Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | JÚLIO PEREIRA | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS PORNOGRAFIA DE MENORES TRATO SUCESSIVO MEDIDA CONCRETA DA PENA CÚMULO JURÍDICO PENA ÚNICA | ||
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Data do Acordão: | 02/20/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIENTO AO RECURSO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL – PARTE GERAL / FACTO / FORMAS DO CRIME / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CRIME CONTINUADO / EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL / PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS / PORNOGRAFIA DE MENORES. DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / COMPETÊNCIA TERRITORIAL. | ||
Doutrina: | - Edmund Mezger, Tratado de Derecho Penal, tomo II, Madrid, 1955, p. 358; - Ferrando Mantovani, Diritto Penale, CEDAM, 4.ª edição, 2001, p. 510 e ss.; - H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, Bosch1981, p. 1000 e ss.; - J. L. González Cussac, T. S. Vives Antón coord., Comentarios al Código Penal de 1995, vol. I, Tirant lo Blanch, 1996, p. 420 e ss.; - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 2012, p. 1039 ; Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, p. 493; - M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal parte geral e especial, 3.ª edição actualizada, Almedina, 2018, p. 819; - M. Paula Ribeiro de Faria, Formas Especiais do Crime, UCE Porto, 2017, p. 407; - Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias, Notas substantivas sobre crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, Revista do Ministério Público n.º 136, out.-dez 2013, p. 70; - V. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria do Crime, UCE, 2015, p. 431. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.ºS 1, 2 E 3, 40.º, N.ºS 1 E 2, 79.º, 119.º, N.º 2, ALÍNEAS A) E B), 171.º, N.ºS 1 E 2, 176.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C) E 177.º, N.º 5. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 19.º, N.º 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 862/11.6TAPFR.S1; - DE 06-04-2016, PROCESSO N.º 19/15.7JAPDL.S1; - DE 20-04-2016, PROCESSO N.º 657/13.2JAPRT.P1.S1; - DE 18-01-2018, PROCESSO N.º 239/11.3TALRS.L1; - DE 22-03-2018, PROCESSO N.º 467/16.5PALSB.L1.S1. | ||
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Sumário : | I - O chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art. 30.º, n.º 2 do CP). II - A categoria de crime de trato sucessivo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [art. 119.º, n.º 2, al. a), do CP], o crime continuado [arts. 119.º, n.º 2, al. b), 30.º, n.ºs 2 e 3, e 79.º] e o crime habitual [art. 119.º, n.º 2, al. b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [art° 19°, n° 2, do CPP]. III - Dado que os crimes praticados pelo arguido [1 crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP e de 9 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 5, do CP (na redacção dada pela Lei 59/2007, de 04-09)], protegem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoa e, para além disso, cada um dos crimes ofendeu uma diferente vítima, e porque a conduta do arguido não se enquadra em qualquer das designações supra mencionadas tem a mesma que ser punida de acordo com as regras do concurso efectivo constantes do art. 30.º, n.º 1 do CP. IV - Dado que o acórdão recorrido considerou o grau de violação dos deveres que se impunham ao arguido e a forma insidiosa da sua conduta, traduzida em se fazer passar no Facebook por jovem adolescente, umas vezes de sexo feminino, outras de sexo masculino, para desta forma persuadir os menores ofendidos a exibirem-se nus ou em plena manipulação dos órgãos genitais perante a webcam ou a filmarem-se e fotografarem-se nestes termos e enviar-lhe os respectivos ficheiros, diferenciando o grau de ilicitude dos diferentes atos praticados pelo arguido atribuindo grau moderado aqueles de que foram vítimas os menores que resistiram ao aliciamento e reconhecendo que, relativamente a estes menores, as consequências do crime "serão de diminuto relevo", teve em conta o percurso de vida do arguido, as suas condições pessoais, contexto familiar e laboral, não deixando também de atender ao elevado grau de culpa, a natureza do dolo e o crescendo de ilicitude, considera-se que as penas de prisão aplicadas que variaram entre 1 ano e 8 meses, 1 ano e 10 meses e 2 anos e 2 anos e 6 meses de prisão que foram fixadas dentro de uma moldura entre um mínimo de 1 ano e 6 meses e 7 anos e 6 meses de prisão, de forma alguma se podem considerar desproporcionadas ou excessivas. V - O facto de o arguido não ter contactado pessoalmente com os ofendidos compreende-se à luz do anteriormente considerado, já que em tais circunstâncias não seria possível utilizar um falso perfil. Em qualquer caso a ausência de contactos pessoais com os menores nada significa de per se, sendo irrelevante no contexto da medida da pena. VI - Irrelevante é também a não transmissão a terceiros de filmes, vídeos ou fotografias, o que constituiria uma outra modalidade de realização do crime «art. 176.º, n.º 1 alínea c)». O nosso direito penal é direito penal do facto. A medida da pena é determinada em função daquilo que o arguido fez e não do que não fez, ainda que o pudesse ter feito. VII - A determinação da medida da pena única faz-se por referência à conduta do arguido globalmente considerada no quadro de um sistema que assinala como fim primário das penas a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e elege a culpa como fundamento e medida da pena (art. 40.º, n.ºs 1 e 2 do CP). VIII - Perante uma moldura penal abstracta de cúmulo entre 4 anos e 21 anos e 4 meses de prisão, ponderando o facto de a conduta do arguido se ter desenvolvido ao longo de pelo menos seis anos sem que se tenha confrontado a si próprio com a anomalia da sua conduta, dado tratar-se comprovadamente de pessoa com formação acima da média, elevado funcionamento cognitivo (acima da média), não se ignorando o empenho que ele tem revelado no tratamento a que se tem sujeitado face ao diagnóstico de perturbação de pedofilia e voyeurismo, mas que era, porém, exigível e seria expectável, que pessoa racional dotada de elevada capacidade cognitiva de que o arguido é dotado, se empenhasse num comportamento pautado por maior fidelidade ao direito e motu proprio procurasse ajuda especializada, até porque no seu desempenho profissional lidava diariamente com crianças e que se é certo que tal facto é em certo grau mitigador da culpa mas não permite, por outro lado, formular um diagnóstico de mera pluriocasionalidade, apontando antes para uma tendência ou uma pulsão para a prática dos atos por que foi condenado a que não será alheio o também comprovado desajustamento social e as perturbações associadas a défices no controlo dos impulsos que levam à passagem ao ato e limitada tolerância à frustração, circunstâncias que apontam também para o reforço das necessidades de prevenção especial, não merece censura a pena única de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada em 1.ª instância. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1.1 - Por acórdão de 6 de julho de 2018, do tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de ---, foi o arguido AA condenado,pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de infracções, nas seguintes penas de prisão: a) quatro anos por um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171º nºs 1 e 2 do Código Penal (na redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09); b) um ano e oito meses por meses um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº5 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09), sendo ofendido BB; c) um ano e dez meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09), sendo ofendido CC; d) dois anos por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08), de que foi ofendido DD; e) um ano e dez meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09) sendo ofendido ofendido EE; f) um ano e dez meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08), sendo ofendido FF; g) um ano e dez meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09), sendo ofendido GG; h) dois anos por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08), sendo ofendido HH; i) um ano e dez meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08), sendo ofendido II; j) dois anos e seis meses por um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176º nº1 alínea b) e 177º nº7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08), sendo ofendido JJ. Operando o cúmulo jurídico das referidas penas foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Foi ainda o arguido condenado no pagamento de indemnizações a cinco dos ofendidos e na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de dez anos , por força do disposto no artigo 69º-B nº2 do Código Penal.
1.2 - Inconformado, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, pelas razões constantes das conclusões da sua motivação de recurso: “(…) 1.O presente recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito e vem interposto, para este Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão condenatório proferido em primeira instância, pelo tribunal coletivo, que, considerando existir concurso real de infrações, aplicou ao arguido uma pena conjunta de seis anos e seis meses de prisão (cfr. Acórdão deste STJ, de fixação de jurisprudência, n.º 5/2017, e artigo 432.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do Código de Processo Penal - doravante designado por CPP). 2.São fundamentos do recurso os seguintes: A) - Os factos imputados ao arguido e dados como provados consubstanciam a prática de um único crime exaurido ou de trato sucessivo uma vez que foram praticados sob uma “unidade resolutiva”; B)- Nos crimes de trato sucessivo a punição faz-se pelo ilícito mais grave cometido, agravada nos termos gerais pela sobreposição dos demais; C)- A não se entender assim, e punindo-se em concurso real de infrações, as penas parcelares aplicáveis a cada crime deverão situar-se nos respetivos mínimos; D)– A pena a aplicar em qualquer caso (no caso de crime de trato sucessivo ou, assim não se entendendo, no concurso real de infrações levado a cabo pelo Tribunal recorrido) deve situar-se em medida que não ultrapasse os cinco anos de prisão, que sempre deverá ser suspensa na sua execução;
3. CRIME DE TRATO SUCESSIVO; PUNIÇÃO: O tribunal recorrido decidiu condenar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de infrações (além da pena acessória e da indemnização a favor de cinco dos ofendidos): de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo artigo 171.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 59/2007 de 04-09) na pena de 4 (quatro) anos de prisão. a) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 5 (redação dada pela Lei n º 59/2007 de 04-09) – ofendido BB – na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão. b) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09) – ofendido CC – na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão. c) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º7 (redação dada pela Lei n.º 103/2015 de 24-08) – ofendido DD – na pena de 2 (dois) anos de prisão. d) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09) – ofendido EE – na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão. e) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08) – ofendido FF – na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão. f) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º6 (redação dada pela Lei nº59/2007 de 04-09) – ofendido GG – na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão. g) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08) – ofendido HH – na pena de 2 (dois) anos de prisão. h) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º7 (redação dada pela Lei nº103/2015 de 24-08) – ofendido II – na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão. i) de um crime de pornografia de menores agravado previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 7, (redação dada pela Lei n.º 103/2015 de 24-08) – ofendido JJ – na pena de 2 (dois) ano e 6 (seis) meses de prisão. 4. Operando o cúmulo jurídico de todas estas penas parcelares referidas, a decisão recorrida condenou o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. 5. Dá-se aqui por reproduzido na íntegra o elenco de factos considerados como provados na decisão recorrida. 