi proferido despacho de admissão da intervenção principal provocada do Município de Braga. Na sequência, o Município de Braga apresentou articulado em que invocou a inadmissibilidade legal do chamamento, assim como a excepção de incompetência material do tribunal, concluindo pela absolvição do pedido, realçando-se, no ponto da competência, a seguinte argumentação: “11. O direito de regresso que serve de fundamento ao chamamento tem por base a invocada violação, por parte do Município, de normas de direito administrativo, no caso o RJUE e o RGEU, respeitantes à concessão de licenças de utilização (cfr. artigo 16º do pedido de intervenção). 12. O licenciamento urbanístico é competência exclusiva dos municípios, consistindo em actividade totalmente subordinada a normas de direito administrativo, na qual o Município de Braga exerceu poderes públicos. 13. Do mesmo modo, a responsabilidade civil extracontratual do Município está sujeita a regime específico (Lei nº 67/2007, de 31.12), como se define no artigo 1º: “1 – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.” 14. Na tese dos Intervenientes o que estará em causa será a prática por parte do Município de actos administrativos ilegais (cada autorização de utilização emitida é um acto administrativo) e danos decorrentes dos mesmos. 15. Ora, nos termos do disposto no artigo 4º/nº 1 b) e f) do ETAF a apreciação deste litígio cabe, em exclusivo, aos tribunais da jurisdição administrativa: “1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo” 16. Determina o artigo 96º/a) do CPC que a infracção das regras de competência em razão da matéria conduz à incompetência absoluta do Tribunal, 17. Pelo que mantendo os Intervenientes o pedido de chamamento do Município deverá o Tribunal declarar-se incompetente em razão da matéria, com as consequências previstas no artigo 99º do CPC, o que se invoca.” Notificadas as partes para se pronunciarem, DD e EE manifestaram-se pelo indeferimento de ambas as pretensões: a extemporaneidade do chamamento e a incompetência material. 6. O Juiz ...do Juízo Central Cível no Tribunal proferiu decisão, julgando incompetente em razão da matéria o Juízo Central Cível de Braga para conhecer e apreciar a acção, absolvendo os Réus da instância. Foi fixado o valor da acção em € 60.000, transitado em julgado. 7. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que conduziu a ser proferido acórdão, julgando o recurso procedente e, assim, concedendo provimento à apelação e revogando a decisão de 1.ª instância, “declarando-se que o tribunal competente para a apreciação de mérito é o tribunal da jurisdição comum, devendo os autos prosseguir os seus termos”. 8. Agora sem se resignar, o Município de Braga, enquanto Interveniente Principal chamado à lide, interpôs recurso de revista para o STJ, visando a revogação do acórdão recorido e determinação da incompetência em razão da matéria da jurisdição comum e competência da jurisdição administrativa e fiscal, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões: “1ª O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães que, concedendo provimento à apelação aduzida pela A., revogou a decisão da 1.ª Instância e, em consequência, declarou que o tribunal competente para a apreciação do mérito é o tribunal da jurisdição comum e ordenou o prosseguimento dos autos. 2ª Para tanto, entendeu-se no aresto recorrido que “face à pretensão da A., não está conjeturada por esta qualquer relação jurídica administrativa; estamos perante uma simples ação de reivindicação, contra os R.R., e pedido de indemnização com base na responsabilidade civil extra-contratual, chamando-se à colação as normas a tal atinentes – arts. 1311º e segs. e 483º e segs., do C.C.”. OCORRE QUE, 3ª Como bem entendido pelo Tribunal da 1.ª Instância, “o objecto do litígio (…) passa pela apreciação de uma relação de natureza administrativa, desde logo, quanto ao sujeito demandado (Réu: Município de Braga) que lembramos está na demanda a título principal – como R. e na sua veste de ente público –, mas, também, quanto ao objeto, pois serão atos administrativos do município de Braga, alegadamente ilegais, que estarão na origem da configuração actual do prédio da A., pelo que lhe incumbirá assumir o ressarcimento dos danos peticionados pela A. – a pretendida indemnização.” 4ª Ademais, como também ali consignado, “na petição inicial peticiona a A. a título principal, que os 1ºs RR sejam condenados a demolir a construção que fizeram no imóvel da autora, concretamente parte da moradia unifamiliar desrespeitando o alvará de Loteamento 8/2002, pelo que a resolução do presente litígio pressupõe sempre a apreciação da legalidade urbanística da edificação realizada pelos 1ºs RR, necessária à decisão da demolição ou não da mesma (…)”. 5ª Ora, a apreciação do pedido principal de demolição da construção dos 1.ºs RR., na parte em que ocupará o prédio da A., necessariamente dependerá do apuramento da legalidade da edificação em causa perante as imposições derivadas das normas urbanísticas. 6ª Em causa estará a apreciação da invocada violação, por parte do Município ora recorrente, de normas de direito administrativo, no caso o RJUE e o RGEU, respeitantes à concessão de licenças de utilização. 7ª Discutir-se-á, portanto, a alegada prática por parte do recorrente de actos administrativos ilegais (cada autorização de utilização emitida é um acto administrativo) e os danos decorrentes dos mesmos, sendo que o licenciamento urbanístico é competência exclusiva dos municípios, consistindo em actividade totalmente subordinada a normas de direito administrativo, na qual o Município de Braga exerceu poderes públicos. 8ª Concorda-se, pois, plenamente com o afirmado na decisão da 1.ª Instância, no sentido de que “tal implica a apreciação da imposição de deveres públicos aos particulares perante a administração pública, por motivos de interesse público. E, por isso, a matéria a apreciar e decidir pressupõe a resolução de questões suscitadas no âmbito de uma relação jurídica administrativa, entendida sob o ponto de vista material – no sentido de regulada pelo direito administrativo –, subtraída à competência da jurisdição civil”. COM EFEITO, 9ª Dispõem os artigos 64.º do CPC e 40.º da LOSJ que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. A competência dos tribunais judiciais é, assim, analisada por critérios de atribuição positiva e de competência residual e as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais, sendo que na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização. 10ª Por seu turno, prescreve o ETAF, no seu artigo 4.º, n.º 1, alíneas a), b) e f), que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais, a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público. 11ª Sendo que, com a Reforma do Contencioso Administrativo pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, pois que esta passou a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente de tais questões se regerem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. 12ª A responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa – entendendo-se, para o efeito, que correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo – encontra-se, portanto, sujeita a regime específico – v.d. artigo 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. 13ª Voltando ao caso vertente, ante o supra exposto, é cristalino que a decisão de mérito implicará o conhecimento de questões resultantes do exercício da função administrativa, pois que se debruçará sobre a legalidade das autorizações de utilização emitidas pelo Município de Braga, bem como sobre os putativos danos daí resultantes. 14ª O entendimento de que, in casu, o Tribunal Comum é o competente é violador do disposto nos artigos 40.º da LOSJ, 64.º do CPC, 4.º, n.º 1, alíneas a), b) e f) do ETAF e 1.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, na medida em que subtrai aos Tribunais Administrativos matéria cuja apreciação o legislador expressamente lhes entregou.” 9. Subidos os autos, notificado nesta instância para audição nos termos do art. 101º, 1, 2ª parte, do CPC, considerando o objecto recursivo, o Ministério Público veio pronunciar-se com Parecer que conclui pela adesão e confirmação do julgado pelo acórdão recorrido, “sendo materialmente competente para conhecer da presente ação o tribunal comum”. ∗ Colhidos os vistos legais em cumprimento do art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC, cumpre apreciar e decidir. II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS 1. Objecto da revista As decisões das instâncias revelam discordância sobre a questão relativa à (in)competência absoluta do tribunal da 1.ª instância, em razão da matéria, para o conhecimento e apreciação da acção intentada pela Autora – arts. 96º, a), 97º, 1 e 2, 99º, 1, 278º, 1, a), 576º, 2, 577º, a), do CPC –, tendo em conta a possibilidade de ser determinada a competência da jurisdição administrativa e fiscal em detrimento da jurisdição comum. Uma vez que o conteúdo do acórdão recorrido – objecto da revista – revela que o Juízo Cível em que foi proposta a acção é o tribunal competente, enquanto jurisdição comum, a revista é admitida tendo por base os arts. 671º, 2, a), 629º, 2, a) (sem dependência do valor da causa e da sucumbência: «violação das regras de competência em razão da matéria»), e 674º, 1, a), do CPC1. Na resolução da questão decidenda, cabe ao tribunal de recurso dar uma solução para a ou as questões jurídicas que fazem parte do objecto do recurso, tal como delimitado (e eventualmente acrescido dos seus pressupostos necessários e adjuvantes na qualificação jurídica), não estando submetido a considerar, dialogar e rejeitar todos ou alguns dos argumentos apresentados pelas partes recorrentes (art. 5º, 3, CPC). 2. Factualidade relevante Releva o que consta supra do Relatório, tendo em conta a delimitação do objecto do recurso. 3. Direito aplicável 3.1. A questão a resolver é saber se o acórdão recorrido fez a correcta aplicação do direito quando considerou competente em razão da matéria para conhecer da acção o Juízo Central Cível de Braga, em detrimento da jurisdição administrativa e fiscal; logo, excluindo a aplicação do art. 1º, 1 («litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), e 4º, 1, em esp. als. a), b) e f), do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro). Para esse efeito, usou da seguinte argumentação: “Para apreciação da questão da competência material, e concretamente para aferir da competência do tribunal comum face ao tribunal administrativo, importa ter presente três princípios, como se passa a elencar. O primeiro é que a competência do tribunal afere-se face à pretensão que é apresentada pelo A., pelo direito para o qual o A. pretende a tutela jurisdicional, e pela delimitação da causa de pedir, pelos factos jurídicos invocados dos quais emerge aquele direito; assim se determina qual o tribunal competente para a ação. Conforme refere Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91), não importa averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. O segundo, é que em regra o momento relevante para se aferir da competência, é o da propositura da ação (cfr. art. 38º, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013 de 26/8 – LOSJ). O terceiro é que a jurisdição judicial é residual face às demais jurisdições – art. 40º da LOSJ. Também o art. 64º do C.P.C. refere que a competência dos tribunais comuns é uma competência residual. O art. 