Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3568/14.0TBVFX-D.L1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO SUMÁRIA
COMPETÊNCIA DO RELATOR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DESPACHO DO RELATOR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
DIREITO AO RECURSO
PROCESSO EQUITATIVO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO, MANTENDO-SE O DESPACHO DO RELATOR
Sumário :
I - Abstraindo da revista per saltum, o acto decisório susceptível de constituir objecto admissível do recurso de revista é, unicamente, acórdão proferido pela 2.ª instância.

II - A opção do relator pela forma sumária ou normal de julgamento do recurso de apelação não tem de ser precedida de audiência prévia de qualquer das partes, dado que a qualquer delas é sempre facultada a impugnação da decisão do relator, através de reclamação para a conferência, que pode ter por objecto, designadamente, a não verificação dos pressupostos de que a lei de processo exige para que o recurso seja julgado sumária e singularmente.

III - A garantia constitucional do acesso aos tribunais não abrange a obrigação de consagração, pelo legislador ordinário, de um duplo grau de jurisdição, entendido como a possibilidade de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por outro juiz pertencente a uma grau de jurisdição superior, para todas as decisões – mas apenas, em consonância com o princípio da proporcionalidade que domina o regime dos direitos fundamentais, para questões de maior relevo ou importância, pelo que só é constitucionalmente imprópria uma restrição não proporcional do recurso.

IV - A exigência de que a parte, confrontada com uma decisão sumária do relator do tribunal da Relação que a desfavorece, tenha de provocar primeiro acórdão daquele tribunal para aceder, através do recurso ordinário de revista, ao Supremo não é, patentemente, desnecessária, desadequada ou desproporcional, considerando, por um lado, o carácter colegial do tribunal de Relação e, por outro, a extrema simplicidade da obtenção, através de simples reclamação para a conferência, de um acórdão que decida essa mesma reclamação e que pode impugnar, nos termos gerais e, portanto, não é constitucionalmente imprópria por violação do direito ao processo equitativo.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

A exequente, JC, Comércio e Indústria de Cortiças, Lda., interpôs recurso ordinário de apelação da decisão da Sra. Juíza de Execução, do Juízo de Execução de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, que lhe indeferiu o requerimento de contagem de juros à taxa legal supletiva dos juros comerciais, de aplicação da sanção pecuniária compulsória e de contagem daqueles juros até ao pagamento.

A Sra. Juíza Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão singular – notificada eletronicamente à exequente no dia 1 de Fevereiro de 2024 – julgou o recurso improcedente.

Encontrando-se já o processo do recurso no Tribunal de 1.ª instância, a exequente, através de requerimento apresentado por via electrónica no dia 5 de Março de 2024, interpôs daquela decisão sumária recurso ordinário de revista.

Reenviado o processo para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Sra. Juíza Desembargadora Relatora – com fundamento em que a decisão sumária apenas pode ser objecto de reclamação para a conferência, que havendo possibilidade de convolar o recurso para a referida reclamação, seria necessário que tivesse sido interposto no prazo de 10 dias, mas que este prazo terminou em 15 de Fevereiro de 2024 – indeferiu o requerimento de interposição do recurso de revista.

A recorrente reclamou contra esta decisão de rejeição do recurso – pedindo que o recurso indeferido fosse admitido - tendo rematado o requerimento com estas conclusões:

1. A sentença dos autos, proferida por decisão sumária do Relator, sem prévia notificação à recorrente, é passível de recurso, se verificados os requisitos aplicáveis à decisão proferida por acórdão;

2. O despacho que defendeu diferente entendimento, sustentando que o art.º 656.º do CPC não permite o recurso da decisão singular do Relator é ilegal e viola o art.º 20.º da Constituição por vedar o acesso do interessado ao Supremo Tribunal de Justiça, na defesa dos seus interesses;

3. A decisão singular do Relator é passível de recurso nos mesmos termos em que seria o acórdão da Relação.

Na resposta, a executada AA, concluiu pela improcedência da reclamação.

O relator proferiu sobre a reclamação o despacho com o conteúdo seguinte:

(…) 2. Factos relevantes para o conhecimento do objeto da reclamação.

