Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3060
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RENOVAÇÃO DO NEGÓCIO
OPOSIÇÃO
DIREITO A NOVO ARRENDAMENTO
ECONOMIA COMUM
ATRASO NA RESTITUIÇÃO DA COISA
RESPOSTAS AOS QUESITOS
FACTOS CONCLUSIVOS
MATÉRIA DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200711130030606
Data do Acordão: 11/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1) A norma do artigo 1056º do Código Civil, relativa à renovação do arrendamento caducado, é inaplicável se a caducidade radicar na morte do arrendatário uma vez que nessa hipótese não é este último, mas um terceiro, quem se mantém no gozo da coisa.

2) A oposição do senhorio à renovação do arrendamento caducado pode manifestar-se por qualquer meio, nos termos do artigo 217º do Código Civil, e não somente  através duma acção de despejo.

3)  A vivência em economia comum com o falecido arrendatário há mais de cinco anos a que alude o artº 90º, nº 1, a), do RAU, é um facto constitutivo do direito a novo arrendamento, e cuja prova, por isso, compete ao respectivo titular, nos termos do artº 342º, nº 1, do Código Civil.

4) A norma do artigo 1045º do Código Civil afasta a aplicação das regras gerais contidas nos artigos 562º e seguintes respeitantes ao cálculo da indemnização devida e é insusceptível de aplicação analógica à situação de ocupação ilegítima do imóvel por quem não é (nem nunca foi) titular da posição de locatário.

5) Por se tratar de matéria de direito, o Supremo Tribunal tem competência para sindicar o uso que a Relação faça da faculdade contida no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil, que manda ter por não escritas as respostas sobre questões de direito.

6) Mesmo que seja conclusiva, uma resposta a dado ponto da base instrutória poderá não ser excluída com fundamento no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil, se não encerrar um juízo sobre uma questão jurídica e se a sua interpretação não implicar o recurso a qualquer regra de direito.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 

 I.  Síntese dos termos essenciais da causa e dos recursos

No tribunal de Lisboa, AA propôs contra BB uma acção ordinária, pedindo que seja declarada a caducidade de um contrato de arrendamento que vigorara entre ela, autora, como senhoria, e CC (viúva do primitivo inquilino), como arrendatária, por morte desta, e a condenação do réu a pagar-lhe uma indemnização pelos danos que lhe tem causado ocupando sem título a fracção que fora objecto daquele contrato, indemnização que à data da propositura da acção – 19.9.01 – totalizava 6.300.000$00, acrescida de 300.000$00 por mês até à entrega efectiva do imóvel.

O Réu contestou, reconhecendo a caducidade do arrendamento mas sustentando pretender exercer direito a novo arrendamento (por viver com a arrendatária, sua tia-avó, há mais de cinco anos à data da morte desta), sendo que a autora recusou reconhecer-lhe esse direito a novo arrendamento e lhe manifestou vontade de vender a fracção, mas sem lhe reconhecer direito de preferência. Por impugnação, negou a produção de danos, que, aliás, sempre estariam excessivamente valorados na petição. E invocou ainda abuso de direito por parte da autora.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida em 10.2.05 sentença que, julgando a acção procedente, declarou a caducidade do arrendamento e condenou o réu a pagar à autora uma indemnização que ascende até à data da propositura da acção a 5.250.000$00 (26.186,89 €), acrescida de 250.000$00 (1.249,99 €) por cada mês até à entrega efectiva da fracção.

O Réu apelou, impugnando, quer a matéria de facto apurada pelo tribunal de 1ª instância, quer a solução jurídica ali dada à acção.

Por acórdão de 15.11.05 a Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou integralmente a sentença recorrida.

De novo inconformado, o Réu interpôs recurso de revista.

Por acórdão de 11.7.06 o STJ declarou nulo o acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto ao conhecimento da questão da impugnação da matéria de facto e determinou a remessa do processo à Relação para, decidida aquela questão, se fazer a reforma da decisão anulada.

Cumprindo o determinado a Relação proferiu novo acórdão em que, dando procedência parcial à apelação, condenou o réu a pagar à autora, a título de “indemnização” pela não restituição atempada da fracção autónoma objecto  do arrendamento caducado, uma quantia que totalizava até à data da propositura da acção 1.010.504$00 (5.040,20 €), acrescida de 45.932$00 (229,11 €) por cada mês decorrido desde então até à entrega efectiva da fracção; no mais, confirmou a sentença.

