Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA HOMICÍDIO HOMICÍDIO QUALIFICADO CÔNJUGE ESPECIAL CENSURABILIDADE ESPECIAL PERVERSIDADE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PENA DE PRISÃO MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 02/15/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I - O conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (art. 428.º do CPP); visando o recurso para o STJ exclusivamente matéria de direito (art. 434.º do CPP), não é admissível o recurso relativo à matéria de facto. II - Tratando-se de um recurso de acórdão da relação proferido em recurso [art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21-12], não é admissível recurso para o STJ com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º, sem prejuízo, porém, dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, dos vícios da decisão recorrida e de nulidades não sanadas a que se refere este preceito, para decisão de questão de direito que deva ser conhecida. III - Este regime de recurso efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no art. 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos. IV - O crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos dos arts. 131.º e 132.º do CP, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa agravada, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente, as quais, na ausência de motivo suscetível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio. V - A atual al. b) do n.º 2 do art. 132.º do CP, que se inseriu na linha dos trabalhos que conduziram à adoção da Convenção de Istambul para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, resulta da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, que incluiu novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do art. 132.º, nomeadamente a relação conjugal ou análoga, sem modificação de alcance ou de sentido da justificação da construção do tipo qualificado de homicídio. VI - Nestes casos, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da particular energia criminosa revelada na violação de especiais deveres ético-sociais de cooperação, solidariedade e respeito mútuos inerentes a tais tipos de relacionamento, à «comunhão de vida», que pressupõe uma «união pessoal»; a comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, em que se exige aos cônjuges uma especial e recíproca proteção, pelo que a atitude de lesar a vida do outro constitui um comportamento especialmente grave, merecedor de um elevado grau de censura. VII - Mostrando-se que o arguido violou estes particulares deveres que se impunham na relação com o cônjuge, com quem partilhou mais de meio século de vida, causando dolosamente a sua morte, por asfixia, nas condições descritas na matéria de facto provada, há que concluir que este – “sabendo e querendo tirar a vida [à sua mulher], para a silenciar, desagradado pelo tom de voz por ela utilizado para o chamar, que entendia suscetível de ser alvo de comentários depreciativos dos vizinhos, e que a vítima continuou a utilizar não obstante os anteriores avisos e pedido por parte do arguido para que o não fizesse” – agiu com culpa agravada, devendo ser punido pela prática de um crime de homicídio qualificado. VIII - A circunstância de a vítima ser cônjuge do arguido, funcionando como qualificativa do crime de homicídio, impede que se considere autonomamente a inerente violação dos particulares deveres de respeito e solidariedade que lhe eram impostos para efeitos de determinação da pena, por força do princípio da proibição da dupla valoração; no mesmo sentido se deve considerar a ponderação, em abstrato, do bem jurídico protegido pela norma incriminadora do homicídio, relevando apenas o modo da sua violação nas circunstâncias determinadas pelos factos provados, também para efeitos de identificação das necessidades de prevenção geral nos limites impostos pela gravidade da culpa expressa nessas circunstâncias. IX - Sendo o crime de homicídio qualificado pelas circunstâncias previstas nas als. b) (crime praticado contra cônjuge) e e) (motivo fútil) do n.º 2 do art. 132.º do CP, considerada uma delas para a qualificação típica, deve a outra ser tida em conta, como fator de agravação, para efeitos de determinação da pena de acordo com o critério geral estabelecido art. 71.º do CP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA, arguido, com a identificação dos autos, interpõe recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de agosto de 2022, que, concedendo parcial provimento ao recurso que interpôs do acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., reduziu, de 19 (dezanove) para 15 (quinze) anos, a pena de prisão que lhe foi aplicada pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e e), parte final, do Código Penal. 2. Questionando a apreciação da prova, com indicação das provas que, a seu ver, impõem decisão diversa, arguindo vícios do acórdão condenatório, da previsão do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), e discordando da qualificação do crime de homicídio nos termos do artigo 132.º do Código Penal (CP) e da medida da pena, apresenta motivação de recurso de que extrai as seguintes conclusões (transcrição): «2 - Sindica-se a convicção formulada pelo tribunal, entendendo-se que a mesma analisa a prova produzida de forma errada. Prova que impõe decisão diversa da recorrida, Fls 322, cuja transcrição se remete “Chamador: exato,... o INEM... impercetível... “ pelas escadas abaixo---ela está aqui morta... Operador: a sua mãe caiu, ok..” Fls 325 a 331, corroborado pelo depoimento prestado pelas testemunhas BB, CC em sede de audiência de discussão e julgamento conforme Ata respeitante ao dia 16-03-2022 com referência ...82, Depoimento prestado entre as 11:21:09e as 11:34:38noque tange à testemunha BB e as 11:34:40 a 11:40:49 no que concerne com a testemunha CC. Declarações prestadas pelo arguido entre as 09:52:13 e as 11:00 horas. Impõe também decisão diversa a omissão da existência de provas que corroborem a decisão fixada, No ponto 8 dos factos dados como provados, impugna-se a convicção formada pelo tribunal na parte que se refere que “apertou com toda a força”. Inexistem nos autos prova que sustente tal facto, Vejamos, pelo depoimento prestado pelos Bombeiros que se deslocaram ao local, efetuaram o primeiro contacto com a vítima e transportaram-na ao hospital Ambos referiram nas passagens supra identificadas, conforme decorre da própria motivação do Acórdão proferido que não visualizaram marcas no pescoço da vítima, “Durante a audiência de julgamento a defesa procurou demonstrar que as marcas no pescoço da malograda vítima só teriam surgido no Centro Hospitalar ..., onde, conforme resulta do relatório de urgência referente à malograda vítima, esta deu entrada já sem vida no próprio dia 22-05- 2021, pelas 21h32min (cfr. fls. 124 v.o do Volume I). É certo que a referida BB, bombeira que foi chamada àquela habitação para socorrer a malograda vítima, afirmou em audiência de julgamento que, enquanto permaneceu na referida habitação, não viu grandes marcas no pescoço daquela, já as tendo visto durante o seu transporte para a referida unidade hospitalar. Por seu turno, CC, bombeiro que acompanhava aquela BB, igualmente afirmou em audiência de julgamento que, enquanto permaneceu na referida habitação, não viu marcas no pescoço da malograda vítima. Seja como for, convém ter presente que ambos os referidos bombeiros se depararam com a malograda vítima inconsciente, em paragem cardiorrespiratória, estando mais preocupados em efetuar as manobras de suporte básico de vida e desfibrilhação automática externa do que em reparar em todas as lesões que a mesma então ostentava. Seja como for, o certo é que o referido CC referiu também que a cabeça da malograda vítima estava mais escura do que o resto do corpo, aspeto perfeitamente compatível com a causa da morte que veio a ser detetada. Por outro lado, e não obstante o teor de tais depoimentos, o certo é que no relatório de ocorrência, lavrado necessariamente de acordo com a informação prestada pelos bombeiros que acorreram ao local, a malograda vítima apresentava então “sangue na face, hematomas e equimoses no pescoço”, daí também resultando o momento temporal exato em que os mesmos chegaram àquela habitação e aquele outro em que a abandonaram rumo à unidade hospital para onde transportaram a malograda vítima (cfr. fls. 274 e 275 o Volume II).” Socorrendo-nos das doutas palavras redigidas no Acórdão proferido, “Ora, é do conhecimento geral e, assim, facto notório que não carece de prova (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.C. ex vi art.º 4.º do C.P.P.) “ É notório, elementar e fruto das regras da experiência comum e do normal acontecer que quando alguém asfixia outrem, estrangulando-a ao ponto de a matar por asfixia conforme decorre dos factos dados como provados no douto Acórdão, que tal ato provoque marcas visíveis, Mais, decorreram cerca de 40 minutos desde a chamada efetuada para o INEM até ao momento em que as testemunhas CC e BB (bombeiros) chegaram ao local dos factos para prestar socorro, Caso tivesse sido essa a causa da morte, provocada por ação direta do arguido teria inevitavelmente de deixar marcas e marcas bem visíveis! Ao referir-se no Acórdão que tal violador do disposto no artigo 410.º n.º 2 c) do C.P.P. A fls 274 e 275 do Volume II apenas resulta a ocorrência dos Bombeiros e a sua deslocação ao local, inexistindo qualquer referência a equimoses no pescoço, aliás mais do que o relatório, ouviu-se os depoimentos das testemunhas que não repararam em nenhuma lesão, Tal conclusão é sobremaneira importante quer para qualificar a conduta no crime em apreço, bem como para averiguar da existência ou não da qualificativa. 3 - Não se encontra verificada a qualificativa constante do disposto da conjugação nos artigos 14.º n.º 1, 26.º, 131.º n.º 1, 132.º n.º 1 e n.º 2 al) b) do C.P. Inicialmente afirma-se que a agravante (qualificativa) não opera automaticamente Contudo, posteriormente afirma-se que não tendo o arguido demonstrado a existência de relevantes problemas conjugais, não tendo a morte da vítima ter sido causada por problemas decorrentes de tal, verificava-se a qualificativa constante no artigo 132.º al b) do C.P. No modesto entendimento da defesa, tal conclusão é errada. Vejamos, para a operação da qualificativa temos de estar perante um quadro que demonstre uma especial censura, uma atuação perversa ou uma especial baixeza da motivação ligados à qualidade da vítima (cônjuge). No caso em concreto, o quadro factual revelado dos autos deixa transparecer uma determinação do arguido formada no momento, sem qualquer tipo de premeditação ou ensejo de matar O arguido tentou prestar auxílio à vítima o que demonstra a inexistência de um quadro de especial censurabilidade ou perversão, Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relativo ao Processo nº 5/16.0GACVI.C1, datado de 22-11-2017, em que foi Relatora a Veneranda Juíza Desembargadora Maria José Nogueira Do exposto constata-se a não verificação da qualificativa constante do artigo 132.º n.º 2, seja pela ausência de factos que demonstrem a existência de uma conduta que mereça a tutela penal por se considerar especialmente perversa, seja pela demonstração que o arguido teve atos contrários à conduta que lhe foi imputada. 4 - A medida da pena cominada é excessiva, e violadora do disposto no artigo 71.º do C.P. e 18.º n.º 2 da C.R.P, tendo em conta que O arguido é pessoa inserida socialmente e profissionalmente, Encontra-se reformado com a sua condição económica estabilizada, O arguido é primário, confessou parcialmente os factos Inexistem sentimentos de rejeição no meio. O crime em apreço ocorreu em circunstâncias muito concretas, inexistindo perigo que volte a cometer um crime da mesma natureza, até porque infelizmente a vítima padeceu. 5 - Ocorre inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade, e da violação do disposto nos artigos 18.º n.º 2 da C.R.P., 70.º do C.P. e 32.º n.º 5 da C.R.P, quando interpretados na cominação de uma pena que é excessiva face ao grau de culpa apurado uma vez que terá a pena de socorrer-se de factos dados como provados que possibilitem o arbitramento da medida da pena (veja-se a diminuição de 4 anos de prisão face à primeira condenação). 6 - Ocorre inconstitucionalidade material por violação dos direitos de defesa do arguido (ex vi art. 32.º, n.º1 da CRP), quando se condena com base em factos genéricos e se remete ao texto da lei para o preenchimento de uma qualificativa sem a corroboração de factos inerentes. 