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa diz: “Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais”. Em anotação ao então art. 214º da Constituição da República Portuguesa, hoje aquele art. 212º, n.º 3, Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, pág. 815) referem que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). E acrescentam: “Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza“privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.” (…) Ora, aplicando-se desde já ao caso, a A. propõe a ação contra os R.R. BB, e mulher CC. Formula um pedido principal de declaração, reconhecimento e restituição do seu direito de propriedade sobre prédio identificado; subsidiariamente formula um pedido de indemnização por danos patrimoniais, e cumulativamente com um ou outro um pedido de indemnização por danos não patrimoniais. E para o efeito imputa aos R.R. a construção da sua moradia no espaço que corresponde ao Lote da A.. Ora, face aos pedidos e causa de pedir, esta ação situa-se exclusivamente no domínio jurídico privado. Mais: o Município de Braga não foi demandado pela A.. Tudo o que se passou daí para a frente, o que determinou os chamamentos sucessivos e o estatuto em que os chamados foram admitidos a intervir, não é objeto do presente recurso. De todo o modo, reitera-se, face ao pedido e causa de pedir da A. (e mesmo que fosse na perspetiva do pedido reconvencional), o Município não vai ser condenado ou absolvido nestes autos. O Município de Braga aparece no processo porque os chamados DD e EE, a ser reconhecida a sua responsabilidade na delimitação do Lote e consequente implantação da moradia, pretendem imputar a responsabilidade diretamente ao Município de Braga pela emissão das respetivas licenças de utilização, quando, na verdade, a delimitação dos Lotes, espaços verdes cedidos ao domínio público e implantação das construções não correspondem com o Loteamento previamente aprovado. Porém nem aqueles chamados dirigem o seu (suposto) pedido reconvencional (subsidiário) contra o Município. Sempre se dirá que o direito de regresso de que fala o Município de Braga no seu articulado em que suscita a incompetência material, dando lugar à intervenção acessória, não define a relação material controvertida, limitando-se a intervenção do chamado à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento (cfr. art. 321º do C.P.C.). Também não é objeto do recurso a admissibilidade dos pedidos reconvencionais. Abordando de forma breve o terceiro dos princípios elencados no início, o art. 1º, n.º 1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2 diz: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.” O seu art. 4º exemplifica, nos n.ºs 1 e 2, as questões ou litígios sujeitos ao foro administrativo e fiscal, e nos n.ºs 3 e 4 o que dele está excluído. O que orienta a determinação da competência é estarmos perante uma relação jurídica administrativa e função administrativa — conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público — cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9ª edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258. Sucede que, como vimos, face à pretensão da A., não está conjeturada por esta qualquer relação jurídica administrativa; estamos perante uma simples ação de reivindicação, contra os R.R., e pedido de indemnização com base na responsabilidade civil extra-contratual, chamando-se à colação as normas a tal atinentes – arts. 1311º e segs. e 483º e segs., do C.C.. A relação jurídica que está na base do litígio e a natureza das normas que a disciplinam são do âmbito privado. Não são por isso do foro administrativo. Assim sendo, e por tudo o exposto, deve antes reconhecer-se a competência material do tribunal comum.” 3.2. Esta fundamentação merece o nosso respaldo, a ela se aderindo nos termos do art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC. Com efeito. 3.2.1. Em juízo a Autora formula contra os Réus: (i) pedido principal de declaração, reconhecimento e restituição do seu direito de propriedade, relativo a um prédio da sua propriedade (correspondendo a um Lote aprovado para urbanização), tendo por oposição a alegada conduta dos Réus, consubstanciada em terem edificado uma construção que ocuparia ilicitamente uma parte do prédio da Autora; (ii) em face da desvalorização do imóvel, considerando a impossibilidade de promover edificação em virtude da redução da área total do prédio da sua titularidade, pedidos subsidiários de indemnização por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais. Consultando os autos e as decisões das instâncias, verifica-se como relevante. Alega-se ter adquirido em 2006 uma parcela de terreno para construção (Lote D...), integrando-se em Loteamento com alvará 8/2002 da Câmara Municipal de Braga, confrontando a poente com o Lote D.... Os Réus são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, constituído por casa de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro, a que corresponde o Lote D..., igualmente integrado no mesmo Loteamento, confrontando a nascente com o Lote D... e a poente com Lote D..., sendo a moradia edificada pelos Réus no Lote D... contígua ao Lote da Autora, e contígua com a moradia edificada no Lote D..., a qual é a última construção a poente daquela banda de Lotes, confrontando a oeste com espaço público. Prossegue-se invocando que, no final do ano de 2018, o Lote da Autora, bem como os situados a nascente, concretamente os Lotes B..., B... e B..., não tinham quaisquer edificações, nem se encontravam fisicamente delimitados, e o B... correspondente ao último Lote de terreno sito a nascente daquela banda de Lotes, confrontava com espaço público. Alega-se que, no início de 2019, o marido da Autora foi contactado pelos proprietários do Lote B..., que o informaram da existência de uma desconformidade entre as áreas implantadas e as áreas licenciadas de acordo com os alvarás de Loteamento n.