6. Para o que aqui interessa (questão do denominado crime de trato sucessivo) dá-se aqui por reproduzido o teor dos factos dados como provados de 1 a 9 na decisão recorrida.: 7. Como resulta claramente desses factos ora dados como reproduzidos, o arguido gizou todo um plano com vista a desenvolver uma «atividade» consistente na prática dos atos de cariz sexual ali descritos de forma genérica e, depois, descritos concretamente nos factos dados como provados nos n.ºs 10 a 55. 8. Como diz Eduardo Correia, (RLJ, ano 100, nº 3350-3357, citado no código penal anotado de P.P. Albuquerque) «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação», além de que deverá ainda ocorrer uma homogeneidade na conduta do agente, prolongada no tempo e em que os tipos de ilícito em causa sejam os mesmos ou, se diferentes, protejam essencialmente o mesmo bem jurídico ou bens jurídicos semelhantes. É o que se passa no caso dos autos. 9. Os factos integram a prática de vários crimes de pornografia de menores e um crime de abuso sexual de criança, todos eles consubstanciados numa conduta homogénea do arguido, prolongada no tempo e decidida previamente através do «plano» mencionado em 6 dos factos provados. 10. Além de que o bem jurídico protegido por ambas as incriminações é a liberdade de desenvolvimento da autodeterminação sexual do menor. 11. A doutrina e a jurisprudência têm entendido que os denominados crimes de trato sucessivo, também chamados de exauridos, prolongados, protelados, apesar de se desdobrarem em várias condutas, são tratadas como um só crime, tanto mais grave quanto mais repetido. 12. E ao contrário do que sucede no crime continuado, nos crimes de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa, mas, sim, um seu agravamento crescente à medida que a conduta se vai repetindo. Mas o fundamental é que há um único momento volitivo que faz desencadear todas as condutas, aglutinando-as todas, as primeiras e as subsequentes, motivo pelo qual se exclui o concurso real de infrações de acordo com o n.º 1, do art.º 30.º, do Código Penal. 13. certo que têm também entendido a doutrina e a jurisprudência que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave. 14.Enumeram-se de seguida alguns acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de onde resulta o mencionado entendimento: • Ac. STJ, de 02-10-2003, pr. 2606/03-5.ª, in CJ-STJ 2003, tomo 3, pág. 194; • AC. STJ, de 12-07-2006, pr. 1709/06 – 3.ª Secção • Ac. STJ, de 03-10-2007, pr. 2271 – 3ª Secção; • Ac. STJ, de 14-06-2007, pr. 1580/07-5.ª, CJ-STJ 2007, tomo 2, pág. 220; • Ac. STJ, de 23-1-2008, pr. 4830/07-3.ª Secção; • Ac. STJ, de 21-10-2009, pr. 33/08.9 TAMRA.E1. S1-3.ª Secção; • Ac. STJ, de 7-1-2010, pr. 922/09.1 GAABF-5.ª, CJ-STJ 2010, tomo 1, pág. 176; • Ac. STJ, de 20-1-2010, pr. 19/04.2JALRA.C2. S1-3.ª Secção; • Ac. STJ, de 29/11/2012, pr. 862/11.6TAPFR.S1 – 5.ª Secção; 15. Transpondo este entendimento para o caso dos autos, e como resulta dos factos provados de 1 a 9 já acima transcritos, e atento o que acima deixámos dito, deve a punição do arguido ser feita através do crime mais grave imputado, ou seja, única e exclusivamente pelo o crime de abuso sexual de criança p.e p. pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal (redação da Lei n.º 9/2007, de 04 de setembro) e, assim, aplicar-se ao arguido uma pena única de quatro anos de prisão – afinal, a pena parcelar aplicada a este crime no acórdão recorrido – ou, a não se entender assim, numa pena única de prisão que não deverá ultrapassar os cinco anos (atenta a prática de toda a atividade criminosa do arguido, consubstanciada também na pornografia de menores, e atento ainda o progressivo agravamento da culpa verificado com a reiteração da conduta). 16. Esta pena a aplicar ao arguido, deverá sempre ser suspensa na respetiva execução nos precisos termos que vão descritos na parte final desta motivação. 17.A medida da pena que acima preconizamos (quatro anos de prisão ou, assim não se entendendo, pena de prisão nunca superior a cinco anos e, em qualquer caso, com suspensão da respetiva execução), justifica-se por vários motivos que mais à frente abordaremos. 18. CONCURSO REAL DE CRIMES, PENAS PARCELARES: Acaso porventura se entenda que os factos imputados ao arguido e dados como provados na decisão recorrida não integram a prática do denominado crime de trato sucessivo e que, tal como decidido na primeira instância, consubstanciam a prática de nove crimes de pornografia de menores e de um crime de abuso sexual de crianças, a punir em concurso real de infrações, deverão as penas parcelares que foram aplicadas a cada um dos crimes de pornografia de menores agravados, consubstanciados exclusivamente no ALICIAMENTO previsto na parte final da alínea b), do n.º 1, do art.º 176.º, do Código Penal, ser reduzidas aos mínimos legalmente previstos. 19. Na verdade, nos crimes mencionados, em que foram ofendidos CC, EE, FF, GG e II, os menores sempre recusaram aceder aos pedidos do arguido de cariz sexual, como decorre expressamente dos factos dados como provados na decisão recorrida, sob os n.ºs 13 a 20, 28 a 31, 32 a 35, 36 a 38 e 43 a 47. 20. Trata-se do crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 176.º, n.º1, alínea b) e 177.º, n.º 6 (na redação da Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro), ou n.º 7 (na redação da Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto) do Código Penal e que, como se diz na decisão recorrida, é punido com pena de prisão de 1 ano e 6 meses a 7 anos e 6 meses. 21. Com efeito, tendo-se verificado a recusa dos menores em aceder aos pedidos do arguido de cariz sexual, as consequências sofridas pelos ofendidos com a prática do aliciamento criminal, são bem menos graves do que seriam se aquele resultado se tivesse verificado. 22. Bem sabemos que este exclusivo «aliciar» consubstancia também uma forma de consumação do crime; de qualquer modo, o desvalor do resultado sobre os bens jurídicos protegidos é substancialmente menor do que seria acaso os ofendidos tivessem acedido aos pedidos de cariz sexual do arguido. 23. Na verdade, seria bem mais grave a conduta do arguido se porventura os menores tivessem acedido a desnudarem-se e a, assim, se fotografarem ou filmarem como o arguido pretendia; não dependeu essa recusa, também o sabemos, da vontade do arguido; mas o certo é que tudo se ficou pelo aliciamento, não havendo nudez dos menores nem a efetiva utilização dos mesmos em fotografia, filme ou gravação pornográficos. 24. Como parece de fácil perceção, a gravidade das duas situações (utilização efetiva dos menores em fotografia, filme ou gravação pornográficos; ou simples aliciamento) é bem diferente, atenta a exclusividade do aliciamento. 25. Esta substancial diferença no preenchimento do crime, deverá traduzir-se na medida da pena a aplicar ao agente do crime; e daí a previsão de um mínimo e de um máximo da pena, ou seja, aquele aplicável às situações menos gravosas e este às situações mais graves. 26. Aliás, o tribunal recorrido, compreendendo a situação, aplicou ao arguido, por cada um daqueles cinco crimes mencionados, a pena de 1 ano e 10 meses de prisão, ou seja, uma pena superior ao mínimo legal em apenas quatro meses. 27. Todavia, atentas todas as circunstâncias resultantes dos factos provados da decisão recorrida e que infra – no n.º 4 – vão pormenorizadamente descritas, a saber, a idade do arguido, o certificado do registo criminal do arguido sem mácula, a inexistência de contacto físico com os menores, o arrependimento e a vergonha do arguido pelos factos criminosos que praticou, a cabal inserção social do arguido verificada ao momento, e, sobretudo, a perturbação parafílica diagnosticada ao arguido, a reclamar «intensa e sistemática psicoterapia» (relatório pericial de psicologia, a fls. 1273) e ainda e principalmente a vontade e a sujeição do arguido ao respetivo tratamento médico desde maio de 2016 até ao dia de hoje, 21 de setembro de 2018, tratamento que pretende continuar nos próximos anos com a mesma periodicidade, tudo isto resultante expressamente da decisão recorrida, impunha-se que o tribunal recorrido tivesse aplicado ao arguido uma pena situada, para cada um daqueles cinco crimes, no seu mínimo legal, isto é 1 ano e 6 meses de prisão. 28. Acresce ainda que deve notar-se que em nenhum dos crimes imputados ao arguido se verificou a agravação pelo resultado, nos termos do n.º 5, do art.º 177.º, do Código Penal, situação que o próprio legislador acaba por assumir como podendo revelar uma menor gravidade do crime a ponto de admitir, em certas circunstâncias, a suspensão provisória do processo (cfr. art.º 178.º, n.º 3 do Código Penal e art.º 281.º, n.º 8, do Código de Processo Penal). 29. Com efeito, todas as circunstâncias a que acima fizemos alusão, não fazendo parte dos tipos de crime aqui em causa, claramente resultam em favor do arguido, devendo, por isso, nos termos do disposto no art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal, ser consideradas relevantes na determinação da medida da pena. 30. E daí a pena de 4 anos de prisão ou, em qualquer caso, a pena nunca superior a 5 anos de prisão. 31. PENA APLICÁVEL EM QUALQUER CASO E SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO:
No que respeita à pena única a aplicar ao arguido, quer no caso do crime do trato sucessivo, quer no caso do concurso real de infrações, e sucedendo que a moldura do concurso tem como limite mínimo a pena de 4 anos de prisão, e, mais uma vez, atentas todas as circunstâncias infra mencionadas que apontam no sentido de uma atenuação das exigências da prevenção geral e da prevenção especial, a pena a aplicar ao arguido deverá situar-se muito próximo do mínimo legal, ou seja, 4 anos de prisão e, em qualquer caso, nunca superior a 5 anos de prisão. 32. A medida da pena que assim preconizamos (quatro anos de prisão ou, assim não se entendendo, pena de prisão nunca superior a cinco anos), quer no caso do crime do trato sucessivo, quer no caso do concurso real de infrações, justifica-se pelos seguintes motivos que conduzem, indubitavelmente, a uma atenuação das exigências da prevenção geral e da prevenção especial: 33. Desde logo, o arguido confessou a prática de todos os factos que lhe foram imputados nos presentes autos, desde o inicio dos mesmos, e não só, portanto, em audiência de julgamento (os factos dados como provados na decisão recorrida resultaram das “declarações prestadas em audiência pelo arguido que os confessou de forma integral e sem reservas” – cfr. “convicção do tribunal quanto aos factos provados”). 34. Na verdade, logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido (concretamente a fls. 344 dos autos, 2.º volume), o arguido confessou os factos que lhe eram imputados. 35. Depois, ao longo de todo o processo, continuou a fazê-lo, colaborando ativamente no sentido da descoberta de toda a verdade material, como sucedeu nomeadamente, na fase da instrução, no interrogatório judicial a que foi sujeito (fls. 1082 – 5.º volume), ocasião em que voltou a confessar todos os fatos imputados. 36. Mais: ao longo de todo o processo e também desde o início, o arguido sempre se mostrou fortemente arrependido e sobretudo envergonhado pela prática dos factos reportados nos autos (cfr. nomeadamente interrogatórios já citados e o requerimento de abertura de instrução e nomeadamente os seus artigos 29.º e ss.). 37. Por outro lado ainda, logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido, resultou das declarações do arguido, e só destas, que as vitimas não se limitavam ao menor CC (única vitima identificada até então e mencionada nos factos imputados ao arguido naquele primeiro interrogatório), mas que as vitimas se situavam na ordem das largas dezenas (cfr. despacho sobre medidas de coação, concretamente fls. 350 e 351 – 2.º volume); 38. Foi o arguido que deu a conhecer, em primeira mão, que não se tratava apenas de uma única vítima, mas de largas dezenas. 39. Dir-se-á: esse número de vítimas sempre viria a alcançar-se pelo exame que posteriormente foi efetuado ao computador do arguido; 40. É certo que assim é, mas naquela diligência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido tratava-se também de decidir sobre a medida de coação a aplicar ao arguido, o que, obviamente, este bem sabia. E no entanto revelou que se Veja-se ainda o que se escreveu no douto despacho de fls. 901, pelo respetivo Senhor Juiz de Instrução Criminal, e concretamente a fls. 902, reportando-se ao arguido: “Tem-se mostrado colaborante com a descoberta da verdade, identificando as vítimas com quem contactou e relatando, mais pormenorizadamente, o seu modus operandi (…)” 41. Ou seja, o arguido foi sempre essencial na descoberta de toda a verdade. 