Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça  | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ISABEL SALGADO | ||
| Descritores: |  NULIDADE DE ACÓRDÃO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA IMPOSTO LESADO DIREITO DE REEMBOLSO PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS IRREGULARIDADE FATURAÇÃO DETALHADA CASO JULGADO PROCEDÊNCIA PARCIAL  | ||
| Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
| Sumário : |   I. O beneficiário do serviço enquanto consumidor final e contribuinte de facto, salvo convenção em contrário, está obrigado a entregar à prestadora do serviço a importância correspondente ao IVA sobre a operação contratada. II. Tendo a Autora pago e a totalidade do IVA devido por conta dos serviços prestados, na sequência da fiscalização da irregularidade tributária na facturação, e na ausência de outra convenção entre as partes, assiste-lhe o direito de reclamar da Ré metade da importância por si liquidada.  | ||
| Decisão Texto Integral: |   Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. Da acção MANUEL NEVES – CLÍNICA DE MEDICINA DENTÁRIA, LDA. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CÉLIA COUTINHO ALVES – MEDICINA DENTÁRIA, LDA., COUTO VIANA – MEDICINA DENTÁRIA, LDA. e IVO TEIXEIRA LOPES – MEDICINA DENTÁRIA, LDA, pedindo a sua condenação no pagamento das quantias, respectivamente, a 1.ª Ré da quantia de € 31.258,36, 2.ª Ré a quantia de € 39.382,33, e a 3.ª Ré a quantia de € 39.266,15, todas acrescidas de juros de mora calculados à taxa de 4% até efetivo e integral pagamento. Para tanto alegou, em síntese, que pagou aquele valor na sequência de inspeção da autoridade tributária à sua contabilidade, correspondente ao Iva a suportar pelas Rés e não incluído nas facturas relativas à cedência de espaço e serviços de prestação de cuidados médico-dentários que celebraram, sob pena de enriquecerem à sua custa. As Rés contestaram. Na sua defesa alegaram que a actividade que exercem está isenta de IVA e ainda que o valor que acordaram com a Autora e inscrito nas respetivas faturas, foi um valor final, pugnando assim pela absolvição dos pedidos. Prosseguindo os autos e realizada a audiência final foi proferida sentença, que julgou procedente a acção e condenou as Rés conforme peticionado. 2. Da Apelação Inconformadas, as Rés interpuseram recurso de apelação e pediram a revogação do julgado e a consequente improcedência da acção. O Tribunal da Relação julgou procedente o recurso, revogou a sentença, e em substituição lavrou acórdão absolutório. 3. A Revista Inconformada, agora, a Autora interpôs recurso de revista, defendendo a revogação do acórdão e a repristinação da sentença que condenou os Réus nos pedidos formulados. A motivação do recurso termina com as seguintes conclusões: «A. Na petição inicial a autora, ora recorrente, expôs os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de facto e de direito que fundamentam a ação (artigo 552 nº 1 al d) do Código de Processo Civil); B. Na contestação as rés, ora recorridas, expuseram as razões de facto e de direito que as opõem à pretensão da autora, ora recorrente (artigo 572 al b) do Código de Processo Civil); C. Acontece que no artigo 33 da contestação as recorridas confessaram que era verdade o alegado nos artigos 1, 2, 3, 4, 5, 10, 12, 14, 19 e 36 da petição inicial: D. Acresce que as recorridas na sua contestação não impugnaram os documentos números 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20 e 21 juntos com a petição inicial; E. De entre esses documentos avulta o Relatório da Inspeção Tributária junto sob o nº 17 com a petição inicial, e que nas páginas 12 a 24 trata a questão do IVA em apreço nos autos; F. Na sequência o Tribunal a quo proferiu o despacho saneador no qual definiu o objeto do litígio e os temas de prova; G. O despacho saneador não foi objeto de qualquer reclamação, ficando assim assente; H. Realizada a audiência de julgamento o Tribunal de 1ª instância proferiu sentença condenatória; I. Nessa sentença foram dados