Deste acórdão recorreram para o SJT ambas as partes, sendo as seguintes, em resumo, as conclusões úteis de cada uma das revistas:

Revista do Réu:

1º) Da matéria apurada em d), o), p) e q) resulta que vivia no locado, em exclusividade, com a arrendatária, há vários anos, aí tendo centrada a sua vida económica, laboral, social e familiar, o que permite presumir que vivia com ela em economia comum; logo, é titular do direito a novo arrendamento, que, aliás, comunicou em tempo à autora (artºs 76 n°1, al. a) , 90 n°1 al. a) e 94º, nº 1, do RAU, e 342º, n°3, do C.Civil);

2º) A excepção da venda do andar oposta pela recorrida é inoperante porque, tendo-lhe ela comunicado tal pretensão, o recorrente manifestou interesse na compra; a recorrida, porém, omitiu o cumprimento da obrigação de lhe dar conhecimento das condições da venda (al. j) da matéria de facto), nos termos dos artºs 97º, nºs 1 e 2, do RAU, e 416º, nº1, do C. Civil;

3º) Assim, a decisão recorrida, ao considerar o recorrente como ocupante ilegítimo, violou o disposto nos artºs 76º, nº 1, al. a), 90º, nº 1, al a) , 94º, nº I, e 97º, nº I e 2, do RAU, 342º, n°3, e 416º do C.Civil;

4º)  Não tendo a autora formulado o pedido de despejo, está legalmente impedida de ver reconhecido o direito à indemnização reclamada (artº 56 nº2, do RAU);

5º)  De qualquer modo, a indemnização atribuível em acção de despejo é de apenas 50% das rendas ou alugueres em atraso; e isto quando a acção tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, o que nem sequer é o caso (artºs 56º, n°2, 58º, n°3, e 1041º, n°1, do C.Civil;

6º) Ao considerar que nesta acção há lugar a indemnização de acordo com as regras gerais da responsabilidade civil, a decisão recorrida violou as normas referidas nas conclusões anteriores;

7º) Por ser meramente conclusiva, deve  considerar-se não escrita, nos termos do artº 646º, nº 4, do CPC, a matéria que consta da alínea v), dos factos provados, fixada em resposta ao quesito 16º;

8º) Ao decidir-se que eram indispensáveis obras no andar no valor de 100.000,00 € sem se deduzir tal montante ao valor do imóvel, cometeu-se um erro de julgamento sobre essa questão.

Revista da Autora:

1º)  A resposta ao artº 17º da base instrutória -  alínea x) da matéria provada – não é conclusiva;

2º)  A alegação feita pela autora na petição inicial não é igualmente conclusiva, configurando o rendimento previsível daquela fracção se colocada livre e desocupada no mercado de arrendamento;

3º) Tal alegação é tão conclusiva como a aplicação do valor da fracção em produtos financeiros;

4º)  Há manifesto erro por parte do Juiz Relator quanto ao relatório na base do qual foi proferida a referida resposta, pois se tivesse considerado o relatório do Tribunal, como consta da fundamentação das respostas em 1ª Instância, verificaria que estas não padecem de qualquer nulidade, resultando sim do apuramento das condições do andar e respectiva metragem e das potencialidades do mercado do arrendamento à época;

5º) Constitui matéria de direito saber se certa questão é conclusiva ou não, razão pela qual não está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar tal decisão, susceptível de conduzir ao reconhecimento de uma nulidade no quadro do disposto no artº 668° do CPC;

6º) Nem a alegação da autora é conclusiva, nem a resposta do Julgador em 1ª Instância é conclusiva, nem o relatório do perito do tribunal é conclusivo, pelo que deverá manter-se a indemnização correspondente a 250 contos mensais por cada mês de fruição do andar pelo Réu;

7º)  Mas mesmo que assim não se entendesse o acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do art. 1045° do Código Civil, uma vez que quem se apropriou do imóvel sem título deverá ser condenado a pagar o valor do uso da coisa;

8º) E o valor do imóvel é de 50.000 contos, sendo facto público e notório que o rendimento, qualquer que fosse, a sua aplicação, mesmo em produtos financeiros, nunca seria inferior a 4%.

