Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
78/22.6T8PNF-E.P1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
CASO JULGADO FORMAL
OFENSA DO CASO JULGADO
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO AO PROCESSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
QUESTÃO NOVA
SIMULAÇÃO PROCESSUAL
RETIFICAÇÃO
REQUERIMENTO
Data do Acordão: 10/21/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. A fixação da matéria de facto tem o seu momento legalmente consagrado, ou seja, nos termos plasmados nos números 3 e 4 do nº. 1 do art. 607º do CPC., o que ainda não ocorreu, tal como ressalta da fase processual em que os autos se encontram.

II. A invocação, aqui em concreto, da terminologia de «caso julgado formal implícito» é falaciosa e impropriamente utilizada.

III. Na situação vertente, não se formou nos autos qualquer despacho judicial irreversível dentro do processo, ou seja, não foi proferido qualquer despacho que possa vir a obstar a que se decida posteriormente em sentido diverso, já que, a matéria de facto não se encontra definitivamente fixada.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência na 6º. Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1-Relatório:

O autor, AA instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum contra a sociedade, Socolote - Imobiliária, S.A., BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ.

A ação foi contestada (ainda que não por todos os RR.) e, depois de diversas vicissitudes que os autos documentam, em 21 de março de 2024 o A. dirigiu aos autos um requerimento que qualificou de “incidente, de uso anormal do processo”, aludindo no mesmo a final:

«Conclui pedindo se adite aos temas de prova enunciados mais um que integre a factualidade que alegou relativa ao uso anormal do processo, por simulação processual e fraude à lei, conhecendo-se deste incidente em sede de douta sentença a proferir, e se julgue a contestação, do co/réu CC, juridicamente, inoperante, ordenando-se o seu desentranhamento e restituição ao apresentante».

Sobre este requerimento incidiu despacho nos termos seguintes:

“Requerimento do A. com a ref.ª ......53, com contraditório exercido no requerimento com a referência ......37:

Relega-se o conhecimento deste incidente para a sentença.

Aditando-se aos temas da prova os factos vertidos quer no requerimento do autor quer no requerimento do réu CC, excluídos da alegação conclusiva e/ou de direito”.

- O A. dirigiu aos autos novo requerimento, nos seguintes termos:

- Dá como reproduzido, por uma questão de celeridade e economia processual, o teor integral do seu requerimento junto aos autos, datado de 21 de Março de 2024, com a referência EXTERNA n. ........53.

- Dá do mesmo modo como reproduzido, o teor do douto despacho de V.Ex.ª, já transitado em julgado, datado de 10 de Abril de 2024, que se pronunciou quanto ao requerimento supra-referido e relegou o seu conhecimento para a sentença.

- Ora acontece, que por mero lapsus calami, do AUTOR e ora requerente, rectificável a todo o tempo, de que se penitencia, NÃO foi referido no requerimento supra indicado, em ABONO da sua tese, a "IMPUGNAÇÃO" efectuada pelo CO/RÉU, CONTESTANTE, Senhor, CC, na sua CONTESTAÇÃO, entregue em JUÍZO, em 28 de Fevereiro de 2022, com a referência EXTERNA n. ........23, máxime, nos artigos, .7 a 74, quanto ao requerimento de prova daquele AUTOR formulado na petição INICIAL.

- Isto para dizer, que o CO/RÉU, contestante, Senhor, CC, NÃO tinha qualquer LEGITIMIDADE quer SUBSTANCIAL quer PROCESSUAL, para defender interesses de TERCEIROS, in casu, da CO/RÉ, REVEL, "SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.", já que o requerimento probatório do AUTOR era dirigido para esta sociedade, CO/RÉ, o que denuncia CONLUIO, por interposição fictícia de pessoa jurídica colectiva.

- Ou seja, quanto à factualidade constante do requerimento PROBATÓRIO do AUTOR, apresentado em sede de PETIÇÃO INICIAL, a mesma tem de haver-se por boa e ADMITIDA POR ACORDO, face à REVELIA OPERANTE em relação à CO/RÉ, "SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.", NÃO CONTESTANTE, não podendo esta colocá-lo em causa quanto à sua amplitude e alcance sob pena de violação de caso julgado formal anterior.

- Deve, pois, ADITAR-SE, tal factualidade, à já indicada, por PROVADA, dado ser PERTINENTE e idónea para a boa decisão da causa, constar dos autos e ser de CONHECIMENTO OFICIOSO.