como provados 21 factos e como não provado 1 facto, decisão que não foi impugnada pelas recorridas, pelo que constitui factualidade assente; J. As recorridas no seu recurso de apelação invocaram a nulidade da sentença da 1ª Instância, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigo 615 nº 1 al b) do Código de Processo Civil); K. Relativamente à factualidade provada – 21 factos e não provada – 1 facto, a mesma consta da referida sentença e é matéria assente; L. No que respeita à fundamentação de direito o Tribunal da 1ª Instância enunciou-a em sete densas páginas, já inseridas neste articulado; M. Estabelece o artigo 5 nº 3 do Código de Processo Civil que o Juiz não está sujeito às obrigações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito; N. Constituindo doutrina e jurisprudência unânime que somente se verifica a nulidade prevista no artigo 615 nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil, quando a sentença não especifica, em absoluto, os fundamentos de facto e de direito que a justificam; O. O que manifestamente não ocorreu no caso subjudice; P. Pois, em matéria de facto estão enunciados os 21 factos dados como provados e 1 facto como não provado; Q. E em matéria do direito o Tribunal de 1ª Instância decidiu que as faturas ajuizadas não beneficiavam da isenção do IVA prevista nos artigos 9 nºs 1,2 e 28, mas estavam sujeitas ao pagamento do imposto nos termos dos artigos 7, 8 e 18 nº 1 alínea c) do CIVA; R. Daqui decorre que a sentença da 1ª instância especificava os fundamentos de facto e de direito da mesma, não se verificando a nulidade prevista nos artigos 615 nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil); S. As recorridas alegaram que essa sentença era nula por omissão de pronúncia nos termos do artigo 615 nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil; T. Há omissão de pronúncia quando o Juiz deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça questões de que não podia tomar conhecimento; U. Constitui orientação dominante, que não podem confundir-se questões suscetíveis de conduzir à nulidade da sentença, com considerações, argumentos, motivos ou juízos proferidos pelas partes nos seus articulados; V. Desde logo porque o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5 nº 3 do Código de Processo Civil); W. Nesta senda o Tribunal da 1ª Instância fixou o objeto do litígio e os temas de prova no despacho saneador; X. Ora, confrontando a sentença da 1ª instância com os referidos objetos do litígio e temas da prova, verifica-se que todas as questões foram tratadas; Y. Não há, pois, qualquer omissão de pronúncia, não se verificando a nulidade prevista no artigo 615 nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil; Z. Como flui dos autos a recorrente estava obrigada a liquidar IVA nas faturas emitidas sobre as recorridas e relativas ao pagamento da contrapartida da cedência dos consultórios médicos com prestação de serviços, em cumprimento do disposto nos artigos 7, 8 e 18 nº 1 alínea c) do CIVA; AA. Por seu turno as recorridas estavam obrigadas a pagar esse IVA, porque não beneficiavam da exclusão do imposto previsto nos artigos 9 nº 1, 2 e 28 do CIVA; BB. Sendo que a incidência ou não do imposto não está na disponibilidade das partes contratantes, por ser de natureza e ordem pública e, por isso, imperativa; CC. Acontece que na emissão das faturas ajuizadas se indicou erradamente que as mesmas estavam isentas ao abrigo do artigo 9 do CIVA; DD. Ou seja, a recorrente não liquidou o IVA que era devido e as rés não procederam ao pagamento do imposto a que estavam obrigadas; EE. Contudo,, na sequência da inspeção feita à recorrente pela Autoridade Tributária, esta determinou que o IVA era devido e procedeu à sua liquidação; FF. IVA que a recorrente pagou, mas que constitui encargo fiscal das recorridas; GG. Daí que se tenha vindo a Juízo pedir o pagamento desses encargos no montante de € 108.798,09; HH. Quantia que a recorrente pagou, mas que é devida pelas recorridas por serem beneficiárias da