º 8/2002 (onde se integra o Lote da Autora e dos Réus) e o alvará n.º 6/2000 (onde se integram os Lotes B..., B... e B...); ao iniciarem os trabalhos preparatórios de construção de uma moradia no Lote B..., os referidos proprietários aperceberam-se que, da extrema nascente do seu Lote até à moradia edificada no Lote D... – propriedade dos Réus –, não existia espaço suficiente para a construção das 4 (quatro) moradias previstas nos já mencionados alvarás de Loteamento. O espaço efectivamente existente entre os aludidos limites era inferior ao que constava dos alvarás de Loteamento. Assim sendo, aqueles proprietários realizaram um levantamento topográfico que incluía: a) os Lotes D..., D... e D...; b) os Lotes B..., B... e B...; c) toda a área envolvente a estes. O aludido levantamento contemplava ainda a discriminação entre: i) as áreas constantes dos projectos de Loteamento aprovadas; ii) as áreas onde efectivamente foram construídas moradias (em particular, nos Lotes D... e D...); iii) a localização das moradias que viessem a ser edificadas nos Lotes D..., B..., B... e B..., de acordo com a largura aprovada e prevista para os mesmos nos projectos de Loteamento, aferida e medida desde a extrema nascente da edificação localizada no Lote D... (e parcialmente no Lote D...). Alega-se que tal levantamento faz verificar que os Réus construíram a sua moradia, integrada no Lote D..., ocupando parte do Lote da Autora – o Lote D... – em cerca de 2,5m de largura, sendo que, em resultado da edificação da moradia dos Réus, o Lote da autora encontra-se neste momento reduzido na sua largura a cerca de 4,5m, quando de acordo com o Loteamento devidamente aprovado pela Câmara Municipal de Braga (CMB) deveria ter 7,00m, ofendendo o seu direito de propriedade e sendo esbulhada na extensão originária e integral do seu Lote. Invoca-se que está em curso processo de fiscalização na Câmara Municipal de Braga, promovida por força de requerimento da Autora. Conclui-se que, considerando que o alvará de loteamento especifica que o lote dos Autores se destina exclusivamente à construção de uma moradia unifamiliar em banda, de três pisos, com a área de implantação e de construção de 273m2, a implantação parcial da moradia dos Réus no lote da Autora determinou necessariamente a impossibilidade física e legal de a demandante construir qualquer edifício no local – quer o admitido no loteamento, quer qualquer outro; para além de se encontrar vedado à Autora destinar o que resta do seu lote a outro fim que não seja da construção de uma moradia, estando assim desprovido de qualquer utilidade e valor. ∗ Os Réus excepcionaram com a ilegitimidade da Autora (art. 30º do CPC), dizendo que, quando essa Autora adquiriu o prédio-Lote em causa, já no seu lote estava edificada a moradia dos Réus e ali residiam, localizada e configurada nos exactos termos e condições em que se encontrava aquando da emissão da licença de utilização pela Câmara Municipal de Braga, sendo que a área e as delimitações do referido Lote já se encontravam estabelecidas, datando a aquisição e vedação do seu prédio de 2004; a existir qualquer ocupação pelos Réus a mesma já existia à data em que Autora fez a sua aquisição, tendo comprado o prédio já conhecedora da implementação do prédio dos Réus. Acrescentam que a sua moradia foi construída pelo empreiteiro DD, também proprietário do Lote D..., contíguo ao dos Réus, que logo os delimitou e vedou a “obra”, sendo que este viria a vendê-lo a FF e mulher GG, sendo então edificada uma moradia. Invocam que obtiveram junto da Câmara Municipal de Braga o respectivo alvará de obras de construção, o qual foi sendo objecto de sucessivas renovações até à data da sua conclusão, e edificaram a construção da sua moradia sempre com observância do projecto aprovado pela Câmara Municipal de Braga, sob o escrutínio e fiscalização daquela, motivo pelo qual, em 11/12/2006, a referida entidade emitiu a competente licença de utilização, atestando que a construção da moradia em causa estava conforme o projecto e, consequentemente, com o alvará de Loteamento n.º 8/2022. Sendo que se, porventura, existisse algum tipo de desconformidade entre a construção da moradia dos Réus e o respectivo projecto aprovada pela Câmara e /ou o respectivo alvará de Loteamento n.