7 - Foram violadas as seguintes disposições, artigo 70.º e 71.º do C.P., artigo e ainda artigo 18.º n.º 2 e 32.º ambos da C.R.P., artigo 127.º do C.P.P., 410.º n.º 2 alínea a), b) e c) e 412.º n.º 3 a) ambos do C.P.P.”. 3. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação do Porto apresentou resposta em que se pronuncia no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição): «(…) À excepção da medida da pena, o alegado era já aquele que, em sede de recurso do Acórdão da 1ª instância, fora adiantado. Trabalhada por esta RP, foi claramente afastada a invocação de qualquer dos motivos indicados, fundadamente. Entendemos que não lhe assiste razão. A pena adequada ao caso em apreço, numa moldura penal abstracta balizada entre os 12 anos e os 25 anos, nunca poderá ser de apenas a pretendida pelo arguido. Adequada é, na verdade, a pena de 19 anos de prisão efectiva em que inicialmente foi condenado e que o Tribunal da Relação do Porto entendeu que precisava de ser ajustada ao caso sub judice. Porém, da fundamentação apresentada para justificar a diminuição da pena concreta perpassa a consideração da idade do arguido. Ora, à data da prática dos factos tinha o arguido 79 anos e 10 meses, e nada indica nos autos que estava diminuído nas suas faculdades cognitivas, pelo que tinha a perfeita noção do desvalor da sua conduta, não devendo ser beneficiado unicamente com este fundamento. Vivia com a sua mulher, que matou, há 56 anos… Aliás, no momento adequado, querendo, pode fazer uso dos institutos próprios que funcionam como válvula do sistema para situações semelhantes, legalmente previsto no CEPMPL. Assim, a pena que lhe foi imposta é a que se aproxima da sanção justa e adequada à conduta criminosa do arguido e que, por isso, se deve manter inalterável. Em face de tudo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantido nos seus precisos termos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto.” 4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP). Tendo em conta que o arguido requereu a realização de audiência, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso na parte em que impugna a decisão em matéria de facto e invoca a violação do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP (vício de erro notório na apreciação da prova) e reservado a tomada de posição sobre as questões de direito para audiência. Deste parecer foi dado conhecimento ao arguido, o qual nada disse, em resposta. 5. O processo prosseguiu para julgamento do recurso mediante audiência, requerida pelo arguido (artigos 411.º, n.º 5, 421.º e 423.º do CPP), para debate dos seguintes pontos da motivação, assim especificados no requerimento: “Impugnação da convicção formada, violadora do disposto no artigo 127º do C.P.P.”; “Da violação do disposto no artigo 410.º n.º 2 c) do C.P.P.”; “Violação do disposto nos artigos 14,º n.º 1, 26.º, 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 al) b) do C.P.”, e “Da medida da Pena cominada, violadora do disposto no artigo 71.º e 18.º n.º 2 da C.R.P.”. 6. Posteriormente, veio o arguido desistir do pedido de audiência, tendo o tribunal julgado a desistência válida, por despacho do presidente consignado em ata, no qual também foi ordenado que o processo fosse apresentado ao Ministério Público, para emissão de parecer quanto às questões de direito, seguindo-se os trâmites do julgamento do recurso em conferência. 7. O Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer dizendo que, por entender “que não ocorrem razões que justifiquem, seja diferente enquadramento jurídico dos factos provados, seja a alteração da medida da pena de prisão aplicada”, o recurso deve ser “1) rejeitado, na parte relativa à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e ao vício de erro notório na apreciação da prova, e 2) julgado improcedente, no que ao restante concerne”. 8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse. Apreciando e decidindo: II. Fundamentação Factos 9. O tribunal coletivo julgou provados os seguintes factos, que o Tribunal da Relação manteve inalterados (transcrição): «1. AA, aqui arguido, casou com DD no dia ...-10-1964, mantendo, desde essa data, uma vida em comum com a mesma. 2. O casal residia numa habitação sita na Rua ..., freguesia ..., .... 3. O arguido AA é seguido em consulta de psiquiatria desde 1995 por quadro depressivo, é portador de uma deficiência que, em ...-04-2019, lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 69 % e tinha e tem problemas de audição. 4. DD padecia de síndrome depressivo e tinha excesso de peso. 5. No dia ...-05-2021, entre as 20h e as 20h40min, no primeiro piso da dita habitação, o arguido AA encontrava-se a utilizar a casa-de-banho ali situada junto à escada interior que efetua a ligação daquele piso com o rés-do-chão e DD encontrava-se junto à porta do quarto de ambos, a cerca de 7 metros daquela divisão. 6. Nessa altura, DD começou a chamar pelo nome do arguido aos gritos e num tom de voz elevado, apesar dos avisos anteriores por parte do arguido para que o não fizesse. 7. De seguida, o arguido AA, irritado e desagradado com a atitude da sua mulher, dirigiu-se até junto desta e, em tom agressivo e violento, disse-lhe: “cala-te que é uma vergonha, olha os vizinhos, tenho-te dito tantas vezes, tu é que ficas mal”, ao que DD lhe respondeu: “é assim, até vou abrir o postigo que é para eles ouvirem melhor, nunca mais saías da casa-de-banho”. 8. Ato contínuo, para silenciar a sua mulher, o arguido AA colocou uma das suas mãos na boca de DD e, porque esta se debateu, o arguido AA colocou as suas duas mãos no pescoço de DD e apertou com toda a força. 9. DD tentou, com as suas mãos, defender-se e afastar o arguido AA, o que não conseguiu. 10. O arguido ao comprimir extrinsecamente com as suas mãos o pescoço de DD bloqueou totalmente a passagem de oxigénio nas vias respiratórias desta, sufocando-a e impedindo-a de respirar, fazendo com que a mesma lentamente desfalecesse e tombasse para o chão do corredor, junto à porta do quarto do casal, no primeiro piso daquela habitação, causando direta e necessariamente a sua morte por asfixia mecânica. 11. Após, procurando esconder o que acabara de fazer, o arguido colocou a vítima num tapete e arrastou-a até ao início da referida escada interior que efetua a ligação do primeiro piso com o rés-do-chão. 12. Ali chegado, o arguido AA sentou a vítima no primeiro degrau, colocou-se à sua retaguarda, ficando aquela entre as suas pernas, segurando-lhe a cabeça e o tronco com as mãos, e começou a descer a escada, sentado nessa posição com a mesma, degrau a degrau. 13. Ao descer um número não apurado de degraus, mas necessariamente inferior a quatro, o corpo da vítima resvalou para a frente, tendo a mesma e o arguido AA, uma vez que a estava a agarrar, rebolado pelos restantes degraus até atingirem o solo do rés-do-chão. 14. De seguida, o arguido AA levantou-se e agarrou a parte superior do corpo de DD, de maneira a fazê-la subir um desnível existente entre a base da escada e a sala sito no rés-do-chão. 15. O corpo de DD permaneceu naquela zona em posição de decúbito dorsal, com os pés a apontar para o final da escada e a cabeça para a sala sita nesse mesmo rés-do-chão. 16. Após, o arguido telefonou a EE, um dos seus dois filhos, que se deslocou ao local, tendo este, pelas 20h53min, contactado telefonicamente o Centro Operacional 112 ..., solicitando auxílio. 17. Dois bombeiros voluntários de ... chegaram ao local pelas 21h04min, tendo executado na vítima, sem sucesso, manobras de suporte básico de vida e desfibrilhação automática externa até às 21h22min, altura em que a transportaram, em manobras de reanimação, sem sucesso, para a sala de emergência do Centro Hospitalar .... 18. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu várias lesões, nomeadamente: - Hemorragia petequial na face interna das pálpebras inferiores e na mucosa gengival do maxilar superior; - Solução de continuidade com bordos contundidos, irregulares e infiltrados de sangue, de orientação vertical, com 0, 7 cm de comprimento, na linha média da face interna do lábio inferior; - Na face anterior do pescoço, múltiplas escoriações lineares avermelhadas; - À direita da linha média do pescoço, duas escoriações (a mais superior, de orientação oblíqua de cima para baixo e da direita para a esquerda, com 1, 3 cm de comprimento; e a mais inferior, de orientação oblíqua de cima para baixo e da esquerda para a direita, com 2 cm de comprimento) e sufusões petequiais dispersas no terço inferior da face lateral direita; - À esquerda da linha média do pescoço, três escoriações (a mais superior, de orientação horizontal, com 1,9 cm de comprimento; a intermédia, de orientação horizontal, com 3,5 cm de comprimento; e a mais inferior de forma grosseiramente ovalada, com 1 cm por 0,8 cm de maiores dimensões); causadas pela compressão extrínseca do pescoço com as duas mãos do arguido e pela própria vítima em ação defensiva durante as tentativas de afastar as mãos do arguido do seu pescoço; - Na cabeça, equimose avermelhada, de forma ovalada, com 4, 5 cm por 3 cm de maiores dimensões, na linha média da região frontal; equimose arroxeada, de forma ovalada, com 2, 5 cm por 1, 5 cm de maiores dimensões, na região frontal, à esquerda da linha média, junto à implantação do cabelo; equimose arroxeada, de forma grosseiramente ovalada, com 3, 5 cm por 2 cm de maiores dimensões, na região parietal esquerda, coberta por cabelo; duas escoriações avermelhadas, de orientação oblíqua de cima para baixo e de lateral para medial, junto à implantação do cabelo, a mais medial com 2, 2 cm de comprimento e a mais lateral com 1, 2 cm de comprimento, localizadas na região frontotemporal esquerda; equimose arroxeada na pálpebra superior esquerda; equimose arroxeada periorbitária direita; escoriação linear, avermelhada, oblíqua de cima para baixo e da direita para a esquerda, com 1 cm de comprimento, na região infraorbitária esquerda; equimose arroxeada, de forma ovalada, no dorso da região dos ossos próprios do nariz; solução de continuidade com bordos contundidos, irregulares e infiltrados de sangue, arqueada e de concavidade posterior, na face lateral esquerda do dorso do nariz, com 1, 5 cm de comprimento; duas soluções de continuidade com bordos contundidos, irregulares e infiltrados de sangue, de orientação oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, na face lateral direita do dorso do nariz, sendo a maior com 1, 2 cm de comprimento e a menor infracentimétrica; na hemiface esquerda duas escoriações (a mais medial, de orientação oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, com 1, 8 cm de comprimento e a mais lateral, de orientação vertical, com 4 cm de comprimento); duas equimoses arroxeadas de forma ovalada na hemiface direita, na região malar (a mais lateral com 2, 5 cm por 0, 5 cm de maiores dimensões e a mais medial com 2, 5 cm por 1 cm de maiores dimensões) e, lateralmente estas, uma escoriação avermelhada de forma grosseiramente ovalada, com 2, 5 cm por 1, 7 cm de maiores dimensões; fratura com infiltração sanguínea das peças dentárias 32 e 41; fratura parcial do esmalte com infiltração sanguínea da peça dentária 43; na região do ramo mandibular, à direita da linha média, três escoriações (a mais lateral, com 2, 7 cm por 1, 0 cm de maiores dimensões, a intermédia com 1, 5 cm por 0, 7 cm de maiores dimensões e a mais medial/na linha média da região mentoniana, com 2 cm por 1, 3 cm de maiores dimensões; na região submentoniana, à esquerda da linha média, observa-se equimose azulada, ténue, com 2 cm por 1 cm de maiores dimensões; no abdómen, na face lateral do flanco esquerdo, múltiplas equimoses azuladas, numa área com 8 cm por 4, 5 cm de maiores dimensões; no membro superior esquerdo, equimoses azuladas, ovaladas, infracentimétricas, na face medial do terço proximal do braço; na face posterior do terço médio do braço esquerdo duas equimoses azuladas e ovaladas, a mais lateral com 1, 5 cm de diâmetro e mais medial com 2, 5 cm de maiores dimensões; na face posterior do cotovelo esquerdo uma equimose acastanhada, com 1, 5 cm de diâmetro; no bordo cubital do terço médio/inferior do antebraço, uma equimose arroxeada, ovalada, ténue, com 2 cm por 1 cm de maiores dimensões; no terço inferior da face anterior do antebraço esquerdo duas equimoses arroxeadas, ovaladas numa área com 2, 5 cm por 1, 5 cm de maiores dimensões; no dorso da mão esquerda, ao nível do 3.º e 4.