| Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | TERESA DE ALMEIDA | ||
| Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PRESSUPOSTOS RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO OPOSIÇÃO DE JULGADOS REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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| Data do Acordão: | 12/15/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
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| Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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| Sumário : | I. O bem jurídico-penal é o direito ou interesse constitucionalmente protegido que legitima e conforma o tipo legal de crime (n.º 2, do art. 18.º da Constituição e 40.º do Código Penal). II. Por outro lado, de um ponto de vista operativo, em sede de hermenêutica jurídico-penal, a compreensão do bem jurídico protegido pela norma, sendo desta o referencial, constitui um recurso precioso. III. Contudo, apenas o resultado do processo interpretativo da norma penal, também através de uma conceção determinada de bem jurídico protegido, é jurisdicionalmente sindicável. IV. É o caso, por ex., dos efeitos de determinada posição sobre o bem jurídico, protegido por um tipo de crime, na decisão sobre o concurso de infrações, sobre a qualificação da culpa ou sobre a relevância para o tipo, da gravidade da dimensão dos atos praticados. V. No caso dos acórdãos invocados, o sentido da norma aplicável, independentemente do processo interpretativo subjacente, é coincidente, assentando a divergência de soluções na diversidade dos factos. VI. A posição sobre o bem jurídico protegido pela norma penal, em si mesma considerada, não constitui questão jurídica sobre a qual se configure oposição de julgados e, em consequência, sobre a qual deva (e possa) ser fixada jurisprudência. | ||
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| Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça   I - Relatório 1. AA, arguido identificado nos autos, foi condenado, por Sentença de 26.04.2022, do Juízo Local Criminal ..., pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeita a regime de prova e regra de conduta. Esta condenação foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 07/09/2022 e transitado em julgado em 22/09/2022. Inconformado, veio o arguido interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 2, do artigo 437.º, do Código de Processo Penal, alegando encontrar-se aquele acórdão em oposição com doutrina do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 07/02/2018, no Processo nº 663/16.5PBCTB.C1, transitado em julgado em 14.03.2018, que indica como acórdão fundamento.   2. São do seguinte teor as conclusões que o Recorrente extrai da motivação do recurso que apresentou (transcrição): “1.  Ora a fundamentação de Direito do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, encontra-se em oposição com o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo 663/16.5PBCTB.C1, de 07 de fevereiro de 2018, relativamente ao preenchimento do tipo legal de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º do Código de Processo Penal. 2.  O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito dos presentes autos entende que: “Bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. Diversamente do que parece supor o recorrente, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante.” 3.   Por seu turno, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo 663/16.5PBCTB.C1, de 07 de fevereiro de 2018 entende, sobre o mesmo tipo legal que: “A conduta típico do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p- ex-. coagundo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. (...) O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação. O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”. (...) a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos e psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde (física ou psíquica). 4.   Conclui-se que as decisões jurisdicionais transcritas, emanadas de Tribunais Superiores, nomeadamente de dois Tribunais da Relação distintos – Porto e Coimbra –, se demonstram contraditórios relativamente ao bem jurídico tutelado através da norma constante do artigo 152.º do Código Penal. 5.   Na verdade, o Tribunal da Relação do Porto, é perentório ao afirmar que o bem jurídico em causa “(...) é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana.” 6.   Enquanto que o Tribunal da Relação de Coimbra, afirma inequivocamente que “O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima (...)” 7.    Assim, e com o objetivo último de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, deverão ser fixados critérios para a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos tribunais, garantindo dessa forma a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. 8.   Os Acórdãos devidamente identificados e transcritos, assentam em asserções antagónicas, que têm por efeito direto e necessário, a consagração de solução distintas para a mesma questão fundamental de Direito: o preenchimento do tipo legal de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.º do Código Penal. 9.   As decisões em oposição são expressas, e as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico são idênticos em ambas as decisões. 