Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9330/19.7T8LSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
SUCUMBÊNCIA
RECURSO DE APELAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
I. A factualidade e fundamentação que alicerçam o acórdão do Tribunal da Relação, que bem andou ao concluir pela inadmissibilidade da (segunda) reclamação, e motivou o objecto desta revista, ilustram de per si, que no quadro normativo vigente, mesmo que os poderes deveres de convolação deste tribunal permitissem reenquadrar a pretensão do recorrente, ela é manifestamente inadmissível.

II. O recorrente insurgiu-se contra o acto de secretaria da liquidação de multa, relativa à litigância de má-fé em que foi condenado, por sentença transitada em julgado; foi esta a decisão que impugnou no recurso de apelação, rejeitado pelo Desembargador relator e confirmada em acórdão em conferência; a ora invocada interposição de recurso de revisão daquela sentença, colocar-se-á em plano processual de tempo e objecto distintos.

III. A limitação do direito ao recurso em função das regras processuais estabelecidas na lei ordinária não configuram negação do acesso à justiça garantido pela CRP; a tutela jurisdicional efetiva e a equidade, não significam que o cidadão fique dispensado de observar e respeitar os ónus e requisitos estabelecidos para o exercício do direito que se arroga , que de resto, continua a coexistir com igual direito dos outros cidadãos, em particular, a parte contrária, de aceder ao tribunal em condições de igualdade, designadamente, observando os prazos processuais e os procedimentos inerentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


1. A acção

AA, intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo a condenação do Réu a devolver-lhe a quantia de Euros 2.595,75, e juros vencidos no montante de Euros 8.306,76; e a quantia de € 10.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

Prosseguindo a instância, em 11/11/2021 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo :“ Nestes termos e por todo o exposto, decide-se: a) Ante a verificação da excepção dilatória do caso julgado (artigo 577.º, alínea i), do Cód. Processo Civil), absolver o Réu da instância (artigos 278.º, alínea e), e 576.º, n.º2,ambos do Cód. Processo Civil);b) Condenar o Autor, pela sua litigância de má-fé, no pagamento ao Réu de uma indemnização no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e de uma multa no valor de 10 (dez) unidades de conta. Custas a cargo do Autor (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Processo Civil).”

Em 27/4/2022, o Autor foi notificado para proceder ao pagamento da multa processual no valor de Euros 1.200,000, constante da guia anexa.

O Autor apresentou reclamação, desatendida, nos termos do despacho que se transcreve - “ O acto praticado pela secção mostra-se inteiramente em conformidade com a sentença prolatada, já transitada em julgado, pelo que se indefere a reclamação, que foi deduzida ao abrigo do n.°5 do artigo 157.° do Cód. Processo Civil. Custas do incidente a cargo do requerente (artigo 527.° do Cód. Processo Civil).

2. A Apelação

Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação de tal decisão, o qual foi admitido pelo tribunal a quo.

Por decisão do Senhor Desembargador Relator, o recurso não veio a ser admitido, tendo em conta o valor da sucumbência da decisão impugnada, que indeferiu a reclamação apresentada contra o acto da secretaria, de emissão de guia para pagamento de multa no valor de € 1.020,00.

O Recorrente requereu que sobre a matéria recaísse acórdão, vindo a Conferência a indeferir a reclamação e confirmar a não admissão do recurso de apelação.

Notificado do acórdão, o Recorrente apresentou “reclamação nos termos dos art. 641°, n° 6 e 643° do CPC).”

Em novo Acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou a reclamação do recorrente, conforme fundamentação, que em síntese, se extracta-« A primeira reclamação para a conferência, relativamente ao despacho do Relator, mostrou-se processualmente admissível à luz do disposto nos arts. 643º, nº 4 e 652º, nº3 do Código de Processo Civil (ainda que substantivamente improcedente). Contudo, não se vê cabimento ou previsão legal para a dedução de nova reclamação, nos termos concertados dos arts. 641º, nº6 e 643º do mesmo Código, na medida em que não está em causa qualquer despacho de indeferimento do recurso proferido pelo Tribunal recorrido, mas, antes, decisão da conferência do Tribunal de recurso. Nem será o caso de admissibilidade de recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (passível de convolação),(…) por isso, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional consequência a improcedência desta reclamação.IV. A decisão -Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em conferência em indeferir a presente reclamação, mantendo o Acórdão proferido em 16/1/2023.Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.»