prestação dos serviços; II. Daqui decorre que a recorrente empobreceu por € 108.798,09, montante pelo qual as recorridas enriqueceram; JJ. Não havendo causa justificativa para os sobreditos empobrecimento e enriquecimento; KK. Donde as recorridas estão obrigadas a restituir à recorrente a quantia de € 108.798,09, correspondente ao IVA que estavam adstritas a pagar nas faturas ajuizadas (artigo 473 nº 1 do Código Civil); LL. Sendo que o Tribunal de 1ª Instância decidiu como não provado que as recorridas não contratariam com a recorrente se soubessem que, àquelas quantias, acresceria imposto; MM. Facto que não foi impugnado pelas recorridas e ficou assente; NN. Mau grado isto as recorridas interpuseram recurso de apelação, a que o Tribunal a quo concedeu provimento; OO. No acórdão recorrido o Tribunal à quo considerou carecidas de solução as seguintes questões: a) Se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância enfermava do vício de nulidade; b) Se se justificava a alteração da solução jurídica dada ao caso pela 1ª Instância; PP. Relativamente à primeira questão a da nulidade da sentença, o Tribunal a quo julgou improcedente a arguida nulidade da sentença da 1ª Instância; QQ. Relativamente à segunda questão o acórdão recorrido declarou que era incontrovertido que: a) Entre a recorrente e as recorridas foi celebrado um contrato de prestação de serviços; b) Esta prestação de serviços está sujeita a IVA; RR. O Tribunal à quo defende, contudo que as recorridas não são devedoras porque “tal não resultou provado desde logo porque a Autora nunca o alegou”; SS. Esta afirmação do Tribunal a quo é inaceitável, porque está em absoluta contradição com a prova produzida e a factualidade dada como provada e não provada; TT. A recorrente pediu a condenação das recorridas no pagamento das quantias correspondentes ao IVA devido pelas faturas emitidas; UU. E fê-lo alegando os factos que sustentam o pedido e que constam designadamente dos artigos 40 a 49 da petição inicial; VV. Os quais em síntese se consubstanciam no seguinte: a) A recorrente estava obrigada a liquidar IVA nas faturas emitidas sobre as sociedades recorridas; b) A recorrente procedeu ao pagamento desse IVA; c) Imposto que as recorridas estavam obrigadas a pagar e não pagaram; d) Tendo, por isso, a recorrente um direito de crédito sobre as recorridas, que através desta ação se veio exigir judicialmente; WW. Por seu turno as recorridas contraditaram esses factos designadamente nos artigos 6, 7, 29, 30, 31 e 31 da sua contestação; XX. E o Tribunal da 1ª instância para apreciar e decidir esta vexata quaestio fixou, entre outros, os seguintes temas de prova: - Do concreto acordo feito entre a autora e os réus; - Faturas emitidas pela autora aos réus ao longo do tempo, fundamento para a emissão das faturas; - Do acordo entre as partes quanto ao montante a pagar pelos réus, apurar se se tratava de um valor líquido ou eventualmente sujeito a tributação; YY. Foram estes temas objeto de discussão em audiência de julgamento; ZZ. Daí a factualidade dada como provada e não provada pelo Tribunal da 1ª Instância, onde avulta que não ficou provado que as recorridas não contratariam com a recorrente se soubesse que às quantias das faturas acresceriam impostos; AAA. Em consequência desta factualidade provada e não provada, o Tribunal de 1ª instância condenou as recorridas a pagar as quantias peticionadas pela recorrente; BBB. Daqui resulta que é um erro clamoroso do Tribunal a quo declarar-se que a questão de saber se as recorridas eram devedoras do IVA pago pela recorrente não foi alegada, discutida e sentenciada; CCC. Chegados aqui apresenta-se como incontrovertido que: a) A prestação dos serviços efetuados pela recorrente em benefício das recorridas está sujeito a IVA; b) Que a recorrente pagou esse IVA; c) E que as recorridas são devedoras desse IVA à recorrente; DDD. Aliás o erro cometido na emissão das faturas, a saber: a) Menção que eram relativas à prestação de serviços médico-dentários; b) E que a respetiva