Autora e réu contra alegaram na revista interposta pela parte contrária, defendendo a sua improcedência.

Tudo visto, cumpre decidir.

 
II.  Fundamentação
Matéria de Facto: 

a) A autora é dona da fracção G, primeiro andar esquerdo, do prédio com o número ... da Rua Marquês de Fronteira, em Lisboa.

b) O dito andar foi dado de "arrendamento” para habitação a DD.

c) A DD sucedeu CC, a qual em 1999 entregava 22.966$00 mensais à autora pela ocupação do andar.

d) Em 3 de Outubro de 1999 o réu comunicou à autora, por carta, o seguinte: "Cumpre-me informá-la que (..) CC (...) arrendatária (...) faleceu no passado dia 13 de Setembro de 1999 (…). Dada a minha situação de convivência com a falecida durante 20 anos, em que vivemos em comunhão de casa e mesa, assiste-me o direito de acordo com o art° 90º do Dec. Lei 321-8/90, de 15 de Outubro, à celebração de novo contrato de arrendamento."

e) A autora respondeu em 22 de Outubro de 1999, por carta, afirmando que pretendia vender a referida fracção, declarando desconhecer o convívio do réu com CC e solicitando entrega do andar.

f) Por carta de 25 de Novembro de 1999 a autora solicitou a entrega das chaves do andar, evidenciando a intenção de aí realizar obras com brevidade a fim de o colocar no mercado.

g) E chamando a atenção para os prejuízos que decorriam da não entrega da fracção e respectivas chaves no dia 13 de Dezembro de 1999.

h) O réu permanece no primeiro andar esquerdo.

i) O réu por carta de 9 de Novembro 1999 comunicou à autora o seguinte: "Acuso a recepção da V/ carta datada de 22.10.99 e recebida a 26.10.99 (. ..) V.Exa pretenda vender a fracção, desde já manifesto o meu interesse na sua aquisição, estando dependente, obviamente do preço que pretende, bem como das condições de pagamento."

j) A autora não deu a conhecer ao R. as condições de venda do andar.

l) A permanência do R. no 1° andar esquerdo impede a A. de nele realizar obras.

m) E de o colocar à venda.

n) E impede a visita do andar por potenciais compradores.

o) O R. mora no 1° andar com CC, desde há vários anos, aí dormindo, estudando, tomando refeições, trabalhando, recebendo amigos e correspondência, sendo o único a fazê-lo nesse período de tempo.

p) E aí tem “domiciliada a sua conta bancária”.

q) E é aí que “se encontra recenseado para efeitos eleitorais”.

r) A casa de banho principal da fracção identificada em a) encontra-se sem condições de utilização.

s) As canalizações e instalações eléctricas são obsoletas.

t) Após as obras de ampliação no prédio verificaram-se deformações nas traseiras do mesmo que afectaram a segurança da marquise da fracção.

u) A fracção referida em a) tem sete assoalhadas e situa-se numa zona central de Lisboa altamente valorizada.

v) Esta fracção tem o valor aproximado de 50.000 contos (50.000.000$00).

Matéria de Direito

Vamos conjuntamente ambos os recursos uma vez que as questões postas e de que cumpre conhecer são inter-dependentes, além de coincidirem em grande parte. E tentando isolar com precisão do que se trata, diremos que são dois os problemas colocados:

Primeiro:

Saber se o réu é titular do direito a um novo arrendamento, nos termos previstos no art.º 90º do RAU, e, num segundo momento, do direito de preferência na venda da fracção ajuizada, consoante o disposto no art.º 97º do mesmo diploma;

Segundo:

Se a resposta ao primeiro problema for negativa, saber se a autora é titular do direito a uma indemnização e, sendo-o, com que conteúdo e extensão.

