Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
080884
Nº Convencional: JSTJ00012002
Relator: MENERES PIMENTEL
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMPRESA INTERVENCIONADA
Nº do Documento: SJ199110010808841
Data do Acordão: 10/01/1991
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1013/89
Data: 12/20/1990
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV.
DIR JUDIC - ORG COMP TRIB. DIR ADM.
Legislação Nacional: DL 660/74 DE 1974/11/25 ARTIGO 9.
DL 422/76 DE 1976/05/29 ARTIGO 10 N2.
DL 48051 DE 1967/11/21 ARTIGO 9.
CONST89 ARTIGO 22 ARTIGO 87 N2.
CADM40 ARTIGO 815 PAR1 B.
Sumário : I - A intervenção do Estado, nos termos do artigo 1 do decreto-lei n. 660/74 de 25 de Novembro, mediante Resolução do Conselho de Ministros, numa empresa privada (sociedade comercial), suspendendo os corpos sociais em exercicio e nomeando uma comissão administrativa para a respectiva gestão, e um acto de gestão publica, porquanto o Estado, como resulta do decreto-lei n. 422/76 de 29 de Maio, revogatorio daquele primeiro diploma ao intervir na gestão da empresa, actua no exercicio do seu poder autoritario.
II - De harmonia com os citados diplomas, a responsabilidade extracontratual do Estado e dos elementos da comissão administrativa vem ai definida em termos especiais, afastando-se do regime juridico contido no decreto-lei n. 48051 de 21 de Novembro de 1967.
III - Actos de gestão publica são todos aqueles em que se reflecte o poder de soberania proprio da pessoa colectiva publica e em cujo regime transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, caracteristico do direito publico.
IV - Ainda que a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas esteja prevista no artigo 87 n. 2 da Constituição (revisão de 89), hoje não existe legislação geral sobre essa intervenção, pois a legislação anteriormente publicada foi, entretanto, revogada pelo artigo 1 do decreto-lei n. 90/81 de 18 de Abril.
V - Sendo a intervenção do Estado na gestão da empresa privada um acto de gestão publica, a competencia para os pedidos de indemnização dirigidos a Administração por actos decorrentes dessa intervenção cabe ao contencioso administrativo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (STJ):
I - Relatorio
1. Sociedade Industrial de Construções e Turismo, J.
Pimenta, S.A., propos contra o Estado, A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L e M uma acção com esta pretensão:
"dever julgar-se procedente a presente acção e o reu
Estado condenado a pagar a autora uma indemnização a liquidar em execução de sentença e calculada nos termos do artigo 50 desta petição inicial - mas nunca inferior a 400001 escudo, devendo os reus gestores, solidariamente ser condenados a pagar a autora a parte dessa indemnização correspondente aos danos causados por factos dolosos, designadamente os referidos no artigo 48 desta petição e que estimam em nunca menos de
500000 escudos".
2 . Para fundamentar esta pretensão, a autora articulou ter sido sujeita a intervenção do Estado " ao abrigo do Decreto-Lei n. 660/74, de 25 de Novembro, atraves da resolução do Conselho de Ministros, de 4 de Março de
1975, publicada no Diario da Republica, I serie, n. 71, de 25 de Março de 1975".
Acrescentou, porem, a substituição dos seus corpos sociais por gestores do Estado (os outros reus) que integravam, ao longo de mais de 2 anos, as sucessivas comissoes administrativas. Tambem disse que a intervenção se manteve ate 4 de Maio de 1979, pois foi nesta data que a empresa, atraves da resolução 133-A/79
(D.G., I serie, da data citada) foi devolvida aos seus legitimos donos.
