Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1320
Nº Convencional: JSTJ00000339
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
VENDA EXECUTIVA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
TERCEIRO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
DANO
Nº do Documento: SJ200206060013207
Data do Acordão: 06/06/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1966/01
Data: 11/20/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS / DIR RESP CIV.
DIR PROC CIV - PROC EXEC.
DIR REGIS NOT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 350 N2 ARTIGO 433 ARTIGO 474 ARTIGO 479 ARTIGO 824 N2 ARTIGO 1268 N1 ARTIGO 1305 ARTIGO 1311.
CRP84 ARTIGO 5 N1 N4 ARTIGO 7.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1999/07/07 IN CJSTJ ANOVII T2 PAG164.
ACÓRDÃO STJ DE 1986/12/02 IN BMJ N362 PAG537.
ACÓRDÃO STJ PROC914/96 1SEC DE 1997/05/27.
ACÓRDÃO STJ DE 1968/05/17 IN BMJ N177 PAG247.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/06/03 IN RLJ ANO126 PAG374.
ACÓRDÃO STJ DE 1999/03/23 IN CJSTJ ANOVII T1 PAG172.
Sumário : I - Tratando-se de coisa imobiliária, o adquirente, mesmo de boa-fé, não adquire a propriedade de coisa não pertencente ao executado, pelo que, sendo o bem vendido em execução propriedade de terceiro, estar-se-á perante uma execução de coisa alheia, podendo o proprietário, terceiro no processo executivo, recorrer à acção de reivindicação.
II - O sucesso dessa acção reivindicatória depende da prova, pelo autor, da titularidade do seu invocado direito de propriedade e da detenção do bem de cuja titularidade o demandado se arroga.
III - Tratando-se de acção real, cuja causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade só a aquisição originária se pode impor de maneira absoluta a todo o possuidor.
IV - A presunção de propriedade gerada face ao artº. 7º do CRPredial - pelo registo definitivo do direito, é meramente juris tantum, ilidível pois pela prova de uma posse mais antiga.
V - A mera privação do uso da coisa constitui dano autónomo de natureza patrimonial, como tal ressarcível.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. A, intentou, em 16/9/99, na comarca de Aveiro, contra B e mulher C e filhos D e E, acção declarativa com processo comum na forma ordinária de reivindicação de indicada fracção autónoma de identificado imóvel.
Alegou tê-la adquirido em 12/7/99 por compra a quem a tinha, por sua vez, adquirido, em 10/12/86, em venda judicial por arrematação em hasta pública (1).
Em cumulação simples com o pedido de restituição que substancial ou materialmente caracteriza este tipo ou espécie de acções, pediu a condenação dos demandados a pagar-lhes, solidariamente , o valor mensal de 90000 escudos a partir da citação e até efectiva entrega (2).
Em vista de doação efectuada, em 1984, pelos 1ºs RR aos demais, opôs-se, em síntese, na contestação, vir invocada apenas aquisição derivada a non domino, e terem a 2ª Ré e o 3º Réu intentado já acção de anulação da venda judicial feita aos antecessores do demandante.
Em reconvenção, fundada em aquisição originária, por usucapião, de que invocaram os factos a tanto conducentes, os dois últimos RR pediram se declarasse serem eles os proprietários da fracção reivindicada, correspondente ao 3º andar do prédio urbano sito na Rua ....., em Aveiro, e se ordenasse o cancelamento dos registos em contrário.
Não registada a doação arguida, invocou-se, nomeadamente, na réplica, a presunção legal decorrente do registo a favor do A. (de que juntou cópia - fls.82 ).
Registada a reconvenção, foi dispensada a realização de audiência preliminar e lavrado de imediato despacho saneador (tabelar), com seguida indicação dos factos assentes e da base instrutória .
Após julgamento, foi proferida sentença que, julgando improcedente a reconvenção, ordenou a restituição pretendida, e condenou solidariamente os RR a pagar ao A. indemnização pela ocupação da fracção em causa, cujo montante fixou em 80000 escudos mensais a contar da citação para esta acção e até efectiva entrega.
A Relação de Coimbra negou provimento à apelação dessa decisão.
Daí o presente recurso de revista.
