Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P2267
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: SJ200609200022673
Data do Acordão: 09/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : I - As exigências que a lei impõe (no art. 412.º do CPP) para as conclusões da motivação (com a consequência, quando faltem e não sejam devidamente completadas, da rejeição do recurso) estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim
delimitando o objecto do recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório.
II - As referidas imposições, só aparentemente formais, destinam-se também a permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade de processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado.
III - No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões da motivação pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - art. 412.º, n.º 3, als. a), b) e c), do CPP.
IV - Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do art. 412.º, as especificações previstas nas als. b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
V - O recurso em matéria de facto não pressupõe, todavia, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou determinando a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
VI - A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também não se poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos
impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção.
VII - Se, apreciando no âmbito dos pressupostos e condições do recurso da decisão em matéria de facto, se verifica que:
- na motivação de recurso para o Tribunal da Relação o recorrente identifica o objecto do recurso através da afirmação da discordância relativamente à decisão tomada sobre alguns factos (que indica) que, na sua perspectiva, estão «incorrectamente julgados»;
- em seguida, no desenvolvimento da motivação, o recorrente especifica, autonomamente em relação a cada um dos pontos de facto que identificou, os meios de prova (transcrevendo os depoimentos) por que considera a matéria a que respeitam «incorrectamente julgada»;
- e as afirmações são feitas de modo explícito, pela referência directa aos concretos meios de prova que, na posição que defende, imporiam decisão diversa relativamente a cada um dos pontos concretizados da matéria de facto; estão, assim, identificados na motivação os fundamentos e o objecto do recurso quanto à parte impugnada da decisão em matéria de facto, em termos processualmente prestáveis e aptos a delimitar o âmbito da cognição do tribunal ad quem.
VIII - Se as conclusões da motivação não contêm, pelo modo exigido por lei, as especificações referidas nos arts. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, o recurso não poderia ter sido rejeitado com tal fundamento, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, sem previamente conceder ao recorrente a possibilidade de completar as conclusões (cf. Ac. do TC n.º 803/03, de 02-06-2004).
IX - Impõe-se revogar o acórdão recorrido, devendo a Relação convidar o recorrente a ampliar as conclusões da motivação se considerar que não respeitam as exigências do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, e decidir em conformidade.
Decisão Texto Integral: Acórdão na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. No processo comum colectivo nº 77/02.4GCSXL, do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal de Menores e Família do Seixal, AA foi acusado e pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, nºs. 1, alínea a) e 2 do Código Penal.
Na sequência do julgamento, e efectuada a comunicação de alteração não substancial dos factos por diferente qualificação jurídica, o arguido foi condenado por um crime de incêndio, p. e p. no artigo 272º, nº 1, alínea a) do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão.
Na procedência do pedido de indemnização deduzido pelo assistente BB, o arguido foi condenado a pagar a indemnização de 8.500 €.

2.O arguido recorreu para o tribunal da Relação, que, todavia, rejeitou o recurso por manifestamente improcedente.

3. Não se conformando, recorre para o Supremo Tribunal, nos termos da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. Quanto ao 1.º Fundamento: O Direito à Justiça: O Problema Constitucional da Interpretação do Art.º 412.° n.°s 3 e 4 do C.P.P.