3 . No plano mais aproximado dos factos, alegou o seguinte: a) O que foi restituido a autora tinha valor muito inferior ao que existia a data da intervenção; b) Esta ultima "veio a saldar-se por prejuizos muito elevados da ordem de milhares de contos"; c) A data da desintervenção a autora "estava sem quadros a todos os niveis, as relações humanas e laborais estavam deterioradas, sendo profunda a deterioração economica e financeira"; d) O ultimo balanço aprovado antes da intervenção revela possuir a autora "um patrimonio estavel e valioso"; e) Atento o estado em que foi deixada a sua contabilidade, aquando da desintervenção, impede, ainda hoje, o apuramento rigoroso da sua situação patrimonial, embora tudo aponte para um passivo superior ao activo "em termos preocupantes, o que permite concluir que a gestão da autora foi feita de uma forma extremamente ruinosa para esta"; f) os gestores consideraram erradamente a autora como pertencente a um grupo de empresas sobretudo para os efeitos de receitas, "mas individualmente quanto a despesas e encargos"; g) os gestores nao pagaram impostos, encargos sociais e juros de emprestimos contraidos durante o periodo da intervenção; h) os mesmos utilizaram "rendas" da autora para outras do "impropriamente chamado grupo J. Pimenta"; i) durante o mesmo periodo, a autora "deixou de receber o lucro anual de 600000 escudos proveniente da diferença entre as rendas que cobrava e a que devia pagar aos titulares de contratos de garantia de rendimento"; j) "a autora perdeu alguns contratos de garantia de rendimentos", merce da actuação dos gestores; l) houve "falta de cumprimento de contratos validos e eficazes", bem como "falta de cobrança atempada de rendas"; m) dada a forma caotica como os gestores administravam a empresa, aqueles foram pedindo a exoneração e sucessivamente substituidos, o que provocou descreditos para a autora com o consequente abandono dos tecnicos qualificadas existentes.
4 . Com excepção dos demandados H e D (este por a autora ter desistido do pedido contra ele formulado), todos contestaram por excepção (ineptidão da petição por ser ininteligivel a causa pedida, incompetencia em razão da materia e prescrição) e por impugnação. A autora replicou, procurando caracterizar melhor, quanto a factos, o que ficou referido como consta da petição e concluiu assim: "condenando-se os reus solidariamente a pagar a autora a indemnização por danos emergentes, lucros cessantes num montante de 93685 contos, bem assim em lucros futuros provisorios, a liquidar em execuçao de sentença". Os reus triplicaram.
5 . O Excelentissimo Juiz, no saneador, absolveu os reus da instancia, julgando o tribunal incompetente em razão da materia e inepta a petição inicial (foi esta a ordem seguida). A autora agravou e a Relação revogou o citado despacho, decidindo ser competente o tribunal comum e apta a petição.
6 . So o Estado agravou, tendo concluido nestes exactos termos: a) "No dominio das empresas intervencionadas os actos de gestão a luz dos poderes legais e estatutarios de administração de empresa integram actos de gestão privada da propria empresa"; b) "Sendo a responsabilidade do Estado a que advem do n. 2 do artigo 10 do Decreto-Lei n. 422/76 que corporiza um regime especial de responsabilidade extracontratual pelos actos praticados pelos seus representantes (gestores) sem que aquele se haja despojado do jus imperie"; c) "para cujo conhecimento o foro comum e materialmente incompetente"; d) "reduzindo-se a sua competencia a materia atinente ao pedido fundado em actuação dolosa dos membros da comissão administrativa nomeados pelo Estado"; e) "sendo de todo o modo, inepta a petição inicial e nulo o processado por carencia ou ininteligibilidade da causa de pedir"; f) "e saindo violados os artigos 494, 105, 288, 493 e
494, todos do Codigo de Processo Civil (CPC).
A autora respondeu a alegação do Ministerio Publico.
II - Fundamentos:
1 . No despacho saneador, o juiz deve, em primeiro lugar, conhecer das excepções dilatorias , segundo a ordem por que são enumeradas no artigo 288 do Codigo de Processo Civil. Isto, para alem de resultar do proprio texto legal, e abonado por Antunes Varela, J. Miguel
Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2 edição, pag. 382) e pelo Supremo Tribunal de Justiça
(Acordão de 4 de Outubro de 1984, BMJ, n340, pag. 321).
Comecemos, portanto, pela excepção de incompetencia absoluta do tribunal (infracçao das regras de competencia em razão da materia), relativamente ao pedido formulado contra o Estado. Ora, a pretensão formulada contra este resulta ou e baseada na intervenção na gestão da autora, ao abrigo do Decreto-Lei n. 660/74, de 25 de Novembro. Por se ter alegado, na resolução do Conselho de Ministros, a verificaçao da situação descrita no artigo 1 do citado diploma, deliberou-se "suspender os corpos sociais em exercicio" na empresa e nomear uma comissão administrativa para a respectiva gestão.
2 . Disfruta o artigo 9 do Decreto-Lei n. 660/74: "os administradores por parte do Estado ou outros representantes do governo nomeados nos termos do presente Decreto-Lei (...) so serão responsaveis perante o governo, excepto nos casos em que haja dolo".
Assim, nada se dispunha, em especial, quanto a responsabilidade civil do estado perante a empresa intervencionada e quanto aos actos dos gestores nomeados.
Todavia, o Decreto-Lei n. 422/76, de 29 de Maio, ao revogar o Decreto-Lei 660/74, mantendo, porem, a possibilidade de intervenção nas empresas privadas, veio dispor o seguinte (artigo 10, n. 2): "os representantes do Estado nomeados nos termos do presente decreto-lei e dos Decretos-Leis ns. 40833, de
29 de Outubro de 1956, 44722, de 24 de Fevereiro (sic),
660/74, de 25 de Novembro, e 597/55, de 28 de Outubro, so serão responsaveis perante o Estado, excepto nos casos em que haja dolo; a responsabilidade do Estado emergente de actos dos seus representantes sera, nos termos gerais, a dos comitentes pelos actos dos seus comitidos".
Mas esta segunda parte do preceito "não significa que, ao intervir na gestão de uma empresa atraves da actuação dos seus representantes (gestores), o Estado se haja despido do poder autoritario que confere aos seus actos a natureza de gestão publica: e antes no uso desse mesmo poder que o Estado se sobrepõe a administração social da propria empresa, impondo-lhe uma orientação geralmente em dissonancia com a desta"
(Acordão do STJ de 18 de Fevereiro de 1982, BMJ, 311, pag. 345).
3 . Embora o regime geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado no dominio dos actos de gestão publica seja o regulado no Decreto-Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967, a verdade e que, logo no seu artigo 1, ficou ressalvado o que pudesse ser estabelecido em leis especiais. Ora, o Decreto-Lei n.
422/76, de 29 de Maio, constitui exactamente uma lei especial relativamente ao diploma de 1967 e, por assim ser, Antunes Varela (das Obrigações em Geral, 6 edição, vol. I, nota 3. pag. 616) chama a atenção para o primeiro ao referir-se a responsabilidade do Estado nas chamadas empresas intervencionadas. Assim, o citado artigo 10, n. 2, ao remeter necessariamente para o artigo 500 do Codigo Civil (CC), altera o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que respeita a culpa exigida pelo artigo 2 do Decreto-Lei n. 48051, ja que manda aplicar o regime da responsabilidade objectiva. Do mesmo passo, tambem alarga a responsabilidade civil extracontratual do
Estado aos actos dos seus representantes. E que os membros das comissões administrativas mencionadas nos diplomas de 1974 e 1976 e nomeados para a gestão das empresas intervencionadas tem a qualidade de representantes do Estado (Acordão do STJ, de 6 de Abril de 1983, BMJ, 326, pag. 442). Isto mesmo e o que atras se disse e confirmado por Artur Mauricio (Revista do Ministerio Publico, ano II, vol. 5, pag. 85) em termos muito incisivos: "... sem contestar o poder de representação das empresas intervencionadas por parte dos administradores, gestores ou membros das comissões administrativas nomeados pelo processo, inscrevendo-se na esfera juridica daqueles os actos por estes praticados, certo e que a sua designaçao em nome do
Estado e a sua estrita dependencia as directivas do Executivo justificam um regime de responsabilidade que faz impender principalmente sobre o Estado o risco da actuação dos seus representantes".
4 . Conforme ensinamento de Antunes Varela (Revista Legislação e Jurisprudencia (RLJ), ano 124. pag 59) actividades de gestão publica são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania proprio da pessoa colectiva publica e em cujo regime transporia, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, caracteristico do direito publico (no mesmo sentido, o acordão do Tribunal de conflitos 5.11.1981, BMJ, 311, pag. 195, relatado pelo ilustre Conselheiro Rui Pestana).
No caso concreto, esta caracterização resulta bem clara do preambulo do Decreto-Lei n. 422/76, de 29 de Maio:
"a intervenção do Estado em empresas privadas tem de constituir um instrumento adequado a dinamica da socialização em curso (...)". E mesmo do curto preambulo do Decreto-Lei n. 660/74, ao remeter para a
"alinea c) do ponto 4" do Programa do Governo Provisorio do seguinte teor:
"... a adopção de novas providencias de intervenção do
Estado nos sectores basicos da vida economica, designadamente junto de actividades de interesse nacional, sem menosprezo dos legitimos interesses da iniciativa privada" (Decreto-Lei n. 203/74, de 15 de
Maio).
Actualmente, a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas esta subordinada ao novo texto do artigo 87, n. 2, da Constituição (revisão de 1989): o
Estado so pode intervir na gestão de empresas privadas a titulo transitorio, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante previa decisão judicial.
Por outro lado, deve notar-se que, salvo as situações de legitimidade da intervenção do Estado nas empresas privadas ao abrigo da legislação anterior a 25 de Abril de 1974 e situações especificas posteriores, hoje não existe legislação geral sobre intervenção nas empresas privadas, pois a que foi, entretanto, publicada foi revogada pelo artigo 1 do Decreto-Lei n. 90/81, de 28 de Abril (Nuno Sa Gomes, Nacionalizações e Privatizações, Lisboa, 1988, pag. 112).
5 . Sera ainda de interesse referir que o artigo 22 da Constituição, interpretado nos termos em que o faz J.J.
Gomes Canotilho (RLJ, 124, pag. 85) significa que o
Estado responde de forma directa (...) pela lesão dos direitos, liberdades e garantias cometidas pelos titulares dos seus orgãos, funcionarios ou agentes.
Este direito e directamente aplicavel, nos termos do artigo 18, n. 1, do texto constitucional. O Governo, orgão do Estado, intervindo na gestão privada (empresas particulares), deve responder directamente pelos danos decorrentes dessa intervenção, mesmo que ela seja licita (aplicação do artigo 9 do diploma de 1967)
Contudo, o que ora interessa concluir e que a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas e sempre um acto de gestão publica, pelo que, nos termos do artigo 815, paragrafo 1. alinea b), do Codigo Administrativo, compreendem-se no ambito do contencioso administrativo os pedidos de indemnização feitos a Administração relativamente aos danos decorrentes daquela intervenção.
Como o tribunal comum e, assim, incompetente em razão da materia, não interessa (esta prejudicado) conhecer da segunda questão posta nas conclusões (nulidade de todo o processo).
III - Decisão:
Com os fundamentos expostos, revoga-se o acordão que fica substituido por outro a julgar procedente a excepção da incompetencia do tribunal comum em razão da materia, absolvendo-se o Estado da instancia. Custas pela agravada.
1 de Outubro de 1991
Meneres Pimentel;
Brochado Brandão;
Cura Mariano.