2. Em prejuízo da síntese que o nº1º do art.690º CPC impõe, os recorrentes rematam a alegação respectiva com 19 conclusões, de que emerge, em suma, que as questões que submetem à apreciação deste Tribunal são, mesmo se em diversa ordem, as seguintes :
1ª - nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, prevenida na al.d) do nº1º do art. 668º CPC, em relação à questão versada nas conclusões 1ª e 4ª da alegação oferecida pelos então apelantes (3 primeiras conclusões);
2ª - (pretenso) erro de julgamento desse acórdão por violação do disposto no art. 1311º C.Civ., por falta de (alegado) requisito ou condição de procedência da acção reivindicatória que seria a ilegalidade da detenção da coisa reivindicada pelo réu (conclusões 15ª a 18ª) ;
3ª - idem, relativo à (in)existência do corpus e animus da posse invocada para fundamentar o pedido reconvencional, designadamente por contrariar-se o disposto no n. 2 do art. 1252 C. Civ. e a jurisprudência fixada pelo Assento do STJ de 14/5/96 (BMJ 457/55 ss) (conclusões 4ª a 15ª);
4ª - idem, no arbitramento da indemnização concedida, por inexistência dos pressupostos constitutivos da responsabilidade civil e do enriquecimento sem causa (conclusão 19ª) ;
Não houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.
3. Convenientemente ordenada (3), e com, entre parênteses, indicação das correspondentes alíneas e quesitos, a matéria de facto fixada pelas instâncias é a seguinte:
(a) - F e G adquiriram por troca com a Câmara Municipal de Aveiro a propriedade de todo o edifício sito na Rua ...., em Aveiro ( F ).
(b) - Os (1ºs) RR B e C adquiriram àqueles F e G a fracção autónoma designada pela letra "G" correspondente ao 3º andar desse prédio (E).
(c) - Por escritura pública de 20/7/84, esses (1ºs) RR declararam doar a sobredita fracção autónoma aos filhos de ambos, os RR D e E (docu- mento a fls.48 a 51) (A).
(d) - Estes últimos RR (filhos) não procederam ao registo dessa doação (G).
(e) - Os mesmos vivem nessa fracção desde que adquiriram a fracção autónoma, vêm aí efectuando as suas refeições, e recebendo os seus amigos e a correspondência postal, nela vivendo também, e desde então, os pais deles, 1ºs RR ( H, 2º, 3º, e 4º).
(f) - Sempre agiram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém (8º e 9º).
( g ) - Os impostos relativos à fracção em causa ( contribuição predial, ora contribuição autárquica) dos anos de 1986, 1988 a 1993 e 1995 a 1998 foram pagos em nome dos RR. D e E ( 6º).
(h) - Em 10/12/86, H e mulher I adquiriram a fracção referida por arrematação em hasta pública, conforme documento a fls.13, efectuando o registo dessa aquisição na Conservatória do Registo Predial em 6/3/87 ( B ).
( i ) - Por escritura pública de 12/7/99, os mesmos declararam vender essa fracção ao A. pelo preço de 6000000 escudos (documento a fls. 7 a 9) ( C ).
( j ) - Essa aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial de Aveiro em 30/07/99 ( D ).
( l ) - Se arrendada, a fracção autónoma renderia mensalmente quantia não inferior a 80000 escudos ( 1º).
4. A questão suscitada nas conclusões 1ª e 4ª da alegação dos apelantes era, em suma, a do ónus da prova na acção de reivindicação.
Necessária à procedência dessa acção, no entender dos apelantes, " a existência de uma detenção ilegítima por parte dos réus ", a Relação, a propósito, embora, do pedido de indemnização cumulado, não deixou de referir " o facto ilícito e culposo consubstanciado na ocupação pelo(s) RR da fracção autónoma à revelia do demandante, seu proprietário legítimo " - fls.6, último par., do acórdão sob revista, a fls. 218 dos autos.
Tanto, se bem parece, basta para arredar a omissão de pronúncia e consequente nulidade desse acórdão arguidas pelos recorrentes. Algo mais, no entanto, se dirá adiante a este respeito.
5. A fracção autónoma em causa foi doada pelos 1ºs RR, pais, aos 2º e 3º RR, deles filhos menores, com, ao tempo, respectivamente, 13 e 8 anos de idade, como mencionado na competente escritura, com data de 20/7/84, a fls.48 ss destes autos ( v.fls.49 ).
Essa transmissão não foi objecto de registo.
Depois registada, em 24/2/86, penhora efectuada em 19/1/85, a dita fracção autónoma foi arrematada em hasta pública, tendo o adquirente registado o título de arrematação ( certidão a fls.82 e 102 ).
Considerado, por um lado, o disposto nº2º do art.824º C.Civ., a que pertencem os preceitos citados ao diante sem outra indicação, e, por outro, o determinado no nº1º do art.5º do Cód. Reg.Predial, entendeu-se já, em face de alienações incompatíveis, que " a que prevalece não é a que primeiro foi realizada, mas sim a que primeiro foi inscrita no registo" (4).
Assim, nomeadamente, se julgou em acórdão deste Tribunal de 17/2/94, CJSTJ, II, 1º, 105 ss, tributário de conceito de terceiros que veio a ser afastado, primeiro, pelo acórdão uniformizador de 18/5/99, BMJ 487/20, e depois pelo art.5º, nº4º, do Cód. Reg. Predial, aditado pelo DL 533/99, de 11/12, de considerar lei interpretativa nos termos e para os efeitos do nº1º do art.13º C.Civ. (5).
É, deste jeito, com apoio nesta última orientação, e em contrário da consideração, nela arredada, de que os direitos não inscritos no registo devem ser tratados como direitos clandestinos que não produzem quaisquer efeitos contra terceiros (6), que se vem arguir a doação, não registada, aludida, a posse dos 2º e 3º RR, E e D e E, desde a data dessa doação - 3., (c) e (d), supra, e, mesmo, acessão de posses, nos termos do nº1º do art.1256º, considerando, para o efeito, tanto a desses RR, filhos dos 1ºs, iniciada em 20/7/84, data da doação efectuada por estes últimos, como a anterior, dos doadores, daqueles pais ( nº12. da alegação em análise ).
6. Em Ac.STJ de 7/7/99, CJSTJ, VII, 2º, 164-IV e167, citado na réplica, atendeu-se já à doutrina do sobredito acórdão uniformizador, depois, como dito, objecto de consagração legal.
Considerou-se nesse aresto, no entanto, ainda, que também na venda judicial é o executado que deve ser visto como vendedor.
Anota, em contrário, Rodrigues Bastos, "Notas ao C.Civ, ", III, 283, citando Micheli, "Esecuzione forzata", 107, que, na execução, o tribunal não vende no exercício de poder originariamente pertencente ao credor ou ao devedor, mas sim em virtude de um poder autónomo que é de reconhecer à própria essência da função judiciária (7).
Tudo assim visto, impõe-se, enfim, aceitar que, tratando-se de coisa imobiliária, o adquirente, mesmo de boa fé, não adquire a propriedade de coisa não pertencente ao executado (8), "e que, sendo o bem vendido em execução propriedade de terceiro, estar-se-á perante uma execução de coisa alheia, e o proprietário, terceiro no processo executivo, pode, nos termos gerais, recorrer, designadamente, à acção de reivindicação". (9): mais, afinal, não sendo o pedido reconvencional deduzido neste autos que o primeiro da cumulação aparente que formalmente caracteriza esse tipo ou espécie de acções (10).
7. Como decorre dos arts.342º, nº1º, 1305º e 1311º, o sucesso desta acção reivindicatória dependia da prova pelo A. da titularidade do seu invocado direito de propriedade e da detenção da fracção reivindicada pelos RR.
Em ordem a evitar a procedência da acção, era sobre estes que, por sua vez, recaía o ónus da prova da existência de título capaz de legitimar a sua ocupação da mesma - n. 2º dos preditos arts.342º e 1311º. (11)
Revela-se, por conseguinte, menos bem colocada a 2ª das questões suscitadas na alegação dos recorrentes, ao considerar, conforme sua conclusão 16ª, que a ilegitimidade da detenção da coisa reivindicada pelo réu é condição de procedência da acção de reivindicação.
É-o, na realidade, apenas a detenção por este, sendo a ele que, consoante nº2º dos art.342º e 1311º cabe demonstrar a licitude dessa detenção - matéria, realmente, de excepção, consoante nº3º do art.493º CPC. Isto posto a claro:
8. Como se vê da certidão a fls.102, na data da doação aludida, a fracção ora reivindicada encontrava-se inscrita no registo em nome dos doadores, que beneficiavam, por isso, da presunção instituída no art.7º do Cód.Reg.Predial.
Nada nestes autos permite concluir pela invalidade da doação de que os 2º e 3º RR foram beneficiários; e não pode, em vista do acima notado, duvidar-se de que, assim transmitido o direito de propriedade sobre a fracção reivindicada, essa doação constitui título susceptível de legitimar a ocupação da mesma.
Dada a solução sufragada no já mencionado nº4º do art.5º do Cód.Reg.Predial, aditado pelo DL 533/99, de 11/12, afigura-se irrecusável não poder acompanhar-se, neste caso, a decisão das instâncias sem entorse manifesta da orientação (12) em matéria de registo que obteve essa consagração legal.
9. Tratando-se de acção real (13), cuja causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade ( art.498º, nº4º, CPC ), cabe notar que "só a aquisição originária se pode impor de uma maneira absoluta a todo o possuidor".
A aquisição derivada é dominada pelo princípio nemo plus iuris in (ad) alium transferre potest quam ipse habet, de que " resulta que o título de aquisição não basta para provar que ao adquirente pertence um direito real ", provano apenas terem passado para o adquirente "os direitos que pertenciam ao alienante, se acaso algum lhe pertencia" (14).
Como assim:
"Nem a compra e venda, nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito. É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (....)" (15).
É a dificuldade dessa prova que as presunções legais instituídas nos arts.1268º C.Civ. e 7º do Cód.Reg.Predial permitem superar, dado o disposto nos arts.344º, nº1º, e 350º daquela lei.
A instâncias negaram aos RR donatários a primeira, fundada na posse.
Subsiste intocada a doação por quem ao tempo beneficiava da segunda, fundada no registo (16).
10. Não provada, qualquer forma de aquisição originária da propriedade invocada, esta acção vem unicamente assente no registo de aquisição derivada a favor do A. Ora:
Oposta a doação efectuada pelos 1ºs aos 2º e 3º RR, aqueles beneficiavam então da segunda das supramencionadas presunções da titularidade do direito de propriedade, assim transmitido.
A presunção - iuris tantum (17) - de propriedade gerada, consoante art.7º do Cód. Reg. Predial, pelo registo definitivo do direito é, consoante nº2º do art.350º e nº1º do art.1268º C.Civ., ilidível pela prova duma posse mais antiga (18).
Nunca - que se saiba, enfim - tal teve o A. (e antecessores) ; e, anterior o início da outrossim alegada posse dos RR donatários à data do registo - sempre, como se sabe, com natureza meramente declarativa, que não constitutiva - invocado pelo A., seria, ainda, a presunção assente nessa posse a prevalecer.
Ponto, em todo o caso, é que posse efectivamente houvesse : e sem ela nem também de usucapião se poderá falar em relação aos 2º e 3º RR ( v. art.1287º).
11. Foi essa posse, dos RR donatários, que as instâncias negaram que efectivamente existisse no caso ocorrente.
Tal assim com base, a 1ª instância, na falta do elemento subjectivo (animus) da posse arguida, julgada revelada pela resposta negativa dada ao quesito 7º.
A 2ª instância entendeu, por sua vez, não mostrar-se, desde logo, provado o próprio elemento material ( corpus ) dessa posse (19).
Citando, a propósito, a doutrina de Ac.STJ de 9/1/97, RLJ 132º/19 ss, os ora igualmente recorrentes opuseram, em suma, ao sobredito fundamento da sentença apelada resultar o non liquet probatório decorrente da resposta negativa referida necessariamente superado por devida aplicação da presunção legal estabelecida no nº2º do art.1252º, não ilidida (20).
A existência do elemento material da posse resultaria, por sua vez, incontornável, em sua tese, da factualidade referida em 3., ( e ) e ( f ),
supra.
Sustentam mostrar-se assim configurado público exercício de poderes de detenção. No entanto:
12. Omitem, - et pour cause -, de óbvio modo, que o mesmo pode exactamente dizer-se em relação aos 1ºs RR - v., outra vez, 3., ( e ) e ( f ), supra.
Sendo, por outro lado, certo revelar animus possidendi o facto, associado à detenção de determinado imóvel, de se pagarem os impostos inerentes (21), cabe ainda notar que o que efectivamente se provou neste caso foi que esses impostos passaram a ser pagos em nome dos 2º e 3º RR, filhos dos 1ºs RR - idem ( g ).