1.ª O arguido está convicto e julga ter direito de acesso aos Tribunais para uma tutela jurisdicional efectiva, nos termos do Art.º 20.° da Lei Fundamental;
2. Quanto ao 2.° Fundamento: Da Não Violação do Art.' 412º n.°s 3 e 4 do C.P.P., Direito de Defesa e Tutela Jurisdicional Efectiva
1.ª O Recorrente indicou, tanto em sede de motivação do Recurso, como em sede de conclusões, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
2.ª O Recorrente indicou, em sede de motivação e também em sede de conclusões quais os depoimentos em que o Tribunal a quo formou a sua convicção bem como outros elementos de prova, e que com base nesses depoimentos, tanto de testemunhas da acusação, como do assistente, como da defesa, não poderiam ter sido dados como provados aqueles factos;
3.ª O Recorrente, ao indicar as provas que no seu entender impõem decisão diversa da recorrida, fê-lo por referência aos suportes técnicos, no caso, cassetes;
4.ª O Recorrente indicou o volume ou número da cassete em que se encontram os depoimentos, em que lado da cassete se encontram (lado A ou lado B) e data da cassete;
5.ª O Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.° 320/2002, de 9-7, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do Art.º 412.°, interpretada no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do Recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência;
6.ª Atentos os mais elementares princípios de Direito, maxime da defesa, da cooperação e do dever de boa fé processual, é de assinalar que as linhas mestras em que assenta o nosso Direito Processual, tanto o Civil como o Penal é o da garantia da prevalência do fundo sobre a forma e a correspondente eliminação de todos os obstáculos injustificáveis e não razoáveis;
7.ª A rejeição liminar do Recurso, in casu, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada;
8.ª In casu, a manter-se a decisão do Venerando Tribunal da Relação, tal traduzir-se-à na não observância de normas processuais e de princípios gerais de Direito e de Justiça. Se assim não se entender, estará ferida de inconstitucionalidade a interpretação realizada, designadamente por violação das normas constantes dos Art.°s. 9.° n.° 1, 12.° n.° 2 al. c), 61.° n.° 1 al. h), 412.°, 420.° n.° 1, 431.° do C.P.P. e ainda por violação do disposto nos Art.°s. 1.°, 2.°, 13.°, 20.°, 202.°, 203.°, 204.° e 205.° da Constituição da República Portuguesa;
9.ª A Veneranda Relação, em conformidade com a melhor doutrina e jurisprudência dominantes, deveria ter proferido despacho de aperfeiçoamento e convidado o Recorrente a suprir a pretensa irregularidade.
3. Quanto ao 3.° Fundamento: DO VERDADEIRO SENTIDO E ALCANCE DA LEI: A Verdade Material deve Sobrepor-se à mera Justiça Formal
1.ª O direito português concede ao Tribunal certos poderes instrutórios e inquisitórios no sentido da procura de uma decisão de acordo com a realidade dos factos;
2.ª A interpretação do Venerando Tribunal da Relação das normas supra referenciadas, além de violar essas normas e ainda os vários preceitos constitucionais referidos, constitui ainda uma desrazoável, intolerável, desproporcional e injustificável restrição ablativa do direito de defesa do arguido;
3.ª Uma interpretação conforme a Constituição obriga a reconduzir a interpretação do Art.º 412.° nº.s 3 e 4 do C.P.P. ao sentido apontado pelo Recorrente, ou seja, de convidar o Recorrente a aperfeiçoar as conclusões de Recurso, com referência aos suportes técnicos, sob pena de violação dos princípios constitucionais, designadamente do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal;
4.ª A audiência de julgamento do Recurso esteve marcada para o dia 23.03.2006, pelas 14.30 horas, ainda menos se compreendendo a decisão surpresa do Venerando Tribunal da Relação.
4. Quanto ao 4.° Fundamento: ART.° 410.° N.° 2 DO C.P.P. - ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA/ PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO - Violação do Art.° 32.° da Constituição.
1.ª O Tribunal de 1.ª Instância ao colocar a questão: «Face a tudo isto, que outra pessoa, para além do arguido, quereria e poderia ter incendiado o automóvel do assistente? Ninguém.», coloca uma dúvida séria na sua convicção que poderia levar à absolvição do Recorrente. O Venerando Tribunal da Relação, ao assim não considerar o disposto no n.° 2, al. c) do Art.° 410.° do C.P.P., bem como o princípio in dubio pro reo, estatuído no Art.° 32.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa;
5. Quanto ao 5.° Fundamento: ART.º 127.° DO C.P.P. - LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA.
1.ª "A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de prosseguir a verdade material - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptíveis de motivação e controlo. "In do Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação que «Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1.º Vol. págs. 202/203,»;
2.ª Nunca se poderá concluir, no caso sub judice, sem a análise das provas, designadamente testemunhais, se o Tribunal fez uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova testemunhal produzida;
3.ª O douto Acórdão do Tribunal da Relação, ao rejeitar o Recurso em matéria de facto, por no seu entender não se ter dado cumprimento ao disposto no Art.º 412.° n.°s 3 e 4 do C.P.P., violou não só este dispositivo legal, como os já mencionados artigos da Constituição, como ainda violou o disposto no Art.º 127.° do C.P.P., cuja apreciação ficou prejudicada pela violação dos normativos supra referidos.