º 8/2002, tal circunstância teria sido detectada, não só pela Autora, aquando da compra do Lote, como pelo menos, pela Câmara Municipal de Braga que, enquanto entidade responsável, nunca teria nem aprovado o projecto de construção, nem emitido os alvarás destinados a esse fim e muito menos emitido a licença de utilização. Ao fazê-lo, as entidades competentes para o efeito, nomeadamente a Câmara Municipal de Braga, que fiscalizou, por ter esse dever e obrigação, o decurso da obra de construção da moradia dos Autores, atestou a conformidade de tal obra com os projectos aprovados e com o referido alvará de loteamento. Por isso, ainda que se considere a verificação pelos Réus da aludida ocupação da parcela de terreno alegada pela Autora, tal ocupação foi efectuada, pelo menos desde Junho de 2004, de boa-fé, de forma pacífica e pública, sem a oposição de quem quer que fosse, nomeadamente da Autora, atuando sempre os Réus na convicção de que tal parcela de terreno era efetivamente propriedade daqueles – pedido feito em sede de reconvenção. Alega-se ainda que ou a Autora viu o Lote que adquiriu e conheceu as suas delimitações, pelo menos no que concerne à parte em que confronta com a propriedade dos Rúes e aceitou as mesmas, decidindo comprá-lo como fez, nos exactos termos, condições físicas e área que apresenta actualmente, conformando-se e aceitando que a parcela de terreno que invoca que já estava a ser ocupada pelos Réus e era propriedade daqueles, ou então a mesma assumiu um comportamento doloso, descuidado, desleixado e negligente ao não apurar, aquando da compra do Lote, quais as concretas áreas e delimitações do prédio que ia adquirir, não se preocupando em proceder à medição da sua concreta área nem à vedação da mesma após a sua compra. Em qualquer das possibilidades, a única responsabilidade pelo sucedido recairia sempre em exclusivo sobre a própria Autora, consubstanciando um manifesto venire contra factum proprium, vir agora a mesma, volvidos mais de 16 anos desde que comprou a propriedade do seu Lote, peticionar dos Réus o pagamento de indemnizações para ressarcimento de alegados danos sofridos por aquela, de todo o modo impugnados por exagerados e desproporcionais. Alega-se, para justificar o pedido de intervenção principal provocada, que DD, por si contratado, foi quem, na qualidade de empreiteiro, não só construiu a totalidade da moradia como diligenciou o que se afigurasse necessário para tal fim, nomeadamente, indicando e tratando de tudo com o arquiteto, tratando da obtenção das licenças de construção, da licença de utilização, etc. Foi igualmente quem procedeu à delimitação das áreas desse lote e do que com ele confina a nascente, de sua propriedade e depois vendido a terceiros, tendo procedido à sua vedação. Logo, assiste aos Réus o direito de regresso pelos prejuízos resultantes da ocupação da parcela de terreno, pelo menos desde Junho de 2004 até 20 de Julho de 2007 pelos anteriores proprietários do Lote D... e a partir dessa data pelos seus actuais proprietários. Finalmente invocam que, se se comprovar a alegada ocupação do prédio da Autora, a área do seu prédio foi ocupada na mesma medida pelo Lote D..., pelo que pedem o chamamento dos seus antigos e actuais proprietários à demanda, FF e cônjuge esposa, GG, pois assiste aos Réus o direito de reivindicarem para si a propriedade da parcela de terreno que eventualmente estejam a ocupar com a construção parcial da moradia onde residem, numa largura de 2,5m e numa extensão de todo o Lote D.... Assiste ainda aos Réus um alegado direito de regresso relativamente ao Chamado DD (e cônjuge), na qualidade de empreiteiro, por eventualmente ter erradamente delimitado as extremas do Lote D... que influenciou na delimitação errada das extremas do Lote D..., o que terá originado a eventual ocupação pelos Réus da alegada parcela de terreno invocada pela Autora, assistindo-lhe o direito de lhe exigir ulteriormente os prejuízos que da eventual delimitação errada dos Lotes D... e D... lhe advenham. Concluem que os Réus, na eventualidade de serem condenados em qualquer dos pedidos indemnizatórios, irão intentar acção judicial para ressarcimento dos prejuízos decorrentes, quer por lhe terem dado origem, quer por ocuparem e estarem a ocupar abusivamente uma parcela de terreno do Lote D..., propriedade dos Réus, pelos anteriores e actuais proprietários do Lote D.... ∗ Admitida a intervenção principal do referido empreiteiro DD e cônjuge EE, estes, no seu articulado de defesa, invocaram que o eventual vício da delimitação dos lotes contíguos, conduzindo à ocupação indevida do Lote D..., estaria no erro consistente nas áreas atribuídas ao loteamento ou dos limites do mesmo, considerando o alvará de obras de construção e a licença de utilização emitidas pelo Município de Braga, que juntaram; no que diz respeito à vedação da obra, a mesma foi levada a cabo segundo as instruções do Réu marido e sem qualquer tipo de decisão na mesma da sua parte. Em suma: as limitações/delimitações da propriedade, fundações e implantação da estrutura da habitação não foi da responsabilidade dos aqui Intervenientes Principais – surge a partir da vedação pré-existente no Lote D... –, nem tão pouco executaram estes quaisquer desses trabalhos, sendo antes da autoria de outra empresa. Mais alegaram, previamente, que o eventual direito de indemnização peticionado pela Autora, subsumível ao regime da responsabilidade extra-contratual, prescreve no prazo de três anos (art. 498º, 1, CCiv.), o que invocam em face do prazo decorrido entre a abordagem dos proprietários do Lote B... junto do marido da Autora e a proposição da acção. Propuseram pedido reconvencional subsidiário, requerendo que o Lote D... lhes seja atribuído no caso de condenação, sob pena de enriquecimento sem causa da Autora (arts. 473º, 562º, 566º, CPC). Depois, no requerimento de intervenção principal provocada do Município de Braga, os Intervenientes Principais DD e HH alegaram a responsabilidade do município “na aprovação do Loteamento e na sua execução, assim como na fiscalização das obras privadas edificadas nos respetivos Lotes”, sendo que “não havia qualquer indicação quanto às delimitações de cada um dos Lotes, designadamente, qualquer infraestrutura que permitisse perceber sem marem para dúvida quais os espaços verdes e quais os Lotes existentes”, devendo o Município, em caso de razão dos Réus e correspondente sua responsabilidade na delimitação do Lote e implantação da moradia, ser responsabilizado “pela emissão das respetivas licenças de utilização, quando, na verdade, a delimitação dos Lotes, espaços verdes cedidos ao domínio público e implantação das construções não correspondem com o Loteamento previamente aprovado”. 