Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4183/16.0T8VNG-P.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: ARGUIÇÃO DE NULIDADES
INCONSTITUCIONALIDADE
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I- Em revista interposta pelo insolvente do acórdão que ordenou a apreensão para a massa da parte correspondente até um terço do seu vencimento ou salário, é permitida reclamação para arguição de nulidade do acórdão do STJ que indeferiu uma anterior arguição.


II- A desconformidade de uma norma com a Constituição acarreta a nulidade da norma, não da decisão, sendo aquela e não esta o objecto de recurso para o Tribunal Constitucional e não servindo para fundamentar vício de actividade do STJ.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 4183/16.0T8VNG.P.P1.S1


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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Os credores AA e BB requereram a apreensão do rendimento do insolvente, CC, até à data em que se mostre finda a liquidação, o que foi indeferido, porquanto «a não ser assim, os processos de insolvência, perdurariam ad aeternum, tendo em conta que o valor dos créditos é elevado, ou o devedor falecesse ou ficasse desempregado, o que contraria, por um lado, os princípios da celeridade subjacente ao processo de insolvência e por outro, dificultaria a reabilitação do falido (artºs. 239º n.ºs 2 e 3, al. b) do CIRE)».


Inconformados, os credores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que revogou a decisão recorrida e a substituiu por outra que decretou que se ordenasse a apreensão para a massa insolvente da parte correspondente até um terço do vencimento ou salário, assim como das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, até que o processo de insolvência seja encerrado.


Recorreu depois o insolvente de revista.


Este tribunal deliberou julgar o acórdão anterior recurso improcedente e, consequentemente, confirmou o acórdão recorrido.


Veio o insolvente arguir a nulidade do acórdão ex artigo 615º n.º1 al., b) do CPC por omissão de fundamentos de direito.


Complementarmente arguiu «a inconstitucionalidade do art.º 607º, n.º 3 do CPC, 615º n.º1 al., b), e art.º 666º n.º1, também do CPC, quando interpretado no sentido de a decisão judicial se bastar com uma total omissão de norma aplicada na fundamentação da decisão».


Quanto à 1.ª questão este terceiro grau argumentou:


«O reclamante invocou, nas alegações de recurso, a figura venire contra factum proprium.


Como é sabido, o venire é apenas um dos tipos de actos abusivos ao lado da supressio, da inalegabilidade, do tu quoque ou do desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.


Não estamos diante de uma classificação legal, mas em face de categorias doutrinais construídas a partir do artigo 334.º do código civil e da cláusula geral da boa fé.


Menezes Cordeiro, o autor que, entre nós, mais tem estudado o tema, no estudo Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de acção e Culpa «In Agendo», Almedina, Coimbra, 2006, explica que o venire só é proibido em circunstâncias especiais e que surgiram duas grandes fundamentações dogmáticas para as elucidar: doutrinas da confiança e negociais (pág. 50).


Menezes Cordeiro esclarece que «prevalecem hoje as doutrinas da confiança, as quais têm obtido o apoio da literatura portuguesa interessada». O autor cita Baptista Machado, Manuel Carneiro de Frada, e Paulo da Mota Pinto como apoiantes desta doutrina.


Não há portanto uma norma específica, além da referida cláusula geral, contida nas proposições normativas dos artigos 334.º e 762.º, 2 do código civil, que nos permita aderir à doutrina da confiança.


Esta adesão, nos termos em que o foi, nada tem de insólito, sendo certo que os ordenamentos modernos não se esgotam num cúmulo de regras, com factispécie abstracta (previsão e estatuição), sujeitas a subsunção, antes encontramos a toda a hora outras categorias, tais como precisamente as cláusulas gerais e os princípios, e todos eles podem fundamentar uma decisão judicial.


De qualquer modo, o que poderia estar em causa, e não está, era a errada aplicação do venire ao caso sujeito , mas então não se estaria a invocar um error in procedendo mas in judicando».


Quanto á segunda questão referiu que «não se vislumbra como se possa falar em inconstitucionalidades do art.º 607º, n.º 3 do CPC, 615º n.º1 al., b), e art.º 666º n.º1, também do CPC, quando interpretados no sentido de a decisão judicial se bastar com uma total omissão de norma aplicada na fundamentação da decisão, pela razão simples de que não viola o princípio do Estado de Direito, o direito ao acesso aos Tribunais, o processo equitativo e direito ao recurso para o Tribunal Constitucional, nem, bem entendido, o artigo 205.º da CRP, fundamentar uma decisão judicial com uma cláusula geral, desde que a esta tenha sido dado o adequado conteúdo».


Pelo exposto, a arguição foi indeferida.


O recorrente, veio ulteriormente arguir «em sede de dimensão interpretativa-constitucional, e só o fazendo agora após a identificação da norma em crise pelo Supremo Tribunal de Justiça, arguir a inconstitucionalidade do excerto do Acórdão decisório de 16/01/2024 em conjugação com o Acórdão datado de 19/03/2024».