Os factos, puramente procedimentais, que relevam para o conhecimento da reclamação, relativos, designadamente ao conteúdo da decisão, sumária, singular, do Juiz Desembargador Relator do Tribunal da Relação, que conheceu do objecto do recurso de apelação, à data da interposição do recurso ordinária de revista e ao conteúdo da decisão reclamada são os que, em síntese apertada o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objetivo da reclamação.

A questão concreta controversa que importa decidir é uma só: a de saber se o despacho que indeferiu in limine o recurso ordinário de revista interposto pela reclamante da decisão que, liminar, sumária e singularmente, conheceu do objecto do recurso de apelação deve ou não ser revogado e logo substituído por outra decisão que admita o recurso e, do mesmo passo, fixe o modo de subida e o efeito – extraprocessual – da sua interposição.

Considerando os parâmetros da competência decisória deste Supremo, tal como são recortados pelo conteúdo da decisão reclamada e da impugnação da recorrente, a resolução deste problema vincula ao exame, ainda que leve, da espécie de actos decisórios do tribunal susceptíveis de constituírem objecto do recurso ordinário de revista, da correcção do meio processual utilizado pela reclamante para impugnar a decisão singular do Relator do Tribunal da Relação que conheceu do objecto do recurso de apelação, e da compatibilidade da regra segundo a qual o recurso ordinário de revista apenas é admissível de acórdão da Relação – e não de decisão sumária do juiz relator deste último Tribunal – com o direito, de matriz constitucional, ao processo equitativo.

3.2. Acto decisório objecto do recurso ordinário de revista e correção do meio processual utilizado pela recorrente.

São duas as formas de julgamento do recurso de apelação: a forma sumária e a forma normal (art.ºs 656.º a 659.º do CPC). Se o relator entender que a questão é simples, designadamente por já ter sido apreciada, de modo uniforme ou reiterado pelos tribunais, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, devendo, neste caso, juntar uma cópia (art.º 656.º do CPC). Da decisão sumária do relator cabe reclamação para a conferência, reclamação que – de harmonia com a orientação que se tem por preferível – nem sequer tem de ser motivada1 (art.º 652.º, n.º 3, do CPC). Do acórdão da conferência, proferido sobre a reclamação, cabe recurso, nos termos gerais (art.º 652.º, n.º 5, do CPC). Regra que está em inteira harmonia com o princípio geral segundo a qual – abstraindo da revista per saltum – o único acto decisório susceptível de constituir objecto admissível do recurso de revista é, unicamente, acórdão proferido pela 2.ª instância (art.ºs 671.º, n.ºs 1 e 2 e 678.º do CPC).

A opção do relator pela forma sumária ou normal de julgamento do recurso não tem de ser precedida de audiência prévia de qualquer das partes, dado que a qualquer delas é sempre facultada a impugnação da decisão do relator, que pode ter por objecto, designadamente a não verificação dos pressupostos de que a lei de processo exige para que o recurso seja julgado sumária e singularmente2. O princípio do contraditório, na vertente à audição prévia, não é absoluto: por vezes o contraditório é diferido, ou seja, é posterior ao proferimento da decisão (art.º 3.º, n.ºs 1 a 3, do CPC). E, no caso como à parte que se considere prejudicada com o proferimento da decisão sumária é sempre assegurada a sua impugnação irrestrita através de reclamação para a conferência, a actuação do direito ao contraditório, ainda que de modo diferido, considera-se inteiramente assegurado. De resto, ainda que se devesse concluir pela violação do dever de consulta, na vertente considerada – e consequentemente, pela comissão de uma nulidade processual ou de uma nulidade de sentença, conforme o enquadramento que se julgue mais adequado – a arguição de qualquer destes desvalores negativos teria necessariamente de ser instrumentalizada através da reclamação para a conferência e nunca através do recurso ordinário de revista, uma vez que, como se observou, o único acto decisório que constitui objecto admissível da revista é um acórdão da Relação (art.ºs 195.º e 615.º, n.º 1, d), do CPC)3.

Face a estes enunciados, dado que a recorrente em vez de impugnar a decisão sumária do relator através de reclamação para a conferência, dela interpôs recurso de revista, é claro o uso pela recorrente de um meio processual impróprio, pelo que o caso é, assim, de erro na qualificação jurídica do meio processual, que tem por única consequência, em princípio, a convolação, por determinação oficiosa, do meio processual impróprio no meio processual adequado, solução que surge claramente ordenada por uma ideia de máximo aproveitamento dos actos processuais, (art.º 193.º, n.º 3, do CPC)4. Diz-se em princípio, dado que aquela convolação está naturalmente sujeita a limites, uma vez que é necessário que a ela não obstem quaisquer outras circunstâncias, de que se destacam, desde logo, três: a extinção por caducidade do direito de praticar o ato convolado e a inaproveitabilidade do ato objeto de convolação, por não reunir os requisitos específicos exigidos para o acto para o qual seria convolado, ou por implicar o agravamento da posição processual da parte contrária aquela a quem a convolação aproveitaria. O poder de convolação é um poder oficioso que pertence também ao tribunal de recurso, por força do qual, por exemplo, o relator deve convolar a interposição de revista para reclamação para a conferência5.

No caso, uma tal convolação deve ter-se por inteiramente excluída dada a clara extinção, por caducidade, do direito de reclamar contra a decisão sumária para a conferência, uma vez que o recurso de revista foi interposto muito para além do terminus a quo do prazo peremptório de 10 dias que a lei assinala para a dedução daquela reclamação, ponto que, aliás, a reclamante não controverte na reclamação (art.ºs 139.º. n.ºs 1, 2 e 5, e 149.º do CPC)6. Como, nos termos gerais, o recurso ordinário de revista não pode ter por objecto uma decisão sumária do relator da Relação, mas apenas um acórdão deste último Tribunal, a correcção da decisão de rejeição, por este fundamento, daquele recurso é, assim, meramente consequencial (art.ºs 652.º, n.º 2, 671.º, 672.º e 673.º do CPC).

Obtempera, porém, a recorrente que a inadmissibilidade da impugnação, através do recurso de revista, de uma decisão sumária do juiz desembargador da Relação viola o art.º 20.º da Constituição, por vedar o acesso do interessado ao Supremo Tribunal de Justiça.

3.3. Compatibilidade da regra de que o recurso ordinário de revista apenas é admissível de acórdão da Relação – e não de decisão sumária do juiz relator deste último Tribunal – com o direito, de matriz constitucional, ao processo equitativo.

Não sofre a mínima dúvida a atribuição, na Constituição da República Portuguesa, de um direito à jurisdição ou de acesso à justiça, que se desdobra na garantia de acesso aos tribunais e de uma garantia de acesso ao próprio direito (art.º 20.º, n.º 1)7. Este direito que constitui, de resto, simples decorrência do estado social de Direito também constitucionalmente consagrado, garante, de forma universal e geral, o direito de levar a sua causa à apreciação de um tribunal (art.º 2.º).

Como é evidente, não basta assegurar a qualquer interessado o acesso à justiça, sendo necessário que o processo a que se acede apresenta, quanto à sua própria estrutura, garantias de justiça. Tão indispensável como assegurar o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, é, por exemplo, garantir, àquele que recorre aos tribunais, um julgamento por um órgão imparcial, em plena igualdade de partes, o direito ao contraditório, uma duração razoável da acção, a publicidade do processo - e a efectivação de um direito à prova. O direito de actuar em juízo terá, pois, de efectivar-se através de um processo justo ou equitativo. O direito de acesso ao direito ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e o direito ao processo equitativo estão largamente dependentes de conformação através da lei e da disponibilização de processos garantidores de uma tutela judicial efectiva, dotados de uma estrutura informada pelo princípio da equitatividade. Em qualquer caso, o direito à tutela jurisdicional efectiva – que substituiu o direito de acesso aos tribunais colocado na epígrafe do texto anterior da Constituição, vincando-se assim que se visa não apenas garantir o acesso aos tribunais, mas sim e principalmente possibilitar aos cidadãos a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através de um acto de jurisdictio – concretiza-se fundamentalmente através de um processo jurisdicional equitativo. Por processo equitativo deve entender-se não só o processo justo na sua conformação legislativa – mas fundamentalmente como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais.