3.2.2. Uma vez admitida a intervenção principal provocada do Município de Braga, este veio invocar a incompetência em razão da matéria deste tribunal, uma vez, que estando em discussão nos autos a alegada violação, por parte do Município, de normas de direito administrativo, no caso o RJUE (em especial os arts. 63º, 1, e 64º, 1 e 2) e o RGEU, respeitantes à concessão de licenças de utilização, o tribunal competente seria o tribunal administrativo. Argumentou que o licenciamento urbanístico é da competência exclusiva dos municípios, “consistindo em actividade totalmente subordinada a normas de direito administrativo”, com base nas quais exerceu o Município de Braga poderes públicos, em particular a emanação de actos administrativos tidos como ilícitos. Da prática desses actos que teriam redundado em danos decorreria a necessária apreciação da responsabilidade civil extracontratual do Município à luz do disposto no artigo 4º, 1, do ETAF, cabendo dirimir o litígio, em exclusivo, aos tribunais da jurisdição administrativa. Argumentou ainda que a eventual responsabilidade civil extracontratual do Município está sujeita a regime específico (Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), que dispõe no artigo 1º: «1 – A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. / 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.» Recebidas as alegações nesta revista pelo Interveniente Principal Município, aqui Recorrente, veio agora sublinhar estes dois argumentos a reforçar o sentido da decisão do tribunal de primeira instância: (i) o pedido de demolição estaria ele próprio dependente da apreciação da legalidade urbanística da edificação; (ii) essa apreciação implica um conjunto de normas de teor publicístico, designadamente do RJEU e do RGEU, destinadas a regular o licenciamento edificativo, que tutelam as relações jurídicas administrativas estabelecidas entre os particulares e a Administração Pública no exercício de poderes públicos. Tudo visto e conjugado na apreciação da conduta do Município, conclui pela competência material da jurisdição administrativa e fiscal. 3.2.3. A decisão de 1.ª instância aceitou esta posição: “(…) na medida em que a apreciação do pedido principal formulado pela autora – demolição da construção dos 1os RR na parte em que ocupará o seu prédio – dependerá do apuramento da legalidade da edificação no prédio dos réus perante as imposições derivadas das normas urbanísticas, afigura-se que tal implica a apreciação da imposição de deveres públicos aos particulares perante a administração pública, por motivos de interesse público. E, por isso, a matéria a apreciar e decidir pressupõe a resolução de questões suscitadas no âmbito de uma relação jurídica administrativa, entendida sob o ponto de vista material – no sentido de regulada pelo direito administrativo –, subtraída à competência da jurisdição civil.”; “(…) não está aqui em causa um mero litígio de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, está-se perante um litígio emergente de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.” Quid juris? 4. Os arts. 64º e 65º do CPC estabelecem: «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.»; «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.». Tal princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais (ou de delimitação negativa da jurisdição) resulta do disposto pelo art. 211º, 1, da CRP: «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais». E encontra ainda tradução no art. 40º, 1, da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário: LOSJ) Por sua vez, a LOSJ prescreve, no seu art. 117º, a competência dos juízos centrais cíveis: «1 – Compete aos juízos centrais cíveis: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00; b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; 2 – Nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos. 3 – São remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.» O art. 130º, 1, da mesma LOSJ estatui: «Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.» 5. Por seu turno, prescreve o art. 212º, 3, da CRP: «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.» Por sua vez, essa competência é atribuída nos termos do art. 1º, 1, do referido ETAF: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.» Concretiza o art. 4º, 1, do ETAF, nas situações invocadas pela Recorrente, que compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo. Na sequência, compreende-se que “[o] critério aferidor decisivo (constitucionalmente consagrado) da competência dos tribunais administrativos reside na existência ou não de um litígio sobre uma relação jurídico-administrativa ou fiscal – entendida esta como uma relação regulada por normas de direito público administrativo ou fiscal, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes por razões de interesse público, o que não sucede no âmbito de relações de natureza jurídico-privadas”; mais – e decisivo: “Neste âmbito das relações jurídico-administrativas, a Administração intervêm numa posição de supremacia, no exercitação do seu jus imperii, enquanto que, nas relações jurídico-privadas (v.g. no domínio dos contratos de direito privado), age em pleno pé de igualdade com os particulares”2. Ora, o preceito constitucional não deve ser lido como um imperativo estrito, mas antes “como uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo”, uma