É a esta luz que efectivamente há que trazer à colação "as mais elementares regras da experiência", a que os recorrentes outrossim repetida e sublinhadamente aludem (em 12. e 13. da alegação que ofereceram na apelação - fls.194 e 195, e 10. da oferecida na revista - fls. 240 e 241) e a consideração da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a fls.147 e 148 dos autos, que a Relação não deixou de salientar (fls 4 vº do acórdão sob recurso, a fls.216 vº dos autos). Desta sorte:
13. Notado que "o que eleva a detenção a posse é a intenção de exercer um determinado poder no próprio interesse ", isto é, o animus (rem) sibi habendi (22), e, como assim, em causa, como bem se entende, um facto psicológico, importa, realmente, de sobremaneira notar ter-se, ao fim e ao cabo, respondido directa e negativamente ao quesito (7º) correspondente a esse facto ; o qual, é certo, a lei presume, mas tal assim em caso de dúvida, e não quando se trate de uma situação definida, que exclua a titularidade do direito invocado (23).
Nem bem, em todo o caso, por fim, se vê como poderia este tribunal de revista, com competência limitada à matéria de direito ( art.26º da Lei nº 3/99, de 13/1 ), censurar o juízo de facto a final alcançado pelas instâncias neste âmbito (24).
Isto deste modo apesar de contrariada por aquela resposta a presunção legal estabelecida no nº2º do art.1252º, visto que ilidível e a final julgada, como vem de notar-se, efectivamente ilidida nas concretas circunstâncias da situação apurada. Na realidade:
Em vista do constante de 3., ( e ) e ( f ), supra, da escritura de doação a fls.48 ss, de que consta a idade, ao tempo, dos donatários - 13 anos, ele, e 8 anos, ela ( fls.49 ), do facto de esse acto datar de menos de 2 anos e meio antes da venda judicial aludida ( e, aliás, de menos de ano e meio antes da penhora - v.fls.102 ), de não ter sido registado, e das já faladas regras da experiência comum, a Relação, lembrando, ainda, a resposta negativa ao quesito 5º, relativo a obras, e considerando, por fim, não mostrar-se provado terem os menores tido sequer consciência de que os pais tinham outorgado escritura de doação a seu favor, e nunca terem aqueles abdicado da posse efectiva do que é a sua habitação, concluiu, por tudo isso, que os poderes de facto sobre a fracção autónoma em referência vinham a ser exercidos pelos 1ºs RR, pais, e não pelo 2º e pela 3ª, filhos.
Ora, também quanto a este outro elemento da posse vem a ter cabimento o já observado em relação ao primeiro no que toca ao âmbito do conhecimento próprio deste Tribunal.
Quer isto, em última análise, dizer que os recorrentes, assacando às instâncias alegado desconhecimento do instituto possessório, primeiro com referência ao art.1252º, nº2º, e ao Assento de 14/5/96, BMJ 457/55 ss, e depois ao nº1º desse mesmo artigo e ao art.1266º, mais, afinal, não fazem que deslocar esta questão da sede de facto em que foi decidida para problematização de direito que a decisão da matéria de facto de claro modo prejudica.
14. Também, de todo o modo, a decisão da reconvenção terá, afinal, de ser, ainda e sempre, reenviada à inarredável subsistência de doação não invalidada, nem, seja como for, impugnada e ao outrossim incontornável facto de que foi feita por quem beneficiava, ao tempo, da presunção, não contrariada, do art.7º do Cód.Reg.Predial (25); para mais não valendo entre nós o instituto do registo, face ao disposto no nº4º do art.5º dessa mesma lei; norma indubitavelmente interpretativa do direito anterior, como igualmente já notado.
Independentemente, pois, do julgado pelas instâncias em matéria de posse, permanece segura a transmissão do direito de propriedade - direito real máximo - registado a favor dos 1ºs RR operada pela doação, não impugnada, que fizeram aos filhos, anterior à penhora e subse- quente venda da fracção autónoma em questão por arrematação em hasta pública.
Resta, agora, a questão da indemnização reclamada no pedido cumulado.
