I. RELATÓRIO
1. Por Acórdão proferido nos autos, confirmado por acórdão do STJ de 5 de Novembro de 2018, foi AA condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de dez anos de prisão.
Tal decisão transitou em julgado.
Conclusões do recurso do condenado
2. O condenado veio agora apresentar pedido de recurso extraordinário de revisão do referido acórdão, em peça a seguir transcrita:
1º
«É muito duvidosa a condenação do requerente, salvaguardando o devido respeito, foi por mera convicção que veio a ser sentenciado e na pesadíssima pena de 10 anos de prisão, a qual se encontra transitada em julgado como resulta dos autos.
2º
Mas evidentemente que não é isso que se vai discutir em singelo, pese embora se viva numa sociedade democrática e as decisões judiciais não estejam isentas de forma alguma de crítica, muito menos de forma divina.
3º
O mote e o escopo do vertente recurso encontra-se circunscrito a 2 factores, aliás, elementares:
- posteriormente à decisão de 1ª instância foram juntos 2 registos áudios contendo actos processuais praticados na República Federativa do ..., os quais nunca até hoje foram valorados pelas instâncias;
- foi pelo arguido recebida correspondência provinda também desse mesmo País que traduzia uma afirmação congruente no que tange a desconhecer o mesmo que provinham estupefacientes com os bens móveis dali advenientes.
4º
E acontece que o arguido pugnou para que ambos esses meios probatórios fossem considerados: fossem visualizados os actos e registos processuais e fosse analisado o teor da carta provinda do ... por pessoa identificada nos autos.
5.º
Entendeu o Tribunal da Relação que seria apenas em sede de recurso de revisão que a questão deveria ser eventualmente colocada; não só não foram examinados tais registos como não foi examinado o teor da correspondência que expressamente refere desconhecer o arguido a trama em que foi involuntariamente envolvido.
6º
Isto porque bem verificada a situação, por um lado e por via da rogatória é expressamente reconhecido pelo representante da empresa FF que provieram outros móveis diferentes dos móveis emergentes dessa mesma empresa, tendo essa situação sido pedida pelo interveniente BB, que pagou separadamente tais móveis diversos que foram incluídos no transporte.
7º
E por outro lado porque é o próprio BB que endereça correspondência, de teor gravíssimo, convenhamos, a declarar que o arguido desconhecia a ilicitude contida em tais transportes.
8º
Assim, existem esses 2 meios de prova atendíveis que poderão determinar a finalização da gravíssima injustiça da condenação ocorrida.
9º
O Ac. STJ de 6/7/2017 (Rel. Cons. Arménio Sottomayor) diz, “ipsis verbis “Se e na medida em que se o documento superveniente à produção da prova tiver potencialidade para pôr em causa a justiça da condenação, sempre fica em aberto a possibilidade do recurso de revisão” (folha nº8 do aresto).
10º
Isto porque a realidade é que em termos da normal tramitação, ordinária, nem os registos nem o documento foram examinados.
11º
É, pois, por isso, e estribando-se na citação feita anteriormente, do aresto tirado pelo STJ nestes mesmos autos, conferindo a eventualidade do recurso de revisão que se lança mão do mesmo, na expectativa forte de poder inflectir uma decisão profundamente injusta, injustamente gritante.
12º
Necessariamente o que vale quer para os registos quer para o exame do dito documento.
13º
Acresce, sem com isto se querer beliscar quem quer que seja, que é do domínio público que pessoas com responsabilidades na UNCTE se encontram acusadas por crime de matriz semelhante, de tráfico de entorpecentes, assim resultando volta e meia através da comunicação social.
14º
Portanto, impõe-se, salvo o devido respeito, analisar os registos áudios que só chegaram aos autos em momento muito posterior à decisão da 1ª instância, sendo até remetidos quando acolhidos no processo de acompanhamento na 1ª instância, ao Tribunal da Relação de Lisboa, onde nem sequer foram examinados ou visualizados.
15º
E o mesmo se diz do documento provindo do ..., enjeitado quer pelo TRL quer pelo STJ – não fora, como foi – a referência à porta aberta ao recurso de revisão.