Alega, em síntese, ser o recurso admissível, porquanto se, conforme julgou o Ac. do TC., n.º 184/2020, é inconstitucional o n.º 4 do artigo 672º do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho), quando interpretado no sentido de a definitividade da decisão de verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista excepcional, a que alude tal disposição, implicar a inadmissibilidade da arguição de nulidade dessa decisão», a mesma interpretação deve ser concretizada na revista ordinária.


Sendo assim, o recorrente argui, no artigo 5.º do seu requerimento, a inconstitucionalidade dos artigos 334º e 762º n.º1 do Código Civil quando interpretado no sentido de «o venire implica uma situação de confiança e um investimento nessa situação por parte do confiante, hipoteticamente defraudado depois por um pedido supostamente contraditório e ilegítimo de apreensão por parte dos credores, na parte, pricipaliter, que o venire contra factum proprio apenas inclui a situação de confiança, por violação do princípio do Estado de Direito, princípio da legalidade e um direito ao acesso aos Tribunais, processo equitativo. Vd., arts., 2º, 20 n.º1 e 2 da CRP».


Convidado a esclarecer se pretendia reclamar, com fundamento na nulidade do acórdão, ou recorrer para o Tribunal Constitucional , o recorrente disse o seguinte:« O supra id., Recorrente, vem clarificar que argui a nulidade enquanto interpretação inconstitucional de norma apenas identificada no despacho que arguiu a identificação da Norma que imputa como não constitucional, depois do despacho que recair sobre a invocada nulidade por inconstitucionalidade será susceptível de recurso para o Colendo Tribunal Constitucional.


Clarifica também, que em requerimento precedente invocou a jurisprudência do TC., que lhe permite efectivar o requerimento precedente, nos termos em que o fez, e no art.º 5 desse apontado requerimento que precede este, identificou a norma e a interpretação que imputa como não constitucional e que requereu pronúncia expressa nos precisos termos explanados».


Cumpre agora analisar e decidir sobre a reclamação.


Nos termos do n.º 1 do art.º 613º do CPC, «proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao mérito da causa».


Acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal: «É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes».


As partes podem arguir nulidades da sentença ex artigo 615.º aplicável aos acórdãos do STJ ex artigos 685.º e 666.º.


Isto, sem prejuízo de lhe estar vedado ex artigos 618.º e 670.º obstar a que o acórdão reclamado transite em julgado, através de reclamações sucessivas ou multiplicação de dúvidas, sem fundamento adequado (cfr. desta 6.ª Secção, Acs. de 9.11.2022, Proc. 11901/15.1T8LSB-A.L1.S2-A e de 13.12.2022, Proc. 5682/04.1TVPRT-E.P1.S2-A).


As nulidades formais dos acórdãos são as tipicamente elencadas no artigo 615.º, 1.


Como se disse, estamos perante errores in procedente, i.e. erros de atividade, não materiais.


Ao contrário do que aconteceu na anterior reclamação o recorrente não invoca agora nenhum caso subsumível a esta tipicidade.


Arguiu antes a nulidade do acórdão «enquanto interpretação inconstitucional de norma apenas identificada no despacho que arguiu a identificação da Norma que imputa como não constitucional».


Com o respeito que lhe é devido, pensamos que o recorrente labora num equívoco que consiste em transferir para a decisão o valor negativo que imputa á norma.


A desconformidade de uma norma com a constituição acarreta a nulidade da norma, não da decisão.


«O objecto do recurso [para o Tribunal Constitucional] em sentido substantivo (e não meramente processual), é uma norma à qual se reporta a questão da inconstitucionalidade e não a decisão judicial do tribunal a quo» (J.J.Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 1999:927; também Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Constituição e Inconstitucionalidade, 3.ª ed, Coimbra editora, Coimbra, 1996:446 que sublinha que «a fixação do objecto do recurso não se opera em função do decidido pelo juiz a quo –não é a decisão que se critica – mas sim em razão das normas ou dos princípios constitucionais nela aplicados ou desaplicados»).


Existe, bem entendido, uma conexão estreita entre as duas figuras porquanto a norma é sempre «interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida» (Gomes Canotilho, idem) mas são dogmaticamente entidades diferentes.


E sendo certo que as decisões judiciais (tal como qualquer outro acto jurí­dico) também podem infringir directamente a Constituição, visto que esta é directamente aplicável (cf. artigo 18.°, n.° 1) e os tribunais lhe estão naturalmente submetidos, a questão de constitucionalidade não pode servir para atacar junto do Supremo uma decisão própria por esta ser ale­gadamente nula, em si mesma, por contrária à Constituição (cfr. Ac TC 75/87).


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O reclamante pagará 3 UC de taxa de justiça ao abrigo do disposto no artigo 7.º, 4 do Regulamento das Custas Processuais e do penúltimo rectângulo da tabela II a que se refere aquela disposição legal.


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Pelo exposto indefere-se a arguição do reclamante.


Este pagará a taxa de justiça no montante acima fixado.


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25.6.2024


Luís Correia de Mendonça (Relator)


Maria Olinda Garcia


A. Barateiro Martins