Termos em que requer a V. Ex.ª, se digne relevar o lapso cometido pelo AUTOR, no seu requerimento datado de 21 de Março de 2024 e em consequência, ADITAR ao mesmo, a factualidade ora indicada, dada a sua TEMPESTIVIDADE e PERTINÊNCIA para a boa decisão do INCIDENTE suscitado, dele passando a fazer PARTE INTEGRANTE, relegando-se o seu conhecimento para a douta sentença a proferir, como doutamente já decidido, dado se tratar de matéria já constante dos autos e ser de CONHECIMENTO OFICIOSO, tudo com as legais consequências.

Sobre este requerimento incidiu despacho, notificado a 18.06.2024, nos termos seguintes:

«Indefere-se o aqui requerido pelo autor, dado que não se trata de lapso, mas sim do efeito preclusivo relativamente a direitos processuais que não foram exercidos tempestivamente».

Inconformado recorreu o autor para o Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido acórdão, com o seguinte teor, a final:

«Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que mantêm o despacho recorrido».

Uma vez mais inconformado interpôs o autor recurso de revista para este STJ., concluindo as suas alegações:

A) A contestação apresentada em JUÍZO, em 28 de fevereiro de 2022, pelo CO/RÉU, Senhor, CC, máxime, quanto à IMPUGNAÇÂO ESPECIFICADA DOS FACTOS ALEGADOS NA PETIÇÂO INICIAL, SUPRARREFERIDOS, por NÂO serem de INTERESSE COMUM a TODOS OS CO/RÉUS, é, JURÍDICAMENTE, INOPERANTE e NÂO produz qualquer efeito, RELEVANTE, em relação aos demais CO/RÉUS/REVÉIS, máxime, em relação à CO/RÉ, REVEL, “SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.”.

B) Uma vez que a contestação do CO/RÉU, Senhor, CC, é INOPERANTE e NÂO APROVEITA, JURIDICAMENTE, aos demais CO/RÉUS/REVÉIS, máxime, à CO/RÉ/REVEL, “SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.”, dado NÂO haver INTERESSES COMUNS a defender, a factualidade alegada pelo AUTOR/APELANTE e ora RECORRENTE, na petição inicial, como suprarreferido, foi ADMITIDA POR ACORDO, com toda a AMPLITUDE PERMITIDA E EXIGIDA POR LEI, ou seja, IN TOTUM, tendo-se formado CASO JULGADO FORMAL, quanto a tal matéria, o que IMPEDE que se torne a discutir ou ponha em causa esta factualidade.

C) A CO/RÉ/REVEL, “SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.”, é uma sociedade ANÓNIMA, com personalidade jurídica própria atribuída por lei e INTERESSES PRÓPRIOS a defender, estando representada em JUÍZO, PASSIVAMENTE, pelo seu ADMINISTRADOR e CO/RÉU, Senhor, JJ, o qual foi devidamente CITADO e NADA disse em seu favor, pelo que se CONFORMOU com o resultado, pelo que SÓ tem de se queixar de si própria, sendo certo que DESINTERESSOU-SE, TOTALMENTE, do resultado da causa durante mais de 2 (DOIS) anos e SÓ reagiu, após a prolação do douto despacho de um de fevereiro de 2024, que ordenou a realização de várias diligências PROBATÓRIAS, requeridas pelo AUTOR/APELANTE, máxime, exame à escrita e extratos de contas bancárias.

D) A melhor INTERPRETAÇÂO do normativo constante do artigo 568 alínea A) do C.P. CIVIL, atenta a JURISPRUDÊNCIA e DOUTRINA apontada, é a sufragada pelo douto acórdão deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, suprarreferido, datado de 24 de janeiro de 2019, a qual EXIGE que o CO/RÉU, CONTESTANTE, SÓ possa IMPUGNAR FACTOS de INTERESSE COMUM A TODOS OS CO/RÉUS/REVÉIS, para estes dela poderem beneficiar, in casu, da contestação do CO/RÉU, contestante, Senhor, CC, o que NÂO se verifica.

E) Uma vez que o caso julgado formal anterior formado pela ADMISSÂO POR ACORDO, da factualidade constante da PETIÇÂO INICIAL, face à IMPUGNAÇÂO NÂO OPERANTE do CO/RÉU, CONTESTANTE, em relação aos CO/RÉUS/REVÉIS, máxime, à CO/RÉ/REVEL, “SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.”, IMPEDIA, FORMALMENTE, dada a sua manifesta, PREJUDICIALIDADE, o VENERANDO TRIBUNAL DA RELAÇAO DO PORTO, ora RECORRIDO, de julgar, máxime, de conhecer do OBJETO do RECURSO, com a AMPLITUDE dele constante, tal teve como sua consequência direta e necessária, a VIOLAÇÂO EXPRESSA DO DITO CASO JULGADO FORMAL ANTERIOR.