6. Quanto ao 6.° Fundamento: DA MEDIDA DA PENA
1.ª O arguido, Recorrente, foi condenado em 1.ª Instância, pela prática de um crime de incêndio previsto no Art.' 272.° n.° 1, al. a) do C.P., na pena de três anos e seis meses de prisão;
2.ª A medida das penas determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto (Art.' 71.° n.° 1 do C.P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.° 2 do mesmo dispositivo);
3.ª Não foi ponderado pelo Venerando Tribunal da Relação que o arguido conta actualmente 43 anos de idade, está socialmente inserido, quer a nível laboral, quer a nível social, constando inclusivamente dos autos uma declaração da empresa da qual o arguido é trabalhador, em que consta «Declara-se que AA, é trabalhador desta empresa, como motorista, desde 17-03-97, encontrando-se nesta data com baixa.
Tem desempenhado com responsabilidade e dedicação as suas tarefas profissionais, sendo respeitador da hierarquia de empresa, não sendo conhecida qualquer má relação com os colegas de trabalho.»;
4.ª À data da emissão da declaração o arguido Recorrente já trabalhava para a sua entidade patronal há sete anos;
5.ª O arguido, está plenamente inserido em termos laborais, tem uma antiguidade já de algum relevo na empresa e é considerado pela entidade patronal, o que é denotado pela própria elaboração da declaração por parte da entidade patronal, atendendo a que no mundo empresarial actual, uma declaração de tal teor só é emitida a favor de quem o merece;
6.ª Este importante factor não foi relevado pelo Venerando Tribunal da Relação, sendo no entanto fundamental, para aferir da inserção do arguido a nível laboral, e ainda da sua personalidade, reveladora de responsabilidade, dedicação e respeito por superiores hierárquicos e colegas de trabalho;
7.ª A nível social o arguido, Recorrente mostra-se inserido;
8.ª O Recorrente, em 43 anos de existência, sempre se pautou pelos valores juridicamente tutelados, tendo sido no entanto condenado, por um crime de ofensa à integridade física simples na pessoa da sua ex-mulher e por um crime de ameaças, mas no âmbito de uma situação muito específica, a separação de ambos, em pena de multa;
9.ª Não foi relevado o facto de à data da separação, ocorrida no mês de Setembro de 2001, conforme consta no ponto 1. dos factos provados da decisão da 1.ª Instância, o Recorrente e a ex-mulher já serem casados há quase catorze anos, sem que até tal data tivesse existido qualquer queixa da mesma contra a pessoa do arguido;
10.ª Não foi relevado o facto de o arguido, Recorrente, possuir apenas como habilitações primárias, a 4.ª classe do ensino primário;
11.ª Foi incorrectamente valorado a desfavor do arguido, o facto de contribuir esporadicamente para os alimentos das filhas, sem que tenha sido tomado em consideração que o mesmo aufere um vencimento mensal baixo, de € 765,00, valor do qual recebe apenas 60%, por se encontrar de baixa, o que, objectiva e realisticamente o impossibilita de cumprir cabalmente a prestação alimentícia das filhas, atendendo às prestações que suporta relativas ao pagamento da prestação da casa, electricidade, água, telefone, alimentação e despesas médicas e medicamentosas;
12.ª Quer na decisão da 1.ª Instância, quer no Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação, apenas foram considerados como factores atenuantes da responsabilidade do arguido, «que o mesmo agiu por raiva e despeito, a que não foi alheio de certeza, o relacionamento da mulher com o assistente, durante o casamento, facto que ele primeiro desconfiava e depois da separação teve a certeza.»