42. Acresce ainda, e como resulta dos factos provados, que o arguido nunca teve qualquer contacto físico com estes menores, nomeadamente sexual, já que toda a sua conduta sempre ocorreu via internet ou comunicações digitais; 43. E, como também resulta implícito dos factos provados da decisão recorrida, o arguido nunca transmitiu a terceiros quaisquer fotos, vídeos ou filmes destes menores (como aliás decorre das perícias efetuadas ao telemóvel e ao equipamento informático do arguido). 44. Não menos importante se revela a sujeição do arguido a tratamento médico-psiquiátrico, no cumprimento das medidas de coação que lhe foram determinadas logo após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido e que o arguido tem vindo a cumprir em constante e periódico “acompanhamento clinico ambulatório, na valência de psiquiatria e psicologia/sexologia, comparecendo a consultas e cumprindo a medicação, situação que se mantém, revelando o arguido estar consciente da necessidade da manutenção deste acompanhamento clínico” – cfr. decisão recorrida, facto provado 75. 45. Igualmente importante o facto provado n.º 66 da decisão recorrida: “Admite-se como provável que, no momento da prática dos factos, o arguido preenchia critérios para o diagnóstico de Perturbação de pedofilia (F65; CID – 10) e perturbação de Voyeurismo (F65.3; CID – 10), posicionando-se o mesmo, numa categoria de risco moderado para violência sexual, justificando-se a manutenção do acompanhamento clínico especializado”. 46. Sendo que, como consta do relatório pericial de fls. 1437 a 1441 (com base no qual o tribunal recorrido também funda a respetiva convicção quanto aos factos provados), aquelas “perturbação de pedofilia” e “perturbação de voyeurismo”, consubstanciam “perturbação parafílica”. 47. Sabemos que o arguido, no mencionado relatório pericial, foi considerado como imputável do ponto de vista psiquiátrico-forense, mas o certo é que padece do diagnóstico mencionado, isto é, “perturbação parafílica”; 48. Perturbação essa que necessita de tratamento médico, nas valências de psiquiatria e psicologia/sexologia. 49. Aliás, no facto provado 75, o próprio tribunal dá como provado que o arguido revela “(…) estar consciente da necessidade da manutenção deste acompanhamento clínico”. 50. É o próprio tribunal que demonstra saber e estar convicto da necessidade do tratamento médico do arguido, como aliás resulta do relatório pericial de psicologia de fls. 1262 e ss. (que igualmente serviu para fundar a convicção do tribunal), relatório esse em que, além do mais, a fls. 1273, se afirma que o arguido “necessita da continuação intensa e sistemática da psicoterapia”. 51. Ou seja, o arguido em termos psiquiátricos e psicológicos não é uma pessoa comum; porque se o fosse, não teria os médicos, os peritos e o próprio Tribunal a afirmar que sofre de “perturbação parafílica” e que necessita de psicoterapia intensa e sistemática. 52. Mais: o arguido, ainda hoje, continua a sujeitar-se a esse tratamento com grande assiduidade como resulta das diversas declarações médicas juntas aos autos, incluindo as duas que hoje mesmo fez entrar no processo. 53. Ora, não podem restar quaisquer dúvidas que a única motivação e justificação para a prática dos atos criminosos dos autos (“... dentro da maldade e desculpe o termo dentro da nojeira que foi… ” como disse o próprio arguido nas declarações que prestou em audiência de julgamento, em 01:25:12, declarações essas que vão transcritas em anexo para que este alto Tribunal, se assim o entender, possa lê-las e assim apreender o arrependimento e a vergonha sentida pelo arguido pelos factos criminosos que praticou) é a “perturbação parafilica” diagnosticada ao arguido. 54. De contrário, para quê sujeitar-se a tratamento médico? Obviamente que esse tratamento teve e tem em vista evitar que o arguido continue a praticar atos idênticos, agora e no futuro. 55. De todo o supra exposto resulta que se encontra, em grande medida, satisfeita e suprida a necessidade de tutela da confiança e das expetativas da comunidade na manutenção da vigência das normas jurídicas violadas e do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelos crimes praticados pelo arguido; 56. Além de que do exposto resulta igualmente que, ao momento, é francamente possível a conformação dos comportamentos do arguido com as normas de vivência comunitária; 57. E se a tudo isto aditarmos os factos provados referidos nomeadamente em 71, 72, 73, 74, 75, 76 e 77 da decisão recorrida, haverá de concluir-se que as exigências resultantes das finalidades de prevenção geral e de prevenção especial inerentes a toda e qualquer pena, se encontram, em forte medida, atenuadas. 58. Efetivamente, o arguido é primário (cfr. n.º 67 dos factos provados); 59. O arguido não teve qualquer contacto físico com os menores (o que, continuando obviamente a ser grave, não tem o mesmo grau de gravidade de um efetivo contacto físico, como é facilmente apreensível); 60. Em diversas situações descritas nos factos provados (concretamente em cinco situações) o arguido não logrou alcançar o resultado pretendido, já que os menores recusaram praticar qualquer ato de cariz sexual como lhes solicitara o arguido; apesar de o simples “aliciar” bastar para a consumação do crime de pornografia de menores o certo é que em termos de consequências nocivas para os menores o resultado é bem menos grave do que seria se os menores houvessem anuído aos pedidos do arguido; 61. O arguido encontra-se até hoje, e desde maio de 2016, em tratamento médico com vista a corrigir a perturbação parafilica de que, sem dúvida, padece; 62. Além de que, enquanto se mantiveram os contactos internáuticos com o arguido, os menores nunca se aperceberam que estavam a ser contactados e manipulados por um adulto, julgando que os contactos ocorriam com outros menores da sua idade ou de idades semelhantes (é o que resulta implicitamente dos factos dados como provados n.ºs 1 a 55 da decisão recorrida e como, aliás, o arguido explicou nas suas declarações em audiência de julgamento, em 01:18:52 até 01:25:38 cuja transcrição, como se disse supra, vai em anexo a fim de que este alto Tribunal, se assim o entender, possa delas tomar conhecimento); 63. O arguido encontra-se envergonhado e arrependido dos factos que praticou (facto provado n.º 77). 64. De todo o exposto decorre que, ao momento, não se verifica a necessidade de aplicar ao arguido penas que se afastem dos mínimos legais previstos para os ilícitos criminosos imputados ao arguido. 65. Na verdade, uma pena de prisão alargada e uma pena de prisão a cumprir efetivamente, no caso concreto, revelam-se manifestamente excessivas, atenta a reduzida exigência das finalidades dessas penas ao nível da prevenção geral e da prevenção especial ao momento verificada. 66. Com efeito, todas as circunstâncias a que acima fizemos alusão, não fazendo parte dos tipos de crime aqui em causa, claramente resultam em favor do arguido, devendo, por isso, nos termos do disposto no art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal, ser consideradas relevantes na determinação da medida da pena. 67. E daí a pena de 4 anos de prisão ou, em qualquer caso, a pena nunca superior a 5 anos de prisão. 68. Além de que a pena, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa. 69. É o que pode depreender-se, com enorme clareza, dos excertos do recente e Douto Acórdão do STJ, de 17/09/2017, em que é Relator o Exmo. Senhor Conselheiro Lopes da Mota que, muito melhor que nós, trata o tema relativo aos fins das penas e que vão transcritos na motivação supra. 70. Também pelo que acima deixámos dito, e verificado o pressuposto de aplicação ao arguido de uma pena não superior a cinco anos de prisão, atenta a personalidade do arguido, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior aos crimes e às circunstâncias destes, é forçoso concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as supra mencionadas finalidades da punição. 71. Impõe-se por isso a suspensão da execução da pena única que, em medida nunca superior a 5 anos de prisão, venha a ser aplicada ao arguido. 72. Com efeito, no que concerne à personalidade do arguido, vem dado como provado na decisão recorrida que este é imputável do ponto de vista criminal; todavia, como resulta do relatório pericial psiquiátrico de fls. 1437 e ss, o arguido padece de perturbação parafílica consubstanciada em perturbação de pedofilia e em perturbação de voyeurismo; perturbação que, há cerca de dois anos e meio, vem tratando clinicamente de forma voluntária (como resulta das muitas declarações médicas que o arguido tem vindo a juntar aos autos desde maio de 2016 até ao dia de hoje, 21 de setembro de 2018 e que atestam o acompanhamento clinico mencionado); de resto, a vergonha e o arrependimento do arguido face ao seu comportamento criminoso (facto provado n.º 77) e os demais factos considerados provados na decisão recorrida, nomeadamente nos n.ºs 69 a 74 e 76, demonstram que o arguido possui personalidade que tem vindo a ser devida e medicamente acompanhada e que tem vindo a revelar-se apta a uma séria ressocialização e a um efetivo afastamento de comportamentos idênticos aos que lhe são imputados nos autos. 73. Quanto ao mais (as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior aos crimes e às circunstâncias destes), já acima deixámos descrito que, ao momento, tudo faz concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, impondo assim a mencionada suspensão da execução da pena de prisão. 74. Evidentemente que a suspensão da execução da pena de prisão deverá ficar condicionada ao cumprimento dos deveres e à observância das regras de conduta que este alto Tribunal entender adequados e que, pelo menos, deverá passar sempre pela continuação da sujeição ao tratamento médico a que tem vindo a ser sujeito e a que, desde já o arguido dá o seu efetivo consentimento, nos termos do disposto no art.º 52.º, n.º 3, do Código Penal. 75. Deve assim revogar-se o acórdão recorrido na parte supra mencionada e, em consequência: a) Absolver-se o arguido da prática de cada um dos 9 crimes de pornografia de menores agravado mencionados nas alíneas b) a j) da parte decisória do acórdão recorrido - fls. 1527 e 1528 dos autos - em virtude da subsunção da respetiva conduta à figura do crime de trato sucessivo; b) Condenar-se o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança p.e.p pelo art.º 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal ( em virtude da subsunção da respetiva conduta à figura do crime de trato sucessivo, que impõe a punição pelo crime mais grave imputável ao arguido) na pena de 4 anos de prisão ou, assim não se entendendo, na pena nunca superior a 5 anos de prisão, a qual deverá sempre ser suspensa na respetiva execução, pelo período que este alto Tribunal entenda mais adequado (art.º 50.º, n.º 5, do Código Penal na redação dada pela Lei 94/2017, de 23 de agosto); 76. Ou, acaso porventura assim não se entenda, decidindo-se pela punição do arguido em concurso real de infrações, tal como decidido no acórdão recorrido, c) Condenar-se o arguido nos termos mencionados no acórdão recorrido, mas, no que concerne a cada um dos cinco crimes mencionados na parte decisória do acórdão recorrido, a fls. 1527 e 1528, nas alíneas c), e), f), g) e i), sempre com a aplicação da pena mínima prevista na Lei, isto é a pena de um ano e seis meses de prisão, reduzindo-se as restantes penas aplicadas aos demais ilícitos criminais para penas situadas nos mínimos legais e, 77. Operando o cúmulo jurídico de todas as penas, d) aplicar-se ao arguido a pena única de 4 anos de prisão e, em qualquer caso, nunca superior a 5 anos de prisão, a qual deverá sempre ser suspensa na respetiva execução, pelo período que este alto Tribunal entenda mais adequado (art.º 50.º, n.º 5, do Código Penal na redação dada pela Lei 94/2017, de 23 de agosto);
78. Assim não tendo decidido o acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 30.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, 50.º (redação dada pela Lei 94/17, de 23 de agosto), 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, conjugados com os art.ºs 171.º, n.ºs 1 e 2, 176.º, n.º 1, alínea b), e 177.º, n.ºs 5, 6 e 7 (todos com as redações dadas pelos diplomas legais mencionados na decisão recorrida), por errónea interpretação e errada aplicação, nos termos deixados supra expostos. (…)”.