3. Objecto da Revista

Continuando discordante, o recorrente dirige agora ao Supremo Tribunal de Justiça a seguinte pretensão :“O recurso é admissível (art. 672º, nº 1 a) do CPC), legítimo (art. 631º, nº 1 do CPC), tempestivo (art. 638º, nº 1 do CPC), devendo subir imediatamente e nos próprios autos [art. 645º, nº 1, alínea a) do CPC], tendo por objecto a Decisão de Direito (art. 639º do CPC.”

As suas conclusões são as seguintes : « i. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que indefere a reclamação de não admissão do recurso a pretexto de se encontrarem esgotados os poderes jurisdicionais; ii. Quando é consabido que o meio de reacção à não admissão do recurso só pode ser a reclamação (art. 643º, nº 1 do CPC); iii. Ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido que convolou a reclamação (art. 643º, nº 1 do CPC) em reclamação para a conferência (art. 652º, nº 3 do CPC); iv. Sendo tal conversão manifestamente indevida e, por isso mesmo, ilegal; v. E mesmo assim não sendo, o meio adequado para reagir ao acórdão proferido em 26/01/2023, sempre seria a reclamação, tal como a parte fez em 10/02/2023; vi. Mas o Tribunal a quo, na decisão recorrida, limita-se a entender estarem já esgotados os poderes jurisdicionais; vii. Decisão que impede a Reclamação da parte de ser apreciada por Tribunal Superior; viii. Coarctando-lhe o direito de pela via judicial fazer valer os seus direitos e interesses; ix. Em manifesto desrespeito pelo seu acesso à justiça nos termos do art. 20º, nº 1 da CRP; x. Situação a que V. Exas. não ficarão indiferentes e à qual urge pôr cobro. Deste modo, apesar de tudo, douta decisão deverá ser revogada e substituída por decisão que admita a reclamação, só assim se fazendo a Costumada Justiça!»

4. Prefigurando-se a rejeição do recurso, foram ouvidas as partes, conforme o disposto no artigo 655º do CPC; o recorrente manteve a posição de ver admitida a revista.

Em consonância com o disposto no artigos 652º, nº1, al) b ex vi artigo 679º do CPC, decidiu a relatora , não admitir o recurso de revista , nos termos e pelos fundamentos que se transcrevem.

« A factualidade e fundamentação que alicerçam o acórdão do Tribunal da Relação, que bem andou ao concluir pela inadmissibilidade da (segunda) reclamação, e motivou o objecto desta revista, ilustram de per si , que no quadro normativo vigente, mesmo que os poderes deveres de convolação deste tribunal permitissem reenquadrar a pretensão do recorrente, ela é manifestamente inadmissível.

O recorrente, s.m.o, labora no equívoco original, ao afirmar que a garantia constitucional do acesso aos tribunais e à efetiva tutela judicial garante incondicionalmente o exercício do direito ao recurso às instâncias. Na verdade, o exercício desse direito exige do titular a observância das regras processuais, que por seu turno, acautelam a igualdade e a equidade do funcionamento do sistema judicial.

De qualquer modo, atalhando razões, ainda que não ocorresse o obstáculo do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo, sublinhamos que, o recurso de revista seria inadmissível, por incidir sobre um acórdão da Relação proferido em resultado da reclamação para a conferência da decisão do relator, que não admitiu o recurso de apelação. Os acórdãos, proferidos pela Relação, ao abrigo do artigo 643º, nº1, do CPC, não admitem recurso de revista, uma vez que não se inscrevem no âmbito delimitado pelo artigo 671º, nº1, do CPC.

Note-se que, no âmbito da admissibilidade do recurso de revista, ainda que invocando a revista excepcional (artigo 672º, nº1, a) do CPC) não está dispensada de reunir os requisitos gerais da impugnação da decisão junto do STJ.