16º
Perante tais circunstâncias, requer-se seja declarada reaberta a audiência, tendo em vista precisamente a visualização de tais registos respeitantes às rogatórias junto do ... e a leitura e análise da carta enviada pelo dito cujo BB, onde se lamenta de ter infligido tal dramática situação ao arguido, à revelia e desconhecimento do mesmo.
17º
E nesse segmento produzida que seja tal prova, com exercício do contraditório, requer-se seja deferida a informação a prestar perante o STJ nos termos do artº454º, seguindo o processo os ulteriores termos do processo.
18º
Nesse particular reserva-se a Defesa o direito de convocar pela produção de tal prova os motivos e argumentos que iludem a pretensa realidade considerada e demonstrar-se finalmente que o arguido desconhecia totalmente o estupefaciente que provinha juntamente com os móveis, tudo através do necessário debate para o efeito.
CONCLUSÕES:
1– Com a audição e visualização de ambos os actos processuais correspondentes às rogatórias remetidas ao ... e nunca visualizadas nem valoradas pretende-se provar que provieram vários bens móveis externos à empresa encarregada da venda, sendo que assim aconteceu por indicação de alguém apelidado de BB, que procedeu ao pagamento diverso pela vinda de tais móveis que continham cocaína.
2– Leitura e análise do teor da carta enviada por esse mesmo BB, nunca lida nem valorada, que simplesmente reconhece a realidade do desconhecimento e da trama em que o arguido se viu envolvido de forma involuntária.
3 – Tais provas irão abalar os factos considerados erraticamente pelas instâncias e irão repor a realidade e a verdade, ilibando um homem inocente e cravado por uma profunda injustiça.
PROVA:
1– Visualização e audição das 2 rogatórias contendo o registo visual de ambas as diligências ocorridas no ...;
2– Leitura e análise do documento junto aos autos no TRL, junção indeferida e indeferimento confirmado pelo STJ – que porém, como se disse, anotou a possibilidade de interposição de recurso de revisão se forem consideradas as circunstâncias aqui elencadas.
Pede Deferimento
Figurando a decisão proferida, assim como as demais das instâncias e encontrando-se o processo junto desse Tribunal não se vislumbra necessidade de juntar a certidão a que alude o artº451º-2 do CPP embora se o Tribunal o entender assim acontecerá – o mesmo se dizendo se for expressamente necessário ir examinar os autos e indicar precisamente quer os 2 registos que se visam, quer a carta recebida juntamente com o respectivo envelope, que se pretendeu juntar junto do TRL.
O ADVOGADO:»
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Informação do art. 454.º do CPP
3. Posteriormente foi prestada, em 9/4/2019, pela Mma Juiza de Direito, nos termos do art. 454.º do CPP, informação nos termos que segue:
«Informação sobre o mérito do pedido
Apreciando:
Por Acórdão proferido nos autos, confirmado por acórdão do STJ de 5 de Novembro de 2018, foi o AA condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, 24.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de dez anos de prisão.
Tal decisão transitou em julgado.
Veio o mesmo requerer a revisão da referida decisão condenatória nos termos do artigo 449.º, n.º 1, alínea d), do Código Processo Penal.
Alega, em síntese, o seguinte:
-pretende a revisão do acórdão na parte que o condenou pela prática do aludido ilícito;
-alega para o efeito factos que já aduzira em sua defesa nos autos.
-mais indicou, em defesa do alegado, posteriormente à decisão de 1.ª instância foram juntos 2 registos áudios contendo actos processuais praticados na República Federativa do ..., os quais nunca até hoje foram valorados pelas instâncias; foi pelo arguido recebida correspondência provinda também desse mesmo País que traduzia uma afirmação congruente no que tange a desconhecer o mesmo que provinham estupefacientes com os bens móveis dali advenientes.
Conclui, pois, pela pertinência de revisão da sentença proferida, com pretensão de que se revogue a sua condenação e seja proferida decisão absolvendo-o da prática dos factos pelos quais foi condenado.
Decidindo:
Dispõe a alínea do n.º 1 do artigo 449.º do Código de Processo Penal que “ a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.
Não foram indicadas, nos termos do artigo 453.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quaisquer testemunhas a cuja inquirição importasse proceder, estando em causa a produção de prova documental.