º metacarpianos, uma equimose arroxeada ovalada, com sinal de picada, com 2 cm por 1 cm de maiores dimensões; no dorso da região da falange proximal do 3.º dedo da mão esquerda, uma solução de continuidade, com 0, 5 cm de diâmetro; no membro inferior esquerdo, na face medial de toda a perna, equimoses azuladas dispersas; no membro superior direito, na face posterior do cotovelo, uma equimose azulada, de forma ovalada, com escoriação abrasiva avermelhada associada, com 3, 5 cm por 2 cm de maiores dimensões; no membro inferior direito, na face anterior do terço médio da coxa, uma equimose azulada arredondada, com 4 cm de diâmetro; duas escoriações infra centimétricas, no dorso da região da articulação metatarsofalângica do primeiro dedo do pé direito; no dorso da região interfalângica do 2.º dedo do pé, uma escoriação com 1 cm por 0, 5 cm de maiores dimensões; causadas pela queda na escada interior; - Infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo, aponevrose epicraniana e músculos temporais; infiltração sanguínea dispersa dos tecidos moles (tecido celular subcutâneo, músculo platisma e músculos esternocleidomastoideus) e da glândula tiroideia; vestígios hemáticos no interior do lúmen brônquico direito e infiltração sanguínea do tecido celular subcutâneo na face anterior do tórax e fraturas de arcos costais anteriores e laterais, com infiltração sanguínea associada; causadas pela queda da escada interior e decorrentes da compressão torácica externa realizadas durante as manobras de suporte de vida. 19. O arguido AA agiu sabendo e querendo tirar a vida a DD, com quem era casado, coabitava e tinha dois filhos, para a silenciar, desagradado pelo tom de voz por ela utilizado para o chamar, que entendia suscetível de ser alvo de comentários depreciativos dos vizinhos, e que a vítima continuou a utilizar não obstante os anteriores avisos e pedido por parte do arguido para que o não fizesse, revelando o arguido uma personalidade profundamente distanciada dos valores aceites pela comunidade. 20. Agiu livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 21. Em consequência, o arguido sofreu fratura do punho direito e hematoma na região parietal direita. II. 22. À data dos factos o arguido habitava com a falecida mulher na referida habitação, uma moradia construída pelo casal há cerca de 50 anos, inserida na zona central de ..., concelho .... 23. Do referido relacionamento existem dois descendentes, com 57 e com 52 anos, respetivamente, ambos autonomizados, os quais prestam na atualidade um apoio estreito ao arguido, seja do ponto de vista estrutural ou logístico, tal como já sucedia anteriormente à data dos factos. Nessa fase as relações familiares eram gratificantes, com proximidade afetiva e relacional, mantendo o arguido uma convivência circunscrita ao quotidiano da vida do casal e relações conexas e próximas com os filhos. 24. Durante os anos de vivência do casal este manteve uma relação cordial e que decorreu maioritariamente de forma positiva, apesar da existência de episódios pontuais de conflitualidade. 25. A relação do arguido para com a vítima foi a única verdadeiramente representativa da vida afetiva do arguido e foi globalmente equilibrada. 26. Também do ponto de vista financeiro a família viveu sempre de forma regrada, mas equilibrada, sendo que o arguido está habilitado com o 7.º ano de escolaridade e em fase embrionária iniciou o exercício de funções enquanto eletricista por conta própria, profissão que colheu a sua preferência, priorizou e em que progrediu profissionalmente até à idade da reforma. Contudo, após se ter retirado da vida ativa, o arguido passou a auferir uma pensão de reforma atribuída ao próprio apenas no valor de 354 EUR, mas a retaguarda familiar que os filhos lhe proporcionavam, permitiu, e permite, uma capacidade financeira suficiente para assegurar a sua subsistência e qualidade de vida de modo estável e condigno. 27. O arguido é estimado e respeitado pelos vizinhos. 28. Durante o período de execução da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, o arguido tem patenteado uma postura ajustada, colaborante, de acordo com a decisão judicial. III. 29. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.” Âmbito e objeto do recurso 10. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal da relação, em recurso interposto de um acórdão do tribunal coletivo, que, confirmando a matéria de facto, aplicou pena de prisão superior a 8 anos, o qual constitui decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 399.º e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP). 11. De acordo com o artigo 434.º do CPP, na parte que agora releva, «o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito». O conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP). Pelo que se encontra subtraído ao Supremo Tribunal de Justiça o conhecimento das questões relativas à decisão em matéria de facto. 12. Tratando-se de um recurso de acórdão da relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro). O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, porém, dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro). Com efeito, conforme jurisprudência constante, que, nesta parte, não foi afetada pela alteração legislativa de 2021, a limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede este tribunal de, por sua iniciativa, conhecer dos vícios mencionados nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, os quais, sendo vícios lógicos do discurso decisório – e não erros de julgamento da matéria de facto –, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, ou das nulidades não sanadas a que se refere o n.º 3 do mesmo preceito, em vista da boa decisão de direito que possa ser prejudicada ou afetada pela sua subsistência, se a sua sanação se revelar necessária, no âmbito do conhecimento do mérito do recurso [neste sentido, por todos, o acórdão de 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt, citando, entre outros, o acórdão de 15.12.2011 (Raul Borges), Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, e abundante jurisprudência nele mencionada]. 13. Como se tem assinalado, este regime de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais) (por todos, os acórdãos do Tribunal Constitucional 64/2006, 659/2011 e 290/2014; neste sentido também, entre outros, os citados acórdãos de 02.10.2019 e de 29.04.2020 e a jurisprudência neles mencionada, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12, de 09.10.2013, DR 1.ª série, de 12.11.2013). Em «jurisprudência ampla, sucessiva e reiterada», vem o Tribunal Constitucional insistindo em que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias, como se pode ler no recente acórdão n.º 57/2022: «(…) não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição o direito a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, dispondo o legislador de liberdade de conformação na definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt), posto que os critérios consagrados não se revelem arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. Acresce que este Tribunal tem também reiteradamente entendido não ser arbitrário, nem manifestamente infundado, reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/2003, 495/2003, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/2009, e 174/2010).» 14. Mostram-se satisfeitos os requisitos de fundamentação do acórdão recorrido impostos pelos artigos 374.º e 375.º do CPP, e não ocorrem nulidades do acórdão (artigo 379.º, n.º 1, ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP) ou processuais (artigo 379.º, n.º 2, do CPP), não sanadas, que devam ser conhecidas. 15. Tendo em conta as conclusões da motivação, as questões colocadas em recurso dizem respeito a: (i) Alegado erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 127.º do CPP (princípio da livre apreciação da prova), e de formação da decisão em matéria de facto, indicando o recorrente as provas que, na sua opinião, impõem decisão diversa (conclusão 2); (ii) Alegado vício de erro notório na apreciação da prova [410.º, n.º 2, alínea c), do CPP] (conclusão 2); (iii) Verificação da qualificativa do crime de homicídio prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (prática do facto contra cônjuge) (conclusão 3); (iv) Medida da pena aplicada (conclusão 4); (v) Alegadas “inconstitucionalidades” por violação do princípio da proporcionalidade e dos direitos de defesa (conclusões 5 e 6); (vi) Alegados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [410.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPP] (conclusão 7). Quanto ao alegado erro de julgamento e da decisão em matéria de facto e aos alegados vícios da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do CPP [supra, 15., (i), (ii) e (vi)] 16. Reproduzindo, no essencial, a motivação do recurso que apresentou perante o Tribunal da Relação, em que impugnou a decisão da 1.ª instância em matéria de facto, o arguido: - invoca “manifesto vício de apreciação da prova, ex vi artigo 410.º, n.º 2, alínea c). do CPP”; - “sindica a convicção a que o tribunal chegou, violadora do disposto no artigo 127.º do CPP”, indicando como “prova que impõe decisão diversa da recorrida”, o que consta de fls. 322 e 325 a 331, “corroborado pelo depoimento prestado pelas testemunhas BB, CC em sede de audiência de discussão e julgamento conforme Ata respeitante ao dia 16-03-2022 com referência ...82, depoimento prestado entre as 11:21:09 e as 11:34:38 no que tange à testemunha BB e as 11:34:40 a 11:40:49 no que concerne com a testemunha CC”, e as “declarações prestadas pelo arguido entre as 09:52:13 e as 11:00 horas”; - “No que se refere ao ponto 8, impugna [a] convicção formada pelo tribunal na parte que refere que “apertou [o pescoço da vítima] com toda a força”, por entender que “inexistem nos autos prova que sustente tal facto”, convocando, a este propósito, o depoimento dos bombeiros e o que consta do acórdão recorrido e apresentando a sua apreciação dos factos, que diverge do provado. 17. No presente recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo que o julgamento da matéria de facto se encontra ferido do “vício resultante da violação do disposto no artigo 127.º do CPP”, pretende, de novo, pôr em crise o que consta do seguinte trecho do acórdão da 1.ª instância, que não acolhe a sua versão dos factos: “Em audiência de julgamento o arguido procurou convencer que transportou o corpo da malograda vítima até ao rés-do-chão, efetuando o dito percurso, para facilitar pelo seu mais rápido e fácil socorro. Contudo, em completa contradição, em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido afirmou que se calhar tinha tido tempo para a salvar, o que evidencia a plena consciência de que terá perdido tempo e/ou não fez tudo o estava ao seu alcance para a socorrer e, assim, afastando ter sido aquela a intenção que presidiu a tal comportamento. Ora, é do conhecimento geral e, assim, facto notório que não carece de prova (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.C. ex vi art.º 4.º do C.P.P.) que, caso haja a suspeita de uma pessoa ter sofrido uma lesão traumática se deve evitar mexer muito nela ou deslocá-la, devendo ser contactados os serviços de emergência médica através do número de telefone 112 (número europeu de socorro). Ora, apesar de o arguido possuir telemóvel (cfr. fls. 293 a 296 e 321 do Volume II) e, conforme admitiu em audiência de julgamento, telefone fixo, não soube explicar a razão pela qual não telefonou logo para tal serviço. No primeiro piso da dita habitação, a referida escada interior dista, conforme o arguido referiu em audiência de julgamento, cerca de 7 metros da zona do corredor junto do quarto do casal. Para além disso, a dita escada é em tijoleira, descrevendo, no sentido descendente, a partir do 5.º degrau, uma curva à direita, num ângulo de 90 graus, até chegar ao rés-do-chão (cfr. fls. 45, 46, 68 a 75 do Volume I). Por seu turno, a dita habitação é dotada de uma escada exterior, sem qualquer curva, que permite o acesso direto ao primeiro andar, precisamente ao início daquele corredor (cfr. fls. 33, 34, 53 e 54 do Volume I), conforme o arguido admitiu em audiência de julgamento. É certo que, conforme o arguido também referiu em audiência de julgamento, a porta que normalmente era utilizada para entrar e sair naquela habitação era aquela situada no rés-do-chão junto à base da dita escada interior. Tal versão encontrou total apoio no depoimento do seu vizinho, FF, que referiu nunca o ter visto o casal utilizar a porta do 1.