F) A interpretação LITERAL e EXTENSIVA, acolhida pelo douto ACÓRDÂO RECORRIDO, quanto ao dito normativo constante do artigo 568 alínea A) do C.P.CIVIL, de que a CONTESTAÇÂO DE UM OU ALGUM DOS CO/RÉUS, APROVEITA SEMPRE AOS RESTANTES quanto aos factos impugnados, INDEPENDENTEMENTE DE SEREM OU NÂO DE INTERESSE COMUM OU PRÓPRIOS DE OUTROS CO/RÉUS, NÂO é a referenciada pela melhor JURISPRUDÊNCIA e DOUTRINA, como supra indicado, pois é ainda necessário que os mesmos factos IMPUGNADOS, o sejam no INTERESSE COMUM DE TODOS OS RÉUS, sendo certo, que, in casu, por SÓ respeitarem à CO/RÉ/ REVEL,”SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A.”, o CO/RÉU, impugnante, Senhor, CC, NÂO tinha nem tem interesse DIRETO em contradizer, sendo certo, ainda, como referido, que a FACTUALIDADE IMPUGNADA o foi relativamente a matéria de FACTO SEM INTERESSE PARA A BOA DECISÂO DA CAUSA, atenta a prolação do douto ACÓRDÂO, datado de 9 de outubro de 2023, que REDUZIU os PEDIDOS formulados para os constantes das alíneas “E a H” da petição inicial e que NADA têm a ver com a DESCONSIDERAÇÂO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COLETIVA, formulada a título SUBSIDIÁRIO e a NULIDADE DO ATO CONSTITUTIVO DA SOCIEDADE CO/RÉ/REVEL, “ SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S .A.”, a título PRINCIPAL, formulados AB INITIO.

G) DEVE, pois, REVOGAR-SE, o douto Acórdão recorrido, por violação FRONTAL do caso julgado formal ANTERIOR, formado pela ADMISSÂO POR ACORDO, da factualidade constante da PETIÇÃO INICIAL, como supra indicado, face à CONTESTAÇÂO INOPERANTE do CO/RÉU, Senhor, CC, que se IMPUNHA CONHECER ao TRIBUNAL, EX OFFICIO e uma vez CONHECIDO, impedia o conhecimento do objeto deste recurso, dada a sua manifesta PREJUDICIALIDADE.

H) Deve julgar-se verificado, in casu, o CASO JULGADO FORMAL ANTERIOR, atenta a ADMISSÂO POR ACORDO, da factualidade invocada pelo AUTOR na petição inicial e suprarreferida, dada a sua NÂO IMPUGNAÇÂO, juridicamente, relevante, por parte do Co/Réu, Senhor, CC, admissão essa por acordo que é extensiva em relação aos demais CO/RÉUS/REVÉIS, anulando-se todo o processado SUBSEQUENTE e que dele dependa absolutamente.

I) Violou o douto ACÓRDÂO recorrido, por erro de subsunção jurídica, o disposto nos artigos, 568 alínea A) e 620, ambos do C.P. CIVIL.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Por se entender não ser admissível tal recurso foi proferido despacho, determinando-se o cumprimento do disposto no nº. 1 do art. 655º do CPC.

O requerente veio apresentar requerimento, concluindo no mesmo:

A) O presente recurso de REVISTA, foi interposto nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 629 n. 2. alínea A), in FINE, do C.P. CIVIL, ou seja, EXCLUSIVAMENTE, com fundamento na VIOLAÇÃO de CASO JULGADO FORMAL ANTERIOR IMPLICITO, como alegado, o qual sendo de conhecimento OFICIOSO, pode e DEVE ser conhecido por este Colendo Supremo Tribunal de Justiça, mesmo NÂO tendo sido invocado EXPRESSAMENTE, nas alegações de recurso perante a RELAÇÂO, embora nelas IMPLÍCITO, sendo certo que esta, mesmo neste caso NÂO estava impedida de dele conhecer, com toda a amplitude permitida e exigida por lei.

B) Nada impede este Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de ADMITIR o presente recurso e conhecer do seu objeto, pois o mesmo está bem configurado e é perfeitamente percetível para um bónus pater familiae.

C) Mal andou, pois, o douto despacho proferido, com o sentido e alcance proposto, ao NÂO ADMITIR O PRESENTE RECURSO.

D) Violou o douto despacho proferido, por erro de subsunção, o disposto nos artigos, 620 e 629 n. 2 alínea A), in fine, do C.P. CIVIL».

Foram colhidos os vistos.

2-Fundamentação:

Nos autos foi proferido despacho com o seguinte teor que se reproduz:

«Veio o recorrente interpor recurso de revista em separado, ao abrigo do disposto nos artigos 671º. nº.2, al. a), 674º, nº 1 als. b) e c) e 629º, nº. 2, al. a), todos do CPC.

Dispõe o art. 671º do CPC., na parte que releva:

1. Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível.

Dispondo por seu turno, o nº. 2 do art. 629º do CPC. que:

Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) Das decisões que violem regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia, ou que ofendam o caso julgado.

Ora, consta do acórdão recorrido que a questão a decidir «consiste em saber se deveria ter sido admitido como rectificação do anterior o segundo dos requerimentos apresentados pelo autor, e se existem indícios de simulação processual por conluio entre a co/ré, revel "SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA, S.A." e o co/réu CC.

Diz-se no acórdão proferido:

«No tocante à factualidade que deva ter-se como assente para efeitos de sentença, não é este o momento processualmente adequado para a sua fixação. Decorre claramente do artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC que que é no momento da elaboração da sentença que o juiz discrimina os factos que considera provados e toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo. Resulta, assim, prematuro qualquer juízo sobre se matéria de facto que o recorrente invoca, constante da contestação do réu CC deve, desde já, considerar-se assente. Não poderia, assim, a 1.ª instância, deixar de relegar para a sentença o conhecimento do incidente, em tudo o que se refere ao alegado daquela contestação e suas consequências para a matéria de facto a seleccionar como assente em sede de sentença.

Quanto à questão de o despacho recorrido não ter tratado como lapso de escrita a omissão no requerimento de 21 de Março de 2024 da referência aos artigos .7 a .4 da contestação do co/réu CC, sob a epígrafe de “Erro de cálculo ou de escrita”, estabelece o art. 249.º do CC que“O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”. Este preceito consagra um princípio geral aplicável tanto a actos extrajudiciais como a actos judiciais, quer,de entre estes, a declarações de vontade não negociais produzidas no decurso de um processo judicial, tanto pelas partes como pelo juiz. Também as peças processuais apresentadas pelas partes devem ser lidas na sua substância, quando delas ou das suas circunstâncias resulta evidente que a sua forma não corresponde ao que se quis expressar e se compreende o que se quis dizer. A lei processual faz aplicação deste princípio, designadamente nos arts. 146º e 614º do CPC, que, embora referindo-se a actos do juiz, é extensivo a todos os actos judiciais, designadamente aos praticados pelas partes (Neste sentido, Ac. do STJ de 10/12/2009, in www.dgsi.pt. 10). Como escreveu Alberto dos Reis (in R.L.J, Ano 77, p. 180), “se os erros, omissões e lapsos cometidos pelo juiz na sentença são susceptíveis de rectificação, não há razão alguma para que não suceda o mesmo quanto aos erros, omissões e lapsos cometidos pelas partes nos articulados ou em quaisquer outras peças do processo. O que a ordem jurídica exige é que a vontade real prevaleça sobre a vontade declarada; para que este resultado se consiga, hão-de admitir-se necessariamente os meios adequados. Se, for manifesto que o autor ou o réu, ao escrever ou dizer uma coisa, quis dizer coisa diferente, não pode ele ficar vinculado a uma declaração que não traduz a sua vontade. Pela mesma ordem de razões, se houver elementos para admitir que a parte quis dizer mais alguma coisa do que disse, que foi vítima de uma omissão ou de um lapso involuntário, também se lhe não pode negar o direito de restabelecer o seu pensamento de exprimir, de modo completo, toda a sua vontade”. À declaração de vontade da parte ser-lhe-á aplicável o princípio contido no art. 249º do CC, segundo o qual o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à rectificação desta.

Indispensável é que se verifiquem os pressupostos da correcção. Em primeiro lugar, é necessário que seja patente que ocorreu lapso na declaração, que o declarado não correspondia ao pretendido. O erro só pode ser rectificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto. Deve tratar-se de um lapso ostensivo, em face dos próprios termos da declaração, quer quanto à sua própria existência, quer quanto ao modo de o rectificar (Cfr. Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p. 255). Trata-se, em suma, de um erro notório no sentido de que se apresenta evidente a divergência entre a vontade declarada ou realizada e a realmente querida, divergência que é claramente detectada por qualquer observador comum. A correcção da declaração visa simplesmente fazer coincidir a vontade real com aquela que foi materializada ou exteriorizada, a rectificação do que se escreveu em função daquilo que, de modo notório, efectivamente, se quis escrever.

Não é possível por esta via complementar as puras e simples omissões de peças processuais, ou de fundamentação que delas não conste. Ora, na hipótese vertente, o primeiro dos requerimentos do recorrente, de 21/03/2024 nenhuma referência contém da qual possa alcançar-se que o recorrente pretendia aditar à factualidade aí mencionada a alegada pelo co-réu CC, nos artigos .7 a .4 da sua contestação. E isso teria que evidenciar-se do próprio contexto desse requerimento, para que o mesmo pudesse valer com o sentido pretendido pelo recorrente. Por onde que nenhuma censura pode apontar-se ao despacho recorrido ao não ter tratado como lapsus calami a confessada omissão do recorrente.

Quanto à invocada nulidade por omissão de pronúncia, ela só ocorreria se as questões suscitadas no requerimento de 16 de Maio de 2024 não se encontrassem prejudicadas pela solução dada a outras. Ora, tendo o despacho recorrido recusado tratar o aludido requerimento como correcção - não admissível - de lapsos do anterior requerimento apresentado, é manifesto que nada mais teria o despacho que acrescentar relativamente a tais questões, inexistindo a apontada nulidade.

Acresce que, relativamente à invocada simulação processual e fraude à lei por parte dos co-réus CC e"SOCOLOTE-IMOBILIÁRIA; S.A.", estabelece o art. 665º do CPC que “quando a conduta das partes ou quaisquer outras circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes”.

Ora, “Tem lugar a simulação processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si. Tem lugar a fraude processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”. cfr. Acs. da Rel. de Coimbra de 12.5.2009, /Proc. 621/08.3TBLRA, e de 20-11-2012, Proc. 1423/11.5TBGRD.C1, ambos in dgsi.pt) e Lebre de Freitas (C. Proc. Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed. p. 695 e 696, aí citado). “A simulação do litígio, comum a ambas as figuras, passa quase sempre, mediante prévio acordo das partes, entre si conluiadas, pela alegação pelo A., não contraditada ou ficticiamente contraditada pelo R., duma versão fáctica não correspondente à realidade” (Lebre de Freitas, ob. e loc. citados; A. Reis, C. Proc. Civil Anotado, Vol. V, p. 101).

No caso vertente, o litígio que opõe, de um lado, o autor e, do outro, cada um dos réus, é bem real, nada possibilitando suspeitar que todos se tenham conluiado no sentido de forjar um qualquer desfecho de interesse comum e lesivo para terceiros. Isso não pode ser confundido com a possibilidade de, entre as contestações dos vários réus, existir matéria convergente, ou de interesse comum, tanto para contestantes, como para não contestantes. O artº 567.º, nº 1, do CPC (correspondente ao anterior art.º 484º do CPC de 1961) consagra a seguinte regra: se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor. Mas esta regra comporta várias excepções, as quais são taxativamente previstas no artº 568º do mesmo código. A primeira (al. a) daquele normativo) dessas excepções – única que aqui importa considerar – refere que “não se aplica o disposto no artigo anterior quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar”. Como escreveu Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, vol. 3º, 3ª ed.), “no processo ordinário os réus não contestantes beneficiam da oposição deduzida pelos contestantes, quer se trate de litisconsórcio necessário, quer de litisconsórcio voluntário”. Decorre daquela alínea a) que, no caso de haver mais do que um réu, a defesa apresentada por um deles aproveita aos demais, relativamente aos factos que o contestante impugnar e só a esses, independentemente de “conluio” entre os diversos réus, e sem que isso possa configurar qualquer uso anormal do processo.

Carece, assim, de fundamento o recurso interposto, que improcede».

Ora, como se verifica do acima transcrito, não foi apreciada qualquer questão atinente ao caso julgado, não estando aqui em apreço, a aplicabilidade da al. a) do nº. 2 do art. 629º do CPC.

Por outro lado, também não estamos numa situação em que o acórdão da Relação tivesse apreciado uma decisão interlocutória que recaísse unicamente sobre a relação processual, em caso em que o recurso é sempre admissível, ou seja, encontra-se afastada a al. a) do nº. 2 do art. 671º do CPC.

Com efeito, no caso vertente, o decidido no acórdão proferido apreciou questões de ordem formal sem a determinação da extinção total ou parcial da instância.

Como alude Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. ed., pág. 414 «Incidindo aqueles acórdãos sobre decisões da 1ª. instância de natureza interlocutória (isto é, decisões não finais) e que, além disso, versaram sobre questões de direito adjetivo (previstas no art. 644º, nº 2), considerou-se bastante o duplo grau de jurisdição».

Como o salienta o elemento literal expresso, o preceituado no nº. 2 do art. 671º que condiciona a admissibilidade do recurso de revista a pressupostos específicos abarca unicamente os acórdãos da Relação que incidiram sobre decisões interlocutórias de 1ª. instância que apreciaram questões de ordem formal, sem que esses acórdãos determinem a extinção total ou parcial da instância, uma vez que, nestes casos, é seguida a regra geral do nº. 1.

E como também aduzem, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Almedina, pág. 200 «O Código é extremamente restritivo, porquanto estabelece como regra a irrecorribilidade de acórdão da Relação que aprecie questões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual, só podendo ser objeto de revista nos casos em que o recurso seria sempre admissível».

No caso vertente não estamos perante qualquer das situações em que o recurso seria sempre admissível».

Perante o que se deixou explanado supra, reiteramos que na situação concreta, não estamos a apreciar a problemática do caso julgado, mas sim, a aquilatar do decidido pelo Tribunal da Relação.

Contrariamente ao pugnado pelo recorrente, ainda que o conhecimento do caso julgado seja de conhecimento oficioso, na situação vertente não estamos perante qualquer oficiosidade deste conhecimento, na medida em que, o mesmo não está delineado nos autos, nem é objeto de recurso.

Com efeito, é completamente irrelevante o que é aludido quanto ao circunstancialismo de estar o mesmo implícito ou não, ou da sua percetibilidade, pois, não é esse o objeto do litígio.

O recurso de revista não pode incidir sobre questões novas, que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido e por este resolvidas.

O recurso destina-se a efetuar uma reponderação da decisão sobre matéria em seu devido tempo suscitada, perante os elementos conhecidos e apreciados pelo tribunal recorrido e de acordo com a respetiva delimitação do recurso.

A demanda do tribunal superior está circunscrita às questões que já tenham sido objeto de escrutínio, apenas se devendo apreciar da sua manutenção, revogação ou alteração».

O recorrente lavra numa certa confusão, entre a configuração de caso julgado implícito e a admissibilidade, por acordo, relativa a factualidade constante da petição inicial.

A fixação da matéria de facto tem o seu momento legalmente consagrado, ou seja, nos termos plasmados nos números 3 e 4 do nº. 1 do art. 607º do CPC., o que ainda não ocorreu, tal como ressalta da fase processual em que os autos se encontram.

A invocação da terminologia de «caso julgado formal implícito» é falaciosa e impropriamente utilizada.

Efetivamente, na situação vertente, não se formou nos autos qualquer despacho judicial irreversível dentro do processo, ou seja, não foi proferido qualquer despacho que possa vir a obstar a que se decida posteriormente em sentido diverso, já que, a matéria de facto não se encontra definitivamente fixada.

Assim, nos autos não estamos perante uma decisão interlocutória plasmada na al. a) do nº. 2 do art. 671º do CPC., que nos conduza à aplicabilidade da al. a) do nº. 2 do art. 629º do mesmo diploma legal, ou seja, não há ofensa de caso julgado a apreciar.

Destarte, mantém-se a não admissibilidade do recurso.

Sumário:

- A fixação da matéria de facto tem o seu momento legalmente consagrado, ou seja, nos termos plasmados nos números 3 e 4 do nº. 1 do art. 607º do CPC., o que ainda não ocorreu, tal como ressalta da fase processual em que os autos se encontram.

- A invocação, aqui em concreto, da terminologia de «caso julgado formal implícito» é falaciosa e impropriamente utilizada.

- Na situação vertente, não se formou nos autos qualquer despacho judicial irreversível dentro do processo, ou seja, não foi proferido qualquer despacho que possa vir a obstar a que se decida posteriormente em sentido diverso, já que, a matéria de facto não se encontra definitivamente fixada.

3- Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em Conferência, manter a decisão singular reclamada.

Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo de isenção de que beneficie.

Lisboa, 21-10-2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Ricardo Costa

Luís Espírito Santo