Examinada os dois registos áudios contendo actos processuais praticados na República Federativa do ..., e a correspondência recebida pelo arguido, e o valor probatório de tais depoimentos testemunhais, conclui-se que naturalmente melhor será apreciável em conjugação com a demais prova produzida nos autos, nomeadamente de natureza testemunhal, e em particular em sede de audiência de julgamento, aí com plena eficácia dos princípios da imediação e da contraditoriedade.
Porém, atento o teor das prova ora produzida, conjugada com outros elementos constantes dos autos, poderão estar verificados os requisitos da al. d) do n.º do artigo 449.º do Código de Processo Penal, na medida em que, depois do trânsito em julgado da sentença que se pretende revista, novos elementos de prova terão surgido que, conjugados com a demais prova dos autos, poderão suscitar sérias dúvidas sobre a justiça da condenação criminal do arguido.
Decisão:
Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, afigura-se-nos dever merecer provimento o pedido de revisão formulado, o que se deixa consignado nos termos da parte final do artigo 454.º do Código de Processo Penal.
Vossas Exas, contudo, apreciando e decidindo, melhor farão justiça.
Cumpridas que forem as formalidades legais, remetam-se os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
*
Em caso de deferimento da pretensão do arguido requerente, desde já me declaro impedida para participar no novo julgamento que venha a decorrer ao abrigo do artigo 457.º/1 do Cód. Processo Penal - nos termos do disposto no art. 40.º/d) do Cód. Processo Penal.»
Parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal
4. Por seu turno, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, nos termos do n.º 1 do art. 455.º do CPP, emitiu, em 30/4/2019, parecer a seguir transcrito:
«1.O arguido AA vem requerer, ao abrigo da alínea d) do art. 449º do CPP, recurso extraordinário de revisão da condenação sofrida no âmbito do processo supra referenciado, tendo sido condenado na pena de 10 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, pp pelos arts. 21º nº1 e 24º-c) do DL 15/93 de 22.01, com referência à tabela I-B Anexa - acórdão de 14.05.2014 proferido pela então 8ª Vara Criminal de Lisboa, condenação confirmado por decisão da Relação de Lisboa e pelo acórdão de 18.10.2018 do STJ, transitado em julgado.
2.O arguido pretende a revisão da referida decisão condenatória, alegando em síntese que :
- “posteriormente à decisão de 1ª instância foram juntos 2 registos áudios contendo actos processuais praticados na República Federativa do ..., os quais nunca até hoje foram valorados pelas Instâncias”, e que constam a fls. 1525, 1590, 1595 e 1602 do vol. 7
- “foi pelo arguido recebida correspondência provinda também desse mesmo País que traduzia uma afirmação congruente no que tange a desconhecer o mesmo que provinham estupefacientes com os bens móveis dali advenientes”- juntas a fls. 1703 e 1704 do vol . 7.
2.1. Alega o recorrente que a documentação em causa, cartas rogatórias cumpridas no ..., foram por si juntos aos autos após ter sido proferido o acórdão em sede de tribunal de 1ª instância, tendo requerido a sua apreciação pelas instâncias de recurso, entendendo o TRL que apenas em sede de revisão de sentença a questão poderia ser colocada.
Relativamente à carta recebida, junta a fls. 1703/1704 do vol 7, alegou o mesmo junto do TRL, na audiência de 10.11.2016, “que tal documento só agora é junto apesar de recebido em 23.06.2015, porque o arguido receia fundadamente pela sua vida e pela sua família, bastando atender ao conteúdo de tal documento-“ vd Ata de fls. 1708 ( 7º Vol.)
2.2. Conclui o recorrente que :
i) – Com a audição e visualização de ambos os actos processuais correspondentes às rogatórias remetidas ao ... e nunca visualizadas nem valoradas pretende-se provar que provieram vários bens móveis externos à empresa encarregada da venda, sendo que assim aconteceu por indicação de alguém apelidado de BB, que procedeu ao pagamento diverso pela vinda de tais móveis que continham cocaína.
ii) – Leitura e análise do teor da carta enviada por esse mesmo BB, nunca lida nem valorada, que simplesmente reconhece a realidade do desconhecimento e da trama em que o arguido se viu envolvido de forma involuntária.
iii) – Tais provas irão abalar os factos considerados erraticamente pelas instâncias e irão repor a realidade e a verdade, ilibando um homem inocente e cravado por uma profunda injustiça.