10. Os julgados contraditórios incidem sobre a mesma questão de direito – crime de violência doméstica –, a mesma norma foi aplicada com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes 11. Ou seja, em situações fácticas muito similares, um Tribunal entendeu que o tipo legal se encontrava preenchido, por colocar em causa a saúde da Ofendida, tendo por isso condenado o Arguido/Recorrente, 12. Outro Tribunal entendeu que não obstante a saúde da Ofendida ter sido agredida, a verdade é que tal agressão não foi dotada do caráter violento necessário para que tal agressão fosse considerada como “maus tratos”, e apta a atingir a dignidade da humana da vítima, não tendo, nesse seguimento, condenado o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica. 13. Não está em causa a reapreciação da bondade da decisão proferida no acórdão recorrido, mas de verificação, partindo de factualidades equivalentes, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto à questão de Direito aqui invocada, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa. 14. O que clara, e indubitavelmente, se conclui que não. 15. Considerando o exposto, deverá o conflito aqui em causa ser decidido, e ser jurisprudência fixada relativamente aos elementos constitutivos do tipo ilícito previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, no sentido da solução apresentada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ou seja bem jurídico tutelado pela norma não se reconduzir somente à saúde física e psíquica, mas essencialmente à dignidade da pessoal humana. 16. In casu, o Arguido/Recorrente foi acusado pela prática de um crime “composto” – na medida em que integra condutas que em si mesmo já são consideradas crime mas que obtêm uma cominação mais grave em resultado da qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende. 17. O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, pois a qualidade especial do autor ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam. 18. Somos a entender que no caso presente, a prova produzida não permite a condenação pelo tipo “composto” [“agravado”] 19. Descendo imediatamente aos factos, a subsunção dos mesmos ao direito resulta não se mostrarem verificados todos os elementos integradores do crime de violência doméstica. 20. A ofendida referiu que durante o tempo de namoro, nunca o Arguido/Recorrente a agrediu (quer física, quer emocionalmente). 21. Por outro lado, temos a considerar a enorme dispersão temporal das condutas descritas, condensadas em três eventos ocorridos no dia 22 de Novembro de 2020, 6 de Dezembro de 2020 e 14 de Janeiro de 2021, e ainda a relativa baixa gravidade das condutas, sem que das mesmas tenha resultado qualquer agressão física, ameaça ou injúria da ofendida. 22. Ademais, não existe qualquer contexto de onde se possa extrair que as condutas pontuais descritas tenham tomado tamanho desvalor que leve a considerar que a ofendida tenha sofrido maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. 23. Para a verificação do crime de violência doméstica, não se exige reiteração criminosa, porém é necessária alguma gravidade das condutas, de modo a justificar, de acordo com a qualificação jurídica descrita na acusação, a aplicação de uma pena de prisão cujo mínimo legal é de elevados (tendo em conta a comparação com outros crimes contra a honra e integridade física) dois anos. 24. Nos termos do elencado art.º 152.º, n.º 1, al. b), e para o que ora releva, comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa de outro sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. 25. Acresce que, aqui sim e para este efeito, deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos, esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto. 26. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de anti-juridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso”. 27. Designa-se, pois, por violência doméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recurso físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas sexuais. 28. Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. 29. Conforme já vinha sendo salientado antes da revisão do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, o preenchimento deste tipo legal de crime não se basta, em princípio, com uma ação isolada, embora também não se exija a habitualidade da conduta. Na verdade, o crime realiza-se normalmente com a reiteração do comportamento de maus tratos físicos ou psíquicos, em determinado período de tempo. Caso não se verifique essa reiteração, recair-se-á, pelo menos, no domínio das ofensas à integridade física. 30. No caso vertente, resultou provado que: – Arguido/Recorrente e a ofendida encetaram uma relação de namoro durante cerca de dois anos, tendo terminado em Outubro de 2020. – No dia 22 de Novembro de 2020 mandou-lhe as mensagens referidas no ponto 3 dos factos dados como provados. – No dia 29 de Dezembro de 2020 mandou-lhe as mensagens referidas no ponto 4 dos factos dados como provados. – No dia 14 de Janeiro disse-lhe as expressões referidas no ponto 9. e 10 dos factos dados como provados. – Pelo menos desde Setembro de 2021, o Arguido/Recorrente não contactou a ofendida, nem é visto na Zona ... (ponto 16. dos factos dados como provados.) 