prestação estava isenta de IVA ao abrigo do artigo 9 nº 1 do CIVA; EEE. Não exonera as recorridas de serem devedoras desse IVA; FFF. Isto é, o montante pelo qual as faturas foram emitidas não era o valor final a pagar pelas recorridas, mas o valor do serviço prestado pela recorrente, ao qual acresce por imposição fiscal o respetivo IVA; GGG. Sendo que para o caso subjudice o entendimento sobre se estamos perante uma substituição tributária ou uma repercussão fiscal, é completamente indiferente; HHH. Em substância o que relava é que a prestação de serviços da recorrente está sujeita a IVA; III. E que este IVA é devido pelos beneficiários dessa prestação, ou seja, pelas recorridas; JJJ. Como se deixou alegado e provado a recorrente fez a prova dos factos constitutivos do direito alegado, dando cumprimento ao disposto no artigo 342 nº 1 do Código Civil; KKK. As recorridas é que não lograram provar os factos impeditivos do direito invocado, porque não provaram que não contratariam com a recorrente se ao valor faturado acrescesse o IVA, como o impõe o artigo 342 nº 2 do Código Civil; LLL. A recorrente continua a entender que a questão ajuizada deve ser subsumida ao disposto no artigo 473 nº 1 do Código Civil; MMM. Preceito que dispõe que aquele que, sem causa justificativa, enriquece à custa de outro é obrigado a restituir aquilo com que injustamente de locupletou; NNN. Na verdade, no caso em apreço e relativamente às faturas ajuizadas a recorrente pagou de IVA € 108.798,09; OOO. IVA que é devido pelas recorridas e que estas não pagaram; PPP. Donde a recorrente empobreceu por € 108.798,09; QQQ.E as recorridas enriqueceram por esta montante, porque o não pagaram embora o devam; RRR. Não havendo causa justificativa para os referidos empobrecimento e enriquecimento; SSS. Pelo que a recorrente é credora das recorrida pelo valor do IVA que liquidou e pagou relativamente às faturas emitidas sobre as recorridas; TTT.O acórdão recorrido decidiu contra os factos alegados e a prova produzida, fazendo errada interpretação e aplicação da lei, pelo que deve ser revogado com as legais consequências. Termos em que se requer a V Exas se dignem conceder provimento ao presente recurso de revista, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, mantendo o decidido pelo Tribunal de 1ª Instância.» * Em resposta, as rés sustentaram a improcedência da revista, acolhendo-se na fundamentação do acórdão impugnado. II. Objecto do recurso Estão reconhecidos os pressupostos gerais de recorribilidade do acórdão e atestados os fundamentos da admissibilidade da revista, conforme o que dispõem os artigos 629º, nº1, 671º, nº1, e 673, nº1, al) a do CPC. As conclusões do recorrente delimitam o objecto do recurso (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Sob tais coordenadas, haverá que decidir se, as Rés devem reembolsar a Autora do valor do IVA que pagou por determinação da Autoridade tributária e não contemplado nas facturas emitidas. O tema decisório convoca as seguintes questões: i. A relação jurídica subjacente e o sujeito passivo da obrigação tributária; ii.    A responsabilidade pela omissão de liquidação do IVA; iii.    Os pressupostos do enriquecimento sem causa. III. Fundamentação A.    Os Factos Vem provado das instâncias: 1 – A autora, Manuel Neves - Clínica de Medicina Dentária, Lda., tem por objecto a prestação de serviços no âmbito da medicina dentária, tendo uma clínica de medicina dentária instalada na Rua ...; 2 – Clínica que dispõe de vários consultórios dotados de equipamentos e materiais dentários, receção, sala de espera, sala de esterilização, tudo em pleno funcionamento; 3 – Nessa clínica trabalham pessoas qualificadas para o desempenho das funções de assistente de medicina dentária, rececionistas e técnico de manutenção, assegurando assim o normal funcionamento dos serviços para a prática da medicina dentária; 4 – Em alguns dos referidos consultórios trabalharam médicos-dentistas, sob a forma de sociedade comercial por quotas, preservando assim a sua independência