«Depois, a visão da mulher com o assistente no restaurante onde ele estava a jantar e a mensagem que se lhe seguiu, mais ainda ajudaram a agravar os seus sentimentos de vingança.»
«Estes sentimentos, determinantes para o cometimento do crime, não o desculpam, de todo em todo, mas ajudam de algum modo, naquele contexto, a compreendê-lo e a relativizar um pouco a gravidade do mesmo.»;
13.ª Apenas e tão só aos factos mencionados na conclusão anterior se resumiram as atenuantes tomadas em consideração por estas duas Instâncias;
14.ª Os factores já supra mencionados pelo Recorrente também deveriam ter sido tomados em consideração para a atenuação da pena e não o foram;
15.ª A defesa da ordem jurídica-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta. Mas também se deve atender, a Lei assim o impõe, às necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização;

16.ª As necessidades de prevenção especial, têm que ter em consideração e obviar de algum modo aos efeitos criminógenos e dessocializadores da prisão, ao estigma associado à mesma;
17.ª No caso em apreço, há que ponderar se uma pena de prisão efectiva cumpre a prevenção geral e também a especial;
18.ª A prevenção geral, não há dúvida que cumpre, aliás excessivamente, mas a prevenção especial fica de todo comprometida;
19.ª Não subsistem dúvidas, que o arguido, com 43 anos de idade, que nunca esteve preso e está socialmente integrado, vai sair da prisão com 47 anos de idade, sem qualquer possibilidade de inserção no mundo laboral e social (pois traz consigo o estigma da prisão);
20.ª Em termos reais, não subsistem dúvidas, para o arguido, Recorrente, a vida, enquanto cidadão activo na sociedade, acaba aqui;
21.ª Para a sociedade, a necessidade de prevenção geral, será mais útil sobrepor-se totalmente à prevenção especial e daqui por uns anos ter um cidadão, que era capaz, socialmente e laboralmente integrado, para passar a ter um cidadão totalmente desintegrado a todos os níveis? Não cremos que efectivamente no caso sub judice tal se justifique;
22.ª A prevenção geral fica perfeitamente assegurada com a aplicação da pena mínima ao arguido, Recorrente, três anos, suspensa na sua execução;
23.ª Tal pena realizará de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, bem como satisfará as necessidades de prevenção geral e especial e não se apresentará como excessiva, exagerada, desproporcionada e desadequada, como se apresenta a pena fixada pelo Tribunal de 1.a Instância e mantida pelo Venerando Tribunal da Relação;
24.ª Não foram tomados em consideração pelas Instâncias as finalidades de prevenção geral e especial das penas, houve violação dos Art.°s 40.° n.°s 1 e 2, Art.° 70.°, 71.° e 72.° do Código Penal.
25.ª Além dos princípios de justiça enunciados, foram violadas, entre outras, as normas constantes dos artigos 9º, nº 1, 12º, nº 2, alínea c), 61º, nº 1,alínea h), 410º, nº 2, 412º, nºs. 3 e 4, 420º, nº 1, 428º, nº 1, 431º, todos do Código de Processo Penal, artigos 40º, nºs 1 e 2, 7ºº, 71º e 72º do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 13º, 20º, 32º, nº 2, 202º, 203º, 204º e 205º da Constituição.
Termina pedindo a procedência do recurso com a revogação da decisão recorrida.
O magistrado do Ministério Público respondeu à motivação, considerando que o acórdão recorrido deve ser confirmado nos seus precisos termos, por quer o recorrente, «discutindo o acerto da factualidade dada como provada», «em parte alguma das suas conclusões especifica, por referência aos suportes técnicos, as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da impugnada, isto é, não indica a localização (início e termo) da gravação dos depoimentos através dos quais fundamenta a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados».

4. Neste Supremo tribunal, a Exmº Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir.

5. O recorrente invoca como primeiro fundamento do recurso (que apresenta como 1º e 2º fundamentos), o direito a tutela jurisdicional efectiva e a garantia do direito de defesa, afectado pelo acórdão da Relação, por não ter apreciado o recurso em matéria de facto ao considerar que não foi interposto pelo modo processualmente exigido, nos termos do artigo 412º, nºs. 3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP) - conclusões 1ª do Ponto 1 e 1ª a 9ª do Ponto 2.