1) No que se refere à primeira questão parece que se trata, em rigor, duma questão nova, e de que, por isso, não cabe conhecer. Com efeito, decidiu-se na sentença, explicitamente, que o recorrente não é titular de nenhum dos dois direitos equacionados, depois de também se ter julgado que, por não se verificar nenhuma das situações previstas no art.º 85º do RAU, o arrendamento caducou por morte da arrendatária. Ora, apenas este segmento da sentença foi impugnado na apelação que o réu interpôs. Como claramente se explicita no acórdão recorrido, a única questão aí suscitada com relevo neste contexto foi a de saber se o contrato de arrendamento se renovou nos termos do art.º 1056º do CC, tendo em conta que o réu se manteve no gozo da fracção por período superior a um ano sem oposição do locador. A Relação decidiu que não, que o arrendamento não se renovou, e fê-lo, em nosso entender, com todo o acerto. Com efeito, deduz-se dos factos provados, sem qualquer dúvida, que não se verifica na situação ajuizada nenhuma das hipóteses previstas no citado art.º 85º, coisa que o réu, aliás, já não questiona na sua revista. Por outro lado, a circunstância de se ter mantido na fracção por mais de um ano sem oposição da locadora é juridicamente irrelevante para o efeito por ele visado – renovação do contrato, conforme o art.º 1056º do CC – pela razão simples, mas decisiva, de que este preceito, por definição, não pode aplicar-se quando a caducidade radica na morte do locatário, como é o caso; nessa situação a renovação encontra-se excluída à partida, consoante o entendimento unânime, quer da doutrina, quer da jurisprudência, pois não é o locatário, mas sim um terceiro, que se mantém no gozo da coisa (neste sentido, cfr. Arrendamento Urbano - O Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3ª edição, 202, de Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge).

A isto acresce que, conforme resulta dos factos provados e) e f), a recorrida manifestou clara e inequívoca oposição à manutenção do recorrente no gozo da casa que fora objecto do arrendamento bem dentro do ano subsequente ao facto determinante da caducidade (a morte da arrendatária CC, verificada em 13.9.99), sendo certo que a oposição teve lugar por meio idóneo (as cartas de 22/10 e 25/11/99). A acção de despejo, contrariamente ao que o réu sustenta, não é o único processo juridicamente operante de o locador impedir a renovação do arrendamento caducado: nada impede que a oposição do senhorio se manifeste por qualquer meio, nos termos gerais do art.º 217º do CC ( neste exacto sentido, Pereira Coelho Arrendamento. Direito Substantivo e Processual, lições ao 5º ano jurídico, Coimbra, 1988, pág. 323, nota 1).

De qualquer modo, independentemente do exposto, os factos coligidos evidenciam com clareza que o recorrente, caducado o contrato, não adquiriu o direito a novo arrendamento, nem se tornou titular da preferência na venda do imóvel, por isso que, ao contrário do que sustenta, não provou que vivesse em economia comum com a falecida arrendatária há mais de cinco anos, como exige o art.º 90º, nº 1, a), do RAU. Não estando incluído no elenco das pessoas relativamente às quais a lei estabelece no art.º 76º, nº 2, do RAU, uma presunção inelidível de vivência em economia comum com o arrendatário, cabia-lhe fazer a prova desse facto, de harmonia com a regra geral do art.º 342º, nº 1, do CC, por se tratar, justamente, de facto constitutivo do seu alegado direito a novo arrendamento. Só que essa demonstração não foi efectuada, pois, como observa Aragão Seia (Arrendamento Urbano, 7ª edição, pág. 546), “a economia comum pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar e moral, uma vivência em conjunto com uma especial affectio ou ligação entre as pessoas, convivência que não impõe a permanência no sentido físico, mas admite eventuais ausências sem a intenção de deixar a habitação, com sujeição a uma economia doméstica, contribuindo todos ou só alguns para os gastos comuns”.

Ora, é precisamente a comunhão de vida com este conteúdo e alcance que no caso sub judice não se provou: os factos referenciados nas alíneas o), p) e q) não são suficientemente expressivos e característicos para basear uma conclusão segura acerca da real existência de vivência em economia comum do réu com a falecida arrendatária CC no período legalmente exigido. Deste modo, sendo inequívoco que o direito a novo arrendamento não se constituiu nem alojou na esfera jurídica do réu, inequívoco é também que por maioria de razão o mesmo sucedeu com o invocado direito de preferência. Em primeiro lugar porque, a montante, a recusa do novo arrendamento seria sempre lícita e operante, nos termos que já se puseram em evidência. E depois porque a preferência, tal como a frustrada renovação do arrendamento, também depende, segundo a lei – art.º 97º, nº 2, e 76º, nº 1, a), do RAU – da demonstração da vida em comum durante certo lapso temporal entre o falecido arrendatário e a pessoa que ocupa a fracção.