31. Ora, a conduta tipificada no crime de violência doméstica é um “estado de agressão permanente” por parte do sujeito ativo, sem que as agressões físicas ou psíquicas são reiteradas ou constantes, pelo que não se alcança como a partir dos factos provados se considerem como integradores desse tipo legal; a relação de namoro entre o Arguido/Recorrente e a vítima que durou cerca de 2 anos nunca se pautou por violência, quer física, quer psicológica. 32. Dos factos provados existe grande dispersão temporal e baixa gravidade na sua prática, pois o Arguido/Recorrente, nas mensagens trocadas não a maltratou, nem a rebaixou. 33. A violência doméstica não exige uma reiteração de condutas, nem exige uma atuação prolongada no tempo, o que se exige para distinguir dos tipos legais que, autonomamente, poderiam integrar os factos, é que a atuação do sujeito seja de tal forma capaz de subjugar a vítima que se torne um “plus” em relação a esses mesmos tipos legais. 34. Ora, a conduta do Arguido/Recorrente, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica (ao menos nos termos que vêm assentes) e negativamente se manifestava, a isto acrescendo que em termos que, concretamente, não representaram um potencial de agressão que, em abstrato, tivesse superado ou transcendido a proteção oferecida pelos crimes de ofensas à integridade física simples e de injúrias, ou seja, na medida em que não espelham uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima. 35. Tudo conjugado, a atuação do Arguido/Recorrente, não tem, a nosso ver, a virtualidade de se poderem enquadrar na previsão da norma do crime de violência doméstica. Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, depois não são factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos. Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá o conflito de jurisprudência ser solucionado, e ser fixada jurisprudência relativamente ao bem jurídico protegido pelo tipo legal de “violência doméstica”, previsto e punido nos termos do artigo 152.º do Código Penal, no sentido entendido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.” (itálico nosso)   3. A Ex.ma magistrada do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto respondeu, pugnando pela rejeição do recurso e concluindo, em síntese: (transcrição) “14º Mas a factualidade assente num e noutro processo não assume idêntica relevância quanto ao preenchimento da tipicidade. 15º Como é jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, exige a verificação de oposição relevante de acórdãos que impõe que: (i) - as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) -que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) - que as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas. 16º A exigência de «soluções opostas», pressupõe, necessariamente, que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto e que a oposição respeite às decisões e não aos seus fundamentos. 17º Sendo diferente a situação de facto de cada caso, não se pode afirmar a existência de soluções opostas, para os efeitos do n.º 1 do art. 437.º do CPP. 18º E, in casu, nem tão pouco se pode afirmar, como faz o recorrente, que os indicados Acórdãos são opostos na indicação e definição do bem jurídico protegido pelo tipo legal de violência doméstica, p. e p. nos termos do artigo 152.° do Código Penal. 19º Na verdade, em ambos os acórdãos se apela aos vários bens jurídicos (integridade física e mental, honra, liberdade, etc), suscetíveis de serem ofendidos pelos diversos comportamentos típicos integrantes do crime de violência doméstica. 20º Sendo ainda certo que em nenhum dos acórdãos se exclui que o tipo também protege a dignidade humana da vítima. Apenas se afirma que a dignidade humana não é exigência central de interpretação do tipo legal. 21º Entende, pelo exposto, o Ministério Público não se verificarem todos os pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.”   4. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu douto e aprofundado parecer, com o seguinte teor: (transcrição de excerto) “Quanto aos pressupostos substanciais. No acórdão recorrido o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 44/2018, de 9 de agosto. Na hipótese do acórdão fundamento o arguido foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, na anterior redação da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro. Como as alterações introduzidas pela Lei n.º 44/2018, de 9 de agosto em nada contendem com o objeto deste recurso (basicamente essas alterações consistiram em acrescentar ao n.º 2 do artigo 152.º uma nova circunstância agravante que para o caso é irrelevante), entendemos que os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação. No acórdão recorrido o recorrente veio a ser condenado com base na seguinte factualidade provada: (…) No acórdão fundamento, por sua vez, sancionou-se o entendimento da 1.ª instância segundo o qual o arguido incorrera na prática de dois crimes de ofensas à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1, e de três crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.º, n.