vez assumida a “intenção de consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais”; logo, há que determinar os contornos precisos da relação, sem desconsiderar o fundamento desse modelo, mas também sem ficar excluída a atribuição a outros tribunais do julgamento (por outros processos) de questões substancialmente administrativas, nomeadamente quando surjam “zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes”3. Nessa jurisdição própria e ordinária estão, assim, apenas em causa os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, tanto numa vertente subjectiva e/ou estatutária, em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente entidades da Administração), como numa dimensão objectiva, integrando as relações jurídicas controvertidas que são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal; em termos positivos: controvérsias sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal, como foro privativo para estes domínios do direito; em termos negativos: não estão em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”.4 Ainda com esta nota que julgamos decisiva: o acento tónico da jurisdição administrativa e fiscal assenta em “complexos de situações jurídicas subjectivas e não em actos administrativos ou de administração fiscal”5, nomeadamente aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, “actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido” ou “actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público” (sem prejuízo de o art. 4º, 1, do ETAF ter admitido nos tribunais administrativos litígios “independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado”6 – o que aqui nos transcende, como é óbvio). Neste quadro de alegada especificidade da relação jurídica sindicada e controvertida, invocada como tal pelo Recorrente uma vez chamado à acção, cabe averiguar se a matéria a decidir nos presentes autos consiste em questão emergente de uma relação jurídico-administrativa, sem mais, o que justificaria a competência da respectiva jurisdição; não sendo, caberá integrá-la na al. a) do art. 117º, 1, da LOSJ, tendo em conta o valor da causa. 3.2.6. É sabido e reconhecido que a competência em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada-configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, pela correlação entre o pedido e a causa de pedir7, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida e do juízo de prognose sobre a sua viabilidade. E tal aferição é sindicada no momento em que a acção se propõe, de acordo com o comando do art. 38º, 1, da LOSJ, convocado pelo art. 60º, 1, do CPC – e só este momento releva, sem atender ao que supervenientemente surja no âmbito objectivo e subjectivo da acção (particularmente «sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente»). No caso, como realça o acórdão recorido, temos um pedido principal de “declaração, reconhecimento e restituição do direito de propriedade sobre prédio identificado” e um pedido subsidiário, e cumulativo, de indemnização por danos patrimoniais e por danos não patrimoniais. Para o efeito, a causa de pedir – composta pelos factos “necessários para individualizar a pretensão material alegada pelo autor” e “para a qual requer, através do pedido que formula, uma forma de tutela jurídica” em juízo, factos esses que “devem ser subsumíveis a uma regra jurídica”, “isto é, “factos construídos como tal por uma regra jurídica”8: art. 5º, 1, CPC) – integra um núcleo factual orientado às pretensões resultantes da aplicação dos arts. 1311º-1312º (defesa da propriedade por via de “acção de reivindicação”, em face de esbulho-ocupação e pedido de restituição) e 483º-496º do CCiv. (responsabilidade civil extra-contratual por facto ilícito assente em “esbulho”), imputando-se aos Réus e aos Intervenientes Principais particulares a construção de imóvel com ocupação de espaço integrado no lote da propriedade da Autora e a responsabilidade indemnizatória dos prejuízos decorrentes. Assim, perante o que a Autora alega e configura como objecto da acção, sem atender ao que se sustenta pelos Réus e pelos Intervenientes chamados à acção, estamos confrontados com uma relação jurídica privada; na base do litígio está essa relação, disciplinada por normas do âmbito juscivilístico. 3.2.7. Perante essa correlação, note-se que não foi formulado na acção um pedido indemnizatório ou compensatório enquanto tal e enquanto demandado ao Município, que estivesse estribado no art. 1º da Lei 67/2007. O chamamento do Município resulta da circunstância processual da defesa dos Réus e dos Intervenientes Principais: objectar à pretensão formulada através da imputação de responsabilidade pela ocupação indevida e pelos danos causados à Autora por força da actuação, na origem e a montante, do próprio Município, como causa de justificação da alegada ilicitude e exclusão de culpa correspondentes aos pedidos feitos na acção, assentes a jusante nas alegadas ocupação indevida e violação da delimitação do prédio afectado, na exacta medida em que a alegada conduta fundante da causa de pedir assentava nos elementos descritos e validados em alvará de construção e licença de utilização; em rigor, a sua responsabilidade seria excluída pela actuação (com licitude a ajuizar) de terceiro (o chamado Município), na qualidade de emitente de actos administrativos e autor da fiscalização devida de uma actuação em conformidade com tais actos, conduzindo por tal forma à improcedência da acção. Neste sentido, temos que configurar esta defesa preclusiva no âmbito das excepções peremptórias, enquanto «factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor» (art. 576º, 3, do CPC), que devem ser apreciados pelo tribunal competente se e na medida em que interessem à decisão da causa e que motivam a intervenção de um terceiro com legitimidade processual para condicionar a sorte do litígio. Mas tal defesa, que implica o alargamento da matéria de facto da causa, e tal intervenção subjectiva como parte principal, através do qual o Município fará valer um interesse próprio (art. 312º CPC) e atendível (art. 316º, 1, CPC) em face da formação de caso julgado, consequente à necessária apreciação da situação jurídica do terceiro como “parte” (art. 320º do CPC)9, não serve para configurar e estruturar a relação material controvertida, antes para contribuir para a sua resolução na dicotomia entre o pedido e a sua procedência. 