O direito ao processo equitativo envolve o direito a uma decisão final sobre o fundo da causa – desde que se hajam cumprido e observado os requisitos processuais da acção: o direito de acesso aos tribunais compreende o direito de obter uma decisão fundada no direito – embora dependente da observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente exigidos. O direito de acesso ao iudicum e a uma decisão fundada no direito, não são, pois, incompatíveis com a exigência de certos pressupostos ou requisitos processuais, ou seja, de um conjunto de exigências cuja satisfação e observância são necessárias para um órgão judicial poder examinar as pretensões formuladas no pedido, pelo que o direito à tutela jurisdicional não se identifica, longe disso, com o direito a uma decisão favorável, antes se reconduz ao direito de obter uma decisão fundada no direito, sempre que se cumpram os requisitos legalmente exigidos, desde que estes se não mostrem desnecessários, não adequados e desproporcionados.

No plano constitucional, o único recurso que encontra uma consagração expressa é o recurso para o Tribunal Constitucional para fiscalização da constitucionalidade e da legalidade (art.º 280.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa). Mas o texto constitucional contém uma consagração implícita do direito ao recurso quando se refere ao Supremo Tribunal de Justiça e aos tribunais de 1.ª e 2.ª instância (art.º 209.º, n.º 1, da Constituição): da previsão de diversos tribunais, hierarquicamente ordenados, decorre, realmente, sem dificuldade, a proibição de eliminação, pelo lei ordinária, do direito ao recurso em todo e qualquer caso8. Mas do mesmo passo, da consagração constitucional de tribunais de diferentes hierarquias, não decorre a possibilidade de recorrer sempre e em qualquer caso. Quer dizer: a Constituição proíbe uma eliminação global dos recursos – mas não impõe uma recorribilidade irrestrita de toda e qualquer decisão.

Relativamente às limitações ou restrições do direito ao recurso, é a seguinte a orientação, consolidada, da jurisprudência constitucional: a garantia do acesso aos tribunais não abrange a obrigação de consagração, pelo legislador ordinário, de um duplo grau de jurisdição, entendido como a possibilidade de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por outro juiz pertencente a uma grau de jurisdição superior, para todas as decisões – mas apenas, em consonância com o princípio da proporcionalidade que domina o regime dos direitos fundamentais, para questões de maior relevo ou importância, pelo que só é constitucionalmente imprópria uma restrição não proporcional do recurso9. De harmonia com a jurisprudência constitucional, o direito de acesso aos tribunais não garante, necessariamente, e em todos os casos, o direito a um duplo grau de jurisdição: aquele direito apenas garante o acesso aos tribunais para obter uma decisão definitiva de um litígio num campo de estrita horizontalidade. Dito doutro modo: não existe qualquer preceito constitucional que consagre a dupla instância ou o duplo grau de jurisdição, em termos gerais, pelo que o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação quanto à regulação dos requisitos e graus de recurso, apenas se lhe sendo vedado regulá-lo de forma discriminatória ou limitá-lo de modo excessivo. A conclusão a tirar, no domínio do processo civil é, assim, que há sempre o direito a recorrer ao juiz – mas não há sempre o direito de recorrer do juiz (art.º 20 n.º 1, da Constituição, e 2.º, n.º 1, do CPC).

Ora, a regra de que o recurso de revista apenas é admissível de acórdãos da Relação não constitui um requisito processual desadequado, desproporcional ou desnecessário, considerando, de um aspecto, que a Relação é, por índole, um tribunal colegial, pelo que qualquer decisão exige a intervenção de três juízes e dois votos conformes e, de outro, que à parte que se considera prejudicada por qualquer decisão do relator e a quer impugnar, pode sempre provocar o proferimento pela Relação de acórdão e, desse acórdão, caso lhe seja desfavorável, pode recorrer – verificados certos requisitos – para o Supremo (art.ºs 56.º, n.º 1, ex-vi art.º 74.º, n.º 1, da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 709.º, n.ºs 2 e 3, do CPC).

Uma conformação legislativa segundo a qual o recurso de revista apenas é admissível de acórdão da Relação e, coerentemente, que julgue inadmissível a impugnação da decisão sumária do relator através daquele recurso ordinário não conflitua com o direito ao processo equitativo – e, portanto, não é, do ponto de vista material, constitucionalmente ilegítima ou imprópria – dado que aquele direito, no plano da impugnação das decisões judiciais, apenas é reconduzível ao direito de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por outro juiz pertencente a uma grau de jurisdição superior, desde que se satisfaçam os requisitos legalmente exigíveis, que não se revelem desnecessários, desadequados e desproporcionados. E a exigência de que a parte, confrontada com uma decisão sumária do relator do Tribunal da Relação que a desfavorece, tenha de provocar primeiro acórdão daquele Tribunal para aceder, através do recurso ordinário de revista, ao Supremo não é, patentemente, desnecessária, desadequada ou desproporcional, considerando, por um lado, o carácter colegial do Tribunal de Relação e, por outro, a extrema simplicidade da obtenção, através de simples reclamação para a conferência, de um acórdão que decida essa mesma reclamação e que pode impugnar, nos termos gerais.

A decisão de rejeição do recurso de revista, impugnada na reclamação é, pois, correcta. Cumpre, em coerência, desatender essa mesma reclamação.

A reclamante sucumbe na reclamação. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a reclamação deduzida pela reclamante, JC, Comércio e Indústria de Cortiças, Lda., contra a decisão da Sra. Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, que lhe indeferiu o requerimento de interposição do recurso ordinário de revista que interpôs da decisão sumária que julgou o recurso de apelação e, consequentemente, mantenho a decisão reclamada.

A reclamante requereu que sobre a matéria do despacho do relator recaísse acórdão.

Não foi oferecida resposta.

O relator determinou que o processo fosse levado à conferência para se resolver a reclamação.

2. Objecto da reclamação e enunciação da questão a resolver.

A questão concreta controversa colocada à atenção da conferência é a de saber se decisão do relator que julgou improcedente a reclamação deduzida pela reclamante contra a decisão da Sra. Juíza Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa que lhe indeferiu o recurso de revista que interpôs da decisão singular que julgou improcedente o recurso de apelação deve ser revogada - e logo substituída por acórdão que admita o recurso rejeitado.

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto.

Os factos, puramente procedimentais, que relevam para a apreciação do objecto da reclamação – relativos ao conteúdo da decisão, sumária, singular, da Sra. Juiz Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa, que conheceu do objecto do recurso de apelação, à data da interposição do recurso ordinária de revista e ao conteúdo da decisão reclamada daquela Relatora e da que, neste Tribunal, foi proferida sobre essa mesma reclamação - são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.

3.2. Fundamentos de direito.

Sempre que considere que a decisão singular do relator que julgou a reclamação é correcta, que as razões que aduziu para justificar a sua decisão são convincentes e sensatas e que não se justifica dizer mais nem melhor, nem o esforço, inglório e deprimente, de repisar e repetir aquilo que o relator escreveu, à conferência é lícito limitar-se, simplesmente, a manifestar a sua adesão ao que foi escrito pelo relator. Realmente, quando a considere exacta, não se vê vantagem alguma em forçar a conferência a repetir a motivação adiantada pelo relator para justificar a sua decisão, em vez de, simplesmente, dar a sua adesão ou exprimir a sua concordância.

As proposições de que o relator extraiu a conclusão da improcedência da reclamação – que, abstraindo da revista per saltum, o único objecto admissível da revista é um acórdão da Relação, que a opção do relator pela forma sumária de julgamento do recurso de apelação não tem de ser precedida da audição das partes, que o erro da reclamante sobre o meio processual adequado de impugnação do julgamento sumário do recurso – a reclamação para a conferência e não a interposição de recurso – não é reparável por virtude da extinção por caducidade do direito de reclamar e que uma conformação legislativa segundo a qual a revista apenas é admissível de acórdão da 2.ª instância não é desnecessária, desadequada ou desproporcional - considerando, por um lado, o carácter colegial do Tribunal da Relação e, por outro, a extrema simplicidade de obtenção de um acórdão desse Tribunal impugnável, nos termos gerais, através da revista – e, portanto, não é constitucionalmente imprópria ou ilegítima ou materialmente conflituante com o direito ao processo equitativo – consideram-se exactas.

O conclusum da improcedência da reclamação encontrado pelo relator é, pois, correcto. E face a essa correcção, a improcedência da reclamação é meramente consequencial.

Da argumentação exposta extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes as seguintes:

- Abstraindo da revista per saltum, o acto decisório susceptível de constituir objecto admissível do recurso de revista é, unicamente, acórdão proferido pela 2.ª instância;

- A opção do relator pela forma sumária ou normal de julgamento do recurso de apelação não tem de ser precedida de audiência prévia de qualquer das partes, dado que a qualquer delas é sempre facultada a impugnação da decisão do relator, através de reclamação para a conferência, que pode ter por objecto, designadamente a não verificação dos pressupostos de que a lei de processo exige para que o recurso seja julgado sumária e singularmente;

- A garantia constitucional do acesso aos tribunais não abrange a obrigação de consagração, pelo legislador ordinário, de um duplo grau de jurisdição, entendido como a possibilidade de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por outro juiz pertencente a uma grau de jurisdição superior, para todas as decisões – mas apenas, em consonância com o princípio da proporcionalidade que domina o regime dos direitos fundamentais, para questões de maior relevo ou importância, pelo que só é constitucionalmente imprópria uma restrição não proporcional do recurso;

- A exigência de que a parte, confrontada com uma decisão sumária do relator do Tribunal da Relação que a desfavorece, tenha de provocar primeiro acórdão daquele Tribunal para aceder, através do recurso ordinário de revista, ao Supremo não é, patentemente, desnecessária, desadequada ou desproporcional, considerando, por um lado, o carácter colegial do Tribunal de Relação e, por outro, a extrema simplicidade da obtenção, através de simples reclamação para a conferência, de um acórdão que decida essa mesma reclamação e que pode impugnar, nos termos gerais e, portanto, não é constitucionalmente imprópria por violação do direito ao processo equitativo.

A reclamante sucumbe na reclamação. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Considerando, de um aspecto, a simplicidade do objecto da reclamação e, de outro, a patente falta de razão da reclamante, julga-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça devida pela reclamação em 1 UC (art.º 7.º, n.º 1, 2.ª parte, do RC Processuais, e Tabela II Anexa).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a reclamação deduzida por JC, Comércio de Indústria de Cortiças, Lda., contra o despacho do relator que decidiu a reclamação e, consequentemente, mantém-se este despacho.

Custas pela reclamante, com 1 UC de taxa de justiça.

2024.07.02

Henrique Antunes (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Jorge Leal

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1. Ac. do TC n.º 514/03 (474/03), disponível em www.tribunalconstitucional.pt↩︎

2. Embora a discussão sobre a verificação ou não dos pressupostos que permitem ao relator julgar sumariamente o recurso se mostre inócua ou inconsequente, dado que uma vez que as partes podem reclamar para a conferência, esta terminará, sempre, por preferir acórdão: Ac. do STJ de 11.12.2014 (1904/11).↩︎

3. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 26 e 27, Miguel Teixeira de Sousa, https://blogspot.com/search?q=Decisão+surpresa e João de Castro Mendes/ Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, 2022, pág. 102.↩︎

4. Ac. STJ 24.02.2022 (1238/20).↩︎

5. Ac. do STJ 2/2010, de 22 de Fevereiro; Miguel Teixeira de Sousa, CDP, 33 (2011), pág. 3 e ss.↩︎

6. Acs. do STJ de 08.02.2018 (4140/16), 12.07.2018 (2249/17), 06.06.2019 (323/17), 23.02.2021 (2426/19) e 13.07.2022 (16556/17).↩︎

7. Este direito à jurisdição ou de acesso à justiça é igualmente atribuído, por exemplo, pelo art.º 10.º da DUDH, pelo art.º 14.º, n.º 1, do PIDCP e pelo artº 6.º, n.º 1, da CEDH.↩︎

8. Ac. do TC 259/97 (18.03.199).↩︎

9. V.g. Ac. do TC 575/2008 (26.11.2008).↩︎