º 1, ambos do Código Penal (cabendo assinalar que o procedimento criminal foi declarado extinto por desistência de queixa da ofendida em relação aos crimes de ofensa à integridade física e que no que aos crimes de injúria respeita os autos foram arquivados por ilegitimidade do Ministério Público para exercer a ação penal). A factualidade aí dada como provada e não provada foi a seguinte: (…) 2.2. Já no que concerne a factos não provados, consignou-se na peça sindicada como tal: Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado, de maltratar física e psicologicamente a ofendida, sua namorada, bem como após terminarem o relacionamento, causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, não se coibindo de o fazer na residência da ofendida». Como se pode verificar, os alicerces factuais dos dois acórdãos não são idênticos. Na verdade, pese embora existam alguns pontos de contactos na factualidade objetiva [perseguições, injúrias e ameaças (acórdão recorrido) e agressões e injúrias (acórdão fundamento) ocorridas durante (acórdão fundamento) e após (acórdãos recorrido e fundamento) um relacionamento de namoro], o animus que presidiu à atuação dos agentes [o qual, como é uniformemente reconhecido, constitui matéria de facto – cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de março de 2009, processo 08P3781, RAÚL BORGES (relator), in www.dgsi.pt, e o vasto apontamento de jurisprudência nele citado] é distinto. Enquanto que no acórdão recorrido o recorrente agiu com o propósito concretizado de maltratar psicologicamente a ofendida (facto provado 14), no acórdão fundamento ficou por demonstrar que o arguido tivesse agido com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a ofendida (facto não provado 2.2.). Sob o ponto de vista subjetivo estamos, assim, perante diferentes realidades. Ora, diante da descrição típica do artigo 152.º do Código Penal (quem (…) infligir maus-tratos físicos ou psíquicos …), sendo o crime de violência doméstica um crime doloso (artigo 13.º do Código Penal) e definindo-se o dolo como «a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime» (GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Editorial Verbo, 1998, página 162), essa diferença não é despicienda para efeitos do enquadramento jurídico-penal dos factos. Por outro lado, contrariamente ao alegado pelo recorrente, os dois acórdãos não dissentem na avaliação do bem jurídico protegido pela incriminação. Vejamos. Lê-se no acórdão recorrido que: «Bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. (…) “o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo”. Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, “que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante”. (…), a dignidade da pessoa humana não é o bem jurídico tutelado especialmente pelo tipo legal da violência doméstica. É verdade que alguma doutrina apela também à dignidade da pessoa humana como bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, mas apenas como elemento complementar e nunca como exigência central de interpretação do tipo legal. Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus-tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus-tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrá-rias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. Para se assumirem como atos típicos de maus-tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus-tratos para efeitos de preenchimen-to do tipo de ilícito de violência doméstica.(…) Como salienta Inês Ferreira Leite (…), “O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários even-tos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica.”. Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que “basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.” Sustenta-se, por sua banda, no acórdão fundamento: «Designa-se, pois, por violência doméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recurso físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas sexuais. O bem jurídico por ele protegido é a saúde da vítima nas suas vertentes física, psíquica e mental. Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus-tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação.» Ou seja, ambos os arestos assumem expressamente que o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde, física, psíquica e emocional, da vítima com quem o agente mantém uma «relação interpessoal próxima» e o acórdão recorrido, conquanto refira que a dignidade da pessoa humana não constitui o bem jurídico tutelado especialmente pelo tipo, acaba por reconhecer que qualquer ato de violência que lese, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminui ou afeta também, reflexamente, a sua dignidade enquanto pessoa (o que, por outras palavras, é o que se propugna no acórdão fun-damento). Como observa a Sr.ª procuradora-geral-adjunta no Tribunal da Relação do Porto: «19.º (…) em ambos os acórdãos se apela aos vários bens jurídicos (integridade física e mental, honra, liberdade, etc.), suscetíveis de serem ofendidos pelos diversos comportamentos típicos integrantes do crime de violência doméstica. 20.º (…) em nenhum dos acórdãos se exclui que o tipo também protege a dignidade humana da vítima. Apenas se afirma que a dignidade humana não é exigência central de interpretação do tipo legal.» Não se mostrando, então, preenchido o pressuposto substancial da oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, quer porque, sob o ponto de vista subjetivo, as respetivas realidades de facto não são comparáveis, quer porque entre ambos inexiste divergência de entendimento quanto ao bem jurídico protegido pelo tipo de violência doméstica, emite-se parecer no sentido da rejeição do recurso (artigos 440.º, n.º 3, e 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal).”   5. Notificado para os efeitos do disposto no n.º   do art. 417.º do CPP, respondeu o arguido, defendendo a admissão do recurso: (transcrição) “Relativamente às situações de facto subjacentes a ambos os acórdãos, entende o Ministério Público, com base nos factos dados como provados e não provados, que o animus que presidiu à atuação dos agentes – Arguidos –, é diferente. 4. Isto porque, terá sido dado como provado no acórdão recorrido que o Recorrente agiu com propósito concretizado de maltratar a ofendida, e no acórdão fundamento ficou por demonstrar que o arguido tivesse agido com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a ofendida. 5. Portanto, a ver do Ministério Público, não se verifica uma identidade de situações de facto por não se ter dado como provado no acórdão fundamento que o arguido agiu com propósito concretizado de maltratar a ofendida. 6. Discorda-se totalmente que tal juízo deva ser determinante para qualificar as realidades como diferentes. Pois que,  7. É possível retirar dos factos dados como provados do acórdão fundamento que: “(...) o arguido, por motivos não concretamente apurados, desferiu-lhe um murro nas costas. (...) dirigiu-se à ofendida dizendo: “sua puta, sua cadela vadia, és pior que as mulheres da estrada.” (...) o arguido, por motivos não concretamente apurados, desferiu um murro na face do lado esquerdo da ofendida. (...) dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe “sai deste quarto, sua puta, és pior que as mulheres da estrada”. (...) o arguido agarrou a ofendida pelo pescoço e puxou-a, fazendo com que caísse no chão. De seguida, enquanto esta estava no chão, puxou-a pelos cabelos e arrastou-a (...)” 8. Considerando a relação de namoro existente entre Arguido e Ofendida, e a natureza física dos factos dados como provados no acórdão fundamento, não se afigura coerente afirmar que não ter sido dado como provado o “propósito concretizado de maltratar”, seja um facto necessário e determinante para se concluir pela não identidade da factualidade entre Acórdão fundamento e Acórdão recorrido. 9. Posto isto, concluímos pela existência de pontos de contacto substanciais entre ambas as factualidades objetivas, e como tal, pugnamos por afirmar que do ponto de vista subjetivo, as realidades são, de facto, similares ou idênticas. 10. Devendo por isso, o argumento do Ministério Público improceder. 11. Relativamente à oposição na indicação e definição do bem jurídico protegido pelo tipo legal de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, o Ministério Público defende que ambos os acórdãos “assumem expressamente que o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde, física, psíquica e emocional, da vítima com quem o agente mantém uma «relação interpessoal próxima».” 12. Nunca o Recorrente discordou de tal conclusão. 13. Porém, o parecer Ministério Público é omisso relativamente à questão central em discussão: a dignidade da pessoa humana. 14. Diferentemente do que entende o Ministério Público, é inequívoco que os acórdãos em comparação são opostos conforme defendido pelo Recorrente, Ora vejamos, 15. Do Acórdão recorrido resulta que: ‘Bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde — física, psíquica e emocional — e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. Diversamente do que parece supor o recorrente, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante.” Por seu turno, 16. Do Acórdão fundamento resulta que: “A conduta típico do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p- ex-. coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexua a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. (...) O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que podem preencher como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação. O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos’ (...) a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos e psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde (física ou psíquica).” 17. Pelo que, não obstante corresponder à verdade que ambos os acórdãos defendam que o tipo legal visa proteger a saúde, física, psíquica e emocional da vítima, a verdade é que existe um ponto fulcral distinto entre ambos os entendimentos. 18. Enquanto que, o acórdão fundamento considera fundamental determinar se a conduta do agente é suscetível de ser classificada como maus tratos, sejam físicos e psíquicos, violadores da pessoa individual e da sua dignidade humana. 19. Por outras palavras, defende o acórdão fundamento que o tipo legal “violência doméstica” reporta-se a factos que se manifestem perante a vítima como dotados de um especial desvalor, colocando em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica. 20. Já o Acórdão recorrido desconsidera a exigência do caráter violento das condutas do Arguido. Assim, 21. Revela-se claro que ambos os acórdãos assentam em asserções antagónicas, que têm por efeito direto e necessário, a consagração de solução distintas para a mesma questão fundamental de Direito: o preenchimento do tipo legal de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152.° do Código Penal. 22. Pelo que, e novamente, deverá o argumento do Ministério Público improceder.”   6. O Acórdão recorrido (transcrição, com itálico nosso) a. Quanto aos factos provados relativos à culpa: “14. Agiu, o arguido, com o propósito, concretizado, de maltratar psicologicamente a ofendida, dirigindo-lhe palavras aptas a ofender a sua honra e consideração, e constranger a sua liberdade de determinação, constrangendo a sua liberdade de circulação, já que a perseguia pelas ruas e locais que a mesma frequentava bem como rondava a sua residência e os locais pela mesma habitualmente frequentados, mais dirigiu à ofendida palavras aptas a criar na mesma medo de que o mesmo pudesse atentar contra a sua vida e de terceiros, resultado que representou e quis;”   b. Quanto à interpretação do tipo “Bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. Diversamente do que parece supor o recorrente, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Como diz André Lamas Leite (in“A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, páginas 23/66), identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção dele são da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-ativa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante.». Daí que, como observa este autor, «o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo». Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante». Por outro lado, como já tivemos oportunidade de salientar, a dignidade da pessoa humana não é o bem jurídico tutelado especialmente pelo tipo legal da violência doméstica. É verdade que alguma doutrina apela também à dignidade da pessoa humana como bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, mas apenas como elemento complementar e nunca como exigência central de interpretação do tipo legal. Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc.  Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus tratos para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica. Embora sendo predominante, a reiteração dos maus tratos – configurando casos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória. (…) Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que “basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.”   7. O Acórdão fundamento (transcrição, com itálico nosso) a. Quanto aos factos provados e não provados relativos à culpa: “13. O arguido agiu de forma livre, voluntária a consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal, não se abstendo de o praticar.” “”2.2. Já no que concerne a factos não provados, consignou-se na peça sindicada como tal: “Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado, de maltratar física e psicologicamente a ofendida, sua namorada, bem como após terminarem o relacionamento, causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, não se coibindo de o fazer na residência da ofendida.””   b. Quanto à interpretação do tipo Designa-se, pois, por violência doméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recurso físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas sexuais. O bem jurídico por ele protegido é a saúde da vítima nas suas vertentes física, psíquica e mental. Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação. (…) Todavia, a verificação de tal crime não exige uma conduta plúrima e repetitiva ou a reiteração da conduta agressiva, já que a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde (física ou psíquica).”   Realizado o exame preliminar a que alude o art. 440.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência, nos termos do art.440.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.   II - Fundamentação 1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica assegurar alguma certeza às orientações jurisprudenciais, evitando ou anulando decisões contraditórias, concretizando, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei[1]. Dispõe o artigo 437.º do Código de Processo Penal sobre os fundamentos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência: 1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar. 2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. 3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. 4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.  5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público. Mostram-se definidos, essencialmente no artigo ora transcrito, os requisitos de admissibilidade formais e substanciais do recurso para fixação de jurisprudência. Sintetizando o sentido da jurisprudência deste Supremo Tribunal, consigna-se no acórdão de 29-10-2020, proferido no processo n.º 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, Rel. Clemente Lima: “Configuram requisitos de ordem formal: i)  a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao MP, ao arguido, ao assistente e às partes civis); e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o MP); ii) a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição, e, se este estiver publicado, o lugar da publicação; com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito de jurisprudência; iii) o trânsito em julgado de ambas as decisões; iv) a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar; Constituem requisitos de ordem substancial: i) a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça; ii) a verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões; iii) a oposição referida à própria decisão e não aos fundamentos (as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito); iv) que as decisões em oposição sejam expressas; v) a identidade de situações de facto.”   