º andar. Acresce que foi pela porta situada no rés-do-chão, no fundo da dita escada interior, que entraram e saíram os inspetores da Polícia Judiciária, GG e HH, bem como os bombeiros que se deslocaram ao local, BB, CC e II, conforme todos deram conta em audiência de julgamento. Não obstante, o socorro de uma vítima com lesões traumáticas não é propriamente uma situação habitual ou normal, justificando as mais elementares regras da experiência e da normalidade do acontecer que o mesmo se faça pelo trajeto mais rápido, mesmo que este não coincida com aquele que normalmente é feito para entrar e sair do local onde a mesma se encontra. É também evidente que a porta situada no 1.º piso se encontrava trancada, não tendo chave na fechadura, possuindo um ferrolho na parte inferior (cfr. fls. 53 do Volume I). Contudo, em audiência de julgamento o arguido acabou por admitir que a mesma abria, estando assim funcional. Acresce que é também do conhecimento geral e, assim, facto notório que não carece de prova (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.C. ex vi art.º 4.º do C.P.P.), que as equipas de socorro estão dotadas, ou podem fazer-se munir se alertadas para tal necessidade, de equipamento apto a arrombar uma porta de madeira. Ora, tudo ponderado, atento até o excesso de peso da malograda vítima, a utilização da dita porta do 1.º piso da referida habitação garantiria que mais rapidamente se alcançasse, do exterior, a malograda vítima, evitando mexer na mesma. Acresce que, mesmo que fosse necessário ir buscar a outro local a chave da dita porta e até ferramenta para abrir o dito ferrolho, atentas as características da dita habitação (cfr. fls. 27 a 99 do Volume I), é evidente que qualquer pessoa despenderia em tais tarefas menos tempo do que aquele que o arguido teve necessariamente que despender para transportar o corpo da malograda vítima até à escada interior e, mediante recurso àquele procedimento, a fazer descer até ao rés-do-chão. Perante todas essas circunstâncias, o facto de o arguido ter optado por efetuar com a malograda vítima aquele sinuoso trajeto permitiu concluir que o mesmo sabia que mesma já estava morta, procurando esconder o que acabara de fazer.” 18. O Tribunal da Relação pronunciou-se, no acórdão recorrido, sobre o que consta do trecho transcrito, dizendo o seguinte: “Importa reiterar que, para alterar a decisão sobre a matéria de facto, é necessário que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da proferida (artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP) (…). E convém não esquecer que “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância”, como ensina o Professor Germano Marques da Silva (in “Forum Iustitiae”, Ano 1.º, n.º 0, págs. 21 e 22). No presente caso, o tribunal a quo explicitou claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada, sobretudo, da prova pericial e documental contida no processo, das declarações prestadas pelo arguido e pela generalidade das testemunhas inquiridas, que retira a sua convicção. O recorrente, por seu turno, limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, verificando-se, porém, que os argumentos por ele invocados para contrariar as conclusões obtidas pelo tribunal não impõem, efetivamente, decisão diversa da recorrida. Com efeito, o recorrente limita-se a negar as acusações que lhes são dirigidas e aponta, no recurso, incongruências e insuficiências que considera existir na valoração dos meios de prova utilizados para formação da convicção, sem que, de modo algum, se possa concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. É verdade que o tribunal a quo não pôde fundar a sua convicção quanto à circunstância de a morte da vítima ter sido causada pela constrição do seu pescoço, levada a cabo pelo arguido de forma consciente e deliberada, ainda no piso superior (e não no decurso da queda pelas escadas, como o recorrente alega ter sucedido), nalgum meio de prova que, de forma direta, comprovasse tal ocorrência. Com efeito, o arguido não admitiu que os factos ocorreram desse modo e essa realidade não foi verificada e declarada por nenhuma das testemunhas inquiridas sobre esta matéria. Contudo, o tribunal extraiu as conclusões que fez constar do elenco da matéria de facto provada do conjunto da prova examinada na audiência, analisada em conjugação com critérios de normalidade decorrentes das regras da experiência e por apelo a raciocínios de natureza dedutiva, como, aliás, é normal suceder nos casos em que o tribunal não tem à sua disposição declarações confessórias ou qualquer outra prova direta. Portanto, o que verdadeiramente interessa apurar é se, em face dos dados objetivos de que dispunha, o tribunal a quo extraiu conclusões arbitrárias, ilógicas ou notoriamente violadoras das regras da experiência comum ou do princípio da presunção de inocência, como sustenta o recorrente ter sucedido. Em primeiro lugar, importa salientar que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além da dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada. Na verdade, “como todos os juízos históricos, o juízo de convicção do julgador da matéria de facto não é mais do que um juízo de probabilidades sobre a verdade ou falsidade de certas proposições. Quando o juiz dá como provado um determinado facto, isso significa, no nosso ordenamento jurídico, que, com os meios limitados à sua disposição e a imperfeição inerente à natureza humana, atingiu a «certeza subjetiva» da veracidade da correspondente afirmação de facto” (Margarida Lima Rego, “Decisões em ambiente de incerteza: probabilidade e convicção na formação das decisões judiciais”, Revista Julgar, n.º 21, Set/Dez de 2013, p. 121). O critério que tem geral aceitação (também no nosso sistema jurídico) como standard de prova no processo penal é o que se traduz no conceito de “prova para além de qualquer dúvida razoável”. Além disso, encontra-se consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial. Portanto, tanto a prova direta, como a indireta ou indiciária são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do facto a provar, importando nesta as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção que se encontram na base de qualquer juízo probatório. O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. De resto, a associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objetivos e regras objetivas leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente prova testemunhal, pois que aqui também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação. Naturalmente, quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros. Com efeito, a presunção de inocência que impera em direito processual penal exige que não seja afetada pela utilização de presunções judiciais. Portanto, a utilização de uma presunção judicial para determinar a culpa pela prática de um ilícito criminal deve ser particularmente sólida, bem fundamentada, não dando margem para o erro judiciário: além da prova fundamentada dos factos básicos deve existir uma conexão racional forte entre esses factos e o facto consequência.18 Em conclusão, no processo penal, por força das garantias constitucionais, exige-se que o juízo probatório implique uma probabilidade elevada (um forte grau de probabilidade de que os factos tenham ocorrido daquela forma e que eles tenham sido praticados pelo arguido), a qual não convive com parâmetros de dúvida e de incerteza relevantes. Como salienta o Conselheiro José Santos Cabral (in “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, Revista Julgar n.º 17, Maio-Agosto 2012), é incontornável a afirmação de que a gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno, é preciso o indício quando não é suscetível de outras interpretações. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão. Além disso, deve estar afastada a existência de contra-indícios (ou contra-presunções, na expressão de Mittermaier), pois que tal existência cria uma situação de desarmonia, que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária. O contra-indício destina-se a infirmar a força da presunção produzida e, caso não tenha capacidade para tanto, pela sua pouca credibilidade, mantém-se a presunção que se pretendia elidir. É a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando. No presente caso, consideramos que os indícios destacados na decisão recorrida (de forma lógica e congruente) são suficientemente graves, precisos e concordantes, permitindo as inferências e conclusões firmadas pelo tribunal a quo no sentido da demonstração da autoria do crime imputado ao arguido/recorrente e, bem assim, da verificação do dolo na respetiva execução. Tais inferências obedecem ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência, não se encontrando, para além disso, “contra-indícios” reveladores de hipóteses divergentes plausíveis, capazes de abalar a elevada convicção probatória em torno da hipótese da acusação. A circunstância de as testemunhas que socorreram a vítima no local não terem notado, de imediato, a presença de equimoses no seu pescoço não é de modo algum decisiva para contrariar a conclusão a que chegou o tribunal de primeira instância. Essas marcas existiam e foram logo observadas no transporte para o hospital, sendo segura a conclusão de que a morte da vítima resultou de asfixia mecânica, causada pela compressão extrínseca do pescoço com (necessariamente) as duas mãos do arguido, como inequivocamente demonstra o relatório de perícia médico-legal constante do processo. Esta conclusão, a que chegou o tribunal de primeira instância, encontra igualmente apoio nas declarações do arguido (o qual admitiu que “disparou” na direção da sua mulher, por se encontrar “perdido”, estado anímico compatível com a força necessária exercida para comprimir com as suas mãos o pescoço de outra pessoa pelo período de tempo necessário para ser causada a sua asfixia mecânica, como bem observa o tribunal na decisão recorrida) e, ainda, no relatório da perícia psicológica forense a que o arguido foi submetido, que salienta que “[…] os dados obtidos sugerem, que o (...) [mesmo] apresenta características de funcionamento psicológico que se traduzem em dificuldades na gestão de situações emocionalmente mais exigentes e complexas (ex.: conflitos familiares, gestão de emoções, negociação de conflitos, etc.)” e que o arguido/recorrente “parece revelar dificuldades na regulação emocional, sendo que em situações de maior tensão ou maior exigência emocional, poderá manifestar dificuldades na gestão comportamental, podendo agir de forma impulsiva e agressiva,” evidenciando-se, para além disso, “sinais de desgaste psicológico e grande ativação emocional relativamente ao relacionamento com a sua esposa (vítima), pela marcada ideação de prejuízo, com a tendência a considerar que o seu caráter ou reputação foi atacado e em consequência tende a reagir com agressividade em termos emocionais e comportamentais, com dificuldades no autocontrolo, dificuldades na tolerância da frustração, na autorregulação emocional e impulsividade, o que pode indicar alguma tendência do examinado para apresentar comportamentos impulsivos e agressivos em situações emocionalmente exigentes” (cfr. fls. 419 a 425 e 454 a 457 do Volume II). Este quadro psico-emocional é perfeitamente compatível com a constrição do pescoço da malograda vítima pelas mãos do arguido naquela concreta situação de conflitualidade conjugal, como corretamente se anota na decisão recorrida. Afigura-se ainda perfeitamente lógica e racional a afirmação do tribunal no sentido de que “o facto de o arguido ter optado por efetuar com a malograda vítima aquele sinuoso trajeto permitiu concluir que o mesmo sabia que a mesma já estava morta, procurando esconder o que acabara de fazer.”. É claro que assim não poderia deixar de ter considerado o tribunal a quo, impondo-se esta conclusão em face das regras da experiência comum, sendo manifesto que, caso pretendesse prestar auxílio à vítima, encontrando-se esta ainda com vida, o arguido/recorrente teria telefonado de imediato para a linha de emergência médica ou pedido ajuda a um vizinho ou a um dos filhos (como acabou por fazer mais tarde), mantendo a vítima imobilizada. A explicação avançada pelo arguido/recorrente - quando sustenta que colocou a vítima num tapete para a fazer descer as escadas, de modo a que as autoridades a pudessem socorrer – não podia, naturalmente, convencer o tribunal, por se mostrar totalmente contrária às regras da lógica e da normalidade dos acontecimentos. O que a prova indiciária objetivamente indica ter sucedido é que o arguido, confrontado com a ausência de sinais vitais da sua esposa, simulou a queda da vítima pelas escadas, para tentar iludir terceiros quanto à sua responsabilidade criminal, como é observado na motivação da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público. Em resumo, consideramos que a prova constante do processo é suficientemente precisa para nos permitir afirmar, com a segurança exigível à superação da presunção de inocência ínsita no princípio in dubio pro reo, que o arguido pressionou consciente e voluntariamente o pescoço da vítima, sua mulher, com as duas mãos, apertando-o com força, provocando-lhe, por via disso, a morte por asfixia mecânica, como necessariamente previu que sucederia e quis que ocorresse. Já a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do arguido, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum. Concluímos, assim, que a convicção do tribunal a quo, para além de se mostrar congruente com a prova produzida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), é perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de forma desfavorável ao arguido, nem se evidencia qualquer possibilidade de que a prova legitimamente conduzisse o julgador a uma dúvida razoável e insuperável quanto à sua verificação). Nenhuma censura merece, deste modo, a decisão recorrida, inexistindo violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, mantendo-se, consequentemente, inalterada a factualidade impugnada”. 19. No presente recurso, o arguido volta a afirmar a sua discordância, dirigida de novo ao acórdão da 1.ª instância, na parte acima transcrita (supra, 17), dizendo que: “(…) prestou declarações apresentando a sua versão sobre os factos ocorridos. A sua versão, merece credibilidade porque é sustentada nos demais elementos constantes nos autos, mormente os supra referidos e ainda o Relatório do IML O arguido assumiu que efetivamente se envolveu fisicamente com a ofendida no piso superior, explicou que tal confronto fez com que a ofendida tenha embatido com a cabeça na porta, e que após isso tentou socorrer a mesma transportando-a para o piso inferior para a porta habitualmente utilizada com vista a chamar ajuda para acudir a vítima, O arguido explicou que nunca projetou a morte da vítima, nem nunca foi essa a sua intenção, O arguido não é medico, não consegue precisar efetivamente quando foi o momento em que a vítima perdeu a vida, O arguido referiu que ao tentar transportar a vítima para o piso de baixo a mesma e o arguido caíram pelas escadas a baixo, motivo esse que levou a que o arguido fraturasse o pulso, Versão que se corrobora pelos demais elementos de prova existentes nos autos, bem como a ausência de outros que a afastem O arguido assumiu efetivamente que foi o responsável pela morte da vítima que era sua mulher (pessoa com a qual teve dois filhos e que levou uma vida de casado estável), O arguido explicou de forma espontânea o modo como as coisas aconteceram, explicando que não se conformou nem se conforma com a morte da sua mulher e que efetivamente se envolveu fisicamente com esta, Nunca foi intenção do arguido causar a morte da sua mulher, O arguido assumiu parcialmente parte dos factos da acusação, teve uma postura crítica e contribuiu ativamente para a descoberta da verdade material Explicou em que circunstancias a morte ocorreu e o motivo da mesma, Na ausência de provas que impõe decisão diversa, encontrando a versão do arguido compatibilidade com os demais elementos de prova deve a mesma ser valorizada Entende-se por isso que se encontra verificada e ferida pelo vício resultante da violação do disposto no artigo 127º do C.P.P”. 20. Em síntese, como se extrai do que vem de se expor, o arguido vem reeditar os argumentos e pretensões do recurso que apresentou, perante a Relação, da decisão da 1.ª instância em matéria de facto e quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova, que imputa à mesma decisão da 1.ª instância. O presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não é um segundo recurso do acórdão da 1.ª instância, mas, recorde-se, um recurso do acórdão da Relação, que conheceu daquele recurso. Como tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência deste Tribunal (cfr., por todos, o acórdão de 02-10-2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência), os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa. Os recursos constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas, respetivamente, com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss). O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objeto do conhecimento do recurso se delimita pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso. Como se tem afirmado, o recurso constitui apenas um “remédio processual” que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre (assim, também, o acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt). 21. As questões suscitadas a propósito da apreciação das provas e da decisão sobre os factos provados e não provados inscrevem-se, como se viu, na competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância, não sendo a decisão da relação recorrível, nesta parte, para o Supremo Tribunal de Justiça. A decisão recorrida, na parte que agora releva (supra, 18), procede a uma fundamentada apreciação do recurso em matéria de facto, não se identificando, a partir do seu próprio texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a presença do vício de erro notório na apreciação da prova [n.º 2, al. c), do artigo 410.º do CPP] ou de motivo gerador de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, aplicável ao acórdão da Relação por força do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do CPP, de que se deva oficiosamente conhecer. Também não se identifica qualquer dos vícios, de conhecimento oficioso, indicados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, a que o recorrente, sem concretizar o motivo, faz referência (conclusão 7). 22. Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível. Assim, não sendo admissível recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação em matéria de facto, nem, no caso, com fundamento no disposto no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, é o recurso rejeitado nesta parte. Em consequência, fica o conhecimento do recurso limitado às questões de direito suscitadas e que seguidamente se apreciam. Quanto à incriminação e à verificação da circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal 23. O arguido encontrava-se acusado da prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) – “facto praticado contra o cônjuge – e e) - ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil –, do Código Penal. O acórdão da 1.ª instância julgou verificada a circunstância da al. b) (“praticar o facto contra cônjuge”). Mas julgou não verificada as circunstâncias da al. e) respeitantes à “avidez” e ao “prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou satisfação do instinto sexual”. O que foi mantido pelo Tribunal da Relação. 24. Pronunciando-se sobre a qualificação jurídica dos factos provados com referência à circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, suscitada pelo recorrente perante o tribunal da Relação, diz o acórdão recorrido: “(…) a morte da vítima ocorreu, não por força de um ato descuidado ou leviano do arguido/recorrente (e, por isso, na decorrência da violação de um dever objetivo de cuidado), mas como consequência de um comportamento intencional e deliberado por ele conscientemente executado. Encontra-se, por isso, excluída a possibilidade de configuração do crime de homicídio que nos ocupa como um crime negligente. O tribunal de primeira instância integrou o comportamento do arguido no ilícito-típico previsto no art.º 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Código Penal, discordando o arguido/recorrente da qualificação do crime de homicídio em análise. (…) A agravação da responsabilidade do agente, decorrente da aplicação desta norma, radica numa culpa qualificada, a qual é suscetível de ser revelada pela verificação, entre outras, das circunstâncias previstas no n.º 2 do art.º 132.º do C. Penal. O preenchimento do tipo contido no art.º 132.º do C. Penal pressupõe, assim, um tipo de culpa qualificado resultante de "uma imagem global do facto agravada". Como assinala Paula Ribeiro de Faria, não basta para o preenchimento do tipo o grau mais grave do ilícito, sendo necessário que este reflita uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, uma atitude especialmente desconforme com os valores fundamentais defendidos pelo ordenamento jurídico-penal. O método da qualificação escolhido pelo legislador consiste na combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica denominada dos exemplos-padrão. Deste modo, obtém-se a combinação de um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de agravação penal, contida no n.º 1, com uma enumeração exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático, descritas no n.º 2. A verificação de qualquer uma das circunstâncias agravantes elencadas no n.º 2 do art.º 132.º é suscetível de indiciar uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Contudo, e como vimos, o que fundamenta a moldura penal agravada do homicídio qualificado radica na consideração de ter sido causado o resultado típico (morte) em circunstâncias que revelam uma atitude pessoal do agente particularmente desvaliosa e, assim, a verificação da "maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" [Cfr., neste sentido, Teresa Serra, in “Homicídio qualificado. Tipo de culpa e medida da pena”, pág. 66 e Figueiredo Dias, "Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial - Tomo I, artigos 131º a 201º", pp. 27-28. Ainda quanto a este autor, cfr. o Parecer publicado na CJ, ano XII, 1987, denominado "Homicídio Qualificado"]. Daí que, perante a verificação do "efeito de indício" desencadeado pelo preenchimento de uma das circunstâncias agravantes elencadas no n.º 2 do art.º 132.º, deve o julgador avaliar se, em concreto, se verifica uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. A "especial censurabilidade" reporta-se àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, referindo-se a "especial perversidade" àquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Como salienta Teresa Serra [Ob. cit., p. 64], com a referência à especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada por motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Trata-se da "atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor", de que fala Binder. No presente caso, foi considerada na sentença recorrida a circunstância contida na alínea b), do n.º 2, do art.º 132.º do CP, nos termos da qual é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente o facto de este, designadamente, praticar o facto contra cônjuge. Para fundamentar a qualificação do crime de homicídio escreveu-se na sentença recorrida que “A morte dolosa do cônjuge comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será suscetível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).” Estamos ainda de acordo com o tribunal de primeira instância quando conclui pela inexistência de qualquer circunstancialismo suscetível de derrogar o efeito de indício de especial censurabilidade ou perversidade do agente, decorrente da verificação da circunstância contida na alínea b), do n.º 2, do art.º 132.º do CP. Com efeito, e como é assinalado na sentença recorrida, “estando o arguido casado com a malograda vítima há mais de 56 anos, sem se ter demonstrado a existência de relevantes problemas conjugais, não tendo a morte da vítima sido causada por razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-o com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a força qualificadora de tal exemplo-padrão.”. Assim, ao arguido AA é objetiva e subjetivamente imputável a prática, em autoria imediata e sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, n.º 2, al. b), do C.P, como se decidiu na primeira instância. Nenhuma censura merece, também quanto a este aspeto, o acórdão recorrido, improcedendo o presente fundamento do recurso.” 25. Discordando do decidido, alega o recorrente que: “Redige-se no Douto Acórdão de que se recorre o seguinte, «Por seu turno, a qualificação do crime de homicídio deriva da combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos chamados exemplos-padrão. Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: “a especial censurabilidade ou perversidade” do agente (cfr. Art.º 132., n.º 1, do C.P.), verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, elencados a título exemplificativo (cfr. Art.º 132.º, n.º 2, do C.P.). Ou seja, da combinação de uma cláusula geral, determinante de um especial tipo de culpa, fundamento da agravação, com a e numeração de um conjunto de circunstâncias suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade exigida por aquele. Ora, essas circunstâncias não são taxativas e não operam automaticamente. (...) Ora, no presente caso, pela imagem global do facto praticado, estando o arguido casado com a malograda vítima há mais de 56 anos, sem se ter demonstrado a existência de relevantes problemas conjugais, não tendo a morte da vítima sido causada por razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-o com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a forca qualificadora de tal exemplo- padrão. Desta forma verifica-se a circunstância qualificativa de ter sido o facto praticado contra cônjuge (cfr. 132.º, n.º 2, al. B), do C.P.).» Inicialmente afirma-se que a agravante (qualificativa) não opera automaticamente. Contudo, posteriormente afirma-se que não tendo o arguido demonstrado a existência de relevantes problemas conjugais, não tendo a morte da vítima ter sido causada por problemas decorrentes de tal, verificava-se a qualificativa constante no artigo 132.º al b) do C.P. No modesto entendimento da defesa, tal conclusão é errada Vejamos, para a operação da qualificativa temos de estar perante um quadro que demonstre uma especial censura, uma atuação perversa ou uma especial baixeza da motivação ligados à qualidade da vítima (cônjuge), No caso em concreto, o quadro factual revelado dos autos deixa transparecer uma determinação do arguido formada no momento, sem qualquer tipo de premeditação ou ensejo de matar. O arguido tentou prestar auxílio à vítima o que demonstra a inexistência de um quadro de especial censurabilidade ou perversão, Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relativo ao Processo nº 5/16.0GACVI.C1, datado de 22-11-2017, em que foi relatora a Veneranda Juíza Desembargadora Maria José Nogueira: «I – Se não oferece dúvida que o artigo 132.º do CP não limita taxativamente os factos que constituem as circunstâncias qualificadoras, também é certo que os padrões de uma acrescida censurabilidade ou perversidade do agente, decorrentes dos exemplos do n.º 2 daquele normativo, constituem elementos da culpa e, como tal, não operam automaticamente. II – Para a verificação da qualificativa prevista na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, não basta demonstrar única e exclusivamente a qualidade do ofendido, mas será sempre necessário provar a existência de circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade. Tal só acontecerá se na perpetração do homicídio estiver uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenhava.» Do exposto constata-se a não verificação da qualificativa constante do artigo 132.º n.º 2, seja pela ausência de factos que demonstrem a existência de uma conduta que mereça a tutela penal por se considerar especialmente perversa, seja pela demonstração que o arguido teve atos contrários à conduta que lhe foi imputada.” 26. Esta motivação, que reproduz, ipsis verbis, a do recurso que o arguido apresentou perante o tribunal da Relação, acrescentando apenas o último parágrafo, dirige-se também, nesta parte, ao acórdão da 1.ª instância. É da 1.ª instância o extrato do acórdão transcrito pelo recorrente e sobre ele se pronunciou o tribunal da Relação nos termos anteriormente expostos (supra, 24). Como já se disse, o presente recurso não é um segundo recurso, agora para o Supremo Tribunal da Justiça, do acórdão de 1.ª instância, mas um recurso que tem por objeto o acórdão da Relação que conheceu do recurso interposto dessa decisão. Tratando-se, porém de uma decisão sobre uma questão de direito de que este Supremo Tribunal pode sempre conhecer e tendo em conta que o acórdão recorrido confirmou, neste ponto, a decisão condenatória da 1.ª instância, não se rejeita o recurso por falta de motivação, considerando-se esta como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação (como, entre outros, se decidiu no acórdão de 02.10.20219, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada). 27. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – relembrando o acórdão de 27.05.2020, no Proc. 45/18.4JAGRD.C1.S1 (em https://blook.pt/caselaw/PT/STJ/589391/?q=processo:%2045/18.4JAGRD.C1.S1, e seguindo o acórdão de 27.11.2019, no Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt) –, o crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal, constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, indiciadores daquele tipo de culpa, projetada, documentada e revelada no facto, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente [assim, entre outros, os acórdãos de 12.01.2022, Proc. 4183/19.8JAPRT.S1 (Conceição Gomes), 20.06.2018, Proc. 3343/15.5JAPRT.G1.S2 (Vinício Ribeiro), de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1 (Rosa Tching), de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1 (Santos Cabral), de 2.4.2008, Proc. 07P4730 (Raul Borges), e de 18.10.2007, Proc. 07P2586 (Santos Carvalho), em www.dgsi.pt, bem como os trabalhos preparatórios – Eduardo Correia, autor do Anteprojecto, Actas da Comissão Revisora do Código Penal, edição da AAFDL, 1979, p. 21 – e a jurisprudência e doutrina naqueles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Fernanda Palma, “O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, 1983, ano 4, vol. 15, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008]. Exige-se, pois, que as concretas circunstâncias da conduta do agente permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo suscetível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio (como se sublinhou no acórdão de 27.11.2019, citado). 28. A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se no acórdão de 27.11.2019, relembrando o acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65), como também se recordou no acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1, cit.): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete». E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmo acórdão de 12.07.2018): «Refere Silva Dias (...) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...) O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível. A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua atuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...) O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação». 29. A alegação do recorrente sobre o não funcionamento automático das circunstâncias enumeradas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, em harmonia com o decidido no acórdão recorrido, reflete o pensamento legislativo presente na conceção do tipo de crime de homicídio qualificado, havendo, assim, que verificar se, no caso, se confirma a circunstância da al. b) como indiciadora de especial perversidade ou censurabilidade, em que se fundamenta a condenação. 30. Relembrando a fundamentação, considera-se no acórdão recorrido: “Para fundamentar a qualificação do crime de homicídio escreveu-se na sentença recorrida que “A morte dolosa do cônjuge comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é, em princípio, devida pelo agente à vítima, o que normalmente será suscetível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro” (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo/BRANDÃO, Nuno, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pág. 59).” Estamos ainda de acordo com o tribunal de primeira instância quando conclui pela inexistência de qualquer circunstancialismo suscetível de derrogar o efeito de indício de especial censurabilidade ou perversidade do agente, decorrente da verificação da circunstância contida na alínea b), do n.º 2, do art.º 132.º do CP. Com efeito, e como é assinalado na sentença recorrida, “estando o arguido casado com a malograda vítima há mais de 56 anos, sem se ter demonstrado a existência de relevantes problemas conjugais, não tendo a morte da vítima sido causada por razões de solidariedade ou de compaixão, nem se tendo demonstrado que a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do arguido, sujeitando-o com regularidade a maus tratos ou humilhações, não foi derrogada a força qualificadora de tal exemplo-padrão.”. Assim, ao arguido AA é objetiva e subjetivamente imputável a prática, em autoria imediata e sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 131.º, n.º 1, 132.º, n.º 1, n.º 2, al. b), do C.P, como se decidiu na primeira instância. Nenhuma censura merece, também quanto a este aspeto, o acórdão recorrido, improcedendo o presente fundamento do recurso.” 31. A atual alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal resulta da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, que assumiu o propósito de incluir novas circunstâncias na enumeração do n.º 2 do artigo 132.º, nomeadamente a relação conjugal, presente ou passada, ou análoga, sem qualquer modificação de alcance ou de sentido da justificação da construção e definição do tipo qualificado de homicídio previsto neste preceito (assim, e no que se segue, o acórdão de 02.10.2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, cit.). Lê-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X (DAR II Série-A, n.º 10, de 18.10.2006, p. 4), que esteve na origem da Lei n.º 59/2007: «(…) no âmbito dos crimes contra as pessoas, são acrescentadas novas circunstâncias ao homicídio qualificado. Assim, a relação conjugal (presente ou passada) ou análoga (incluindo entre pessoas do mesmo sexo), (…) passam a constar do elenco de circunstâncias suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade. No entanto, a técnica utilizada na tipificação do crime mantém-se inalterada. As circunstâncias não são definidas de forma taxativa, correspondendo antes a exemplos padrão, e não são de funcionamento automático, estando sujeitas a uma apreciação em concreto». Idêntica circunstância se incluiu no tipo de crime de violência doméstica (artigo 152.º): «No crime de violência doméstica é ampliado o âmbito subjetivo do crime, passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges», lê-se no mesmo local. A criminalização destas condutas inseriu-se na linha dos trabalhos que conduziram à adoção da Convenção de Istambul [Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, CETS n.º 210, Istambul, 11.05.2011, ratificada por Portugal (RAR n.º 4/2013, e DPR n.º 13/2013, de 21 de Janeiro)], a qual define a «violência doméstica» como abrangendo «todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima». Os actos de violência física, que devem ser criminalizados, incluem os actos de que resulte a morte da vítima (artigo 35.º da Convenção), como se explicita no respectivo relatório explicativo (n.º 188). Na acepção da convenção, o conceito de violência doméstica abrange as situações que podem constituir os crimes de homicídio qualificado [artigo 132.º, n.º 2, por verificação da especial censurabilidade ou perversidade com base na al. b)] e de violência doméstica [artigo 152.º, n.º 1, al. b)]. 32. Escreveu-se a este propósito no acórdão de 05.07.2012, Proc. 2663/10.0GBABF.S1 (Arménio Sottomayor), em www.dgsi.pt, que agora se acompanha: «A alínea b) constituiu um aditamento aos exemplos-padrão introduzido pela reforma do Código Penal de 2007. Até então “só quem tem com a vítima uma relação de parentesco na linha recta pode revelar uma superior energia criminosa por ter ultrapassado particulares contra-motivações éticas à decisão do homicídio” (Teresa Quintela de Brito, «O homicídio qualificado (art. 132º)», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 215-6). Não estando o conjugicídio contemplado na hipótese da al. a), o legislador mostrou-se “sensível ao problema criminal dos maus-tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente e coerente com a sua incriminação duma forma agravada” (Maria Margarida Silva Pereira, Direito Penal II – Os Homicídios, pág. 102), deste modo satisfazendo “as pressões de alguns sectores da opinião pública e de certos grupos sociais, no sentido da especial censura do homicídio doloso perpetrado no quadro da chamada «violência doméstica» ”, como salienta Teresa Quintela de Brito, (op. cit., pág.179-180). Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. O exemplo-padrão em causa tem um evidente paralelismo com o da al. a), acerca do qual escreveu Figueiredo Dias: “Não parece exacto (…) que nestes casos «não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…». Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco” (Comentário, I, pág, 29). Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da “particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento” (Teresa Quintela de Brito, op.cit., pág. 215-7). Conforme acentua Fernando Silva (Direito Penal Especial – Crimes contra as Pessoas 3, pág. 72 seg.): “A relação matrimonial assenta a sua vinculação na comunhão de vida, que pressupõe, principalmente, uma união pessoal. Os cônjuges, pelo enlace matrimonial, assumem um conjunto de poderes-deveres que os coloca numa especial relação, pressupondo um respeito e cooperação mútuos. A comunhão de vida que caracteriza a relação conjugal faz emergir uma nova realidade, a de um casal que vive em comunhão afectiva. Aos cônjuges exige-se uma especial e recíproca protecção, pelo que a atitude de actuar, lesando a vida do outro, é reveladora de uma energia criminal susceptível de um elevado grau de censura. A decisão de matar o cônjuge traduz, desde logo, a manifestação de um comportamento especialmente grave, próprio de quem vence contramotivações acrescidas, manifestando um elevado grau de culpa, na medida em que o agente, ao cometer tal facto, contraria, em absoluto, aquela que deveria ser a sua atitude perante o seu cônjuge.”». Em sentido idêntico podem ver-se ainda os acórdãos de 21.10.2009, Proc. 589/08.6PBVLG.S1 (Pires da Graça) e de 26-06-2019, Proc. 763/17.4JALRA.C1.S1 (Manuel Augusto de Matos), em www.dgsi.pt. 33. O efeito de qualificação atribuído à circunstância de a vítima ser cônjuge do agente (ou de manter com ele uma relação análoga à dos cônjuges) «decorre de uma exigência intensificada de respeito pela vida do outro com quem se resolveu constituir família ou formar uma comunhão de vida. A morte dolosa do cônjuge ou do companheiro comporta, em regra, uma quebra radical da solidariedade que é em princípio devida pelo agente à vítima. O que normalmente será susceptível de indiciar uma especial perversidade, fundada num pesado desvalor de atitude revelado por esta perversão da relação dialógica do “ser-com-o-outro” e do “ser-para-o-outro”». Trata-se, todavia, de um indício «que carece de confirmação pela imagem global do facto, sendo as relações conjugais um campo privilegiado para a derrogação qualificadora do exemplo-padrão», «seja porque a morte é dada por razões de solidariedade e de compaixão, como sucede de modo paradigmático no caso daquele que tira a vida ao cônjuge para o libertar de dores atrozes e irreversíveis; seja porque a vítima tudo fez para desmerecer a solidariedade do agente, sujeitando-o com regularidade a maus tratos e humilhações, aparecendo o homicídio, na perspectiva do cônjuge maltratado, como um meio, porventura único, de se libertar da opressão a que se encontra sujeito» (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 58-59). 34. O sentido e alcance do âmbito de proteção penal da relação entre os cônjuges, nos termos que vêm de se expor, tendo em conta a matéria de facto provada, que afasta qualquer circunstância de derrogação da qualificação do homicídio, conduz, decisivamente, à conclusão de que não pode deixar de considerar-se preenchida a circunstância prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Não se encontrando, nas circunstâncias do caso, motivo que lhe retire o efeito indiciador de especial censurabilidade ou perversidade do facto homicida presente na norma, revela-se operativo este efeito de agravação da culpa, requerendo punição com fundamento na qualificação do crime de homicídio nos termos do n.º 1 deste preceito. Mostrando-se que, em violação do particular dever de solidariedade e respeito pelo cônjuge, com quem partilhou mais de meio século de vida em comum, o arguido causou dolosamente a sua morte, pela forma e nas condições descritas na matéria de facto provada, há que concluir que este – “sabendo e querendo tirar a vida a DD, com quem era casado, coabitava e tinha dois filhos, para a silenciar, desagradado pelo tom de voz por ela utilizado para o chamar, que entendia suscetível de ser alvo de comentários depreciativos dos vizinhos, e que a vítima continuou a utilizar não obstante os anteriores avisos e pedido por parte do arguido para que o não fizesse” (ponto 19 dos factos provados) – agiu com culpa agravada, devendo ser punido pela prática de um crime de homicídio qualificado, nos termos que constam do acórdão recorrido. Nota-se que, diferentemente do que alega o recorrente, não resulta dos factos provados que “tentou prestar auxílio à vítima” o que, do seu ponto de vista, “demonstra[ria] a inexistência de um quadro de especial censurabilidade ou perversão”. Sem prejuízo de se observar que se trataria de ato posterior em reação ao facto por si praticado, irrelevante para a determinação da qualificativa do crime em questão, do provado extrai-se que, com o seu comportamento, visou finalidade diversa: após ter tirado a vida à vítima, nomeadamente telefonando a um dos seus filhos, que contactou o Centro Operacional 112 ..., solicitando auxílio (ponto 16 dos factos provados), procurou “esconder o que acabara de fazer” (ponto 11). Por conseguinte, improcede o recurso nesta parte. Quanto à determinação da medida da pena 35. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena. A determinação da medida da pena vem fundamentada nos seguintes termos: “Discorda o recorrente da medida concreta da pena de prisão aplicada – e que o tribunal a quo decidiu fixar em 19 anos, numa moldura abstrata de 12 a 25 anos -, reputando-a de desproporcionada e excessiva. (…) O tribunal de primeira instância fundamentou a determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente com base nos seguintes pressupostos e critérios (segue transcrição parcial do acórdão recorrido): “Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas. São elevadíssimas as exigências de prevenção geral face ao grande e crescente impacto na comunidade dos crimes que envolvem violência contra cônjuges e contra pessoas idosas em virtude da consciencialização comunitária de tais fenómenos e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Saliente-se que a criminalidade em causa, lesiva do bem mais essencial, é geradora de alarme social e repúdio geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, sendo, pois, muito elevadas as exigências de reafirmação da norma violada. A estabilização contrafática das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma forte reação do sistema formal de administração de justiça, traduzida na aplicação de penas capazes de restabelecer a paz jurídica abalada pelos crimes e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito, pelo que se impõem penas com efeito dissuasor. O arguido agiu com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra direto, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor. É certo que os factos foram antecedidos da utilização, por parte da vítima, de um tom de voz elevado, que a mesma sabia que era do desagrado do arguido, que já anteriormente a avisara e que, naquela situação, ela continuou a usar depois de o arguido lhe pedir para não o fazer. É também certo que não se demonstrou que o arguido tivesse desenvolvido um sistema para a sua mulher não ter de o chamar e, por conseguinte, que ele tivesse tirado a vida à sua mulher por entender que esta havia desrespeitado esse sistema. Não obstante, ficou demonstrado que o arguido sofre de problemas de audição, o que necessariamente determina que as pessoas que lhe dirijam a palavra tenham que utilizar um tom de voz superior àquele que normalmente empregam para com as demais pessoas que não padecem de semelhante problema. Acresce que ficou ainda demonstrado que o arguido agiu matando a sua mulher para a silenciar, desagradado pelo tom de voz por ela utilizado para o chamar, que entendia suscetível de ser alvo de comentários depreciativos dos vizinhos, não obstante os mesmos necessariamente terem que saber dos problemas de audição de que o mesmo padecia e, assim, do facto de as pessoas terem que se dirigir ao mesmo utilizando um tom de voz mais elevado. Ora, uma das circunstâncias qualificativas do crime de homicídio é ainda ser o agente determinado por qualquer motivo torpe ou fútil (cfr. art.º 132.º, n.º 2, al. e), parte final, do C.P.). O motivo da atuação será torpe ou fútil quando o mesmo, avaliado segundo as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deva ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana. Contudo, a inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo, ainda que fútil, se existir, sob pena de todo o homicídio envolver sempre um motivo fútil, desde que inexistisse motivo (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2012, processo n.º 894/09.4PBBRR.S1, in www.dgsi.pt). Ora, no caso, a motivação do arguido reveste uma importância mínima, frívola e leviana, sendo notoriamente inadequada e desproporcionada, do ponto de vista do homem médio, em relação à extrema reação homicida ocorrida. Deste modo, tendo ficado demonstrada a notória inadequação e desproporcionalidade entre a intensidade e natureza do que impulsionou a conduta desenvolvida e a gravidade com que ela se objetivou, surgindo o facto como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana, verifica-se a futilidade da motivação e, assim, a perversidade fundamento da especial censurabilidade, circunstância qualificativa que terá que ser valorada em sede de medida da pena (cfr. al. e), parte final, do n.º 2, do art.º 132.º, do C.P.) Por outro lado, não se poderá esquecer que a asfixia mecânica, causa da morte de DD, foi provocada pela constrição extrínseca do pescoço desta pelas mãos do arguido. Ora, sendo para mais a vítima obesa, tal necessariamente implicou que a compressão do pescoço desta tenha sido mantida durante algum tempo e, por consequência, que a vítima tenha executado, como de resto se demonstrou ter acontecido, tentativas de afastar as mãos do agressor do seu pescoço. Ora, nessas circunstâncias, do facto cometido transparece, para além de uma indiferença ao sofrimento que necessariamente foi causado, uma persistência na resolução tomada, tendo o arguido tido oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a desistir do seu desígnio, sendo a força de vontade criminosa de tal maneira intensa que o arguido continuou a sua conduta até alcançar a morte da sua mulher. Milita contra o arguido o modo de execução do crime que é muito grave e denota elevada ilicitude, tendo em conta a grande violência física que foi necessário ao arguido empregar, o sofrimento físico intenso, a angústia, o desespero e o pânico que o arguido forçosamente causou à própria vítima, bem como as múltiplas lesões que o arguido lhe infligiu enquanto procurava esconder o que havia feito, sendo que tudo se passou na residência comum e, assim, da própria vítima, o que necessariamente lhe conferia uma falsa sensação de segurança. Cumpre destacar ainda o aumento da censurabilidade da conduta assumida pelo arguido atenta a circunstância de a vítima ser mãe dos seus dois filhos e a relação de confiança e duradoira coabitação que os unia, sendo grave e elevado o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (cfr. art.º 1672.º do C.C.). São também elevadas as exigências de prevenção especial pois não obstante a sua boa inserção, a boa reputação de que beneficia junto dos seus vizinhos, a ausência de antecedentes criminais, a sua avançada idade e a admissão parcial de alguns dos factos objetivos provados, o certo é que o arguido procurou sempre, e de forma bem vincada, minimizar a sua conduta, negando perentoriamente ter tido a intenção de matar, atribuindo a responsabilidade das suas ações ao comportamento dos outros e a circunstâncias externas, desresponsabilizando-se pelas mesmas, centrando-se na responsabilização nos outros, sobretudo da vítima, dando primazia, não ao dano produzido, mas sim antes ao impacto que o ocorrido teve na sua liberdade e na sua vida, denotando-se uma absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e da dignidade da pessoa humana. O C.P. inclui o arrependimento sincero nas circunstâncias modificativas atenuantes gerais (cfr. art.º 72.º, n.º 2, al. c), do C.P.). Contudo, conforme resulta da lei penal, o arrependimento sincero tem que ser objetivado em atos dele demonstrativos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4de junho de 1992, processo n.º 42510), não bastando para tal sequer uma mera declaração de arrependimento (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 24-11-1993, processo n.