profissional e autonomia pessoal e fiscal, fazendo seus os honorários cobrados aos respetivos pacientes; 5 – Neste âmbito a autora disponibilizou um espaço, em regime de exclusividade, destinado à prática de medicina dentária; equipamentos necessários ao desenvolvimento da atividade clínica; fornecimento de água, energia e telecomunicações necessárias a essa atividade clínica; 6 – No que diz respeito a serviços, a autora disponibilizou: serviços de receção aos pacientes, procedendo ao seu acolhimento e acomodação; serviços de assistente de medicina dentária durante o tempo de utilização do consultório; serviços administrativos e de gestão geral da clínica, incluindo o serviço de marcações e confirmação de consultas; serviço de esterilização dos equipamentos e materiais dentários; serviço de urgência, mediante aviso ao médico do paciente, sempre que este solicitasse um pedido de assistência urgente; 7 – As rés, Célia Coutinho Alves - Medicina Dentária, Lda., Couto Viana - Medicina Dentária, Lda. e Ivo Teixeira Lopes - Medicina Dentária, Lda., beneficiaram da disponibilização pela autora dos consultórios, equipamentos e serviços acima referidos; 8 – Como contrapartida da sobredita disponibilização a autora emitia mensalmente faturas sobre as rés que estas liquidavam; 9 – Assim, nos anos de 2015, 2016 e 2017 a autora Manuel Neves – Clínica de Medicina Dentária, Lda., emitiu sobre a Primeira Ré Célia Coutinho Alves - Medicina Dentária, Lda., faturas no montante global de € 169.500,00; 10 – Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018 a autora Manuel Neves – Clínica de Medicina Dentária, Lda. emitiu sobre a Segunda Ré Couto Viana – Medicina Dentária, faturas no montante global de € 159.600,00; 11 – Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018 a autora Manuel Neves – Clínica de Medicina Dentária, Lda. emitiu sobre a Terceira Ré Ivo Teixeira Lopes – Medicina Dentária, Lda. faturas no montante global de € 169.000,00; .12 – Nessas faturas e como fundamento da sua emissão foi indicada a “prestação de serviços médicos dentários”; 13 – O que originou que a autora não liquidasse e cobrasse às rés o IVA - Imposto sobre o Valor Acrescentado sobre os respetivos montantes, ou seja, não debitou o IVA sobre as mencionadas faturas e as rés não procederam ao pagamento deste imposto; 14 – A Autoridade Tributária realizou uma inspeção fiscal à autora, cujo resultado está plasmado no Relatório junto aos autos com a petição inicial sob o Doc. nº 2, cujo teor se dá por reproduzido; 15 – Tal Relatório determinou a correção do IVA sobre as faturas acima referidas, correção que ascendeu ao montante global de € 108.798,09 (referido doc.); 16 – Como consta do Relatório, o objeto da prestação da autora às sociedades rés consubstanciou-se na cedência de um espaço correspondente a um consultório médico, integrando as prestações de serviços conexos com a utilização do consultório e indispensáveis à sua exploração ativa, como acima referido; 17 – Como a sociedade autora não liquidou esse IVA, as sociedades rés não procederam ao seu pagamento e a sociedade autora não entregou o imposto à Autoridade Tributária; 18 – Contudo, na sequência da inspeção feita à sociedade autora a Autoridade Tributária determinou que o IVA era devido e procedeu à sua liquidação, IVA que a autora pagou (doc. nº 18 junto com a petição inicial); 19 – Assim a título de IVA, a autora pagou € 30.943,00 relativamente à primeira ré, € 38.985,00 relativamente à segunda ré e € 38.870,00 relativamente à terceira ré; 20 – A autora, em 2022, por carta registada, interpelou as rés para pagamento daquelas quantias, o que estas não fizeram; 21 – Quando contrataram entre si, a autora e as rés não pensaram na questão de eventuais impostos que fossem devidos por esses contratos. E, não provado: - As rés não contratariam com a autora se soubessem que, àquelas quantias, acresceriam impostos. B.    O Direito 1.A Autora pretende ser reembolsada da quantia que despendeu por imposição da autoridade tributária, correspondente ao IVA devido sobre o valor dos serviços prestados às Rés e o qual, por desconhecimento não foi incluído nas facturas. As Rés declinaram o pagamento, alegando, entre o demais, que nunca contratariam com a Autora se soubessem que ao respetivo valor acresceria aquele imposto. O Tribunal de primeira instância concluiu pela procedência da acção e condenou a Rés no pagamento dos valores peticionados. Em fundamentação síntese considerou, que perante a falta de liquidação do IVA, a Autora pagou o respetivo valor devido ao Estado em regime de substituição tributária, sendo por isso devido o reembolso pelas Rés, sujeitos passivos da obrigação. O Tribunal da Relação considerou, ao invés, que a Autora é o sujeito passivo da obrigação tributária, pelo que não resultando prova de qualquer incumprimento contratual por parte das Rés, concluiu pela improcedente a acção. A Autora reitera a alegada obrigação de restituição pelas Rés da quantia que pagou sob pena de locupletamento obtido à custa da Autora. Em jeito antecipatório da exposição, a revista procede em parte, assentando, embora, em motivação não coincidente com a alegação da recorrente. 2. É sabido que o Imposto de Valor Acrescentado incide sobre o preço do produto ou do serviço prestado – artº 36º, nº 5, alíneas c) e d), do CIVA, sendo o consumidor final que suporta o pagamento do valor correspondente - artº 7º do CIVA; ao transmitente dos bens ou o prestador dos serviços – sujeito passivo da obrigação tributária - compete pagar à administração fiscal. A obrigação de pagar o IVA correspondente traduz-se numa obrigação legal, que independe da vontade das partes e cujo facto constitutivo consiste na ocorrência da situação sujeita àquela tributação. A salientar que por força dos imperativos fiscais, o imposto sobre o valor acrescentado, com génese na transmissão de bens ou prestação de serviços, tem por único sujeito passivo, a quem onera o vínculo de o pagar à administração fiscal, o transmitente dos bens ou o prestador dos serviços , mas que onera, na sua estrutura finalística, o consumidor final ; pelo que, salvo convenção em contrário, está obrigado, enquanto contribuinte de facto, a entregar à autora a importância correspondente ao IVA sobre a operação contratada. Na situação em análise, apurou-se de relevante que os valores facturados e pagos pelos serviços prestados pela Autora não incluíram o IVA. Na sequência da acção fiscalizadora da Autoridade Tributária, a Autora procedeu à entrega superveniente do total do IVA sobre os serviços prestados. Serão as Rés responsáveis pela omissão da liquidação do IVA, na qualidade de beneficiárias dos serviços? 3. Apreciando. Ao momento mostra-se incontroverso que: •    Mediante contrapartida monetária, a Autora cedeu às Rés o espaço e prestou serviços conexos à prática da medicina dentária para realizarem consultas da especialidade; •    A Autora e as Rés desenvolvem as suas actividades com fim lucrativo e carácter de habitualidade.1 •    As Rés não beneficiam de isenção legal de IVA no exercício da medicina dentária; •    As facturas emitidas pela Autora e pagas pelas Rés não incluíram o IVA;2 •    Em resultado da fiscalização pela Autoridade Tributária, detectada a irregularidade da faturação, a Autora procedeu ao pagamento da quantia correspondente à liquidação superveniente do Iva; •    Não se apurou qualquer convenção acerca do preço dos serviços incluir ou não o IVA. No acórdão recorrido ajuizou-se, em suma, que a ocorrida desconformidade da faturação é da inteira responsabilidade da Autora, como reproduz o excerto seguinte: “(..) É certo que a Autora fez inscrever nas faturas em questão, como fundamento da respetiva emissão, “prestação de serviços médicos dentários”, sendo que os serviços efetivamente prestados às Rés não se inscreviam naquela categoria. Porém discrepância de tal declaração com a realidade apenas à própria Autora pode ser imputada, não existindo nenhum facto apurado que nos permita sequer ter como indiciada qualquer atuação ilícita das Rés na celebração e execução do contrato, desde logo à luz do princípio da boa-fé negocial, a ponto de podermos estar perante um erro de declaração para o qual de alguma forma também contribuíram e, como tal geral, gerador de algum tipo de responsabilidade contratual. (..).” 4.O enquadramento jurídico da factualidade que acima se destacou, sugere, salvo o devido o respeito, outra solução da causa. E, a resposta decorre da aplicação do disposto no artigo 79.º do CIVA “Responsabilidade solidária do adquirente” 1 - O adquirente dos bens ou serviços tributáveis que seja um sujeito passivo dos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, agindo como tal, e não isento, é solidariamente responsável com o fornecedor pelo pagamento do imposto quando a fatura obrigatória não tenha sido passada, contenha uma indicação inexata quanto ao nome ou endereço das partes intervenientes, à natureza ou à quantidade dos bens transmitidos ou serviços fornecidos, ao preço ou ao montante de imposto devido. 2 - O adquirente ou destinatário que prove ter pagado ao seu fornecedor, devidamente identificado, todo ou parte do imposto devido é liberto da responsabilidade solidária prevista no número anterior, pelo montante correspondente ao pagamento efectuado, salvo no caso de má-fé. 3 - Sem prejuízo da responsabilidade solidária pelo pagamento prevista nos números anteriores, a responsabilidade pela emissão das faturas, pela veracidade do seu conteúdo e pelo pagamento do respetivo imposto, nos casos previstos no n.º 14 do artigo 29.º, cabe ao sujeito passivo transmitente dos bens ou prestador dos serviços. 4 - Não obstante o disposto nos números anteriores, nos casos em que o imposto resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura, o adquirente dos bens ou serviços que seja um sujeito passivo dos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, agindo como tal, e ainda que isento de imposto, é solidariamente responsável, pelo pagamento do imposto, com o sujeito passivo que na fatura figura como fornecedor dos bens ou prestador dos serviços. 5 - A responsabilidade solidária prevista no número anterior é aplicável ainda que o adquirente dos bens ou serviços prove ter pagado a totalidade ou parte do imposto ao sujeito passivo que na fatura figura como fornecedor dos bens ou prestador dos serviços.”3 Da economia do preceito extrai-se, que verificada desconformidade da factura com a realidade da operação realizada e causa da falta/montante da liquidação e entrega do IVA ao Estado, a cargo do fornecedor dos serviços tributados, é da responsabilidade solidária do adquirente dos serviços, não isento, salvo se demonstrar que pagou (ou em parte) ao fornecedor o referido imposto. Na responsabilidade solidária cada um dos devedores responde pela totalidade da obrigação (art. 512º do CC), sem prejuízo do direito de regresso, que nas relações internas assiste ao devedor que cumpriu a obrigação (artigo 516º do CC). No caso ajuizado: •     Em consequência de uma fiscalização à contabilização da autora pelos Serviços de Autoridade Tributária foi detectada irregularidade nas facturas emitidas às Rés pelos serviços prestados; •     Determinando que a Autora procedesse à regularização da situação, com liquidação do IVA incidente sobre o valor total das facturas que aquela pagou ao Estado. •     Valor do IVA afinal devido legalmente sobre a operação e que logrou demonstrar e que foi excluído das quantias pagas pelas Rés e de que deu quitação;4 •     Não se apurou acordo em sentido contrário, ou elementos que indiciem simulação ou má-fé. Estão assim preenchidos os pressupostos de aplicação do citado nº1, do artigo 79º do CIVA. Ou seja, tendo a Autora provado que o preço/valor dos serviços que recebeu das Rés não incluiu o IVA, ao ter de o pagar por imposição da AT, suportou uma prestação que tinha o direito de repercutir na esfera jurídica das Rés- consumidoras finais- pagando uma prestação da sua responsabilidade. É assim legítimo à Autora exercer o direito de regresso contra as Rés, no domínio das relações internas, fundado no regime legal da responsabilidade solidária do adquirente dos serviços prestados e compreendido no citado normativo. Por último, na ausência de prova de factualidade que aponte para diversa repartição da responsabilidade das partes pelo sucedido, atendo o disposto no artigo 516º do Civil, enquanto devedores solidários, a Autora e Rés comparticipam em partes iguais na dívida. Em situação fáctica de contornos semelhantes ao caso sub judice, assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça pelo seu Acórdão de 31-03-2009: 5 «(..) III - O adquirente dos bens ou serviços tributáveis que seja um sujeito passivo de IVA, agindo como tal e não estando isento de imposto, é solidariamente responsável com o fornecedor pelo pagamento do IVA se a factura ou o documento equivalente não tiver sido passada ou contiver uma indicação inexacta quanto ao nome ou endereço das partes intervenientes, à natureza ou à quantidade dos bens transmitidos ou serviços fornecidos, ao preço ou ao montante do imposto devido. V- Tendo a autora pago coercivamente a totalidade do IVA devido por conta dos serviços prestados, na sequência da detecção da sobredita irregularidade tributária e da subsequente instauração do processo de execução fiscal, assiste-lhe o direito de reclamar da ré metade da importância por si liquidada (art. 516.º, n. º 1, do CC). (…)».6 * Fica prejudicada a apreciação da causa alicerçada no invocado instituto do enriquecimento sem causa- artigo 474º do CC- atenta a sua natureza subsidiária e residual e a sede legal própria de subsunção da pretensão da recorrente. * IV- Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes na procedência parcial da revista e, em consequência a.      Revogam o acórdão recorrido; b.    Condenam as Rés a pagar à Autora metade do valor da liquidação do IVA correspondente às respectivas facturas. * As custas são a cargo de ambas as partes, na medida do seu decaimento. Lisboa, 16.01.2025 Isabel Salgado (relatora) Maria da Graça Trigo Declaração de voto Votei parcialmente vencida por considerar que o regime de responsabilidade solidária previsto no art. 79.º do Código do IVA respeita apenas às relações entre, por um lado, o fornecedor e o adquirente dos serviços prestados, e por outro, a administração fiscal, sem que, nas relações internas entre aqueles se aplique o regime civilístico do direito de regresso; a tais relações é antes aplicável o regime geral do IVA, de acordo com o qual o fornecedor faz repercutir o valor do IVA sobre os adquirentes. Teria assim julgado o recurso totalmente procedente, condenando-se as rés a pagar à autora a totalidade do valor do IVA liquidado correspondente às facturas em causa. Orlando dos Santos Nascimento ______ 
 1. Não integra contrapartida da realização de prestações de serviços isentas nos termos do artigo 9.º n.º 1 e 2, e artigo 9.º n.º 29.º, todos do Código do IVA (CIVA), por se tratar de prestações de serviços conexos com a prestação de assistência médica. 2. Como observou o tribunal de primeira instância a cedência remunerada de espaços para a realização de consultas médico-dentárias não constitui uma prestação acessória ou estreitamente conexa com a prestação de serviços médicos abrangidos pela isenção prevista no n.º 2 do artigo 9.º do Código do IVA. 3. Com a redacção conferida pelo Artigo 2.º do/a Decreto-Lei n.º 197/2012 - Diário da República n.º 164/2012, Série I de 2012-08-24, em vigor a partir de 2013-01-01. 4. Na falta de convenção em contrário, cabe ao consumidor final, nos termos gerais do artº 342º, nº 2, do CC, o ónus de provar a existência de acordo segundo o qual o valor de IVA estava incluído no valor negociado acordado como preço final a pagar. 5. No Proc. nº 09A00531.ª in www.dgsi.pt. Na versão do CIVA então vigente e aplicável no caso, a matéria estava prevista no artigo 72º, correspondente ao actual artigo 79º. 6. Prosseguindo, aliás, a linha decisória em situação análoga apreciada no Acórdão do STJ de 16.12.1999- proc nº 204/98, in www.dgsi.pt.  |