Lembrando a doutrina de acórdão deste Tribunal de 23/3/99, CJSTJ, VII, 1º, 172, a de Pereira Coelho, em " O Enriquecimento e o Dano ", citada por Abrantes Geraldes, em " Indemnização do Dano da Privação do Uso " (2001), 62, em nota, e o disposto no nº1º dos arts. 473º e 479º, mas recordando sem dúvida igualmente a natureza subsidiária desse instituto (art.474º), o acórdão recorrido assentou, por fim, na proposição deste último autor de que a mera privação do uso constitui dano autónomo de natureza patrimonial (idem, 6 e 9), e, ultrapassando o que considera vexata quaestio, acaba por fundamentar linearmente o decidido a este respeito na previsão do (nº 1º do) art.483º e no art.566º, notando, em suma, caber ressarcimento to do dano constituído pela privação da possibilidade de dispor ou fruir da fracção reivindicada, aquilatável pelo seu rendimento possível, referido em 3., ( l ), supra.
Registadas as aquisições fundadas na arrematação em hasta pública e subsequente venda, que - sintomaticamente - não a decorrente da aludida doação de pais a filhos, prevaleceria, visto que não provada a arguida posse destes, a presunção de propriedade gerada pelo registo a favor do A., ora recorrido (art.7º, nº1º, do Cód.Reg.Predial).
Deixa-se de considerar assim que dessa mesma presunção beneficiavam os 1s. RR quando efectuaram a doação aos filhos; a qual, anterior à penhora e venda do bem doado - v. fls.82 e 102, não é, no sistema vigente, afectada pelo registo desses actos.
A coberto, por conseguinte, de título oponível ao reivindicante, a ocupação pelos RR da fracção autónoma em questão revela-se lícita (26) por último de notar, de facto, sendo a inércia dos arrematantes, antecessores do ora recorrido, prolongada por mais de 12 anos, a que alude o artigo 12º da contestação.
15. Chega-se, deste modo, à seguinte decisão:
Concedendo a revista pedida, revoga-se o decidido pelas instâncias.
Julga-se, em vista da doação excepcionada:
a) - improcedente a acção, absolvendo os RR dos pedidos contra eles cumulados;
b) - procedente a reconvenção, declarando serem os 2º e 3º RR proprietários legítimos da fracção G, correspondente ao 3º andar direito do prédio urbano sito na Rua ...., em Aveiro, e ordenando o cancelamento dos registos existentes em sentido contrário.
Custas, tanto nas instâncias, como deste recurso, pelo recorrido.
Lisboa, 6 de Junho de 2002.
Oliveira Barros,
Diogo Fernandes,
Miranda Gusmão.
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(1) Juntou certidão da inscrição da fracção reivindicada no registo predial a favor desses seus antecessores - cfr. fls.17. V., a propósito, Antunes Varela, RLJ, 120º/220 ss.
(2) V. art.470, nº1º, CPC, Alberto dos Reis, " Comentário ", 3º, 148, e ARP de 3/3/94, CJ, XIX, 2º, 185-8. e 9.
(3) V. Antunes Varela, RLJ 129º/51.
(4) Antunes Varela e Henrique Mesquita, RLJ, 126º/381-382.
(5) V. a definição clássica de Roubier transcrita por Baptista Machado, "Sobre a aplicação no tempo do Código Civil", 286.
(6) Antunes Varela e Henrique Mesquita, anotação cit., RLJ, 126º/382-383, e 127º/25 ( 7.) ss.
(7) V. , para melhor desenvolvimento, Vaz Serra, BMJ 73/304 ss ( nº59.).
(8) Vaz Serra, BMJ 73/321.
(9) Pedro Romano Martinez, "Venda Executiva", na obra colectiva " " Aspectos do Novo Processo Civil " (1997),
330-b), 3º par.
(10) V. nota 2.
(11) V. Manuel Rodrigues, "A reivindicação no direito civil português", RLJ 57º/193 ( 12.) - 194, citado por Menezes Cordeiro, " Direitos Reais ", reprint, ed. Lex,, 1993, nº274-IV, p.543 ; Pires de Lima e Antunes Varela, " C. Civ. Anotado ", III, 2ª ed., 116, nota 8 ao art.1311º, como citados por Henrique Mesquita, RLJ, 125º/94 ( § 1º)-95; e, v. g., Acs. STJ de 2/12/86, BMJ 362/537-I, que se anotou constituir doutrina e jurisprudência uniformes - idem, 540-I, e de 27/5/97- Proc. nº 914/96-1 ª, como sumariado ( I e II ) na revista " Vida Judiciária ", nº12 ( Março de 1998 ), 62.
(12) Sem prejuízo de efectivo respeito pelo entendimente prevalecente, porventura anacrónica, na opinião pessoal do relator.
(13) Isto é, fundada em ius in re e destinada a fazer valer esse direito real. V.Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil ", ( 1976 ), 321-a)-322, e Correia Teles "Doutrina das Acções", 5 e nota, apud Ary Elias da Costa e outros, "CPC Anotado e Comentado", 1º, 77-2.-b)-78. Visando fazer valer o direito real máximo que é o direito de propriedade, a acção de reivindicação é, mesmo, o paradigma deste tipo ou espécie de acções ( v. também art.1315º).
(14) Manuel Rodrigues, estudo cit., RLJ 57º/177 ( 10,), apud Gonçalves Salvador, " Elementos da Reivindicação ", § 21, p.51-52. V. Mota Pinto, " Teoria Geral do Direito Civil ", 3ª ed., 360- II, ss, e , sobre as formas de aquisição originária, Pires de Lima e Antunes Varela, " Noções Fundamentais de Direito Civil ", II, 89.Contra o que se pretende nos artigos 10º e 17º da réplica, a arrematação em hasta pública não é uma delas : como qualquer outra venda, a venda judicial é, a todas as luzes, uma forma de aquisição derivada, como notado no Ac.STJ de 7/7/99, CJ STJ, VII, 2º, 167, citado nesse mesmo articulado, e repetidamente referido, v.g., por Vaz Serra, BMJ 73/306, 308, 309, 310, e 312.
(15) Pires de Lima e Antunes Varela, " C.Civ. Anotado ", III, 2ª ed., 115.
(16) V., com igual a propósito, nota 1.
(17) V., v.g., Vaz Serra, RLJ 106º/287.
(18) V., v.g., Acs.STJ de 17/5/68, BMJ 177/247- IV e V, e de 19/7/68, BMJ 179/170-I. Como neste último se refere, o instituto do registo tem, entre nós, função, tão só, declarativa, que não também constitutiva, de direitos. Como, enfim, faz notar Oliveira Ascensão, " Direitos Reais ", 2ª ed., 413 (nº201 -II ), é a aquisição fundada na usucapião, e não o registo, que constitui a base de toda a nossa ordem imobiliária. Daí o entendimento de que, consoante te Ac.STJ de 3/6/92, RLJ 126º/374, citado pelos recorrentes, "não há direito registado que possa valer contra o direito de propriedade adquirido por usucapião, ainda que não registado, prevalecendo este sobre qualquer presunção derivada do registo".
(19) Sobre estes elementos - material e psicológico - da posse, v. Mota Pinto, "Direitos Reais", 180 ss, e Manuel Rodrigues, ob,cit., 182 ss, citados pelos recorrentes na alegação oferecida na apelação.
(20) Constitui jurisprudência corrente que das respostas negativas a quesitos resulta apenas que tudo se passe como se o facto quesitado não tivesse sequer sido articulado, de modo nenhum se podendo, em tal base, considerar assente o facto contrário ao efectivamente quesitado - v., v.g., os arestos citados em ARP de 16/6/94. CJ, XIX, 3º, 235-D-2.
(21) Ac.STJ de 12/2/87, BMJ 364/855-I.
(22) Manuel Rodrigues, " A Posse ", 191 (-39.).
(23) V., mutatis mutandis, Antunes Varela, RLJ, 122º/223, 1ª col., último par., e Ac.STJ de 22/3/74, BMJ 235/285-III.
(24) V. Antunes Varela, RLJ, 122º/222-9., ss.
(25) V., uma vez mais, nota 1.
(26) Na falta desse título, seria ilícita e culposa a partir da citação, que não apenas de sentença que tal declarasse. Indemnizável o dano correspondente à privação do valor de uso da fracção em causa, esse valor é, sem dúvida alguma, estimável em montante equivalente ao valor locativo da mesma. E nem dúvida, em tal base, por fim, sofre o nexo de causalidade (adequada - art. 563) entre a ocupação ilícita e o assim caracterizado e quantificado o dano.