3.2.8. Em rigor – parece –, nem sequer nessa defesa se alega um eventual direito de regresso (entendido em sentido amplo10)11 perante o Município, o que, em rigor, se assim fosse, deveria ser causa, mais uma vez em rigor, de uma intervenção “acessória” do Município, de acordo com o regime predisposto pelo art. 321º do CPC (diferente do art. 317º, em ligação com o art. 316º, 3, a), do CPC), que, como se esclarece, implica o chamamento de terceiro para ser “auxiliar na defesa”, uma vez que não é titular da relação jurídica existente entre o autor e o réu e a sua intervenção é apenas balizada pelas questões discutidas e que têm relevo ou repercussão na putativa acção de regresso12. 3.2.9. É precisamente nesse contexto defensivo e preclusivo que serve aqui de abrigo completarmente interpretativo – e decisivo – o art. 91º, 1, do CPC, enquanto regra de extensão de competência: «O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.» Nestas questões defensivas estão naturalmente as excepções peremptórias (mesmo para efeito do n.º 2 do art. 91º, 2, e aquisição de valor de caso julgado material) das quais depende o conhecimento da acção; e esta extensão de competência respeitará, antes do mais, à competência material, isto é, mesmo que possa pertencer o conhecimento da questão suscitada pelo réu (e/ou interveniente na posição do réu) a outro tribunal (como, no caso, poderia ser visto, prima facie, à luz do art. 4º, 1, b), do ETAF), é ao tribunal da causa tal como configurada pelo autor que compete o conhecimento dessa questão defensiva (não sendo o caso, como não é em concreto, de aplicação do art. 92º, 1, do CPC)13. Por outras palavras: “[a]ssegurada a competência para a ação, tal envolve a apreciação de todas questões que tenham sido suscitadas pelo autor ou pelo réu. (…) em relação ao autor não se admite qualquer restrição cognitiva, precisamente porque a competência para a ação envolve necessariamente a apreciação de todas as questões conexas com a causa de pedir e com o pedido. Já relativamente aos incidentes processuais (…), assim como aos meios de defesa invocados pelo réu (...): o tribunal deve apreciá-los se e na medida em que interessem à decisão da causa”14. De tal modo, que perante interesses conflituantes em sede de competência, o legislador consagrou inequivocamente no n.º 1 do art. 91º do CPC a regra de que o tribunal competente para a acção é também competente para tais questões, incidentais ou defensivas15, com a salvaguarda de, também em regra, a decisão a proferir sobre a questão suscitada não constituir caso julgado fora do processo respectivo. Concluindo. 3.3. Neste caso, uma acção declarativa de condenação mediante o qual o autor pretende ver declarado o direito de propriedade sobre uma faixa de terreno que será parte integrante de um prédio seu, ver restituída tal faixa que entende indevidamente ocupada e ser indemnizado dos prejuízos alegadamente causados, direitos esses que podem ser precludidos em face dos réus e intervenientes chamados por força da actuação camarária que emitiu actos administrativos que possam ter legitimado a delimitação, o acesso, a utilização e a construção de obra em tal faixa de terreno, não deixa de ser competência do tribunal comum. É esta última justamente a questão que veio a ser levantada em impugnação por defesa, envolvendo entidade administrativa e o exercício das suas competências, mas sem que a consequente intervenção no processo de tal entidade no processo, em face de tal impugnação, desfigure a relação jurídica privada que deverá ser objecto de resolução enquanto tal pelo tribunal materialmente competente pela natureza da relação controvertida: o tribunal comum, de acordo com o art. 117º, 1, a), da LOSJ. Nesta conformidade, falecem as Conclusões do Recorrente quanto à inversão da decisão sobre a competência material no processo. III) DECISÃO Pelo exposto, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido e fixando-se a competência do Juízo Central Cível de Braga para o conhecimento e apreciação da acção. Custas da revista pelo Recorrente (art. 527º, 1 e 2, CPC). STJ/Lisboa, 13 de Maio de 2025 Ricardo Costa (Relator) Luís Correia de Mendonça Maria Olinda Garcia ______ 1. ABRANTES GERALDES, “Artigo 629º”, pág. 49, “Artigo 671º”, pág. 357, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018. Em complemento: para a tipologia das «decisões interlocutórias» admitidas para revista “continuada” no art. 671º, 2, neste caso reiteradas em admissibilidade permanente pelo art. 629º, 2, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC. O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, pág. 481: “decisões proferidas acerca do preenchimento de pressupostos processuais ou requisitos essenciais de admissibilidade da ação, desde que os considerem verificados, de modo a permitir o ulterior e regular processamento da causa”. |