Acresce que, as decisões interlocutórias, como aquela que foi impugnada na apelação, não são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça, salvo os casos excecionais previstos nos artigo 629º, nº2, e 671º, nº2, al) b) do CPC, aqui não verificados. Nestes termos, não se admite o recurso de revista .»

5. O recorrente vem agora submeter a questão à Conferência, mostrando discordância com a rejeição do recurso, para o que alegou: « (…) 8. Ora, salvo melhor opinião, em causa no recurso interposto está algo que sequer a decisão reclamada aborda: o pagamento de uma multa relativa à condenação do Autor, pela sua litigância de má-fé (…) de 10 (dez) unidades de conta. 9. Decisão, aliás, que se encontra igualmente em apreciação, sob recurso de revisão, que constitui apenso C. 10. Sendo certo que a procedência do mesmo sempre influi na decisão aqui sob reclamação. 11. Ignorando, ab initio, um ensinamento basilar em matéria de litigância de má-fé, a saber, que prescreve o art. 542º, nº 3 do CPC que independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé. 12. Ensinamento legal corroborado pela própria jurisprudência: As normas relativas à litigância de má fé não impedem o recurso da decisão para o STJ, mas tão só asseguram a existência de um grau de recurso e é por força da 1ª decisão ser da Primeira Instância, seguida da intervenção do TR que se esgotam os recursos possíveis sobre a questão. - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-05-2021. Termos em que se requer a prossecução dos presentes autos com vista à apreciação do recurso interposto, versando sobre esta matéria, o competente Acórdão.»

6. Cumpre decidir

O recorrente, salvo o devido respeito, opta agora por formular uma outra adversativa à rejeição da revista – afirmando que, as decisões sobre litigância de má-fé são sempre recorríveis, sem que se compreenda a aplicação ao despacho impugnado para a Relação e agora para o STJ, através do recurso de revista não admitido.

Passando ao largo do fundamento crucial legal da rejeição, objeto de apreciação do despacho da relatora, pelo que, em economia de actos, bastará ao colégio, que sufraga aquela decisão e fundamentos, reproduzir o respetivo teor, conforme largamente acolhido neste tribunal, v.g. o Acórdão do STJ de 14-10-2021 proferido nesta secção:

“ (…) II. Quando, na reclamação da decisão singular prevista no artigo 652.º, n.º 3, do CPC, a reclamante não apresenta nenhum argumento novo, limitando-se a requerer que sobre a matéria recaia um acórdão, pode a Conferência manter aquela decisão singular sem necessidade de apresentar novos fundamentos ou sequer de os reproduzir.”

De qualquer modo, estando claramente enunciada na decisão singular transcrita, a fundamentação da rejeição do recurso revista, em corroboração do seu conteúdo, e, em síntese, sublinha-se :

- O recorrente insurgiu-se na primeira instância contra o acto de secretaria da liquidação de multa, relativa à litigância de má-fé em que foi condenado, por sentença transitada em julgado; foi esta a decisão que impugnou no recurso de apelação, rejeitado pelo Desembargador relator e confirmada em acórdão em conferência; a ora invocada interposição de recurso de revisão daquela sentença, colocar-se-á em outro plano de objecto e tempo processuais ulteriores.

- A limitação do direito ao recurso em função das regras processuais estabelecidas , como são os prazos perentórios e pressupostos de admissibilidade estabelecidos na lei ordinária, não configuram a alegada negação do acesso à justiça garantido pela CRP; a tutela jurisdicional efetiva e a equidade, não significam que o cidadão fique dispensado de observar e respeitar os ónus e requisitos estabelecidos para o exercício do direito, que de resto, continua a coexistir com igual direito dos outros cidadãos, em particular, a parte contrária, de aceder ao tribunal em condições de igualdade, designadamente, quanto aos prazos processuais e os procedimentos inerentes contemplados na lei.

7. Nestes termos, acorda-se em indeferir a Reclamação apresentada, mantendo-se o despacho de rejeição do recurso de revista .

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que vem beneficiando.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Isabel Salgado (relatora)

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique