Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:
AA veio interpor recurso de revista excepcional do Acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2019.
No Supremo, foi proferido despacho liminar que se pronunciou pela inadmissibilidade do referido recurso, nestes termos:
"AA veio interpor recurso de revista excepcional do Acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2019, com fundamento no art. 672º, nº 1, als. a) e c), do CPC.
Apesar de o recurso ser interposto do referido acórdão, o recorrente apenas se insurge contra a decisão que confirmou o despacho da 1ª instância que indeferiu uma nulidade processual respeitante à gravação da prova efectuada em julgamento.
A fundamentação do acórdão, nessa parte, é a seguinte:
«O recurso do despacho de 4/6/2019:
Conforme resulta do acima descrito, o Autor, por intermédio do seu ilustre Advogado, veio aos autos, mediante o requerimento de 31/5/2019, afirmar que, tendo requerido cópia da gravação da Audiência, lhe havia sido remetido um CD com música, não tendo acesso à gravação dos depoimentos prestados em Audiência, o que obstava a que elaborasse, como era sua intenção, minuta de recurso da sentença final.
Pediu que se ordenasse “…o suprimento respectivo, descontando no prazo da apresentação da apelação todo o período que vai da data da entrega em juízo do requerimento a pedir a dita gravação, até à data em que esta lhe vier a ser entregue, como não foi até hoje (…)”.
A omissão de gravação, no suporte CD entregue ao ilustre Advogado do Autor, dos depoimentos prestados em audiência – exista, ou não, neste suporte, gravado, música ou outro conteúdo alheio à prova, por depoimentos ou declarações, produzidas em audiência -, é de entender integrar uma irregularidade, que, por ser susceptível de influir na decisão da causa, já que é idónea a impedir que a parte possa recorrer, impugnando a decisão da matéria de facto, consubstancia nulidade atípica, enquadrável no estabelecido no artº 195º do NCPC.
Tal nulidade carece de ser reclamada para ser apreciada pelo Tribunal, suscitando um incidente processual a que, na falta de regulamentação especial, é aplicável o disposto nos artºs 292 e ss.
Assim, no requerimento em que se reclame a nulidade, deve a parte oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.
Sucede que, no caso “sub judice”, em que era mister o Autor, arrolar e fazer a prova de que, quando o CD em causa chegou à sua posse, não continha a gravação da audiência - desinteressando, a posterior exibição de um CD, sem essa gravação, com ou sem, outro conteúdo, na medida que isso não assegura que a mesma não existisse quando tal suporte foi entregue pelo Tribunal, que deixou, nessa ocasião, de ter o domínio dos factos a isso respeitantes – o Autor não indicou prova no requerimento de 31/5/2019, limitando-se aí a afirmar: “O CD fica à disposição do Tribunal para exame, acaso V. Ex.ª veja interesse nisso.”. Só na sequência do despacho de 31/05/2019, cujo intuito foi o de facultar o exercício do contraditório ao Autor, é que este veio, mediante o requerimento de 1/6/2019, “requer uma inspeção judicial à gravação da Audiência”, e arrolar como testemunha o senhor Dr. BB, Advogado, alegando, então, que este “estava no escritório do mandatário do A., no momento em que o CD foi reproduzido pela primeira vez.”
Indicação de prova, esta, extemporânea, como flui do exposto.
Assim, sem prova do alegado pelo Autor quanto à gravação em causa, outra não podia ser a decisão do Tribunal “a quo”, senão a do indeferimento da arguição da nulidade, decisão esta proferida no despacho recorrido de 4/6/2019, que ora se confirma, improcedendo o recurso do Autor respeitante a tal decisão.
Resta dizer que a mera existência de ónus e de consequências desvantajosas para a parte que não os observa – como sucede com o reclamante de nulidade processual que não indique prova no requerimento de reclamação – não consubstancia qualquer ofensa às normas dos artºs 18º, nº 1 e 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP)».
Na perspectiva do recorrente foi cometida uma nulidade processual, que foi oportunamente arguida, mas indevidamente indeferida na 1ª instância, decisão que o acórdão recorrido confirmou.
Está assim em causa uma questão de natureza adjectiva.
Nestes casos, em que o acórdão da Relação aprecia decisão da 1ª instância que recaia unicamente sobre a relação processual, a revista – continuada – apenas é admissível nos termos do art. 671º, nº 2, als. a) e b), do CPC.
Ora, no caso, como é patente, não foi alegada, nem se verifica, nenhuma das situações aí previstas, pelo que se teria de concluir pela inadmissibilidade da revista "normal".
O recorrente interpôs, porém, revista excepcional.
Importa notar, todavia, que a revista excepcional não é uma espécie diferente de recurso de revista; antes constitui uma revista "normal", que seria apenas impedida pelo pressuposto negativo da dupla conformidade, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC.
Ou seja, como decorre da conjugação deste preceito com a norma do art. 672º, a revista excepcional tem lugar quando a revista, que seria admissível nos termos gerais, é apenas negada pela existência de dupla conformidade e desde que se verifique alguma das situações específicas previstas no nº 1 do art. 672º.
Assim, quando a revista não seja admissível nos termos gerais, também não o é a revista excepcional.
No caso, como se referiu, a revista "normal" apenas seria admissível, nos termos do art. 671º, nº 2, verificando-se que o recorrente não invocou nenhuma das situações aí previstas (sendo que, no caso da al. a), a revista teria de seguir sempre os termos gerais, considerando a ressalva contida na 1ª parte do nº 3 do art. 671º).
Daí decorre que não seria admissível a revista "normal", não podendo ser admitida, consequentemente, a revista excepcional".
O recorrente discorda do entendimento adoptado no aludido despacho, alegando que:
(…)
4. Antes de mais, a infracção – aparentemente processual – de não ter sido fornecida ao recorrente a gravação da Audiência, quando a requereu com a finalidade da crítica do julgamento da matéria de facto, situa-se no âmbito e alcance constitucional.
5. Com efeito, o direito ao recurso é de princípio constitucional, aceite unanimemente como garantia dos direitos fundamentais ao juízo e julgamento justos, nos termos do art.º 20.º/1/4 da CRP, ou seja, na consagração do due process of law.
6. Ora, a documentação da prova é meio instrumental necessário do exercício do direito ao recurso.
7. E todas as controvérsias, pois, que envolvam, directa ou indirectamente, a documentação da prova (como por exemplo esta o é: a de ter sido negada ao recorrente o verdadeiro CD do julgamento), excedem o conceito de “decisões interlocutórias que recaem unicamente sobre a relação processual”.
8. Não são decisões nem interlocutórias, porque inviabilizam de imediato e directamente o julgamento justo da causa (não dizem respeito ao mero ritual do processo em si e por si mesmo), nem contêm em si apenas uma relação processual.
9. Sim, correspondem essas decisões ao verdadeiro fundo e fundamento da decisão final e, por isso mesmo, estão encrustadas na equanimidade, não do processo em si, mas da função judicial.
10. Este o argumento de conceito que mais serve à posição do reclamante que, no entanto, também vai socorrer-se de uma simples interpretação positivista e de exegese literal.
11. Na verdade, o art.º 671.º/1/2 do CPC estabelece um quadro geral de irrecorribilidades, mas que tem ressalva no n.º 3 do preceito, ao versar este uma singularidade, sem a distinguir no campo desses mesmos n.ºs 1 e 2 do citado art.º 671.º.
12. Ou seja, a irrecorribilidade segundo a dupla conforme cobre ambos os campos da irrecorribilidade prevista nesse art.º 671.º do CPC (independentemente da fórmula quer positiva, quer negativa da redacção dos preceitos).
13. Preceito do n.º 3 do art.º 671.º do CPC que, conjugado com o art.º 672.º/1 do mesmo diploma legal, abre a revista excepcional tanto ao caso do art.º 671.º, n.º 1, como ao caso do n.º 2.
14. Assim, desde que esteja em causa “uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, ainda em caso de dupla conforme, no âmbito e alcance de uma decisão sobre relação processual, é ainda admissível a revista excepcional.
15. Não é, pois, exacto o argumento da revista excepcional ser em todo o caso uma revista em sentido estrito, mas abre à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça de todos os casos que exijam um aperfeiçoamento da justiça.
16. Principalmente (volta o reclamante ao argumento inicial) quando, numa aparência de mero processo, está subjacente uma infracção aos direitos fundamentais, e campo onde rege o art.º 18.º/1 da CRP.
17. Por ser este preceito do art.º 18.º/1 da CRP de aplicação directa e imediata, suprime, aliás, qualquer argumento negativo que tenha âncora e raiz na irrecorribilidade levada em geral, ou até em particular, ao art.º 671.º/2 do CPC.
18. Nestes termos, deve o despacho reclamado ser objecto de reforma, para que a revista excepcional, neste caso de um impedimento ao due process of law constitucional, seja aceite e mandada receber para julgamento justo da causa.
19. Parece ficar claro que a aplicação, nas circunstâncias dadas, do art.º 671.º/2 do CPC, como excepção ao art.º 672.º/1 do mesmo Código e sem a salvaguarda das infracções ao art.º 20.º/1/4 da CRP, infringe o sistema das garantias fundamentais, regido hic et nunc pelo influxo do art.º 18.º/1 da Lei Fundamental.
O recorrido sustenta que deve ser mantido o entendimento exposto no despacho reclamado, pugnando pelo não recebimento do recurso.
Cumpre decidir.
Com o devido respeito, nenhuma das razões invocadas pelo recorrente infirma a fundamentação do referido despacho, sendo de salientar que se tomou posição sobre a admissibilidade do recurso de revista interposto, não de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional da decisão que indeferiu a nulidade processual invocada.
Se esta – "infracção aparentemente processual" – se situa no "âmbito e alcance constitucional", o remédio não será "forçar" o recurso ordinário, mas, esgotada essa via, recorrer para o Tribunal Constitucional (cfr. art. 70º, nº 2, da LTC).
Por outro lado, ao invés do que vem dito pelo recorrente, a decisão que indeferiu a nulidade processual é, indiscutivelmente, uma decisão interlocutória que incidiu unicamente sobre a relação processual.
Não é pelo facto de se repercutir na apreciação do mérito que a decisão perde essa natureza. Aliás, a infracção só poderia mesmo relevar como nulidade se pudesse "influir no exame ou na decisão da causa" (art. 195º, nº 1, do CPC).
Tendo a decisão essa natureza, o recurso de revista só seria admissível nos termos indicados no aludido despacho, isto é, ao abrigo do disposto no art. 671º, nº 2, do CC.
Neste preceito são previstas duas situações:
- A da al. a), que contempla os casos em que é sempre admissível o recurso.
Neste caso, a norma remete para as hipóteses indicadas no art. 629º, nº 2, tratando-se de uma revista "normal", uma vez que não funciona aqui o regime da dupla conforme, o que exclui a revista excepcional (cfr. parte inicial do art. 671º, nº 3).
- A da al. b), em que se prevêem casos de contradição com jurisprudência anterior do STJ.
Porém, como se salientou no despacho reclamado, o recorrente não estruturou, assim, o seu recurso, não invocando, nem demonstrando nenhuma das situações ali referidas.
Deste modo, mesmo que se preconize que, no caso da al. b) e existindo dupla conforme, possa ser interposta revista excepcional (propende-se para esta solução, embora a questão não seja pacífica – no sentido da admissibilidade, cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 357, 375 e 381), o recurso não poderia ser admitido, por não satisfazer o referido pressuposto prévio da contradição de acórdãos.
Resta acrescentar que não foram violados os princípios e normas constitucionais invocados pelo recorrente, violação que, como parece evidente, não se identifica com qualquer restrição a um ou mais graus de jurisdição. Com efeito, a admissibilidade de um terceiro grau de recurso e o modo como este pode ser exercitado cabem nos poderes de conformação do legislador, tendo o despacho reclamado feito aplicação das normas legais em conformidade.
Em conclusão:
1. Tendo o acórdão recorrido apreciado decisão interlocutória da 1ª instância que incidiu unicamente sobre a relação processual, o recurso de revista apenas pode ser admitido nas situações previstas nas als. a) e b) do nº 2 do art. 671º do CPC.
2. Verificando-se, nesse caso, uma situação de dupla conformidade, a revista excepcional, a ser admitida, só poderá sê-lo na hipótese da al. b) e pressupondo a alegação da contradição jurisprudencial aí indicada.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação apresentada por AA, não se admitindo o recurso de revista por este interposto.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
Lisboa, 30 de Junho de 2020
F. Pinto de Almeida – Relator
José Rainho
Graça Amaral
Tem voto de conformidade do 1º Adjunto, Conselheiro José Rainho (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).