Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10850/22.1T9PRT.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: RECURSO
RECLAMAÇÃO
DESPACHO DO RELATOR
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
TAXA SANCIONATÓRIA EXCECIONAL
CONDENAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL
TRIBUNAL COLETIVO
NULIDADE INSANÁVEL
ANULAÇÃO DE DESPACHO
Data do Acordão: 04/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
Se foi por acórdão que foi decidida a reclamação da nulidade do acórdão, que julgou improcedente o recurso do assistente, padece de nulidade prevista no artigo 119.º alínea a) CPPenal, a preterição da forma colectiva pela forma singular, agora pela pena do relator, a condenação do recorrente/reclamante em taxa sancionatória excepcional, na sequência de, no acórdão, se lhe ter dado a possibilidade de se pronunciar, querendo, sobre tal eventualidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Inconformado com o despacho proferido, pelo relator, no processo 10850/22.1T9PRT.P1-A do Tribunal da Relação-4ª Secção, a 22.1.2025, que o condenou em 5 Uc,s, a título de taxa sancionatória excepcional, recorre o assistente/recorrente, AA, pugnando pela anulação da aplicabilidade da referida taxa, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:

1- A Reclamação Apresentada é um meio legal ao dispor do Recorrente,

2- O uso de tal ferramenta não é anómalo ou entorpecedor,

3- A Reclamação foi apresentada no convencimento da existência da integralidade do Ficheiro referente à Acusação Particular,

4- Os Esclarecimentos prestados à Relação demonstram a boa fé processual do Recorrente,

5- Inexiste qualquer grave falta de diligência, outrossim um erro técnico- administrativo.

6- A aplicação do estipulado no artº 531º do CPC, é de caráter excecional e para situações limite, o que não é de todo os dos Autos,

7- Sendo algo consentido quer pelo CPP, quer pelo CRP.

8- Com a aplicação da dita Taxa sancionatória excecional, fez-se uma má utilização da ratio legis previstos nos artigos 9º do CC, 513º a 52º do CPP, 7º , 8º e 9º do RCP e 527º nº 1 e 2 e 531º do CPC

9- Em abono do Alegado, invoca-se a seu favor o Acórdão desse STJ nº 566/12.2PCCBR.C2.S1-3ª secção Criminal, de 26 de junho de 2019, consultável em dgsi.

2. Admitido o recurso, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo da decisão recorrida, nos termos dos artigos 27.º/6 do RCP, 406.º/2, 407.º/2 alínea d), 408.º/2 alínea a), 411.º/3 e 414.º/1 CPPenal, veio a Magistrada do MP responder, defendendo que a reclamação apresentada pelo recorrente, utilizando de novo, como fundamento argumentativo, uma versão de acusação pública não constante dos autos, o que obviamente só poderia levar à manifesta improcedência do, por si, pretendido, denota, defacto, uma imprudência processualqueserevela grave,porque totalmente fora do processualmente admissível, e que justifica a sanção pecuniária aplicada, embora se admita que a mesma poderia ter sido fixada em montante inferior, nomeadamente, em 3 UCs.

3. Antes de ordenar a subida dos autos o Sr. Juiz Desembargador proferiu despacho nos termos do n.º 4 do artigo 414.º CPPenal, do seguinte teor:

“Em cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 414.º do CPP, decide-se manter o despacho recorrido, pois que entendemos que nele se fez uma adequada aplicação da lei aos factos.

Reafirmando-se tudo quanto aí se escreveu, naturalmente que não está em causa o direito de o recorrente apresentar “reclamação” do acórdão deste Tribunal da Relação que conheceu do objeto do recurso, como parece sustentar, mas sim os argumentos que apresentou para suportar a invocada nulidade de tal acórdão, os quais não tinham qualquer acolhimento na acusação particular que havia apresentado nos autos, no momento próprio.

Foi essa a acusação (única relevante nos autos) que se indicou, de forma clara, no acórdão que conheceu do recurso interposto da sentença, até com especificação da referência da mesma constante do histórico do Cítius.

Ademais, na própria sentença recorrida não constavam, fosse como provados ou como não provados, quaisquer factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo incriminador, o que também não fez pensar o recorrente quanto ao motivo dessa omissão.

Finalmente, tal como refere a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta na resposta ao presente recurso, não se imputou na decisão recorrida uma conduta dolosa, mas sim a inobservância das mais elementares regras de diligência e prudência que devem nortear os sujeitos processuais na invocação dos argumentos para sustentar as suas pretensões, especialmente quando representados por profissionais do foro.

Sustenta-se, por isso, o despacho recorrido”.

4. Remetidos os autos ao STJ, o processo foi com vista ao Senhor Procurador-Geral Adjunto, nos termos do artigo 416.º/1 CPPenal, que emitiu parecer no sentido de,

- primeiramente, suscitar a questão prévia da validade da decisão ora sob recurso, afigurando-se recortar-se a sua nulidade (insanável), por violação das regras da composição do Tribunal, vício a que se refere a norma do artigo 119.º, alínea a) CPPenal, dado que,

- a perspectiva da aplicação ao assistente da taxa sancionatória excepcional foi expressa no acórdão de 8.1.2025 – que desatendeu a reclamação apresentada ao acórdão de 27.11.2024 - sendo que o sancionamento daquele, após o exercício do contraditório, foi firmada por despacho do Senhor Juiz Desembargador Relator, decisão singular, por conseguinte, quando se impunha que fosse tomada colegialmente;

- o que não se compreende nos poderes do juiz relator para decidir singularmente, por decisão sumária, o que só pode ocorrer nas situações definidas no artigo 417.º/6 CPPenal;

- para depois, entrando na questão suscitada pelo recurso, defender que,

- dúvidas não ficam sobre o bem fundado da decisão impugnada, demonstrada que ficou a falta de diligência e de prudência do recorrente na oposição de reclamação ao acórdão de 27.11.2024, arguindo a sua nulidade, com invocação de uma acusação inexistente nos autos (ou, pelo menos, sem relevo nos autos, como se diz na decisão recorrida);

- nenhuma reserva suscita, pois, a decisão em causa, verificados que se mostram os respectivos pressupostos legais, salvaguardada a questão prévia atrás apontada.

Terminando, por defender que, não constituindo objecto do recurso, sequer cautelarmente, o quantum da taxa sancionatória excepcional, dever o recurso ser julgado improcedente.

5. Notificado o assistente/recorrente, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 417.º/2 CPPenal, nada foi respondido.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência, que decidiu o recurso nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

1. Objeto do recurso.

Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, o presente recurso tem por objeto decidir se, contrariamente ao considerado no despacho do TRP de 22.1.2025, ao aplicar a taxa sancionatória excepcional, no caso, fez uma má utilização da ratio legis previstos nos artigos 9.º CCivil, 513º a 52º CPPenal, 7.º , 8.º e 9.º do RCP, 527.º/1 e 2 e 531.º CPCivil.

Pugna o recorrente pela anulação da aplicabilidade da referida taxa, alegando que,

- a reclamação é um meio legal ao seu dispor;

- o uso de tal ferramenta não é anómalo ou entorpecedor,

- a reclamação foi apresentada no convencimento da existência da integralidade do ficheiro referente à acusação particular;

- os esclarecimentos prestados demonstram a sua boa fé processual;

- inexiste qualquer grave falta de diligência, outrossim um erro técnico- administrativo;

- a aplicação do estipulado no artigo 531.º CPCivil é de caráter excepcional e para situações limite, o que não é de todo o caso.

2. Vejamos, desde já, a questão prévia suscitada pelo Sr. PGA.

“As normas relativas à composição do Tribunal radicam na necessidade de legitimar o exercício da administração da justiça penal.

A sua violação pode suscitar dúvidas insanáveis e perniciosas sobre a independência e a imparcialidade do Tribunal. Não está, pois, em causa penas o número de juízes, mas também, a forma de determinar ou de substituir os juízes que compõe o próprio tribunal, artigos 132.º da LOSJ e 1.º e ss. RJ.

A subversão destas regras pode manipular o Tribunal, comprometendo a independência e a imparcialidade do poder judicial e, em consequência, a fiabilidade do resultado final. A comunidade não aceita uma decisão tirada dessa forma.

Na base de todas estas regras, está a necessidade de garantir um juiz natura ou legal, artigo 32.º/9 da CRP, pré-determinado ou pré-constituído por lei. Um Estado de Direito não pode tolerar a “criação ad hoc ou determinação arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para a apreciação de uma certa causa penal, como poderia acontecer se aquelas regras pudessem ser adulteradas, cfr. Prof. Figueiredo Dias, 1978, 83, acórdão TC 393/89.

A falta do número de juízes ou jurados que devem constituir o Tribunal tanto pode constituir invalidade por defeito, como por excesso.

Em ambos os casos, está em causa o número de juízes fixado por lei e, logo, um tribunal invalidamente constituído, capaz de suscitar dúvidas insanáveis sobre a bondade do resultado final: manipulando esse número pode manipular-se o próprio veredictum”, cfr. Comentário Judiciário do CPPenal, António Gama e outros.

“A alínea a) do artigo 119.º CPPenal prevê a nulidade como consequência da violação das regras de constituição e composição do Tribunal: falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o Tribunal ou a violação das regras sobre a composição do Tribunal.

A falta do número de juízes ou de jurados constitui vício da composição apenas do Tribunal colectivo ou do júri, artigos 133.º/1 da LOSJ (tribunal colectivo) e 136.º da LOSJ (tribunal do júri); as regras legais relativas à composição dispõem sobre a formação do tribunal que for competente em razão da matéria e do território, artigo 132.º da LOSJ (tribunal singular); artigo 133.º/1 e 2 3 da LOSJ /tribunal colectivo); e artigo 9.º d Decreto Lei 387-A/87 de 29.12 (tribunal do júri).

Nos tribunais de recurso, a composição do tribunal remete para as regras sobre a constituição das formações de julgamento (composição e regime de integração) - artigo 419.º/1; (conferência); 429.º/1 e 435 (audiência) e artigos 56.º/1 a 4 e 71 da LOSJ.

Os tribunais são órgão de administração da justiça que exercem uma função de soberania.

Sendo órgãos de soberania da República, a regularidade da composição e imparcialidade da constituição são pressupostos essenciais da legitimidade do exercício da função de soberania, por isso, a gravidade da consequência da violação das normas de constituição e composição do Tribunal”, cfr. CPPenal Comentado, António Henriques Gaspar e outros.

Atentemos no que dos autos consta.

Interposto, pelo assistente, recurso da sentença absolutória do arguido, a relação, por acórdão de 27.11.2024, negou provimento ao recurso.

Notificado do acórdão o assistente/recorrente apresentou reclamação, pedindo que o acórdão fosse declarado nulo e que os autos baixassem à 1.ª instância.

Na sequência do que, a Relação, por acórdão de 8.1.2025, decidiu,

- decretar a improcedência da reclamação, por total falta de fundamento;

- facultar ao recorrente/reclamante, previamente à decisão a proferir, a possibilidade de se pronunciar, prazo de 5 dias, sobre o seu eventual sancionamento em taxa sancionatória excepcional, nos termos dos artigos 531.º do CPC, ex vi artigo 521.º, n.º 1, do CPP, e artigo 10.º do RCP.

Depois de o assistente ter defendido que não existiu qualquer intenção de criar algo que foi montado e assim fazer-se uma reprovável utilização da JUSTIÇA com a apresentação da Reclamação baseada em partes do articulado que alegadamente não existiam no Processo, surgiu a decisão recorrida, de 22.1.2025, em que o Juiz Desembargador Relator, por despacho, o condenou em taxa sancionatória excepcional no equivalente a 5 UC,s.

Na Relação, no que ao caso releva, a decisão é proferida pelo Relator, através de decisão sumária, aquando do exame preliminar ou, a decisão, o acórdão, é proferido após conferência ou audiência.

E, a decisão sumária ocorre, nos termos do disposto no artigo 417.º/6 CPPenal, quando,

a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;

b) O recurso dever ser rejeitado;

c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou

d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado.