3.Nos termos do art. 454º do CPP, a Srª Juiz em 1ª instância prestou a informação sobre o mérito do pedido, junta a fls. , da qual destacamos:
“Examinados os dois registos áudios contendo actos processuais praticados na República Federativa do ..., e a correspondência recebida pelo arguido, e o valor probatório de tais depoimentos testemunhais, conclui-se que naturalmente melhor será apreciável em conjugação com a demais prova produzida nos autos, nomeadamente de natureza testemunhal, e em particular em sede de audiência de julgamento, aí com plena eficácia dos princípios da imediação e da contraditoriedade.
Porém, atento o teor da prova ora produzida, conjugada com outros elementos constantes dos autos, poderão estar verificados os requisitos da al. d) do n.º do artigo 449.º do Código de Processo Penal, na medida em que, depois do trânsito em julgado da sentença que se pretende revista, novos elementos de prova terão surgido que, conjugados com a demais prova dos autos, poderão suscitar sérias dúvidas sobre a justiça da condenação criminal do arguido.
Atento o exposto, e à luz das normas legais citadas, afigura-se-nos dever merecer provimento o pedido de revisão formulado (…)”
4. Conceito de “novos factos ou meios de prova”
“ O STJ tem vindo a decidir que factos ou meios de prova novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderam ser apresentados antes deste, sendo insuficiente que os factos sejam desconhecidos do tribunal, devendo exigir-se que tal situação se verifique, paralelamente, em relação ao recorrente.
“ Sobre o conceito de «factos novos» ou «novos elementos de prova», alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal vem admitindo a revisão quando, sendo (ou devendo ser) o facto ou meio de prova conhecido do recorrente no momento do seu julgamento, ele justifique suficientemente a sua não apresentação, explicando por que não pôde ou entendeu não dever apresenta-los nessa altura.
O art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP exige ainda que os novos factos e/ou os novos meios de prova, por si só, ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.”
(Vd designadamente ac. Do STJ de 24-01-2018 (proc. nº 3/12.2GAVVC-B.S1 – 3ª Secção)
4.1.No caso dos presentes autos, os registos áudio recolhidos em sede de carta rogatória cumprida no ..., foram juntos ao processo em 30.04.2015 fls. 1506 do vol 7), já depois da prolação do acórdão em 1ª instância, datado de 14.05.2014.
Relativamente à carta endereçada ao arguido e junta a fls. 1703 do vol 7, a mesma foi recebida pelo arguido em 23.06.2015, igualmente após a data em que foi proferido o acórdão de 1ª instância., alegando este só ter junto a mesma aos autos em 10.11.2016 (estando então o processo no TRL), “porque o arguido receia fundadamente pela sua vida e pela sua família, bastando atender ao conteúdo de tal documento-“ vd Ata de fls. 1708 ( 7º Vol.)
Os meios de prova apresentados pelo arguido eram do desconhecimento do tribunal e do próprio arguido na data em que ocorreu o julgamento e em que foi proferida a condenação em tribunal de 1ª instância.
.4.1.1.Resta apreciar sobre se “os novos factos ou meios de prova, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação, como determina a línea d) do art. 449º do CPP.
Em sede de carta rogatória foram tomadas declarações a EE, representante legal da “FF”, as quais se encontram gravadas no cd de fls. 1525, sendo junta documentação; aos representantes legais da sociedade “GG”, sendo junta documentação -fls. 1565 a 1610; aos representantes legais da sociedade “HH”, sendo junta documentação- fls. 1632 a 1665, todas do volume 7.
Apesar de a carta junta a fls. 1073 não se encontrar assinada pelo aludido “BB/CC”, constando embora do remetente o nome de “DD” e endereço, atenta a demais prova ora junta constante do volume 7 dos autos, designadamente do depoimento da testemunha EE, representante legal da “FF”, constata-se que esta testemunha confirma o que vem alegado no ponto 6 da motivação do presente recurso: “é expressamente reconhecido pelo representante da empresa FF que provieram outros móveis diferentes dos móveis emergentes dessa mesma empresa, tendo essa situação sido pedida pelo interveniente BB, que pagou separadamente tais móveis diversos que foram incluídos no transporte.”.
A testemunha EE, refere “ter havido 3 peças de mobiliário que não saíram da sua empresa, eram de um artesão que não tinha firma constituída, e que constam dos dois últimos items da nota de venda, aparador e mesa rústica”, a qual se encontra junta a fls. 1579 do vol 7 dos presentes autos. Mais afirma que “da sua empresa apenas saíram os móveis do item 1 ao 7 da referida nota de venda, as peças foram embaladas na sua empresa, foi feito o pagamento em espécie, em reais”; houve troca de emails, foi com o II que apresentou um email comercial; O BB nunca trabalhou para a sua sociedade “FF” ; e que “o BB apareceu quando a gente trocou email, email que o II comunicou ; que “quando o II comunicou com o nosso email da loja, sempre aparecia o nome JJ como se fosse o titular desse email”.
A fls. 1580 do vol. 7 consta fotocópia de troca de emails de “JJ, (ecominasmoveisrusticos gmail.com) para LL da GG Lda, assunto: envio de móveis para Lisboa”.
Como se fundamenta no acórdão do STJ de 23.05.2012 (proc. 11795/97.7TDLSB-A.S1, 3ª S), “ a revisão extraordinária de sentença transitada só pode ser concedida em situações devidamente clausuladas, pelas quais se evidencie ou pelo menos se indicie com uma probabilidade muito séria a injustiça da condenação (…). Os novos factos ou meios de prova têm de suscitar graves dúvidas sobre a justiça da condenação. A lei não exige certezas acerca da injustiça da condenação, apenas dúvidas. Mas essas dúvidas têm de ser graves, de molde a pôr em causa, de forma séria, a justiça da condenação do arguido (…)”.
No caso dos autos, atentos os novos meios de prova surgidos, e tal como refere a Srª Juiz na informação prestada a fls. 80 dos autos, afigura-se igualmente que o depoimento integral prestado pela referida testemunha EE, conjugado com a demais documentação enviada pelas autoridades judiciais brasileiras e com os demais elementos probatórios constantes dos autos principais, que se encontram no tribunal de 1ª instância, justificam uma análise com maior detalhe e profundidade em sede de julgamento, sede em que operam os princípios da imediação e do contraditório por forma a ajuizar do conjunto dos factos/meios de prova recolhidos.
Assim, afigura-se que os novos factos/ meios de prova trazidos ao conhecimento do tribunal, combinados com os que foram apreciados no processo, são susceptíveis de gerar dúvidas sobre a justiça da condenação, dúvidas que podem considerar-se de sérias e, nessa medida, graves, sobre a justiça da condenação criminal do arguido, pelo que nos pronunciamos pelo deferimento da requerida revisão de sentença.»
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5. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Apreciando.
1. O recurso extraordinário de revisão de sentença transitada em julgado tem guarida constitucional no n.º 6 do artigo artigo 29.º (aplicação da lei criminal) da CRP, onde se consigna que «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições
que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.», e constitui o meio processual adequado que o legislador (arts. 449.º e ss. do CPP) concebeu para a reacção contra os casos de injustiça flagrante e erros judiciários manifestos e inadmissíveis.
Nesta figura sobressai o princípio da justiça material em detrimento da segurança e da força do direito e do caso julgado.
«O recurso extraordinário de revisão comporta, no entendimento generalizado da doutrina, duas fases: a fase do juízo rescindente e a fase do juízo rescisório. A primeira fase abrange a tramitação desde a apresentação do pedido até à decisão que concede ou denegue a revisão; a segunda fase — do juízo rescisório — só existe se a revisão for concedida e inicia‑se com a baixa do processo e termina com um novo julgamento (cf. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 3.º Vol., pág. 364 e Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 7.ª Ed., pág. 644).
O requerimento a pedir a revisão, contendo os fundamentos e as provas, é apresentado no tribunal que proferiu a decisão que deve ser revista e, se o fundamento for — como é o caso — a descoberta de novos factos ou meios de prova, o juiz procede às diligências que considera indispensáveis, mandando documentar as declarações prestadas. Dentro de oito dias após decurso do prazo de resposta dos restantes sujeitos processuais ou da realização das diligências, o juiz deve elaborar nos autos uma informação sobre o mérito do pedido, remetendo o processo ao STJ. Neste Tribunal, o processo vai com vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre o pedido e, depois, é concluso ao relator que deve elaborar o projecto de acórdão, que deve acompanhar o processo nos vistos aos juizes das secções criminais, sendo a decisão a autorizar ou a denegar a revisão tomada em conferência pelo plenário das secções criminais (artigos 451.º a 455.º do CPP).
(...)
O recurso de revisão é estruturado na lei processual penal em termos que não fazem dele uma nova instância, surgida no prolongamento da ou das anteriores. O núcleo essencial da ideia que preside à instituição do recurso de revisão, precipitada na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, reside na necessidade de apreciação de novos factos ou de novos meios de prova que não foram trazidos ao julgamento anterior.
Trata‑se aí de uma exigência de justiça que se sobrepõe ao valor de certeza do direito consubstanciado no caso julgado. Este é preterido em favor da verdade material, porque essa é condição para a obtenção de sentença que se funde na verdade material, e nessa medida seja justa. O julgamento anterior, em que se procurou, com escrúpulo e com o respeito das garantias de defesa do arguido, obter uma decisão na correspondência da verdade material disponível no momento em que se condenou o arguido, ganha autonomia relativamente ao processo de revisão para dele se separar. No novo processo não se procura a correcção de erros eventualmente cometidos no anterior e que culminou na decisão revidenda, porque para a correcção desses vícios terão bastado e servido as instâncias de recurso ordinário, se acaso tiverem sido necessárias. Isto é; os factos novos do ponto de vista processual e as novas provas, aquelas que não puderam ser apresentadas e apreciadas antes, na decisão que transitou em julgado, são o indício indispensável para a admissibilidade de um erro judiciário carecido de correcção. Por isso, se for autorizada a revisão com base em novos factos ou meios de prova, haverá lugar a novo julgamento (cf. artigo 460.º do CPP), tal como, nos casos em que for admitida a revisão de despacho que tiver posto ao processo, o Supremo Tribunal de Justiça declara sem efeito o despacho e ordena que o processo prossiga, obviamente que no tribunal a quo (artigo 465.º).» (Ac. TC 376/2000 DR II S, de 13 de Dezembro de 2000 e no BMJ 499, pág. 88 e ss)
2. No recurso de revisão, a jurisprudência tem incidido, principalmente, sobre a interpretação da expressão «novos factos ou meios de prova» constante da alínea d) do artigo 449.º CPP.
Havia duas correntes a propósito desta noção: para uns (Luís Osório), os factos ou elementos de prova deviam ser novos no sentido de desconhecidos por quem os devia apresentar em julgamento; para outros (Eduardo Correia), os factos ou elementos de prova deviam ser novos no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem desconhecidos ou ignorados pelo arguido no momento em que o julgamento teve lugar (cfr. anotação ao Ac. STJ de 20 de Maio de 1992— este aresto considerou lícita a revisão de sentença penal condenatória, por crime já amnistiado e cuja pena se cumpriu —, no BMJ 417, págs. 605 e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., 2000, págs. 388; cfr., também, Ac. STJ de 18 de Novembro de 2009, Proc. 3978/94.8JAPRT‑A.S1, 5.ª, Rel. Manuel Braz).
O STJ, que já professou o entendimento tradicional plasmado no ensino de Eduardo Correia, nem sempre tem trilhado o mesmo caminho:
--assim, para uns, «São novos apenas os factos que fossem ignorados ou não pudessem ser apresentados ao tempo do julgamento, quer pelo tribunal, quer pelas partes.» (Ac. STJ de 17 de Abril de 2008, Proc. 07P4840, Rel. Maia Costa);
--para outros, «não é necessário esse desconhecimento por parte do recorrente, bastando que os factos ou meios de prova não tenham sido tidos em conta, no julgamento que levara à condenação, para serem considerados novos. IV — Orientação esta que deverá ser perfilhada, mas com uma limitação: os factos ou meios de prova novos, conhecidos de quem cabia apresentá‑los, serão invocáveis em sede de recurso de revisão, desde que seja dada uma explicação suficiente, para a omissão, antes, da sua apresentação. Por outras palavras, o recorrente terá que justificar essa omissão, explicando porque é que não pôde, e, eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal.» (Ac. STJ de 17 de Dezembro de 2009, Proc. 330/04.2JAPTM‑B.S1, Rel. Souto de Moura).
Os novos factos [alínea d)] são os que à data do julgamento não fossem do conhecimento do arguido ou este não pudesse apresentá‑los (Ac. STJ de 29 de Abril de 2009, CJACSTJ, XVII, T. I, pág. 240).
3. Pela análise das decisões deste Supremo Tribunal, é possível surpreender as principais linhas de força nesta matéria.
• Assim, em primeiro lugar, o recurso extraordinário de revisão de sentença transitada em julgado é excepcional, com fundamentos taxativos enunciados no n.º 1 do art. 449.º do CPP e não pode ser concebido como sucedâneo de qualquer recurso ordinário ou destinado a sindicar o mérito da sentença;
• Em segundo lugar, a gravidade das dúvidas sobre a justiça da condenação, deve ser séria, qualificada (sobre a gravidade das dúvidas, cfr. Ac. STJ de 27/1/2016, Proc. 11/14.9T9SXL-A.S1, Rel. Raul Borges e Ac. STJ de 8/6/2016, Proc. 132/13.5GBPBL-A.S1, Rel. Manuel Augusto de Matos). A mera dúvida pode coexistir, e coexiste muitas vezes com a decisão transitada, por força dos valores da certeza e estabilidade;
• Os “novos factos ou meios de prova” [al. d) do n.º 1 do cit. normativo; trata-se da alínea mais analisada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal] constituem um conceito, cuja interpretação foi evoluindo ao longo do tempo: numa 1.ª fase, a jurisprudência encarava a novidade reportada apenas ao julgador (novo era o facto ou meio de prova desconhecido do julgador, embora pudesse ser, ou não, conhecido do arguido); numa 2.ª fase, e fazendo apelo nomeadamente ao princípio da lealdade processual, a jurisprudência passou a optar por uma interpretação mais restritiva do preceito passando a incluir também o arguido (novo é o facto ou meio de prova que o arguido desconhecia na altura do julgamento ou que, conhecendo, estava impedido ou impossibilitado de apresentar, justificação que deverá ser apresentada pelo recorrente); na jurisprudência recente, cfr., v.g., Ac. STJ de 8/6/2016, Proc. 132/13.5GBPBL-A.S1, Rel. Manuel Augusto de Matos e Ac. STJ 26/9/2018, Proc. 219/14.7PFMTS.S1, Rel. Raul Borges).
• A alteração posterior de depoimentos de intervenientes no julgamento (ofendidos, testemunhas, arguidos) não integra, em princípio, a noção de factos ou meios de prova novos.
O presente recurso tem como fundamento o disposto na cit. alínea d), que refere:
«Artigo 449.º
(Fundamentos e admissibilidade da revisão)
1 — A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
(………………………………………)
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
Como meios de prova estão em causa dois registos áudio contendo actos processuais praticados na Republica Federativa do ..., bem como correspondência recebida pelo arguido.
Tais meios de prova foram analisados pela Mma Juíza do tribunal a quo (cfr. a informação atrás transcrita), que se pronunciou no sentido do deferimento do pedido de revisão por entender que os mesmos «poderão suscitar sérias dúvidas sobre a justiça da condenação criminal do arguido».
Os meios de prova apresentados pelo arguido eram do desconhecimento do tribunal e do próprio arguido na data em que ocorreu o julgamento e em que foi proferida a condenação em tribunal de 1ª instância, como bem frisa a Ex.ma PGA no seu parecer, que, do mesmo modo, se pronunciou no sentido do deferimento.
Assim sendo, dado o desconhecimento de tais meios de prova pelo tribunal e pelo arguido, aquando do julgamento pelo tribunal a quo, e as graves dúvidas que os mesmos vieram lançar sobre a justiça da condenação do recorrente, defere-se o presente pedido.
III DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os Juízes desta 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revisão pedida pelo condenado AA, a fim de se proceder a novo julgamento onde aqueles novos meios de prova possam, também, ser apreciados.
No seguimento de tal autorização, determinam o reenvio do processo ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever que se encontrar mais próximo nos termos do art. 457.º, n.º 1 do CPP.
Sem custas.
Processei e revi (art. 94.º, n.º 2 CPP)
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Maio de 2019
Vinício Ribeiro (relator) *
Conceição Gomes
Santos Cabral