2. Da análise da certidão junta, resultam a tempestividade do recurso e a legitimidade do recorrente, além dos demais requisitos formais. No que à verificação dos pressupostos substanciais respeita, fixemo-nos na decisão dos acórdãos em causa. Sendo certo que, no que releva para a decisão, o quadro jurídico é o mesmo, importa averiguar se existe identidade das situações de facto e oposição expressa das decisões.   3. Antes do mais, a “situação de facto” não corresponde à descrição naturalística realizada pelo recorrente, mas à conformada pela produção de prova, com o escrutínio dos factos que se subsumem aos vários elementos do tipo de crime de violência doméstica. Descortinando-se, nos dois acórdãos, claros pontos de proximidade entre alguns dos atos e suas circunstâncias, a diferença quanto à caracterização da culpa foi determinante para a diversa subsunção dos factos ao direito. Como vimos, num caso considerou-se provado que o arguido agiu com o propósito, concretizado, de maltratar psicologicamente a ofendida; no outro, julgou-se não provado que o arguido tivesse agido com esse exato propósito concretizado, de maltratar física e psicologicamente a ofendida. É dessa dissemelhança que resulta a diferente qualificação jurídica dos factos. Assentando em situações de facto diversas, as soluções divergentes tomadas nos arestos em confronto não constituem oposição de julgados.   4. Mesmo assim, entende o Recorrente que a oposição de julgados reside em conceção diferente do bem jurídico protegido pela norma do 152.º do Código Penal. Sempre se dirá que, no que respeita ao crime de violência doméstica (como relativamente a outros, dirigidos à proteção de bem jurídico complexo), coexistem, na doutrina e na jurisprudência, interpretações várias sobre qual o bem jurídico que a norma visa tutelar. Neste Tribunal, encontramos posições com relativa diversidade, encontrando-se, em regra, presente o entendimento de que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias dimensões, em relação com a dignidade humana ou a integridade da pessoa humana: Acórdão de 30-10-2003, proferido no Proc. n.º 3252/03 - “O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar Ac. de 2-07-2008, proferido no processo n.º 07P3861 “Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar”; Ac. de 23/6/2016, Proc. 125/15.8PHNST.S1, Rel. Armindo Monteiro: “O crime terá como bem jurídico a proteger, no descritivo típico, segundo alguns, uma panóplia de bens jurídicos, emprestando-lhe natureza complexa, como a saúde física e mental, a liberdade, na sua projecção individual, sexual; para outros a dignidade da pessoa humana, o da dignidade em geral e, em particular, a sua saúde.” Acórdão de 20-04-2017, proferido no processo n.º 2263/15.8JAPRT.P1.S1: “Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada. E no Ac. de 20/2/2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1, Rel. Júlio Pereira, “Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana.” Os Acórdãos deste Tribunal e Secção, de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges, e de 30.10.2019, no Proc. 39/16.4TRGMR.S2, Rel. Vinício Ribeiro, contêm resenha exaustiva das posições sobre a matéria, defendidas quer na doutrina, quer na jurisprudência do Supremo. Na doutrina, as referências habitualmente constantes da atividade de resenha crítica[2], elegem como bem jurídico a saúde, a dignidade da pessoa humana, a integridade pessoal, a integridade física e psíquica ou a liberdade pessoal, em alguns casos em simultâneo, mas com pesos relativos diversos, ou constituindo uns referência dos outros. Em interpretação diversa, Teresa Féria[3] defende que “o facto que unifica estas condutas traduz-se justamente na inflição de um tratamento ofensivo da integridade e dignidade pessoal, com a consequente impossibilidade de desenvolvimento da personalidade, direito fundamental igualmente reconhecido na Constituição da República – artigo 26ºnº1. (…) bem jurídico tutelado pela incriminação dos “maus-tratos” é plural e complexo respeitando à defesa da integridade pessoal individual por referência à proteção da dignidade humana e ao livre desenvolvimento da personalidade.”  Por sua vez, Susana Figueiredo[4] acompanha a posição de Maria Elisabete Ferreira[5], “Em corrente oposta às posições maioritárias acima mencionadas, concluindo pela inexistência de uma diferença de natureza substancial entre a violência pressuposta pelo tipo do artº 152º e a pressuposta pelos tipos base que não se paute pela adição do elemento relacional típico. “Defende a autora que o legislador quis tutelar mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, decidindo punir as condutas violentas que ocorram no âmbito familiar ou similar, concluindo que o bem jurídico protegido se relaciona com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar ou doméstico: a pacífica conivência familiar, para-familiar ou doméstica. (p. 581). Da tutela reflexa de tal bem jurídico resultaria, como consequência, que a mera ofensa simples poderá pôr em causa essa pacífica convivência, sem qualquer aferição da intensidade da mesma.” Na síntese de André Lamas Leite (ob. cit.), “será difícil apontar um tipo legal em cuja base se encontre um bem jurídico tão multímodo como o da violência doméstica”, defendendo que a doutrina e a jurisprudência se devem concentrar na busca de um “bem jurídico suficientemente amplo e operativo”.   5. Um dos requisitos substanciais de admissibilidade do recurso é a oposição de julgados, ou seja, que os acórdãos em causa, “relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas”. Como vimos, as soluções jurídicas alcançadas assentam na diversidade dos factos, particularmente, no que respeita à culpa. Tendo presente que, na leitura do Recorrente, a questão de direito com “soluções divergentes” é a interpretação do bem jurídico tutelado pelo tipo de crime de violência doméstica, importa verificar se este requisito se mostra presente.  Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os requisitos materiais mostram-se verificados quando[6]: - As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; - As decisões em oposição sejam expressas; - As situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões. Os julgados contraditórios têm de incidir sobre a mesma questão de direito.  “Isto é, a mesma norma ou segmento normativo foi aplicada/o com sentidos opostos a situações fácticas iguais ou equivalentes. Entende-se que assim sucede quando, em ambos os acórdãos, foi decidida uma mesma matéria de direito, “ou quando esta matéria constar de fundamentos que condicionam, de forma essencial e determinante, a decisão proferida””. [7][8] Em ensinamento de Castanheira Neves[9], a questão de direito “admite uma análise em que se distinga: 1) a questão-de-direito em abstracto da 2) questão-de-direito em concreto. A questão-de-direito em abstracto tem por objecto a determinação do critério jurídico [norma aplicável] que haverá de orientar, e concorrer para fundamentar, a solução jurídica do caso decidendo. A questão-de-direito em concreto é o problema do próprio juízo concreto que há-de decidir esse caso”. “Seleccionada a norma aplicável, há certamente que compreendê-la e determiná-la no seu exacto sentido hipotético-normativo – o problema tradicionalmente designado por interpretação” (ibidem, 176), a qual, numa “situação de facto” colocada perante uma “hipótese normativa”, na consideração dos seus diversos elementos relevantes, pode requerer uma “decisão por um critério de interpretação” de entre várias “hipóteses interpretativas”[10].   6. Ora, o bem jurídico-penal é o direito ou interesse constitucionalmente protegido que legitima e conforma o tipo legal de crime (n.º 2, do art. 18.º da Constituição e 40.º do Código Penal).[11] É na sua identificação que radica a averiguação da carência/necessidade e proporcionalidade da intervenção penal. Por outro lado, de um ponto de vista operativo, em sede de hermenêutica jurídico-penal, a compreensão do bem jurídico protegido pela norma, sendo desta o referencial, constitui um recurso precioso. Contudo, apenas o resultado do processo interpretativo da norma penal, também através de uma conceção determinada de bem jurídico protegido, é jurisdicionalmente sindicável. É o caso, por ex., dos efeitos de determinada posição sobre o bem jurídico, protegido por um tipo de crime, na decisão sobre o concurso de infrações, sobre a qualificação da culpa ou sobre a relevância para o tipo, da gravidade da dimensão dos atos praticados. Ou seja, a diferença de conceções do bem jurídico concretamente tutelado, tal como de outros elementos convocados para a definição do sentido e alcance das normas aplicáveis teria de conduzir, para relevar em matéria de oposição de julgados, a resultados de interpretação divergentes e inconciliáveis[12].  No caso dos acórdãos invocados, o sentido da norma aplicável, independentemente do processo interpretativo subjacente, é coincidente, assentando a divergência de soluções na diversidade dos factos. A posição sobre o bem jurídico protegido pela norma penal, em si mesma considerada, não constitui questão jurídica sobre a qual se configure oposição de julgados e, em consequência, sobre a qual deva (e possa) ser fixada jurisprudência.   Pelo exposto, conclui-se não ocorrer identidade dos factos, nem soluções opostas que assentem em questão de direito direta e imediatamente sindicável. Em suma, não se verificando identidade dos factos e oposição de julgados, requisito exigido pelo art.437.º, n.º 1 do C.P.P., resta rejeitar o presente recurso de fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 440.º, n.º 4 e 441.º, n° 1, do mesmo Código.   III. Decisão  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Rejeitar o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto por AA, por julgar não verificada oposição de julgados, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 441.º, do Código de Processo Penal.; b) condenar o mesmo recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).   Supremo Tribunal de Justiça, 15.12.2022   Teresa de Almeida (Relatora)  Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)  Lopes da Mota (2.º Adjunto)  Nuno Gonçalves (Presidente da Secção) _______ [1] Pereira Madeira, in Código Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 3.ª Edição Revista, 2021, pág. 1402, e acórdão deste tribunal e desta secção, de 24/3/2021, no proc. n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1. |