O acórdão recorrido, com efeito, e no que respeita à impugnação da decisão em matéria de facto, rejeitou o recurso interposto para o tribunal da Relação, porque o recorrente «não especificou as provas que imponham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos e antes se limitando [...] a respigar partes de depoimentos, impugnando genericamente a matéria de facto provada». «O recorrente - refere o acórdão recorrido - não impugnou a matéria de facto nos termos do artigo 412º, nºs. 3 e 4 do CPP, como o demonstram as conclusões do recurso e a própria motivação».
As relações conhecem de facto e de direito (artigo 428º, nº 1 do CPP), na concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto - reapreciação por um tribunal superior das questões relativas à culpabilidade.
O recurso em processo penal deve ser motivado e interposto no prazo de quinze dias a contar da notificação da decisão ou do depósito da sentença na secretaria - artigo 411º, nº 1, do Código de Processo penal (CPP).
O requerimento de interposição deve, pois, por regra, conter a motivação («o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado» - artigo 411º, nº 2 do CPP), e a motivação deve enunciar especificadamente os fundamentos do recurso, terminando com a formulação de conclusões, «por artigos», em que o recorrente «resume as razões do pedido» - artigo 412º, n 1 do CPP.
Para além de resumir as razões do pedido, as conclusões da motivação devem respeitar as exigências do nº 2 (quando versem sobre matéria de direito) e do nº 3 (quando seja impugnada a decisão proferida em matéria de facto) do artigo 412º do CPP.
As exigências que a lei impõe para as conclusões (com a consequência, quando faltem e não sejam devidamente completadas, da rejeição do recurso) estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim delimitando o objecto de recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório. As referidas imposições, só aparentemente formais, destinam-se também a permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade do processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado.
No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões da motivação os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - artigo 412º¸ nº 3¸ alíneas a)¸ b) e c) do CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o nº 4 do artigo 412º¸ as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe, todavia, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção.
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.
Apreciando no âmbito dos pressupostos e condições do recurso da decisão em matéria de facto, verifica-se, no caso, que na motivação de recurso para o tribunal da Relação - fls. 499-535 - o recorrente identifica o objecto do recurso através da afirmação da discordância sobre a decisão tomada sobre alguns factos - os pontos 3., 5, 8., 9., 15., 16., 17., 21. e 22., que, na sua perspectiva, estão «incorrectamente julgados».
Em seguida, no desenvolvimento da motivação, o recorrente especifica, autonomamente em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que identificou, os meios de prova (transcrevendo os depoimentos) por que considera a matéria a que respeitam «incorrectamente julgada».
E as afirmações são feitas de modo explícito, pela referência directa aos concretos meios de prova que, na posição que defende, imporiam decisão diversa relativamente a cada um dos pontos concretizados da matéria de facto.
Estão, assim, identificados na motivação os fundamentos e o objecto do recurso quanto à parte impugnada da decisão em matéria de facto, em termos processualmente prestáveis e aptos a delimitar o âmbito da cognição do tribunal ad quem.
Se as conclusões da motiovação não contêm, pelo modo exigido na lei, as especificações referidas nos artigos 412º, nºs 3 e 4 do CPP, o recurso não poderia ter sido rejeitado com tal fundamento, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição, sem previamente conceder ao recorrente a possibilidade de completar as conclusões (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 803/03, de 2 de Junho de 2004).

6. Nestes termos, revoga-se o acórdão recorrido, devendo a Relação convidar o recorrente a completar as conclusões da motivação se considerar que não respeitam as exigências do artigo 412º, nºs, 3 e 4 do Código de Processo Penal, e decidir em conformidade.

Lisboa, 20 de Setembro de 2006
Henriques Gaspar (relator)
Silva Flor
Soreto de Barros
Armindo Monteiro