1.2 - Respondeu o Ministério Público em primeira instância, rematando nos seguintes termos a sua resposta. “(…) 1. No caso dos autos, cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado foi praticado com uma vítima diferente e individualizada. 2. O crime de abuso sexual de criança previsto pelo artº 171º nº 1 e 2 do C.P. ofende bem jurídico eminentemente pessoal. 3. Igualmente, quanto ao crime previsto pelo artº 176º nº 1 b) do C.P. a punição decorre de uma lesão de um bem jurídico pessoal, encabeçado em uma vítima, a exigir que se punam os diferentes atos consoante as lesões ocorridas. 4. É manifestamente improcedente a tese proposta pelo arguido, de que o “desenvolvimento” de “atividade consistente na prática de atos de cariz sexual” integra uma única resolução criminosa, independentemente do número ou identidade de vítimas visadas. 5. Quanto à medida das penas, o tribunal fixou a pena concreta relativa aos crimes de pornografia de menores ao seu limite mínimo tolerável – graduando a pena aplicável a cada situação de acordo com as especificidades de cada conduta e o grau, variável, de ilicitude de cada uma delas e fixando, relativamente aos factos com menor desvalor de resultado, uma pena praticamente colada ao limite mínimo da moldura. 6. Quanto à pena única, em face da moldura penal situada entre os 4 anos e os 19 anos e 4 meses de prisão, ponderando a imagem global do facto, mormente o grande número de vítimas envolvidas, o grande desvalor da atuação concretizada no tipo de atos que o arguido visou, gradualmente, induzir os menores a praticar, e o grande desvalor de resultado relativamente a alguns dos factos concretizados, não é, sequer, suscetível de ponderação a aplicação de uma pena concreta igual ou inferior a 5 anos de prisão, sob pena de violação do disposto nos artºs 40º e 50 do C.P. 7. Logo, no caso dos autos, não é admissível a suspensão da execução da pena. Pelo que, confirmando a decisão recorrida nos seus exactos termos, V. Exas. farão, como habitualmente, JUSTIÇA ! (…)”.
1.3 - Distribuídos os autos no Supremo Tribunal de Justiça, foram com vista ao Ministério Público.
1.4 - Colhidos os vistos foi realizada audiência, havendo que apreciar e decidir
II - Apreciando
2.1 – O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: “(…) I) 1. O arguido AA foi treinador de futebol no ... Futebol Clube durante cerca de 12 anos, período no qual treinou crianças e jovens em diversas faixas etárias, desde os 4 aos 19 anos de idade, sendo que na época de 2015/2016 treinava duas equipas de crianças entre os 10 e 11 anos e uma equipa de crianças entre os 14 e 15 anos de idade. 2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, o arguido decidiu criar dois perfis falsos de Facebook, sendo que num se fazia passar por um indivíduo menor de idade do sexo feminino, aparentando estar na faixa etária dos 12-16 anos de idade, enquanto noutro se fazia passar por um indivíduo menor de idade, do sexo masculino, aparentando estar na faixa etária dos 12-16 anos de idade. 3. Uma vez assim criados os perfis de Facebook, o arguido adicionava como amigos naquela rede social alguns dos rapazes que treinava, bem como amigos destes, todos na faixa etária dos 11-15 anos de idade, com o propósito de manter com eles, através do Messenger ou do Skype, conversas de cariz sexual e, assim, satisfazer os seus instintos libidinosos, o que fazia na sua residência sita na ..., em .... 4. No decurso dessas conversas, nas quais os menores julgavam estar a comunicar com um indivíduo do sexo feminino ou masculino da sua faixa etária, consoante o perfil supra aludido com o qual se apresentava, o arguido exibia-lhes ficheiros de imagem e vídeo de indivíduos do sexo feminino ou masculino que aparentavam ser também menores de idade na faixa etária dos 12-16 anos de idade, os quais retirava da internet e onde aqueles indivíduos apareciam, em alguns desses ficheiros, em plena exibição do seu corpo nu ou a manipular os seus genitais, fazendo-os crer que o retratavam a ele próprio. 5. Desta forma, o arguido lograva excitar sexualmente os menores e ganhava a sua confiança, com o objetivo de os convencer a exibirem-se nus ou em plena manipulação dos órgãos genitais perante a webcam ou a filmarem-se e fotografarem-se naqueles termos e a enviarem-lhe os respetivos ficheiros, através do Messenger e do Skype, e assim obter a satisfação dos seus instintos lascivos. 6. Com vista à concretização daquele plano, em data não concretamente apurada mas anterior a 2010, o arguido criou, nomeadamente, o perfil com o nome de utilizador “...”, onde se apresentava como uma rapariga de 16 anos de idade e que ilustrou com uma foto de uma rapariga aparentando aquela idade, retirada da internet, e cuja identidade desconhece. 7. Em data não concretamente apurada mas no decurso do ano de 2014, o arguido criou o perfil com o nome de utilizador “...”, onde se apresentava como sendo um rapaz com 13 anos de idade, que jogava futebol no ... e que era irmão da “...”, perfil esse que ilustrou com a foto de um rapaz aparentando aquela idade, retirada da internet, e cuja identidade desconhece. 8. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 11 de Junho de 2015, o arguido desativou aqueles perfis e substituiu-os pelos perfis também falsos com os nomes de utilizador “...” e “...”, onde se apresentava, como sendo uma rapariga e um rapaz da faixa etária já referida, perfis esses que também ilustrou com as fotos de uma rapariga e de um rapaz aparentando aquela idade, retiradas da internet, e cujas identidades desconhece. 9. Também em data não concretamente apurada, mas no ano de 2010, o arguido criou ainda no Skype uma conta com o nome de utilizador “...1”, que ilustrou com a foto de uma rapariga aparentando encontrar-se na faixa etária dos 12-16 anos de idade, retirada da internet, e cuja identidade desconhece. II) a) Quanto ao ofendido BB: 10. Concretizando, em data não concretamente apurada de meados do ano de 2010, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “...”, manteve diversos contactos com BB, com o perfil “...”, nascido em 16 de Fevereiro de 1995, à data com 15 anos de idade, e que conhecia por ser jogador do ... Futebol Clube e ter sido treinador do mesmo na faixa etária dos 12-13 anos de idade. 11. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, pediu, por diversas vezes, ao ... para lhe enviar fotos do seu corpo nu, enviando-lhe por sua vez algumas fotografias de uma rapariga nua, como se fosse a própria, para o persuadir. 12. Na convicção de que estava a falar com uma rapariga adolescente, e encontrando-se na sua residência sita na Rua ..., em ..., o BB tirou diversas fotografias onde exibe o rosto, o pénis e o corpo nu, que posteriormente enviou ao arguido, que as guardou no seu computador (identificadas no exame pericial da Pen 02 com os Item Number 11569, 11571, 11572, 11574, 11576, 11578, 11580, 11582, 11584, 13045, 13047, 13051, 13053, 13049, 11567, 1652, 1653, 1654, 1655, 1656, 1657, 1658, 1659, 1660, 1661, 1662, 1663, 1664, 1665 e 1666). b) Quanto ao ofendido CC: 13. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 03 de Janeiro de 2015, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “...”, manteve diversos contactos através daquela rede social com CC, com o perfil “...”, nascido em ... de 2003, à data com 11 anos de idade, e que conhecia por ser jogador do ... Futebol Clube. 14. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, pediu ao CC, que se encontrava na sua residência em ..., por diversas vezes, para ligar a webcam para lhe mostrar o seu corpo nu, pedindo-lhe que também exibisse o seu corpo nu. 15. Contudo, e apesar da insistência do arguido, o menor sempre recusou as propostas daquele, acabando por bloquear o referido perfil. 16. No período compreendido entre 03 de Janeiro e 11 de Junho de 2015, designadamente nos dias 03, 05, 14, 16, 2128 e 29 de Janeiro de 2015, 07, 08 e 17 de Fevereiro de 2015, 06 de Maio de 2015, e 02, 03, 09 e 11 de Junho de 2015, o arguido, utilizando agora o perfil de Facebook “...”, voltou a contactar com o CC, fazendo-se passar por um rapaz adolescente, que afirmava ser guarda-redes do .... 17. Nessa sequência, o arguido pediu ao CC, por diversas vezes, para ligar a webcam para lhe exibir o seu corpo nu, a pretexto de recolher a sua opinião quanto ao facto de ter ou não corpo de guarda-redes, tendo em vista induzi-lo depois a atuar de forma idêntica e poder ver o corpo desnudado do menor. 18. Contudo, e apesar da insistência do arguido, o menor sempre recusou as propostas daquele, tendo os contactos cessado definitivamente a partir do dia 11 de Junho de 2015, quando a mãe do menor, LL, se deparou com a conversação e lhe respondeu, bloqueando este perfil. 19. Não obstante, o arguido voltou a enviar novo pedido de amizade ao CC, utilizando o perfil “MM”, que este não aceitou, apesar das sucessivas mensagens a perguntar-lhe se não queria fazer videochamada, querendo com isto perguntar se não queria exibir-se nu através da webcam. 20. Mais uma vez, e apesar da insistência do arguido, o menor não respondeu às mensagens. c) Quanto ao ofendido DD: 21. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 03 de Janeiro de 2015 a 24 de Fevereiro de 2016, designadamente nos dias 03 e 04 de Janeiro de 2015, 18 e 24 de Março de 2015, 29, 30 e 31 de Julho de 2015, 16, 17, 18, 23, 27, 29 e 30 de Setembro de 2015, e 14 e 15 de Janeiro de 2016, e 17 e 24 de Fevereiro de 2016, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “MM” e a conta de Skype “...1”, manteve diversos contactos com DD, com o perfil “DD”, nascido em ... de 2001, à data com 13 anos de idade, e que conhecia por ser jogador do ... Futebol Clube. 22. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, pediu ao DD, por diversas vezes, para ligar a webcam e enviar-lhe fotos do seu corpo nu e a manipular o pénis, enviando-lhe por sua vez fotos de uma rapariga nua e vídeos a masturbar-se, como se fosse a própria, para o estimular sexualmente e ganhar a sua confiança. 23. Na convicção de que estava a falar com uma rapariga adolescente, o DD tirou três fotos onde exibe o pénis, que posteriormente enviou ao arguido, que as guardou no seu computador, bem como se exibiu através do Skype, em pelo menos quatro ocasiões, a manipular o seu pénis, o que fez na sua residência, sita na Rua ... (identificadas no exame pericial ao computador com os Item Number 473790, 473791 e 473789). 24. A dada altura, e por suspeitar que pudesse ser um perfil falso, o DD bloqueou-o, não respondendo às sucessivas mensagens que o arguido lhe foi enviando. 25. Atenta a falta de resposta e com o intuito de visionar o corpo nu do menor, o arguido, utilizando o perfil de Facebook, “...”, voltou a contactá-lo, instando-o a ligar a webcam, enviando-lhe uma foto de um rapaz em tronco nu, como se fosse o próprio, e pedindo-lhe que também lhe enviasse uma foto idêntica. 26. Na convicção de que estava a falar com um rapaz adolescente, o DD tirou duas fotos em tronco nu e enviou-as ao arguido. 27. Pouco depois, e porque entretanto desativou o perfil “...”, o arguido voltou a tentar contactar o DD através do perfil de Facebook “...”, sem que aquele lhe tenha respondido. d) Quanto ao ofendido EE: 28. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2015 e durante cerca de dois meses, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “...”, manteve diversos contactos com EE, com o perfil “...”, nascido em 31 de Janeiro de 2003, à data com 12 anos de idade. 29. No decurso desses contactos, ocorridos quando o menor se encontrava na sua residência, sita na Rua..., e a instâncias do arguido, fazendo-se passar por rapaz adolescente, o EE disse que tinha 12 anos de idade e que jogava no clube de futebol .... 30. A dada altura, e com o objetivo de poder ver o corpo nu do menor, o arguido começou a insistir para falarem através do Teamspeak e a pedir para que aquele ligasse a webcam a pretexto de lhe apresentar a irmã de 16 anos de idade, MM, acabando por lhe pedir para lhe enviar uma foto em tronco nu. 31. Contudo, e apesar da insistência do arguido, o menor recusou-se sempre a enviar qualquer foto, acabando por bloquear aquele perfil. e) Quanto ao ofendido FF: 32. Em data não concretamente apurada, mas no último trimestre de 2015, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “MM”, manteve diversos contactos com FF, com o perfil “FF”, nascido em ... de 2003, à data com 12 anos de idade. 33. No decurso desses contactos, ocorridos quando o menor se encontrava na sua residência, sita na Rua ..., e a instâncias do arguido, que se fazia passar por uma rapariga adolescente, o FF disse que tinha 12 anos de idade, onde morava e que jogava futebol. 34. A dada altura, o arguido, com o objetivo de poder ver o corpo nu do menor, começou a insistir para que aquele ligasse a webcam e a pedir-lhe que enviasse fotos do seu corpo nu, enviando-lhe por sua vez uma foto de uma rapariga a exibir os seios para o estimular sexualmente e ganhar a sua confiança. 35. Contudo, e apesar da insistência do arguido, o ... nunca ligou a webcam, nem enviou fotos suas, acabando por bloquear aquele perfil. f) Quanto ao ofendido GG: 36. No mês de Julho de 2015, designadamente no dia 21 de Julho de 2015, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “MM” e a conta de Skype “...1”, manteve diversos contactos com GG, com o perfil “...”, nascido em ...de 2003, à data com 12 anos de idade, na altura residente em França. 37. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, perguntou a idade do GG, que disse ter 12 anos, e pediu-lhe, por diversas vezes e durante cerca de três semanas, para ligar a webcam e enviar-lhe fotos do seu corpo nu, enviando-lhe, por sua vez, fotos de uma rapariga envolta apenas numa toalha, como se fosse a própria, prometendo-lhe que se despiria mais se ele também o fizesse, por forma a estimulá-lo sexualmente e ganhar a sua confiança. 38. Contudo, e apesar da insistência do arguido, o GG nunca ligou a webcam, nem enviou fotos suas. g) Quanto ao ofendido HH: 39. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Setembro de 2015 até 27 de Abril de 2016, designadamente nos dias 02, 03, 04, 06, 08, 12, 13, 17, 20, 24 e 27 de Abril de 2016, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “MM” e a conta de Skype “...1”, manteve diversos contactos com HH, com o perfil “HH”, nascido em 15 de Outubro de 2003, à data com 11 anos de idade, e que conhecia por ser jogador do ... Futebol Clube. 40. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, pediu, por diversas vezes, ao HH para ligar a webcam e enviar-lhe fotos do seu corpo nu, enviando-lhe, por sua vez, fotos de uma rapariga nua, como se fosse a própria, para o estimular sexualmente e para ganhar a sua confiança. 41. Na convicção de que estava a falar com uma rapariga adolescente, e quando se encontrava na sua residência, sita na Rua ..., o HH tirou quatro fotos com o seu telemóvel, onde exibe o pénis (identificadas no exame pericial ao computador com os Item Number 451933, 483306, 473787, 482246 e 473798), que posteriormente enviou ao arguido e que este guardou no seu computador. 42. Contudo, o HH, arrependendo-se logo de seguida, não respondeu às sucessivas tentativas de contacto pelo arguido, acabando por bloquear o perfil falso deste. h) Quanto ao ofendido II: 43. Em data não concretamente apurada do mês de Janeiro de 2016, designadamente nos dias 03, 09, 10, 12, 13 e 14 de Janeiro de 2016, o arguido, utilizando o perfil de Facebook “...”, manteve diversos contactos com II, com o perfil “II”, nascido em 17 de Abril de 2003, à data com 12 anos de idade. 44. No decurso desses contactos e a instâncias do arguido, o II disse que tinha 12 anos de idade e que jogava andebol, tendo a dada altura o arguido, com o objetivo de poder ver o corpo nu do menor, começado a insistir para ligar a webcam a pretexto de se poderem ver um ao outro e descobrir se se conheciam e para trocarem fotos. 45. Para estimular sexualmente o menor e ganhar a sua confiança, o arguido propôs ao II que se encontrassem, sugerindo que enquanto uma rapariga de 16 anos de idade exibia o seu corpo nu, o arguido “bateria” ao menor, enquanto este lhe “bateria” a si, querendo com isto significar que manipularia o pénis do menor, masturbando-o, ao mesmo tempo que este lhe faria o mesmo a si. 46. Além disso, o arguido enviou-lhe duas fotos onde era visível o rosto e o tronco nu de um rapaz adolescente, como se fosse o próprio, tendo o menor percebido que não correspondiam à foto de perfil. 47. Nessa sequência, e apesar da insistência do arguido, o Gil Ferreira recusou-se a enviar quaisquer fotos e bloqueou aquele perfil. i) e j) Quanto aos ofendidos JJ e JJ: 48. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre 02 de Dezembro de 2014 e 20 de Janeiro de 2016, designadamente nos dias 02, 08, 26 e 28 de Dezembro de 2014, 07, 10, 14, 21 e 23 de Janeiro de 2015, 26 de Março de 2015, 08, 19 e 29 de Abril de 2015, 06 e 08 de Maio de 2015, 21 de Julho de 2015 e 20 de Janeiro de 2016, o arguido, utilizando os perfis de Facebook “...” e “MM” e a conta de Skype “anasofiacardoso1”, manteve diversos contactos com JJ, com o perfil “...”, nascido em 13 de Abril de 2001, à data com 13 anos de idade, que conhecia por ser jogador de basquetebol do ... Futebol Clube, e com o irmão deste, JJ, com o perfil “JJ”, nascido em 09 de Fevereiro de 2004, à data com 11 anos de idade. 49. No decurso desses contactos, o arguido, fazendo-se passar por uma rapariga adolescente, pediu, por diversas vezes, ao JJ para lhe enviar fotos do seu corpo nu, enviando-lhe por sua vez algumas fotografias de uma rapariga nua, como se fosse a própria, para o estimular sexualmente e ganhar a sua confiança. 50. O arguido também instava o JJ a manipular o seu pénis, enviando-lhe por sua vez fotografias e vídeos de uma rapariga a masturbar-se, como se fosse a própria, para o estimular sexualmente e ganhar a sua confiança, sendo que por vezes o JJ encontrava-se presente e assistia às referidas conversações, facto do qual o arguido estava ciente. 51. No dia 06 de Maio de 2015, o arguido sugeriu ao JJ, à data com 14 anos de idade, que fizessem web a três, referindo-se ao NN, à data com 11 anos de idade, que sabia ser irmão daquele, dizendo-lhe que gostaria muito de os ver fazer um “broche”, propondo-lhe como compensação exibir-se em atos sexuais com outra rapariga, para os convencer. 52. Na convicção de que estava a falar com uma rapariga adolescente e excitado pela perspetiva de poder vê-la nua, a masturbar-se e em atos sexuais com outra rapariga, encontrando-se sozinhos na sua residência sita na Rua ..., em ..., o JJ, fazendo uso da influência que exerce sobre o irmão mais novo decorrente da relação familiar que os liga, obrigou o NN a colocar a boca dele no seu pénis, ali o friccionando. 53. Em seguida, e a instâncias do arguido, o JJ colocou a sua boca no pénis do NN, ali o friccionando. 54. Conforme sugerido pelo arguido, o JJ gravou tais atos com um telemóvel e em seguida enviou-lhe o respetivo ficheiro de vídeo, que o arguido guardou no seu computador (identificado no exame pericial do computador com os Item Numbers 483170 e 451682). 55. O arguido insistiu por diversas vezes com o JJ e com o NN para repetirem tais atos nos dias seguintes, o que só não aconteceu porque nenhum deles acedeu aos seus pedidos. III) 56. Com o objetivo de satisfazer os seus instintos lascivos, o arguido criou perfis falsos de Facebook, nos quais se apresentava como sendo um rapaz adolescente, no caso dos perfis “...” e “..., ou uma rapariga adolescente, no caso dos perfis “...” e “MM”, através dos quais adicionava como amigos naquela rede social alguns dos rapazes que treinava, bem como amigos destes, estando ciente que se tratava de menores com idades compreendidas entre os 11 e os 15 anos de idade, quer porque conhecia alguns deles, quer porque indagava as suas idades. 57. Com esta conduta, o arguido lograva manter conversas de cariz sexual com aqueles menores, que julgavam estar a comunicar com alguém da sua faixa etária, sendo que, no decurso dessas conversas, o arguido exibia aos menores ficheiros de imagem e vídeo de rapazes e raparigas que retirava da internet, alguns dos quais de natureza pornográfica, fazendo-os crer que o retratavam a ele próprio, na veste de rapaz ou rapariga adolescentes, consoante o perfil falso utilizado, quer para os estimular sexualmente, quer para ganhar a sua confiança. 58. O arguido atuava desta forma para assim persuadir os menores a exibirem-se nus ou em plena manipulação dos órgãos genitais perante a webcam ou a filmarem-se e fotografarem-se naqueles termos e a enviarem-lhe os respetivos ficheiros, através do Messenger e do Skype, para satisfazer os seus instintos libidinosos. 59. Com estas condutas, o arguido atuou com a intenção concretizada de utilizar os menores com quem comunicava em espetáculo, fotografia, filme ou gravação pornográficos, ou de os aliciar para esse fim, tendo em vista a satisfação dos seus instintos libidinosos. 60. Mais atuou com a intenção concretizada de levar o menor NN a praticar atos de natureza sexual com o menor JJ, designadamente sexo oral um ao outro, ciente de que eram irmãos e de que o primeiro tinha apenas 11 anos de idade, para assim satisfazer os seus instintos lascivos. 61. O arguido estava ainda ciente de que atuava sobre menores de 11, 12 e 13 anos e um menor de 15 anos, por meio de conversa e espetáculo pornográficos, ao sugerir-lhes que se exibissem nus ou em plena manipulação genital, bem como ao enviar-lhes ficheiros de imagem e vídeo onde apareciam raparigas e rapazes adolescentes a exibirem os seus corpos nus, inclusivamente os genitais, ou a praticar atos sexuais, designadamente masturbando-se. 62. O arguido guardou no seu computador e em duas pen drive os ficheiros de imagem e vídeo enviados pelos menores, estando ciente que continham menores do sexo masculino na faixa etária compreendida entre os 11 e os 15 anos de idade, em plena exibição do seu corpo nu, designadamente, dos órgãos sexuais e em manipulação genital, para assim satisfazer os seus instintos sexuais. 63. O arguido sabia que os seus comportamentos afetavam os menores na sua capacidade de se autodeterminar sexualmente, prejudicando o livre desenvolvimento da sua personalidade, tendo atuado sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. IV) 64. O arguido possui um funcionamento cognitivo acima da média esperada para a população normal, o que lhe permite ter elevada capacidade de atuar finalizadamente, pensar em termos racionais e proceder de forma eficaz em relação ao meio envolvente. Tende a manifestar um funcionamento mais marcado pela presença da melancolia, lentidão física, sentimentos subjetivos de depressão, apatia mental e mau funcionamento físico, dificuldades de concentração e de controlo, sensações peculiares e medos, fadiga intelectual, dúvida e indecisão, desajustamento social e perturbações associadas a défices no controlo dos impulsos que levam à passagem ao ato, com tolerância à frustração limitada e insatisfação. 65. O arguido apresenta instabilidade emocional e sintomatologia depressiva moderada, bem como, propensão para reagir com elevado nível de ansiedade, quando confrontado com situações de maior tensão emocional, com ausência de psicopatologia invalidante. 66. Admite-se como provável que, no momento da prática dos factos, o arguido preenchia critérios para o diagnóstico de Perturbação de pedofilia (F65; CID – 10) e perturbação de Voyeurismo (F65.3; CID – 10), posicionando-se o mesmo, numa categoria de risco moderado para violência sexual, justificando-se a manutenção do acompanhamento clínico especializado. 67. Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido. 68. O arguido é o primogénito de dois irmãos e, o seu processo de desenvolvimento decorreu num contexto familiar estruturado. Na infância não lhe são atribuídos quaisquer problemas de comportamento, sendo percecionado como uma criança reservada e afetuosa na relação, registando nesse período a única reprovação, numa trajetória escolar regular, sem problemas comportamentais ou de integração. No ensino superior, desistiu no início do curso de engenharia do ambiente e ingressou no curso de “Treino Desportivo de Alto Rendimento” (variante futebol) na Escola Superior de Desporto.... No contexto de dificuldade em conciliar os estudos com a atividade profissional suspendeu a matrícula há cerca de 2 anos faltando-lhe 5 “cadeiras” para terminar o curso. 69. Praticante de desporto desde os 10 anos de idade (basquetebol e depois futebol), com 18 anos, iniciou funções na formação/treinador das camadas jovens no ... Futebol Clube, acumulando esta atividade remunerada com a de prospetor de futebol. Naquela coletividade desportiva, o arguido é referido como pessoa que sempre teve um relacionamento adequado com os colegas de trabalho, com os atletas e pais destes, sendo reconhecido pelo seu profissionalismo e sociabilidade. Nunca lhe foram conhecidos comportamentos aditivos (álcool ou outras drogas). 70. O arguido manteve sempre convivência com um grupo alargado de amigos de orientação social positiva com os quais passava os seus tempos livres, habitualmente na prática de desporto. Teve 4 relações de namoro (por períodos de 2 a 3 anos) com pessoas do sexo feminino do seu nível etário. 71. À data dos factos e da detenção, o arguido vivia com os pais e um dos irmãos, tendo, os factos e aquela detenção causado muita surpresa e sofrimento aos seus familiares, que evidenciam coesão no apoio ao mesmo, o que também se verifica por parte de alguns amigos mais próximos. 72. A habitação da família de origem é uma moradia própria, tipologia “3”, sita em ..., dotada de boas infraestruturas e conforto. No âmbito da sujeição à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, passou a residir em casa dos tios maternos (..., programador informático e ..., bancária) em ..., onde beneficia igualmente de boas condições de habitabilidade, de inserção e apoio familiar. Os pais visitam-no com regularidade. 73. À data dos factos, o arguido exercia a atividade de treinador de futebol das camadas jovens (nos escalões etários dos 11 aos 15 anos) da coletividade “... Futebol Clube”. Nesta atividade e ainda na de prospetor de futebol, auferia um total de cerca de €600,00 (seiscentos euros) líquidos por mês. Atualmente trabalha como operador de máquinas, auferindo mensalmente cerca de €585,00 (quinhentos e oitenta e cinco euros) mensais. No seu agregado familiar de origem, o total de rendimentos disponíveis é de cerca de €1 822,00 (mil oitocentos e vinte e dois euros) líquidos por mês e as despesas fixas (excluindo alimentação) de €215,00 (duzentos e quinze euros) por mês. O agregado dos tios que integra provisoriamente possuiu uma situação económica estável. 74. À data dos factos o arguido tinha uma imagem positiva e valorizada na comunidade local, particularmente junto de amigos e de outros elementos técnicos e dirigentes do ... Futebol Clube, nunca lhe tendo sido conhecido qualquer indício de comportamento desadequado nas relações interpessoais e concretamente com aqueles, com os atletas ou pais destes. O presente processo judicial causou surpresa generalizada e alguma desconfiança e degradação da sua imagem social. 75. Na sequência da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, acompanhada de obrigação de tratamento médico que lhe fosse determinado, o arguido sujeitou-se a acompanhamento clínico ambulatório na valência de psiquiatria e psicologia/sexologia, comparecendo a consultas e cumprindo a medicação, situação que se mantém, revelando o arguido estar consciente da necessidade da manutenção deste acompanhamento clínico. 76. O arguido frequentou e completou a componente específica do Curso Grau I de Treinadores de Futebol, a decorrer na Associação de Futebol de ..., o que o habilita oficialmente para atividade de treinador, área profissional que pretende manter no futuro. 77. O arguido verbalizou em audiência estar arrependido e muito envergonhado de ter praticado os factos em causa nos presentes autos. Factos não provados. Nenhuns. (…)”.
2.2 - As questões suscitadas pelo recorrente e que constituem o objecto do recurso são as seguintes: 1 - Os factos praticados pelo arguido constituem um único crime, de trato sucessivo, punível com a pena correspondente ao crime mais grave, agravada nos termos gerais; 2 – Caso assim se não entenda, considerando-se verificado um concurso real de infracções, deverão as penas parcelares respeitantes aos crimes de pornografia de menores que se consubstanciaram em simples aliciamento ser reduzidas ao mínimo das respetivas molduras penais; 3 – Em qualquer caso, a pena pelo crime de trato sucessivo ou a pena única emergente de cúmulo jurídico nunca deverão exceder cinco anos de prisão e deverá ser decidida a suspensão da respectiva execução.
2.3 - Do chamado crime de trato sucessivo 2.3.1 - A dado passo da sua motivação, escreve o recorrente: “(…) 11. A doutrina e a jurisprudência têm entendido que os denominados crimes de trato sucessivo, também chamados de exauridos, prolongados, protelados, apesar de se desdobrarem em várias condutas, são tratadas como um só crime, tanto mais grave quanto mais repetido. 12. E ao contrário do que sucede no crime continuado, nos crimes de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa, mas, sim, um seu agravamento crescente à medida que a conduta se vai repetindo. Mas o fundamental é que há um único momento volitivo que faz desencadear todas as condutas, aglutinando-as todas, as primeiras e as subsequentes, motivo pelo qual se exclui o concurso real de infrações de acordo com o n.º 1, do art.º 30.º, do Código Penal. (…)”. A partir de tais pressupostos reclama o tratamento penal dos factos praticados pelo arguido no quadro de uma unidade criminosa, dita de trato sucessivo.
2.3.2 - Tem de facto alguma escassa jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo do STJ, admitido a figura do designado crime de trato sucessivo de que é exemplo mais citado o acórdão de 29-11-2012 (P. 862/11.6TAPFR.S1), onde se pode ler: “(…)quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem. O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade. A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma. (…)”.
2.3.3 - Entendemos, salvo o devido respeito, que na punição do crime de tráfico de droga não se coloca qualquer problema particular relacionado com o número de crimes que tenha que ser resolvido por apelo ao chamado crime de trato sucessivo e que se não afigura apropriado associar os crimes de tráfico de droga e crimes sexuais, ainda que estes sejam praticados num contexto de reiteração, desenvolvendo-se como actividade, à semelhança do crime de tráfico de droga. Com efeito, e considerando aqui apenas o modo da respectiva execução, ao contrário de qualquer dos crimes sexuais, o chamado crime de tráfico de droga desenvolve-se, naturalmente, no quadro de uma actividade criminosa, como de resto decorre da epígrafe do tipo base do art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro (tráfico e outras actividades ilícitas) – sublinhado nosso. O art.º 21.º constitui um tipo de realização plurifaceta, abarcando na sua previsão uma multiplicidade de condutas potencialmente perigosas para a saúde pública, por direta ou indirectamente induzirem ao consumo. Mas a verdade é que todo o regime se encontra desenhado em função do exercício de uma actividade, que é aliás inerente aos conceitos associados a formas específicas de realização típica como cultivar, produzir, fabricar, pôr à venda, distribuir, transportar, importar, exportar, etc., mencionados nos artigos 21.º, n.º 1 e 22.º n.º 1. O mesmo é revelado pelo art.º 31.º do mesmo diploma, onde se alude ao abandono voluntário da actividade, afastamento ou diminuição por forma considerável do perigo produzido pela conduta, o que não teria sentido num contexto de uma simples venda ou uma mera cedência desligadas de um espetro mais amplo de idêntica ou semelhante atuação, ou que pela respectiva quantidade evidenciem inserir-se tal conduta numa cadeia mais complexa de realização do crime . O mesmo se diga relativamente ao disposto no art.º 30.º, n.º 1 e designadamente n.º 2, respeitantes ao consentimento para tráfico ou uso ilícito de produtos estupefacientes. Tal não significa que a simples venda ou cedência de estupefaciente não integre a prática de crime. Porém não é uma situação destas que preside à criminalização do tráfico de droga, não sendo mesmo difícil demonstrar que uma tal actividade, isolada e meramente ocasional, desligada de um qualquer contexto de reiteração, assume diminuta dignidade penal, visto que o próprio crime de tráfico de menor gravidade (art.º 25.º) importa dos artigos 21.º e 22.º a factualidade típica. Ou seja, o chamado crime de tráfico de droga é essencialmente um crime habitual de execução reiterada só deixando de haver unidade criminosa quando, por decisão do agente ou por razões a ele alheias, por exemplo por intervenção das autoridades, ocorra uma situação de descontinuidade da conduta típica, . Afigura-se por isso que a analogia entre crimes sexuais e crime de tráfico de droga, mesmo no simples plano da sua execução prolongada (outra questão a que depois aludiremos tem a ver com a diferente natureza dos bens jurídicos tutelados) não dá contributo relevante para a aceitação do chamado crime de trato sucessivo.
2.3.4 - Não há, tanto quanto sabemos, qualquer ordenamento jurídico-penal onde se fale em crime de trato sucessivo. Entre nós constitui esse designado crime uma criação jurisprudencial, (à semelhança do que ocorreu na Europa com outros institutos[1] designadamente no período anterior ao constitucionalismo liberal, quando inexistia divisão de poderes e o princípio da legalidade penal era uma miragem ou constituía mesmo um pensamento subversivo), mas sem qualquer respaldo na lei ou apoio relevante da doutrina e que corresponde, grosso modo, ao crime continuado, não tal como ele é consagrado na legislação portuguesa mas como é entendido, por exemplo, na Alemanha, Espanha ou Itália. Jescheck escreve que os requisitos do crime continuado tanto se concebem de forma ampla como estrita, conforme se atenda mais às suas vantagens ou aos seus inconvenientes. Ainda assim, assinala os seguintes[2]: - Homogeneidade da forma de comissão; - Lesão do mesmo bem jurídico; - Unidade do dolo. Por sua vez, o art.º 74.º do C. P. Espanhol exige como requisitos de verificação do crime continuado[3]: - Atuação em execução de um plano preconcebido ou aproveitando idêntica ocasião; - Pluralidade de acções ou omissões; - Que infrinjam o mesmo preceito penal ou preceitos de igual ou semelhante natureza; - Homogeneidade da técnica comissiva; - Identidade do sujeito ativo. No direito penal italiano (art.º 81.º, n.º 2 do CP) considera-se que o crime continuado exige os seguintes requisitos[4]: - O mesmo desígnio criminoso, considerando-se que para tal é necessário e suficiente uma programação e deliberação inicial, genérica, de praticar uma pluralidade de crimes com vista a um único fim prefixado suficientemente específico; - Várias violações da lei (da mesma ou de diversas disposições legais); - Pluralidade de acções ou omissões.
2.3.5 - Como se constata pela verificação dos mencionados requisitos, nenhum deles tem em consideração a culpa do agente. É certo que Mantovani assinala como ratio do instituto do crime continuado o facto de a censurabilidade global do agente ser menor que nos casos normas de concurso. Todavia é o mesmo autor a reconhecer que o crime continuado é um instituto de uma vitalidade expansiva sem par[5], tal como o revela a sua evolução que, começando por exigir a unidade do sujeito passivo e a lesão da mesma norma, progressivamente se foi ampliando, admitindo a diversidade de sujeitos passivos, a violação da mesma ou de diversas normas ou até a ofensa de diferentes bens jurídicos. Constatamos pois que o designado crime de trato sucessivo se identifica, no essencial, com as acima expostas concepções de crime continuado. Em boa verdade o chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (art.º 30.º,n.º 2 do Código Penal). É aí que reside a verdadeira marca identitária do crime continuado[6], que se manifesta designadamente nos casos de pluralidade de resoluções, (se bem que a continuação criminosa não seja incompatível com a verificação de um dolo conjunto ou dolo continuado[7]), dado que, como escreve Mezger, “…o característico do crime continuado é precisamente sucumbir cada vez de novo à tentação”[8]. A ideia de que o elemento diferenciador entre crime continuado e crime de trato sucessivo é de que, “ao contrário do que sucede no crime continuado, nos crimes de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa, mas, sim, um seu agravamento crescente à medida que a conduta se vai repetindo”, não passa de um sofisma. No crime continuado tal como previsto no art.º 30.º, n.º 2 do C. Penal, a diminuição da culpa refere-se à reiteração da conduta lesiva mas não à conduta global no âmbito da qual é necessariamente mais elevada. Na chamado crime de trato sucessivo afirma-se a progressiva medida da culpa nas sucessivas acções, para depois a mitigar no contexto global (Mantovani). Em qualquer caso a punição é pela pena correspondente ao crime mais grave, eventualmente exasperada em função da gravidade das restantes condutas tendo em conta o grau de ilicitude, medida da culpa e das necessidades de prevenção[9], pelo que crime continuado ou o dito crime de trato sucessivo, a ser admitido, seriam na prática vias diferentes para se chegar a um mesmo resultado. O crime continuado é uma construção controversa que, mesmo no nosso sistema penal suscita reservas, havendo mesmo quem preveja o seu desaparecimento[10]. Muitas mais objecções e até hostilidade merece este instituto, quer na doutrina quer na jurisprudência, na Alemanha[11], Espanha ou Itália, onde o respectivo regime, apesar de algumas variações de país para país, coincide com aquele que nos é oferecido sob a designação de “crime de trato sucessivo” que, a ser admitido, viria confirmar, também entre nós, a “vitalidade expansiva sem par” do crime continuado, a que alude Mantovani. Não surpreende por isso que o STJ não esteja a enveredar por esse caminho, como o revela desde logo o voto de vencido no referido processo n.º 862/11.6TAPFR.S1, bem como muitos outros arestos, ente os quais destacamos o de 06-04-2016 (P. 19/15.7JAPDL.S1), de 20-04-2016 (P. 657/13.2JAPRT.P1.S1), de 18-01-2018 (P. 239/11.3TALRS.L1) ou o de 22-03-2018 (P. 467/16.5PALSB.L1.S1).
2.3.6 - Acresce que os crimes pelos quais o arguido foi condenado protegem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal e, para além disso, cada um dos crimes ofendeu uma diferente vítima. Nos termos do art.º 25.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”. Esta norma dá expressão a um dos pilares da nossa ordem constitucional, que é a dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da CRP). Cada cidadão é portador de um património físico e moral autónomo, que o Estado tem especial obrigação de proteger, tendo no que concerne aos crimes contra bens jurídicos eminentemente pessoais plena aplicação o disposto no art.º 30.º n.º 1 do Código Penal, como de resto resulta do n.º 3 da mesma norma. É esta a solução que se compagina com a dignidade da pessoa, sendo inconcebível dar tratamento privilegiado ao agente que, mesmo no quadro de um dolo unitário, pratique ao longo do tempo um crime contra a liberdade sexual, ainda que da mesma vítima, utilizando-a a seu bel-prazer como se de um objecto se tratasse. Ainda assim entendeu o legislador acrescentar o n.º 3 ao art.º 30.º (Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro), excluindo da continuação criminosa os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, indo de encontro a uma proposta que já havia sido formulada em sede de Comissão Revisora do Projeto de Código Penal e que então foi considerada desnecessária.
2.3.7 - Em suma, como se escreve no acima mencionado voto de vencido (Conselheiro Manuel Braz), “A categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [artº 119º, nº 2, alínea a), do CP], o crime continuado [artºs 119º, nº 2, alínea b), 30º, nºs 2 e 3, e 79º] e o crime habitual [artº 119º, nº 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [artº 19º, nº 2, do CPP]”. Dado que a conduta do arguido se não enquadra em qualquer dessas designações tem que ser punida de acordo com as regras do concurso efectivo constantes do art.º 30.º, n.º 1 do Código Penal. Improcede pois, quanto a esta parte, o recurso.
2.4 - Da medida das penas 2.4.1 - Não sendo considerada a punição no quadro do chamado crime de trato sucessivo pugna o recorrente pela condenação nos termos do acórdão recorrido mas reduzindo ao mínimo legal as penas respeitantes aos crimes de pornografia de menores agravado em que houve simples aliciamento, ou seja, os contemplados nas alíneas c), e), f), g) e i) do número I da decisão, e pela aplicação, em cúmulo jurídico de uma pena única de 4 anos ou em pena que não exceda os 5 anos, suspensa na respectiva execução. Invoca em abono de tal solução a confissão do arguido, o seu contributo na descoberta da verdade, o arrependimento e vergonha pela sua conduta, a colaboração com as autoridades informando das existência de outras vítimas quando apenas uma era referenciada nos autos, a ausência de contacto físico com os menores, não transmissão a terceiros de fotos, vídeos ou filmes, a sujeição a tratamento médico, o padecimento de perturbação parafílica, a ausência de antecedentes criminais e as atenuadas necessidades de prevenção atenta a inserção social, laboral e familiar do arguido
2.4.2 - Sobressai na motivação do recorrente o propósito de uma pena única não excedendo os cinco anos e suspensão da respectiva execução. Há que sublinhar no entanto que a questão da suspensão da pena pressupõe uma prévia determinação da respectiva medida, a qual deve ser determinada, apenas, nos termos do disposto nos artigos 40.º e 71.º a 73.º do Código Penal, sob pena de se incorrer numa inversão metodológica e acrescentar a suspensão da execução da pena às circunstâncias previstas no art.º 71.º, n.º 2. Por outro lado o presente recurso é restrito à matéria de direito pelo que a base factual da decisão é a que consta dos factos como provados.
2.4.3 - No momento da determinação da medida das penas, considerou o tribunal recorrido o seguinte: “(…) - Em relação aos crimes de pornografia de menores há que distinguir a este nível, aqueles em que, apesar do aliciamento por parte do arguido no sentido de levarem a cabo esses procedimentos, os menores não chegaram a tirar quaisquer fotografias ou a fazer quaisquer vídeos, nunca tendo correspondido ao aliciamento em causa (caso dos menores CC, EE, FF, GG e II); aqueles em que os menores tiraram fotografias ou se filmaram desnudados ou focando os órgãos sexuais ou a manipular os mesmos e enviaram tais materiais ao arguido que os manteve na sua posse (caso dos menores BB, DD e HH) e aquele em que o aliciamento se prolonga por mais de um ano acabando o menor JJ por praticar coito oral com o irmão mais novo, gravar em vídeo essa imagem, bem como a imagem em que coloca o seu pénis na boca do irmão com 11 anos de idade e envia-o ao arguido que o guardou na sua posse, não esquecendo, contudo, que quando este comportamento ocorre, o menor JJ já completara 14 anos de idade. É evidente que a ilicitude é de grau moderado nos primeiros casos, de grau médio nos seguintes e muito relevante, no último (sem esquecer, contudo, que, a conduta mais grave ocorre quando o menor já tinha completado 14 anos de idade). Em termos de gravidade das consequências dos factos, nada se apurou em concreto, mas, parece evidente sobressaírem no conjunto das condutas, os menores que são irmãos, dado que os atos que estão em causa não poderão deixar de ter marcado de forma significativa os mesmos. Já quanto aos restantes, nomeadamente, quanto àqueles que não chegaram a corresponder ao aliciamento, as consequências serão de diminuto relevo. Acresce o acentuado grau de violação dos deveres impostos ao arguido relativamente ao conjunto da sua atuação em causa nos presentes autos. O arguido era à data, treinador de futebol de crianças desta faixa etária e aproveitou-se dessa proximidade com os mesmos, do conhecimento que tinha acerca da forma como se relacionavam uns com os outros no âmbito das redes sociais para praticar os factos, o que fez de forma particularmente insidiosa, fazendo-se passar por menor do sexo masculino ou feminino disposto a exibir o corpo na Internet, para ganhar a confiança dos mesmos. Desta forma, violou a confiança nele depositada pelos pais e responsáveis pela educação desses menores, confiança que, ficou demonstrado nos autos, era total. O grau de culpa é elevado, revestindo o dolo, em todos os crimes, a forma direta, embora sem se afastar do que é habitual neste tipo de ilícito. Relativamente aos sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e aos fins ou motivos que o determinaram, há que ter em conta que o arguido tem características de personalidade que o conduziram num crescendo, a levar cada vez mais longe as suas condutas ilícitas, pelo que, neste aspeto, nada de relevo há a assinalar, tendo em conta que neste tipo de ilícitos são os sentimentos e fins que se apuraram terem presidido às condutas do arguido, os habitualmente manifestados. No que concerne ao percurso de vida, às condições pessoais e à situação económica do arguido, resultou provado que é o primogénito de dois irmãos e, o seu processo de desenvolvimento decorreu num contexto familiar estruturado. Na infância não lhe são atribuídos quaisquer problemas de comportamento, sendo percecionado como uma criança reservada e afetuosa na relação, registando nesse período a única reprovação, numa trajetória escolar regular, sem problemas comportamentais ou de integração. No ensino superior, desistiu no início do curso de engenharia do ambiente e ingressou no curso de “Treino Desportivo de Alto Rendimento” (variante futebol) na Escola Superior de Desporto de .... No contexto de dificuldade em conciliar os estudos com a atividade profissional suspendeu a matrícula há cerca de 2 anos faltando-lhe 5 “cadeiras” para terminar o curso. Praticante de desporto desde os 10 anos de idade (basquetebol e depois futebol), com 18 anos iniciou funções na formação/treinador das camadas jovens no ... Futebol Clube, acumulando esta atividade remunerada com a de prospetor de futebol. Naquela coletividade desportiva, o arguido é referido como pessoa que sempre teve um relacionamento adequado com os colegas de trabalho, com os atletas e pais destes, sendo reconhecido pelo seu profissionalismo e sociabilidade. Nunca lhe foram conhecidos comportamentos aditivos (álcool ou outras drogas). Mais se provou que, à data dos factos e da detenção, o arguido vivia com os pais e um dos irmãos, tendo, os factos e aquela detenção causado muita surpresa e sofrimento aos seus familiares, que evidenciam coesão no apoio ao arguido, o que também se verifica por parte de alguns amigos mais próximos. A habitação da família de origem é uma moradia própria, tipologia “3”, sita em ..., dotada de boas infraestruturas e conforto. Na sujeição à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, passou a residir em casa dos tios maternos (..., programador informático e ..., bancária) em ---, onde beneficia igualmente de boas condições de habitabilidade, de inserção e apoio familiar. Os pais visitam-no com regularidade. À data dos factos, o arguido exercia a atividade de treinador de futebol das camadas jovens (nos escalões etários dos 11 aos 15 anos) da coletividade “... Futebol Clube”. Desta atividade e ainda de prospetor de futebol, auferia um total de cerca de €600,00 (seiscentos euros) líquidos por mês. Atualmente trabalha como operador de máquinas, auferindo mensalmente cerca de €585,00 (quinhentos e oitenta e cinco euros) mensais. No seu agregado familiar de origem, o total de rendimentos disponíveis é de cerca de €1 822,00 (mil oitocentos e vinte e dois euros) líquidos por mês e as despesas fixas (excluindo alimentação) de €215,00 (duzentos e quinze euros) por mês. O agregado dos tios que integra provisoriamente possuiu uma situação económica estável. O arguido frequentou e completou a componente específica do Curso Grau I de Treinadores de Futebol, a decorrer na Associação de Futebol de ..., o que o habilita oficialmente para atividade de treinador, área profissional que pretende manter no futuro. De tudo resulta que o arguido teve um percurso normativo, no seio de uma família estruturada e adquiriu qualificações que lhe permitem assegurar a sua subsistência, beneficiando do apoio dos familiares e amigos próximos. A conduta anterior aos factos e a posterior a estes é de relevar de forma favorável ao arguido já que não tem antecedentes criminais e em audiência prestou declarações tendo confessado a prática dos factos que lhe são imputados, pese embora não tenha admitido os de natureza psicológica. De todo o modo, provou-se que, na sequência da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, acompanhada de obrigação de tratamento médico que lhe fosse determinado, o arguido se sujeitou a acompanhamento clínico ambulatório na valência de psiquiatria e psicologia/sexologia, comparecendo a consultas e cumprindo a medicação, situação que se mantém, revelando o arguido estar consciente da necessidade da manutenção deste acompanhamento clínico. Para além disso, verbalizou em audiência estar arrependido e muito envergonhado de ter praticado os factos em causa nos presentes autos. Tudo isto é demonstrativo de que o arguido após tratamento, assumiu uma atitude de autocrítica e censura sobre a sua conduta, essencial para que, para o futuro, possa adotar conduta conforme ao direito. Finalmente, e no que toca à sua imagem na comunidade, provou-se que, à data dos factos o arguido tinha uma imagem positiva e valorizada na comunidade local, particularmente junto de amigos e de outros elementos técnicos e dirigentes do ... Futebol Clube, nunca lhe tendo sido conhecido qualquer indício de comportamento desadequado nas relações interpessoais e concretamente com aqueles, com os atletas ou pais destes. O presente processo judicial causou, contudo, surpresa generalizada e alguma desconfiança e degradação da sua imagem social. Em termos de exigências de prevenção geral, os crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores, repugnam à consciência coletiva, tanto no plano ético como moral. Isto porque, por um lado, representa um grave atentado a seres indefesos, sendo salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente. Por outro lado, porque é frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afetado e demover potenciais delinquentes. Com efeito, há que ter em conta a exigência para refrear a crescente tendência – que é pública - para a prática de crimes que colocam em causa a liberdade e a autodeterminação sexual de menores, associados ao aproveitamento destes para práticas de autossatisfação sexual do agente. Por essas razões, a comunidade sente uma necessidade bastante acrescida de ver reforçada a confiança na validade da norma violada. (…)”.
2.4.4 - Como se constata pela longa transcrição da decisão recorrida, o tribunal realizou uma rigorosa análise dos elementos relevantes para determinação da medida da pena, tomando em consideração tudo quanto foi apurado e consta da matéria de facto provada. Diferenciou o grau de ilicitude dos diferentes atos praticados pelo arguido atribuindo grau moderado aqueles de que foram vítimas os menores que resistiram ao aliciamento e reconhecendo que, relativamente a estes menores, as consequências do crime “serão de diminuto relevo”. Teve em conta o percurso de vida do arguido, as suas condições pessoais, contexto familiar e laboral, apoio familiar e de amigos mais próximos, conduta anterior e posterior aos factos, confissão, vergonha e arrependimento, sujeição a tratamento médico e a sua situação clínica. Não deixou também de considerar o grau de violação dos deveres que se impunham ao arguido e a forma insidiosa da sua conduta, traduzida em se fazer passar por jovem adolescente, umas vezes de sexo feminino, outras de sexo masculino, o elevado grau de culpa, a natureza do dolo e o crescendo de ilicitude, se bem que reconhecendo, relativamente aos dois últimos factores, que os mesmos andam normalmente associados a este tipo de criminalidade. Chamou por fim o tribunal recorrido a atenção para as exigências de prevenção que se colocam relativamente a crimes desta natureza.
2.4.5 - Pode por isso dizer-se que o tribunal ponderou devidamente as questões suscitadas em sede de recurso relativamente à conduta do arguido em geral e aos crimes cuja medida da pena aqui se impugna, em particular, facto que de resto é reconhecido em sede de motivação do recurso, em cujas conclusões, a propósito dos crimes em que houve apenas aliciamento, se escreve a dado passo: “(…) 26. Aliás, o tribunal recorrido, compreendendo a situação, aplicou ao arguido, por cada um daqueles cinco crimes mencionados, a pena de 1 ano e 10 meses de prisão, ou seja, uma pena superior ao mínimo legal em apenas quatro meses. (…)”.
2.4.6 - Esforça-se o recorrente por convencer este tribunal de que as penas deveriam ser fixadas no mínimo da moldura legal advogando um maior relevo atenuativo para as circunstâncias consideradas na decisão recorrida e aludindo ainda à não transmissão a terceiros de fotos, vídeos ou filmes, à ausência de contactos com os menores e conferindo natureza mitigadora, ao contrário do entendido pelo tribunal, ao facto de se ter feito passar por adolescente, com idade próxima da dos menores ofendidos. Começando pela última questão dir-se-á que a atuação mediante artifício de uma falsa identidade é uma modalidade ínvia, ardilosa, insidiosa, para usar uma expressão penalmente consagrada, de realização do crime que, quando releva, é no sentido da agravação e não da atenuação, dado que a vítima, não suspeitando estar em contacto com um adulto, despoja-se mais facilmente das naturais barreiras de defesa e fica mais permeável à agressão, embora na situação em apreço tal circunstância não tenha verdadeiramente relevo porque os menores não acederam ao aliciamento. Por sua vez, o facto de o arguido não ter contactado pessoalmente com os ofendidos compreende-se à luz do anteriormente considerado, já que em tais circunstâncias não seria possível utilizar um falso perfil. Em qualquer caso a ausência de contactos pessoais com os menores nada significa de per se, sendo irrelevante no contexto da medida da pena. Irrelevante é também a não transmissão a terceiros de filmes, vídeos ou fotografias, o que constituiria uma outra modalidade de realização do crime «art.º 176.º, n.º 1 alínea c)». O nosso direito penal é direito penal do facto. A medida da pena é determinada em função daquilo que o arguido fez e não do que não fez, ainda que o pudesse ter feito. Dito isto e remetendo-nos mais uma vez à fundamentação dada pelo tribunal recorrido para determinação da medida das penas parcelares, considerando que foram fixadas dentro de uma moldura entre um mínimo de 1 ano e 6 meses e 7 anos e 6 meses de prisão, de forma alguma se pode considerar que a pena de 1 ano e 10 meses de prisão, que representa apenas 1/18 da diferença entre o mínimo e o máximo da moldura penal, ajustada a situações de reduzido grau de ilicitude e baixa intensidade do dolo, se possa considerar desproporcionada ou excessiva. Improcede por isso também nesta parte o recurso.
2.4.7 - Confirmadas as penas parcelares aplicadas há que apreciar a medida da pena única que, atento o disposto no art.º 77.º, n.º 2 do Código Penal, tem como mínimo de 4 anos de prisão, podendo ir até um máximo de 21 anos e 4 meses de prisão ( e não 19 anos e 4 meses como por lapso se refere no acórdão recorrido). Entendeu o tribunal o seguinte: “(…) tendo em conta os factos e a sua gravidade (em muitos casos a conduta do arguido não foi além do aliciamento dos menores, mas sem esquecer que o arguido foi evoluindo para atos mais graves, chegando mesmo a aliciar um menor a encontrar-se com ele), o período durante o qual tais atos foram praticados (a conduta do arguido prolongou-se ao longo de cerca de seis anos), as circunstâncias que rodearam a sua prática, bem como a personalidade do arguido (factos descritos em 64., 65. e 66. dos factos provados), considera-se adequado aplicar-lhe, em cúmulo jurídico, a pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. (…)”.
2.4.8 - A determinação da medida da pena única faz-se por referência à conduta do arguido globalmente considerada no quadro de um sistema que assinala como fim primário das penas a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e elege a culpa como fundamento e medida da pena (art.º 40.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal). Nos termos do art.º 71.º, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção, determinando ainda o art.º 77.º, n.º 1, última parte, que na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Quando se alude às exigências de prevenção tem-se a vista desde logo a prevenção geral positiva, definidora dos parâmetros necessários para a tutela dos bens jurídicos e restabelecimento da paz jurídica comunitária, parâmetros esses que constituem a base operativa da prevenção especial com vista à reintegração do agente na sociedade. Na alusão à personalidade do agente “(…) relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade”[12].
2.4.9 - O crime de abuso sexual de crianças é um crime de perigo abstracto que visa proteger a autodeterminação sexual, face a condutas que podem prejudicar o livre desenvolvimento da personalidade da criança, em particular na esfera sexual[13]. Por sua vez o crime de pornografia de menores visa, segundo Maria João Antunes e Cláudia Santos[14], o livre desenvolvimento da vida sexual do menor de de 18 anos de idade face a conteúdos ou materiais pornográficos. Independentemente de um específico objecto de protecção das diferentes normas importa assinalar que “(…) os diferentes crimes sexuais estão configurados de forma a proteger, em diversas vertentes, o bem jurídico específico da liberdade e autodeterminação sexual, que faz parte do “núcleo duro” dos direitos e liberdades de cada pessoa”[15]. A protecção do bem jurídico coloca-se com particular acuidade relativamente a menores e mais especificamente em relação a menores de 14 anos, em função da fragilidade das potenciais vítimas e do impacto que as condutas penalmente tipificadas têm na orientação de vida, não apenas na vertente da sexualidade mas também no são desenvolvimento físico e psíquico dessas pessoas. Daí que os crimes sexuais praticados contra crianças mereçam particular repúdio por parte da comunidade, o que reforça as necessidades de prevenção geral positiva. Particular significado assume o facto de a conduta do arguido se ter desenvolvido ao longo de pelo menos seis anos sem que se tenha confrontado a si próprio com a anomalia da sua conduta, dado tratar-se comprovadamente de pessoa com formação acima da média, elevado funcionamento cognitivo (acima da média), dotado de elevada capacidade de atuar finalisticamente, pensar em termos racionais e proceder de forma eficaz. Não podia o arguido ignorar o significado da sua conduta, a repulsa social que a mesma merece e o seu impacto no desenvolvimento da personalidade das vítimas. Não se ignora o empenho que ele tem revelado no tratamento a que se tem sujeitado face ao diagnóstico de perturbação de pedofilia e voyeurismo. Era porém exigível e seria expectável, que pessoa racional dotada de elevada capacidade cognitiva de que o arguido é dotado, se empenhasse num comportamento pautado por maior fidelidade ao direito e motu proprio procurasse ajuda especializada, até porque no seu desempenho profissional lidava diariamente com crianças Remete-nos esta questão para o significado dos problemas de que o arguido padece, particularmente da perturbação parafílica que, sem por em causa a sua imputabilidade penal, seguramente contribuiu para as suas condutas. Se é certo que tal facto é em certo grau mitigador da culpa não permite, por outro lado, formular um diagnóstico de mera pluriocasionalidade, apontando antes para uma tendência ou uma pulsão para a prática dos atos por que foi condenado a que não será alheio o também comprovado desajustamento social e as perturbações associadas a défices no controlo dos impulsos que levam à passagem ao ato e limitada tolerância à frustração, circunstâncias que apontam também para o reforço das necessidades de prevenção especial. Tudo ponderado resta concluir que a pena única imposta ao arguido pelo tribunal recorrido não merece qualquer censura.
2.5 – Suspensão da pena A possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto formal que a pena aplicada tenha duração não superior a cinco anos (art.º 50.º, n.º 1, do Código Pena). Dado que a pena excede tal limite, impondo-se o cumprimento de pena de prisão efectiva, fica prejudicado o conhecimento deste segmento do recurso.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da 5.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.
O recorrente é condenado em custas fixando-se em 6 UC a taxa de justiça.
Supremo Tribunal de Justiça, 20 de fevereiro de 2019
Júlio Pereira (Relator)
Clemente Lima
Manuel Braz ----------------------------
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