Assim respondida – negativamente – a primeira questão, há que passar à segunda.

2) Quanto a ela decidiu-se no acórdão recorrido, em suma, que a norma do art.º 1045º do CC, relativa à indemnização devida ao senhorio pelo atraso na restituição da coisa locada, limita o seu cálculo pelo critério estabelecido neste preceito, afastando as regras gerais dos art.ºs 562º e seguintes. E assim, porque o valor dos prejuízos está de modo imperativo fixado na lei a forfait, nem o locador pode exigir uma indemnização mais elevada apenas com fundamento no incumprimento do dever de restituição que é imposto ao locatário findo o contrato, nem este pode alegar que o locador não auferiria o valor da renda estipulada. Este entendimento já foi seguido em diversos acórdãos deste Supremo Tribunal, designadamente no de 8.7.03, subscrito pelo relator do presente (Revª nº 1905/03-6ª). E não se vê razão para o abandonar, desde logo porque a ratio legis do art.º 1045º, como também se sublinha noutro aresto deste mesmo Tribunal (Ac. de 24.1.06 – Revª 3757/05-6ª), é a de que o contrato extinto continua a ser o referencial de equilíbrio entre as prestações da relação de liquidação; tendo resultado da auto regulação das partes, a renda representa, por norma, o justo valor  do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada.

Decidiu-se ainda, citando-se o Ac. da Rel. de Lisboa de 1.6.04, proferido no Pº 10331/02-7 – e neste ponto acompanhamos de igual modo o acórdão recorrido – que, “concebendo-se nesse dispositivo legal [art. 1045º] um caso de indemnização de natureza claramente contratual, o mesmo só poderá ter aplicação quando esteja em causa a falta de restituição da coisa locada, por quem no respectivo contrato, já findo, tinha a posição de locatário, a quem nesse mesmo contrato assumia a posição de locador”, e não quando se tratar de ocupante ilegítimo; na verdade, “estando assente no princípio do sinalagma e no equilíbrio das prestações convencionadas, este mesmo dispositivo legal assegura que a manutenção entre as partes de uma situação idêntica à convencionada, continue a proporcionar ao locador, enquanto o objecto do arrendamento lhe não for restituído,  aquilo que pelo contrato, já findo, lhe seria devido”; “e, pela mesma razão, está excluída a possibilidade da sua aplicação analógica, dada a inexistência de qualquer acordo celebrado com o ocupante ilegítimo”; consequentemente, “o ocupante ilegítimo incorre em responsabilidade extracontratual em caso de não entrega do locado ao senhorio, sendo a indemnização [por ele devida] medida pela diferença entre a situação patrimonial actual do senhorio e aquela que teria se tivesse podido celebrar novo arrendamento”.

Nas circunstâncias expostas, como no caso sub judice o réu não é, nem nunca foi  locatário da fracção em causa, a conclusão a extrair é a de que a situação ajuizada não se reconduz à previsão do art.º 1045º, nº1, não se encontrando a indemnização que deva ter que satisfazer limitada pelo critério estabelecido nesta norma.

Sucedeu que, reapreciando as provas produzidas acerca das respostas à base instrutória impugnadas na apelação do réu (conforme tinha sido determinado no anterior acórdão deste Supremo Tribunal) a Relação decidiu manter a resposta ao quesito 16º - que originou o facto relatado em v) – mas eliminou a resposta ao quesito 17º. Considerou que esta resposta – “correspondendo a um rendimento previsível de 250 mil escudos por mês que a autora receberia se tivesse vendido a fracção” -  era conclusiva, como conclusiva era a pergunta, e por isso eliminou-a, nos termos do art.º 646º, nº 4, do CPC. Vejamos.