Perante este simples, linear e claro enquadramento legal, não se suscitam dúvidas que, no caso concreto, não estamos perante uma situação susceptível de se enquadrar na aludida possibilidade legal de ser objecto de uma decisão singular do Relator.

Nem o objecto nem a natureza do decidido o consente.

E se assim é em tese, em abstracto, outra razão se sobrepõe, no caso concreto.

Com efeito, o próprio enquadramento processual, em que surge e se insere o despacho, não pode deixar de conduzir ao mesmo entendimento – a questão decidida não podia surgir em forma de despacho, apenas e tão e só, em forma de acórdão.

Esta condenação em taxa sancionatória excepcional não podia deixar de ter que ser tomada em deliberação, após conferência.

O que se torna, aqui, tanto mais evidente quanto a questão da aplicação da taxa sancionatória excepcional surge, em termos processuais, como absolutamente incindível do acórdão que decidiu a reclamação.

Foi no acórdão que decidiu a reclamação que, pela primeira vez, surgiu – como aí se fez constar, atentos os fundamentos aduzidos e não acolhidos - no horizonte do Tribunal a possibilidade de a reclamação enquadrar aquele instituto jurídico.

E, assim, dado que havia a necessidade de fazer actuar o contraditório, não foi logo, no imediato e, em conferência tomada a decisão.

Apenas depois de o visado ser ouvido sobe tal matéria, o poderia ser. Sem dúvida.

Mas se não tivesse que se fazer actuar o contraditório – porventura porque tal matéria tivesse sido já debatida no processo - a questão seria decidida no acórdão que indeferiu a reclamação.

Não seria pelo facto de que não o podendo ter sido, a solução, a forma de decidir se possa alterar.

Não podia deixar de ser em conferência, após deliberação, que por acórdão o assistente poderia vir a ser sancionado.

A decisão a condenar constitui um prolongamento, um “alongue” do acórdão que indeferiu a reclamação.

E, até se poderá mesmo afirmar que passará a dele fazer parte integrante.

Ou seja, uma decisão dividida em duas partes.

Se a primeira assume a natureza de acórdão, a segunda não pode - pela mesma razão que conduziu àquela primeira forma de decisão – deixar, também, de a assumir.

Estamos, indubitavelmente, perante uma decisão dividida, estruturalmente, em dois momentos.

Cada uma de per si não tem existência, que o sustente.

Uma decisão pressupõe a outra.

A segunda - no que ao caso interessa - apenas existe porque foi proferida a primeira.

E se se a primeira assume a natureza de acórdão, a segunda não pode deixar de assumir a mesma natureza.

Estamos perante duas peças do mesmo puzlle, que aqui é constituído pela decisão em conferência.

A falta de uma das peças tornaria o puzlle irremediavelmente incompleto.

Ou, perante o introito e o epílogo, de uma mesma obra.

Quem a iniciou terá que a acabar

Em suma se a reclamação é indeferida, após conferência, por acórdão não pode a condenação do reclamante em taxa sancionatória excepcional deixar de o ser da mesma forma. Se não foi logo no imediato, porque se entendeu que havia a necessidade de fazer actuar o contraditório, não pode, depois, a condenação surgir em despacho do Relator.

Para utilizar a - não muito feliz, convenhamos - expressão do assistente/recorrente, se a intimação para a possibilidade da aplicação da taxa sancionatória excepcional foi feita, pelo Tribunal Colectivo, através de acórdão, não pode a concretização ser feita pelo Tribunal singular por despacho do Relator.

A preterição da forma colectiva pela forma singular, da decisão, traduz, sem margem para dúvida, uma situação susceptível de integrar a nulidade insanável, prevista na alínea a) do artigo 119.º CCPenal, que oportuna e, pertinentemente o Sr. PGA suscitou.

Em conclusão, procede a invocada nulidade.

III. Dispositivo

Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em anular o despacho recorrido, que deve ser substituído por acórdão a decidir a questão controvertida.

Não é devida taxa de justiça.

Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal.

Supremo Tribunal de Justiça,

Ernesto Nascimento - Relator

Jorge Jacob – 1.º adjunto

Ana Paramés – 2.ª adjunta