º 45742, de 09-12-1993, processo n.º 045255, de 16-02-2000, processo n.º 99P1189, de 06-06-2007, processo n.º 07P1603). É certo que a confissão pode constituir um dos elementos objetivos do arrependimento (cfr. CORREIA, Eduardo, in Direito Criminal, Tomo II, pág. 329), embora, mesmo no caso da confissão e colaboração do arguido não resulta natural e irrecusavelmente o arrependimento (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-06-2007, processo n.º 07P2042, in www.dgsi.pt). Contudo, no presente caso, não tendo sequer a admissão parcial dos factos objetivos por parte do arguido ocorrido com a plenitude que seria exigível para se poder afirmar que houve interiorização do desvalor da conduta, não se vislumbra qualquer facto concreto e objetivo demonstrativo de um arrependimento sincero. Tudo ponderado, afigura-se adequada às circunstâncias do caso a pena de 19 (dezanove) anos de prisão”. Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016” [Em nota de rodapé: “proferido no processo nº 118/08.1GBAND.P1.S2, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e disponível em www.dgsi.pt.”], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa”. No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” [Em nota de rodapé: “J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227”]. “Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, estabelecendo o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas -isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração”. Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária. Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização” [Em nota de rodapé: “Cfr. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e proferido no processo 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt”]. “Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena. Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção” [Em nota de rodapé: “Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes”]. Assim, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”. Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar” [Em nota de rodapé: “No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt”], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”. Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos, sendo certo que o acórdão recorrido ponderou o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial, valorando adequadamente a insensibilidade do arguido pelo valor da vida e da dignidade da pessoa da vítima, sua mulher; teve em conta as necessidades de prevenção geral, refletidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social” [Em nota de rodapé: “Como é salientado no acórdão do STJ de 13/12/2018, relatado pelo Conselheiro António Clemente Lima, “A criminalidade contra a vida tem um efeito devastador e potencialmente desestruturante da tranquilidade social comunitária. Os crimes de homicídio constituem um dos fatores que maior perturbação e comoção social provocam, designadamente em face da insegurança que geram e ampliam na comunidade. As exigências de prevenção geral são pois de acentuada intensidade.”] “– tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal. Contudo, a pena concreta afigura-se-nos algo excessiva e desproporcionada, considerando o grau de ilicitude do crime em causa, as necessidades de prevenção geral que lhe são inerentes e a dimensão da culpa do recorrente, impondo-se a intervenção corretiva deste tribunal de recurso” [Em nota de rodapé: “É de notar que, também neste âmbito, o recurso assume a função de “remédio jurídico”. A este propósito afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16/6/2015 (disponível em www.dgsi.pt), que “Em sede de escolha e de medida concreta da pena, o recurso não deixa de possuir o paradigma de remédio jurídico, no sentido de que a intervenção do tribunal de recurso, também nesta matéria, deve cingir-se à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e normas legais pertinentes, não sendo de modificar penas que, dentro desses princípios e dessas normas, ainda se revelem congruentes e proporcionadas”. No mesmo sentido conclui Souto de Moura, citado no acórdão do STJ, de 9/5/2019 (proferido no processo nº 13/17.3SWLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”. O que bem se compreende, como é assinalado neste acórdão do STJ, “porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada”. Consideramos que uma pena de 15 anos de prisão é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente (considerando, designadamente, a sua idade avançada), não ultrapassando a medida da sua culpa. Procede, assim, parcialmente, o presente recurso.” 36. Entende o recorrente que a pena é “excessiva e violadora do disposto no artigo 71.º do C.P. e 18.º n.º 2 da C.R.P, tendo em conta que o arguido é pessoa inserida socialmente e profissionalmente, encontra-se reformado com a sua condição económica estabilizada, é primário, confessou parcialmente os factos, inexistem sentimentos de rejeição no meio” e que “o crime em apreço ocorreu em circunstâncias muito concretas, inexistindo perigo que volte a cometer um crime da mesma natureza, até porque infelizmente a vítima padeceu”. Excluindo este último argumento, pelo seu carácter falacioso – como é óbvio, o facto de “esta” vítima ter falecido nestas circunstâncias não afasta a possibilidade de serem cometidos outros crimes de homicídio, noutras circunstâncias, sobre outras vítimas, isto é, crimes da mesma natureza –, há, pois, que verificar da adequação e proporcionalidade da pena. 37. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade do agente e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva. 38. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, dentro dos limites da culpa definida em função dos fatores relevantes, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização. Como se tem sublinhado, é na presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., por todos, no sentido do que vem de se afirmar, o acórdão de 12.10.2022, Proc. 17/21.1GABCL.S1, e jurisprudência e doutrina nela citadas, em www.dgsi.pt, seguindo-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357). 39. Considerou o acórdão recorrido que a pena de 19 anos de prisão, aplicada em 1.ª instância, é “algo excessiva e desproporcionada, considerando o grau de ilicitude do crime em causa, as necessidades de prevenção geral que lhe são inerentes e a dimensão da culpa do recorrente”, pelo que a reduziu para 15 anos de prisão, por, nesta medida, ser “adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico e necessária – mas também suficiente – para a ressocialização do recorrente (considerando, designadamente, a sua idade avançada), não ultrapassando a medida da sua culpa.” No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o recorrente reproduz a argumentação que apresentou perante o tribunal da Relação, com pequenas divergências – insiste nas condições familiares e socioeconómicas e na sua inserção social, abandona o argumento da não consideração da idade da vítima (considerada no acórdão da Relação) e enfatiza a inexistência de perigo da prática de novos crimes (reduzida necessidade de prevenção especial). Não indica, porém, o motivo por que, não obstante a redução da medida da pena, em 4 anos, continua a considerá-la excessiva. 40. Como se extrai da decisão da Relação, visou esta uma intervenção corretiva centrada nas circunstâncias relevantes por via da prevenção (especial) e da culpa, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, ponderando os fatores relativos à ilicitude (modo, motivos e sentimentos manifestados na execução do facto), à intensidade do dolo e às condições familiares e pessoais (com realce para a idade e conduta anterior) em termos que se afiguram adequados, com respeito por estes critérios legais de determinação da pena. A circunstância de a vítima ser cônjuge do arguido, funcionando como qualificativa do crime de homicídio (n.º 2, al. b), do artigo 132.º do CP), impede que se considere autonomamente a inerente violação dos particulares deveres de respeito e solidariedade que lhe eram impostos para efeitos de determinação da pena, por força do princípio da proibição da dupla valoração (artigo 71.º, n.º 2, do CP). No mesmo sentido se deve considerar a ponderação, em abstrato, do bem jurídico protegido pela norma incriminadora do homicídio, relevando apenas o modo da sua violação nas circunstâncias determinadas pelos factos provados, também para efeitos de identificação das necessidades de prevenção geral nos limites impostos pela gravidade da culpa expressa nessas circunstâncias. Sendo o crime de homicídio qualificado por razões de especial censurabilidade ou perversidade reveladas pelas circunstâncias previstas nas alíneas b) e e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – crime praticado contra cônjuges [al. b)] e motivo fútil [al. e), parte final] – considerada uma delas para a qualificação típica, deve a outra ser tida em conta, como fator de agravação, para efeitos de determinação da pena de acordo com o critério estabelecido artigo 71.º, como tem sido decidido em jurisprudência constante deste tribunal (assim, designadamente, o citado acórdão de 27.11.2019, Proc. 323/18.2PFLRS.L1.S1 e demais jurisprudência e doutrina nele citada). 41. Assim tendo em conta a moldura da pena aplicável, de 12 a 25 anos de prisão, e ponderando as circunstâncias relevantes, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, não se mostra que a pena de 15 anos de prisão tenha sido imposta com desrespeito pelos critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação. Não se surpreendendo, assim, elementos que permitam constituir base de um juízo de discordância a justificar intervenção corretiva. Em consequência, improcede também o recurso nesta parte. Quanto às invocadas inconstitucionalidades 42. Relembrando as conclusões da motivação, diz o recorrente que: “5- Ocorre inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade, e da violação do disposto nos artigos 18.º n.º 2 da C.R.P., 70.º do C.P. e 32.º n.º 5 da C.R.P, quando interpretados na cominação de uma pena que é excessiva face ao grau de culpa apurado uma vez que terá a pena de socorrer-se de factos dados como provados que possibilitem o arbitramento da medida da pena (veja-se a diminuição de 4 anos de prisão face à primeira condenação). 6- Ocorre inconstitucionalidade material por violação dos direitos de defesa do arguido (ex vi art. 32.º, n.º1 da CRP), quando se condena com base em factos genéricos e se remete ao texto da lei para o preenchimento de uma qualificativa sem a corroboração de factos inerentes.” 43. A invocação das inconstitucionalidades nestes termos não tem justificação. Como se viu, não se mostra violado o princípio da proporcionalidade na aplicação da pena, nem ocorre condenação com base em factos genéricos, o que, num caso ou noutro, releva da aplicação das normas penais e da sua eventual desconformidade com essas normas (de direito ordinário) e não da desconformidade de interpretação entre as normas penais e a Constituição. Não se suscita no recurso qualquer questão de constitucionalidade normativa que deva ser conhecida. Imputando-se as inconstitucionalidades diretamente à decisão judicial e não se colocando verdadeiras e próprias questões de inconstitucionalidade normativa, pois não se imputam inconstitucionalidades a normas ou interpretações normativas – o que, conforme jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, constitui pressuposto da questão de inconstitucionalidade (cfr., por todos o recente acórdão n.º 2/2023, de 11.01.2023) – nada há a conhecer. Pelo que, por falta de objeto, se rejeita o recurso nesta parte. Quanto a custas 44. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso, devendo esta ser fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais. O que é o caso. III. Decisão 28. Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça (3.ª Secção) decide: a) Rejeitar o recurso quanto às questões relacionadas com o julgamento em matéria de facto, vícios da decisão recorrida e alegadas inconstitucionalidades da decisão; e b) Julgar o recurso improcedente quanto à condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal e quanto à pena aplicada, mantendo-se a decisão recorrida. Condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC. Supremo Tribunal de Justiça, 15 de fevereiro de 2023. José Luís Lopes da Mota (relator) Paulo Ferreira da Cunha Maria Teresa Féria de Almeida |