Antes de mais, importa sublinhar que o Supremo Tribunal tem competência para sindicar o uso que a Relação faça da faculdade prevista naquela norma adjectiva. E isto porque, como se afirma no sumário do Ac. de 19.9.02 (Revª 2270/02 – 7ª), é questão de direito, integrada na competência do tribunal de revista, apreciar a legalidade ou ilegalidade com que se houve a Relação no exercício da sua competência, como julgadora em última instância da matéria de facto. O STJ deve fazer respeitar a decisão do julgador da matéria de facto, não permitindo que a Relação, em violação do citado art.º 646º, nº 4, a deturpe. Ora, desde logo, o que este preceito manda ter por não escritas são as respostas sobre questões de direito, e não propriamente as respostas conclusivas. É no mínimo duvidoso que a regra nele contida possa ser aplicada por analogia a esta situação, por não ser inteiramente líquido que procedam no caso omisso (factos conclusivos) as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (questão de direito).

Por outro lado, torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infracção desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05, subscrito pelos mesmos juízes deste), não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.

Isto posto, entende-se que o facto suprimido pela Relação não é conclusivo, tal como não o é o estabelecido em resposta ao quesito 16º.  Desde logo, ele não pode ser “lido” separadamente do facto que imediatamente o antecede -  o facto v), resultante, justamente, da resposta ao quesito 16º - do qual constitui, bem vistas as coisas, como que um desenvolvimento ou explicitação para o efeito que a parte visou com a respectiva alegação. Depois, afigura-se que também representa, ao cabo e ao resto, um espécie de facto-síntese de outros, no sentido, há pouco referido, de que tem pressuposto um ou mais juízos conclusivos sobre outros elementos de facto. Isso mesmo, aliás, está claramente evidenciado no relatório pericial que serviu de fundamento único à resposta dada pelo tribunal ao referido quesito. Nesse documento o perito afirma, para justificar o rendimento previsível de 300 contos mensais correspondente ao valor de venda de 50 mil contos atribuído à fracção (fls 226): “Considero que uma taxa de 6% é aceitável e frequentemente utilizada pelos peritos pelo que, utilizando a fórmula matemática abaixo indicada, se calcula a renda mensal”. E mais adiante, apurado o valor de 1500$00/m2 de área útil, acrescenta: “Este valor afigura-se-me como aceitável e normal face aos vários parâmetros caracterizadores, anteriormente referidos, do imóvel em causa”. Por fim, não restam dúvidas, quanto a nós, que a resposta em questão não encerra nenhum juízo sobre uma questão jurídica, nem a sua interpretação implica o recurso a qualquer regra de direito. Contém um facto concreto, material, e, portanto, deve ser recuperada  para o elenco da matéria de facto a considerar na decisão do litígio visto que, ao considerá-la não escrita, a Relação violou o disposto no art.º 646º, nº 4, do CPC. Alcançada esta conclusão, já se vê que a decisão da 2ª instância relativa à indemnização a que a recorrida tem direito não pode subsistir, devendo antes prevalecer a adoptada na sentença, por isso que, tomando em consideração, como se impunha, o facto estabelecido em resposta ao quesito 17º, procedeu ao cálculo obedecendo às directrizes fixadas pelos art.ºs 562º a 564º e 566º, nº 2, do CC.

Resta apenas dizer, para terminar, que a pretensão levada pelo réu à 8ª conclusão do seu recurso é inatendível uma vez que no acórdão recorrido está claramente afirmado que “…ainda mesmo que a fracção carecesse, efectivamente, de obras e que o custo provável das mesmas fosse de € 100.000, tal despesa já foi considerada e descontada pelo tribunal a quo na fixação do valor venal atribuído ao andar”. Estando em causa, neste ponto, pura e simples matéria de facto, alheia à competência do tribunal de revista, torna-se evidente que este STJ está impedido de modificar a decisão recorrida, quanto ao valor do imóvel, no sentido preconizado pelo recorrente, visto que o erro na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista (art.º 722º, nº 2, do CPC).

III.  Decisão

Nos termos expostos acorda-se em negar a revista do réu e em conceder a revista da autora. Consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, mas só na parte em que condenou o réu a pagar à autora, a título de indemnização pela não restituição atempada da fracção autónoma objecto  do arrendamento caducado, uma quantia que totalizava até à data da propositura da acção 1.010.504$00 (5.040,20 €), acrescida de 45.932$00 (229,11 €) por cada mês decorrido desde então até à entrega efectiva da fracção, determinando-se, agora, que fique a prevalecer o decidido na sentença; no mais, confirma-se a decisão da 2ª instância.

Custas de ambas as revistas pelo réu.

 

Lisboa, 13 de Novembro de 2007

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira