Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/14.4T8VVD.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
POSSE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
CONTRADIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 01/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / POSSE / CARACTERES DA POSSE / AQUISIÇÃO DA POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE EM GERAL / DEFESA DA PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ACTOS PROCESSUAIS / ACTOS DOS MAGISTRADOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume III, p. 100,
- Manuel Rodrigues, Reivindicação no Direito Civil Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 57, p. 144;
- Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, p. 238;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, p. 114, Volume III.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1258.º, 1261.º, 1263.º, ALÍNEA A), 1287.º, 1311.º, 1316.º, 1318.º E 1325.º.
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 154.º, 607.º, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C), 635.º, N.º 4, 663.º E 679.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º 1.
Sumário :

1. A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

2. A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).

3. A nulidade do aresto, sustentada na contradição entre os seus fundamentos e decisão, pressupõe um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adoptada, ou seja, apenas ocorre, quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que veio expresso no dispositivo do dito acórdão.

4. A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objectivos e subjectivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto.

5. A posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova deste último elemento pode resultar de uma presunção, ou seja, a existência do corpus faz presumir a existência do animus.

6. Demonstrando-se actos materiais praticados pelos demandantes, reconhecidos possuidores em relação ao caminho que se inicia junto da estrada que dá o acesso a prédio sua pertença, feito, a pé e de carro de bois, desde há mais de 34 anos, não revelam, por si, a qualquer pessoa que os observe, a vontade de agirem como se se tratasse dos titulares do direito de propriedade a que se arrogam, antes a um outro direito real de gozo, mormente, o exercício de gozo, sobre coisa alheia, usufruindo ou aproveitando de vantagens ou utilidades de prédio alheio, em benefício do seu, não podendo ser rejeitadas a presença e a relevância desse elemento quando o corpus que o traduz denote, por parte de quem o exerce, a vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente a esse direito real.

Decisão Texto Integral:

                 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

AA e BB intentaram contra CC e outros a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, na qual peticionam:

1.º) Se declare que o prédio melhor identificado no artigo 1.º é propriedade dos Autores; 2.º) Sejam os Réus condenados a reconhecerem que o caminho objecto da discórdia faz parte integrante do prédio melhor identificado no artigo 1.º, e a restituir-lhes o livre acesso ao caminho que faz desse prédio, livre e desocupado de pessoas e bens, encargos e obrigações; 3.º) Sejam os Réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam o livre acesso pelo caminho, a pé, de carro de bois e tractor para o prédio.

Articularam, com utilidade:

- Encontra-se inscrito a favor dos Autores, na matriz predial rústica da freguesia da ..., sob o art.º 500, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 263, o seguinte prédio: campo do sobreiro, de cultivo, com 2 (duas) oliveiras, 03 (três) castanheiros e 23 (vinte e três) uveiras, com área de 4.030 m2, a confrontar de norte com DD, nascente e poente com EE e a Sul com FF, sito no lugar de ..., concelho de ...;

- Tal prédio tem vindo a ser utilizado há pelo menos 50 (cinquenta) anos por GG e HH, pais da ora Autora, e, após a sua morte, pelos Autores;

- Que o têm usado à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja;

- Cultivando-o, lavrando-o, tratando das árvores e videiras que nele existem e colhendo os frutos dessa actividade;

- Na convicção de serem os únicos e exclusivos donos do prédio;

- A 1.ª Ré, na qualidade de proprietária de raiz, e a 2.ª Ré, na qualidade de usufrutuária, são, respectivamente, dona e legitima possuidora do prédio inscrito na matriz predial urbJJ da freguesia da ..., sob o art.º 1724, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1596; 

- Por sua vez, os 3ºs Réus são donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz predial rustica da freguesia da ..., sob o art.º 495, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1577;

- O acesso ao prédio dos Autores foi sempre, desde há mais de 50 anos, feito a pé, de carro de bois e ainda de tractor por um caminho que se inicia junto da estrada de ..-...;

- Confrontando a nascente com os prédios melhor identificados nos artigos 6.º e 7.º do petitório;

- Com um comprimento de cerca de 30 m e 2,5 m de largura;

- Os Autores e seus antecessores têm utilizado o mencionado caminho para acederem ao seu prédio;

- E esse caminho foi sempre feito de pé, de carro de bois e ainda de tractor, sem a oposição de ninguém;

- Ostensivamente e publicamente, pois à vista de toda a gente;

- Sempre o usando na convicção que o mesmo era parte integrante do prédio melhor identificado no artigo 1.º do petitório;

- Sempre convictos de exercerem um direito próprio, e pois, não lesando terceiros;

- Caminho que sempre, ao longo de várias dezenas de anos, se apresentou com sinais visíveis, permanentes e inequívocos, como as divisões feitas em pedra, delimitando o mesmo dos prédios que a nascente se encontram;

- No início de 2005, o marido da 2.ª Ré, II, sem que para tal estivesse autorizado, resolveu cimentar o caminho supra mencionado, numa área de 10m de comprimento, com início junto da estrada pública que liga Turiz-...; 

- Posteriormente, no ano de 2009, a 2.ª Ré, sem o conhecimento e contra a vontade dos Autores, colocou paletes de madeira e ainda paletes com blocos de cimento, obstruindo, e impedindo o trânsito de pessoas e veículos pelo mesmo;

- Apesar das várias interpelações feitas aos Réus, no sentido de reporem a acessibilidade do caminho, as mesmas saíram todas goradas.

Regularmente citados os Réus, a Ré/CC contestou, impugnando parcialmente a matéria de facto alegada na petição inicial e invocando a sua ilegitimidade para a presente acção, alegando, em síntese, que:

- A Ré é parte ilegítima na presente acção, porquanto os Autores alegam que a causa de pedir da presente demanda assenta na existência ou não de um caminho de servidão que onera o prédio da Ré CC (raiz) e de sua mãe JJ (Usufruto), a saber: prédio urbano sito no lugar do Sobreiro, ..., inscrito no artigo 1724 e descrito na matriz sob artigo ...;

- Contudo, a configuração de um caminho de servidão que existiu em tempos imemoriais, mas que deixou de ser usado há mais de trinta anos, não atravessa o prédio urbano das Rés CC e JJ, identificado no artigo 6.º da Petição Inicial;

- Mas, antes, atravessa o prédio urbano designado como barracão de rés-do-chão com uma divisão, para indústria de fabricação de blocos de cimento, com a área coberta de 500 m2, a confrontar do Norte com Herdeiros de II e Caminho público; sul com herdeiros de II, Nascente com ... e  Poente com Caminho de Servidão, inscrito na matriz sob o artigo 639 Urbano da ...;

- Porquanto, aquando da realização das Partilhas por óbito de II, falecido em 12 de Junho de 2009, os seus legais herdeiros (esposa JJ e três filhos: CC, AA e EE) fazem a partilha de todo o património do dissolvido casal;

- Por força da partilha outorgada em 3.08.2012 no cartório Notarial de ... do Dr. ..., a folhas 88 a 91v, do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº 151 - A, é adjudicado ao filho LL, o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 639, que se localiza entre o prédio urbano das Rés CC e JJ e o prédio do vizinho;

- As Rés, JJ e CC são partes ilegítimas na demanda, facto que é do conhecimento dos Autores, pois que vivem a cerca de 20 metros do local em causa.

Mais requereram a intervenção principal, do lado passivo, de LL e ....

Os Autores exerceram o contraditório quanto à excepção invocada pela Ré e quanto ao incidente de intervenção de terceiros, pugnando pela improcedência da excepção e declarando nada ter a opor à requerida intervenção principal.

Por despachos de fls. 224 a 228 foi indeferido o incidente de intervenção principal provocada e julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual deduzida pela Ré.

Foi citado o Ministério Público em representação dos herdeiros incertos de MM, após o que, na sequência da identificação desses herdeiros, prosseguiu a acção contra, ..., ..., ..., ..., ... e ....

Calendarizada e realizada a audiência final foi proferida decisão de facto e de direito, constando do respectivo dispositivo:

“Nestes termos e face ao exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência:

a) Declaro que o prédio identificado no ponto 1 dos Factos Provados é propriedade dos Autores;

b) Declaro que o caminho referido nos pontos 8 a 16 dos factos Provados é parte integrante do prédio identificado no ponto 1 dos Factos Provados;

c) Condeno os Réus a restituir aos Autores o livre acesso ao caminho referido em b), livre e desocupado de pessoas e bens, encargos e obrigações;

d) Condeno os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam o livre acesso pelo caminho referido em b).”

Inconformada, apelou a Ré/CC, tendo o Tribunal da Relação conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação procedente e em conformidade alteram a sentença recorrida nos seguintes termos:

a) Declara-se que o prédio identificado no ponto 1 dos Factos Provados é propriedade dos Autores;

No mais absolvem-se os réus do pedido.”

Inconformado com o proferido acórdão, os Autores/AA e BB, interpuseram recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

“I -   Antes de mais, ressalvando desde já o devido respeito por melhor entendimento, consideram os Recorrentes que o acórdão está ferido de nulidades, as quais estão vertidas e tipificadas na al. b) e c) do n.° 1, do Art. 615°, ex vi al. c) do n.° 1 do Art. 674.°, ambos do C.P.C, designadamente por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, ainda por ter os fundamentos em clara oposição com a decisão, bem como conter ambiguidades e obscuridades que tornam a decisão ininteligível, isto pelo seguinte;

II -    O Tribunal a quo considerou que os factos dados como provados seriam suficientes para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem por usucapião.

III -  Ora, para além dos requisitos comuns da constituição dos direitos reais por usucapião, designadamente da posse (elemento material "Corpus" e elemento psicológico "Animus") e ainda da sua manutenção por certo lapso de tempo, o Tribunal a quo, sem que perceba onde alicerçou os fundamentos, considerou existir a demonstração que a pretensa servidão seria aparente.

IV -  Pese embora tal facto, e para o que aqui interessa, extrai-se que o Tribunal a quo considerou que os Autores provaram os requisitos comuns da constituição dos direitos reais por usucapião.

V -    No entanto, o mesmo Tribunal considera que a prova suficiente para a aquisição de um direito de servidão de passagem por usucapião, não é suficiente para se concluir pelo direito de propriedade do caminho e muito menos parte integrante do prédio dos Autores.

VI -  Salvo o devido respeito tal entendimento para além de incompreensível não tem o devido e legal fundamento seja de facto, bem como de direito.

VII - O Meritíssimo Juiz da 1ª Instância, após ter cumprido de forma rigorosa o princípio do contraditório entre as partes, o que sucedeu nos vários atos processuais necessários à boa instrução e julgamento da causa, seja na fase dos articulados, bem como nas várias sessões de audiência de julgamento, nos quais foram cumpridos na integra o principio da oralidade e da imediação, e ainda com a inspeção judicial concretizada, deliberou e bem que os Autores provaram os requisitos comuns da constituição do direito real de propriedade por usucapião do caminho.

VIII - Mais, como também é identificado pelo Tribunal a quo, a sentença “Contém os fundamentos de facto em que se baseia, tal como contém igualmente os respectivos fundamentos de direito”,

IX- A qual teve a seguinte fundamentação factual,

“Apreciando criticamente o conjunto da prova produzida, afigura-se que o depoimento das testemunhas NN e OO e as declarações de parte do Réu Adolfo Valente são coerentes quanto à existência, configuração e utilização do caminho pelos Autores, descrevendo-o em termos coerentes com o observado aquando da inspecção ao local.

Designadamente, constatou-se, no local, a existência de uma rampa que se inicia na via pública e tem continuidade, após a zona de piso em cimento, numa faixa de terreno delimitada, de ambos os lados, por muros de pedra e também por árvores de porte razoável, faixa que se apresenta em terra batida e desemboca, a Sul, no prédio referido no ponto 1 dos Factos Provados.

De resto, a Ré JJ, em depoimento de parte, também reconhece a existência desse caminho e a sua utilização pelos Autores, com as ressalvas já referidas - sendo o seu depoimento, no que respeita à utilização apenas a pé e de carro de bois confirmado pelos depoimentos das testemunhas, já que nenhuma refere a efectiva passagem de tractores.

Por outro lado, para além do depoimento da Ré e da testemunha II, seu filho - e, por esse motivo, com uma relação próxima com os interesses em litígio -, mais nenhum meio de prova permitiu demonstrar, com um mínimo de segurança, que a utilização do caminho pelos Autores tenha cessado em algum momento, muito menos em 1983 - o contrário até resulta da colocação de blocos de cimento e paletes na entrada do caminho, que aponta para um propósito de vedar o acesso, que não é explicável se este tivesse cessado em 1983 e jamais tivesse sido retomado.

Por tais motivos, considerou o Tribunal demonstrada a matéria vertida nos pontos 2 a 5 e 8 a 18 dos Factos Provados, sendo de referir, quanto ao animus vertido no ponto 14 que, no sentido da sua demonstração apontam os depoimentos das testemunhas NN e OO, que, além da passagem, referem também a limpeza do caminho, referindo a primeira que o falecido II lhe contou que ia pedir ao Autor permissão para cimentar esse caminho.”

Conjugada com a de direito, (…);

Todavia, o cerne da questão em litígio consiste em saber se uma determinada parcela de terreno pertence aos Autores, integrando-se no prédio referido no ponto 1 dos Factos Provados.

A este respeito e uma vez que a presunção resultante do registo predial não abrange os elementos da descrição, tais como a área ou as confrontações, importa atender aos factos com eficácia translativa ou constitutiva da propriedade, com particular importância para a usucapião.

Ora, a este respeito, encontra-se provado que:

“O acesso ao prédio referido foi sempre, desde há mais de 34 anos, feito, a pé e de carro de bois, por um caminho que se inicia junto da estrada de ...-... (...);

Confrontando a nascente com os prédios referidos em 6 e 7 (...);

Com um comprimento de cerca de 30m e largura variável entre 3,00m e 2,15m (...);

Os Autores e seus antecessores têm utilizado o mencionado caminho para acederem ao seu prédio (...); E esse caminho foi sempre feito de pé e de carro de bois, sem a oposição de ninguém (...); À vista de toda a gente (...); Sempre o usando na convicção que o mesmo era parte integrante do prédio identificado em 1 (...); Sempre convictos de exercerem um direito próprio, e pois, não lesando terceiros (...);

Caminho que sempre, ao longo de várias dezenas de anos, se apresentou com divisões feitas em pedra, delimitando o mesmo dos prédios que a nascente se encontram” - Cfr., os pontos 8 a 16, dos Factos Provados.

Da matéria de facto acima transcrita decorre que os Autores, por si e através dos respectivos antecessores, praticam actos materiais sobre a parcela em litígio, que usam para passar a pé e com carros de bois, sem que da matéria de facto resulte qualquer elemento que permita restringir o corpus ou o animus aos termos do direito de servidão - como parece pretender a 1.ª Ré -, não estando, sequer, identificado qualquer prédio serviente, por forma a estabelecer a relação predial pressuposta pelo direito real de servidão.

Deste modo, impõe-se concluir pela procedência do pedido formulado pelos Autores na alínea b) da Petição Inicial, na parte relativa ao reconhecimento do direito de propriedade.”

XI -  Desse modo, o Tribunal da 1.ª Instância, bem como o Tribunal a quo consideraram verificado o exercício de um poder de facto sobre o caminho, isto é, o corpus da posse.

XII - Por sua vez o Tribunal a quo, ao contrário do decidido na 1.ª Instância parece considerar que os Autores são meros detentores, isto por não terem feito a prova do animus da posse.

XIII - Ora a Ré, para além de não ter ilidido a presunção legal do registo, contida no Art. 7º do Código Registo Predial,

XIV - Também não ilidiu a presunção vertida no n.° 2 do Art. 1252° do Código Civil.

XV - Cabia à Ré provar que o detentor não era possuidor.

XVI - O que não sucedeu.

XVII - Por conseguinte, o Tribunal a quo, ao considerar que os Autores são meros detentores do caminho, isto por não terem feito prova do animus da posse, decidiram contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente a vertida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14/05/1996 (Documento n.° 1), publicado em Diário da Republica, II Série de 24-06, o qual determina o seguinte;

“Podem adquirir por usucapião, se a presunção da posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”

XVIII - O que não se vislumbra como poderia ter sido alcançado pelo Tribunal a quo, mormente sem a violação dos princípios e disposições legais antes indicados.

XIX - Para além do mais, o Tribunal a quo violou o Art. 7° do Código do Registo Predial, Art. 1287°, 1252° n.° 2, 1255°, 1256° e 1305, todos do Código Civil.

Termos em que,

- Devem ser declaradas as invocadas nulidades, com as legais consequências;

- Deve de todo o modo o Acórdão em crise ser sempre revogado, confirmando-se a sentença da 1.ª Instância, com as legais consequências.

Pois só assim se fará Justiça”

A Recorrida/CC apresentou contra alegações aduzindo as seguintes conclusões.

“A. Na decisão da Relação, agora em causa, decide-se “Concordando com a sentença recorrida quando refere que está provada a utilização pelos autores do caminho para acesso ao seu prédio, no entendimento dos Senhores Juízes Desembargadores, e muito bem, não existem factos provados suficientes nos autos para afirmar que o referido caminho é parte integrante do prédio dos autores.”

B. E continuam referindo: “Pode-se afirmar que os Autores usam o caminho em proveito exclusivo do seu prédio há, pelo menos, 34 anos. A prova do animus da posse necessária à usucapião constitutiva da servidão resulta de uma presunção, ou seja, ou seja, o exercício do corpus da posse faz presumir a existência daquele, o que de resto resulta de Jurisprudência uniformizada – Ac. De 14.05.96 cuja doutrina se mantém.”

C. “Com efeito a presente ação é uma ação de processo comum, real de propriedade tendente a que seja reconhecido que aquele trato do terreno (o caminho) é parte integrante do prédio dos Autores, e também de reivindicação, ao ser peticionada a restituição do caminho.”

D. “Não está em causa a titularidade do prédio que é dos Autores. O que está em causa é saber se o prédio tem determinadas características, isto é, se determinada área do solo – caminho – integra o prédio.”

E. “Provou-se que o acesso para os prédios dos Autores a pé e de carros de bois, sempre se fez pelo caminho durante mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos Réus, sempre no convencimento de usarem direitos próprios, o que seria suficiente para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem, por usucapião.”

F. “Mas não são factos suficientes para se concluir pelo direito de propriedade do caminho e muito menos que ele é parte integrante do prédio dos Autores.”

G. “JJlisados os factos como provados, o que resulta é que os autores utilizam o caminho para acesso ao seu prédio, há mais de 34 anos, caminho esse que se desenvolve pelo nascente dos prédios das 1º e 2º e 3ºs réus, que se inicia junto à estrada de Turiz-..., o que fazem convictos de exercerem um direito próprio.”

H. “Tendo-se apenas provado que os autores têm direito de passagem a pé e de carro de bois para o seu prédio, pelo caminho descrito em 8, 9 e 10, não pode daí retirar-se que o caminho é parte integrante do referido prédio. E assim a ação não pode proceder a não ser quanto ao primeiro pedido, o que no caso não é posto em causa pelos Réus.”

I. “Quanto aos demais pedidos, apesar de se ter provado o uso pelos autores do caminho há mais de 34 anos para acesso ao seu prédio, os mesmos têm que improceder em virtude da improcedência do segundo pedido porque na ação não foi formulado um pedido de reconhecimento do direito de servidão de passagem a favor do prédio dos autores e o pedido efetuado não comporta o reconhecimento do direito de servidão.”

J. Vêm agora os Autores em sede de recurso de revista para o S.T.J. alegar que a presente decisão põe em causa Jurisprudência uniformizada do STJ juntando um acórdão uniformizador onde refere que: “Podem adquirir por usucapião se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.”

K. Salvo melhor entendimento, não podem os autores juntar um qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência para justificar aquilo que não provaram!

L. Nunca o caminho fez parte integrante do prédio dos autores! O acesso ao prédio destes sempre se fez por este caminho de servidão.

M. Ora o direito de servidão de passagem é bem diferente do direito de propriedade plena sobre um imóvel.

N. Apesar de ambos poderem ser constituídos por usucapião, o animus de um e de outro é completamente diverso.

O. Senão vejamos: a propriedade de um imóvel afere-se pelo gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da coisa que lhe pertencem, dentro dos limites da lei, 1305º C.C., podendo o proprietário exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, 1311º C.C. – e foi precisamente isso que os Autores pediram ao tribunal: o reconhecimento do direito de propriedade do caminho como parte integrante do seu prédio rústico Campo  do  Sobreiro  e  que  o tribunal  a  quo sabiamente revogou!

P. O direito de servidão é um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. As servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião e destinação do pai de família, 1543º e 1547º C.C.

Q. De toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento conjugadas com as provas documentais, em especial as cadernetas prediais dos prédios dos réus é possível verificar a utilização da designação nas confrontações respetivas “caminho de servidão”.

R. De igual modo, o prédio dos autores não confronta com arruamento, mas antes com os 3ºs réus e depois com a 1ª e 2ª ré e só estas confrontam com o arruamento público.

S. Ora, porque a experiencia ensina que uma confrontação fixa como ribeiro, limite de freguesia, caminho ou rua constava na matriz e sempre foi fator de valorização do próprio prédio.

T. Mas de igual modo, os prédios sem confrontação com arruamento, tinham as suas entradas, as suas passagens pelos terrenos vizinhos, sempre junto dos limites para que o encargo não fosse maior que o necessário.

U. Por tudo isto, a decisão do Tribunal da Relação fez uma apreciação criteriosa da prova, e decidiu em conformidade.

V. O Acórdão uniformizador de jurisprudência, salvo melhor entendimento, não é de aplicação ao caso em apreço, porquanto os autores tentaram alcançar mais do que aquilo que tinham – direito de servidão de passagem – para atingir a propriedade plena, referindo e sustentando-se na usucapião!

W. Face ao exposto, a sentença proferida pelo Tribunal da Relação deve ser mantida, devendo o recurso de Revista ser JULGADO IMPROCEDENTE.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O RECURSO DE REVISTA SER JULGADO IMPROCEDENTE E SER A SENTENÇA RECORRIDA MANTIDA, ASSIM FARÃO V. EX.ªs INTEIRA JUSTIÇA.”

Foram colhidos os vistos.

Cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. As questões a resolver, recortada das alegações dos Recorrentes/Autores/AA e BB, consistem em saber se:

(1) O acórdão recorrido padece de nulidade, em violação do art.º 615º n.º 1 alíneas b) e c), ex vi alínea c) do n.º 1 do art. 674°, ambos do Código de Processo Civil, designadamente, por não especificar os fundamentos, de facto e de direito, que justifique a decisão, ainda por ter os fundamentos em clara oposição com a decisão, bem como, conter ambiguidades e obscuridades que tornam a decisão ininteligível?

(2) A facticidade demonstrada, importa subsunção jurídica diversa da sentenciada?

 

II. 2. Da Matéria de Facto

Reapreciada a decisão de facto, foi considerada demonstrada a seguinte facticidade:

“1- Encontra-se inscrita a favor dos Autores, no registo predial, a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo do Sobreiro”, de cultivo, com 2 oliveiras, 3 castanheiros e 23 uveiras, com área de 4.030 m2, descrito como confrontante de Norte com ..., Nascente e Poente com EE e de Sul com FF, sito no lugar de Sobreiro, concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia da ..., sob o art.º 500, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 263.

2- Tal prédio tem vindo a ser utilizado há pelo menos 34 anos por GG e HH, pais da ora Autora, e, após a sua morte, pelos Autores.

3- Que o têm usado à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja.

4- Cultivando-o, lavrando-o, tratando das árvores e videiras que nele existem e colhendo os frutos dessa actividade.

5- Na convicção de serem os únicos e exclusivos donos do prédio. 

6- A 1.ª Ré, na qualidade de proprietária de raiz, e a 2.ª Ré, na qualidade de usufrutuária, têm inscrita, no registo predial, a seu favor, a aquisição do prédio urbano comporto por casa de rés-do-chão e andar, com logradouro, descrito como confrontante de Norte com caminho público, de Sul e Nascente com MM e de Poente com Caminho de servidão, sito no lugar de Sobreiro, freguesia de Laje, concelho de ..., inscrito na matriz predial urbJJ da freguesia da ... sob o art.º 1724 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1596.

7- Encontra-se inscrita no registo predial a favor de MM e de ..., falecidos pais dos 3ºs Réus, a aquisição da propriedade do prédio misto composto de casas torres e terreiras e terreno de lavradio com vidonho e árvores de fruto, descrito como confrontante do Nascente e do Sul com ..., do Poente com herdeiros de ... e do Norte com caminho público, inscrito na matriz predial rustica da freguesia da ..., sob o art.º 495, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1577.

8- O acesso ao prédio referido foi sempre, desde há mais de 34 anos, feito, a pé e de carro de bois, por um caminho que se inicia junto da estrada de ...-....

9- Confrontando a nascente com os prédios referidos em 6 e 7.

10- Com um comprimento de cerca de 30m e largura variável entre 3,00m e 2,15m.

11- Os Autores e seus antecessores têm utilizado o mencionado caminho para acederem ao seu prédio. 

12- E esse caminho foi sempre feito de pé e de carro de bois, sem a oposição de ninguém.

13- À vista de toda a gente.

14- Sempre o usando.

15- Sempre convictos de exercerem um direito próprio, e pois, não lesando terceiros.

16- Caminho que sempre, ao longo de várias dezenas de anos, se apresentou com divisões feitas em pedra, delimitando o mesmo dos prédios que a nascente se encontram.

17- O marido da 2.ª Ré, II, resolveu cimentar o caminho supra mencionado, com início junto da estrada pública que liga ...-....

18- Posteriormente, a 2.ª Ré, sem o conhecimento e contra a vontade dos Autores, aí colocou paletes de madeira e ainda paletes com blocos de cimento, tendo, desse modo, obstruindo e impedindo o trânsito de pessoas e veículos pelo mesmo.

b) Factos não provados.

Artigo 2.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 2 dos Factos Provados.

Artigo 8.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 8 dos Factos Provados. 

Artigo 10.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 10 dos Factos Provados.

Artigo 12.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “e ainda de tractor”.

Artigo 17.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 17 dos Factos Provados.

Artigo 18.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 18 dos Factos Provados.

Artigo 19.º da Petição Inicial.

Artigos 2.º a 6.º da Contestação.

Artigo 8.º da Contestação.”

 

II. 3. Do Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes/AA e BB, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

II. 3.1. O acórdão recorrido padece de nulidade, em violação do art.º 615º n.º 1 alíneas b) e c), ex vi alínea c) do n.º 1 do art.º 674° ambos do Código de Processo Civil, designadamente, por não especificar os fundamentos, de facto e de direito, que justifique a decisão, por ter os fundamentos em clara oposição com a decisão, bem como, conter ambiguidades e obscuridades que tornam a decisão ininteligível? (1)

O Código Processo Civil enumera, imperativamente, no nº. 1, do seu artº. 615º, aplicável ex vi artºs. 666º, e 679º todos do Código de Processo Civil, as causas de nulidade do acórdão.

Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

Como já antecipamos, e no que ao caso em apreço interessa, os vícios da nulidade do acórdão correspondem, aos casos de ininteligibilidade do discurso decisório quando o juiz não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, ou porque a explicação que conduz ao resultado adoptado, induz logicamente a um desfecho oposto ao reconhecido, encerrando, outrossim, ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.

Vejamos as razões atinentes à arrogada nulidade do acórdão.
A invocada nulidade do aresto, sustentada na ininteligibilidade do discurso decisório, por alegada omissão de fundamentação, e porque a explicação que conduz ao resultado adoptado, induz logicamente a um desfecho oposto ao reconhecido, encerrando, outrossim, ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, está sustentada, salvo o devido respeito por opinião contrária, de modo que não justifica a reclamada ininteligibilidade do discurso decisório, antes parecendo reconduzir, ao cabo e ao resto, a um entendimento jurídico diverso daqueloutro assumido pelo Tribunal a quo, o que, não deixando de ser legitimo discordar do enquadramento jurídico perfilhado na decisão, de tal sorte que lhe é assistido o direito de recurso, cremos que andará longe da qualquer sustentação de nulidade do acórdão, por omissão de fundamentação, outrossim, como se invoca, porque a explicação que conduz ao resultado adoptado, induz logicamente a um desfecho oposto ao reconhecido, ou mesmo, encerra ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida.
Na verdade, resulta das alegações apresentadas, quanto a esta particular questão da arguida nulidade do acórdão recorrido: “O Tribunal a quo considerou que os factos dados como provados seriam suficientes para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem por usucapião. Ora, para além dos requisitos comuns da constituição dos direitos reais por usucapião, designadamente da posse (elemento material “Corpus” e elemento psicológico “Animus”) e ainda da sua manutenção por certo lapso de tempo, o Tribunal a quo, sem que perceba onde alicerçou os fundamentos, considerou existir a demonstração que a pretensa servidão seria aparente.
Pese embora tal facto, e para o que aqui interessa, extrai-se que o Tribunal a quo considerou que os Autores provaram os requisitos comuns da constituição dos direitos reais por usucapião. No entanto, o mesmo Tribunal considera que a prova suficiente para a aquisição de um direito de servidão de passagem por usucapião, não é suficiente para se concluir pelo direito de propriedade do caminho e muito menos parte integrante do prédio dos Autores. Salvo o devido respeito tal entendimento para além de incompreensível não tem o devido e legal fundamento seja de facto, bem como de direito.”
Isto dito, sublinhamos, que a argumentação aduzida na revista interposta, reclamando a arguida nulidade, encerra mais uma divergência quanto à subsunção jurídica consignada no acórdão recorrido, que não passa, necessariamente, por uma qualquer omissão de fundamentação do aresto recorrido, ou tão pouco uma qualquer explicação plasmada no acórdão recorrido que tenha induzido, logicamente, a um desfecho oposto ao reconhecido, ou mesmo, ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, conforme é reclamado pelos Autores/Recorrentes.

Em todo o caso, apreciemos da arguida nulidade do acórdão recorrido.

A nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito (alínea b) do nº. 1, do artº. 615º, do Código de Processo Civil) está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

Na verdade, a fundamentação das decisões é uma exigência constitucional – art.º 205º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa - e legal – artºs. 154º, 607º e 663º, todos do Código de Processo Civil.

É na fundamentação que o Tribunal colhe legitimidade e autoridade para dirimir o conflito entre as partes e lhes impor a sua decisão, sendo a fundamentação imprescindível ao processo equitativo e contraditório.

Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1, do citado art.º 615º, do Código de Processo Civil.

A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Escrutinada a decisão, divisamos que o Julgador a quo ao subsumir juridicamente os factos adquiridos processualmente, sustentou que:

“Concordando com a sentença recorrida quando refere que está provada a utilização pelos autores do caminho para acesso ao seu prédio, importa referir que a nosso ver não existem factos provados suficientes nos autos para afirmar que o referido caminho é parte integrante do prédio dos autores.

(…) Dos factos provados pode-se afirmar que os Autores usam o caminho em proveito exclusivo do seu prédio há, pelo menos, 34 anos.

(…) Com efeito, a presente acção é uma acção de processo comum, real de propriedade tendente a que seja reconhecido que aquele trato de terreno (o caminho) é parte integrante do prédio dos autores, e também de reivindicação ao ser peticionado a restituição do caminho.

Não está em causa a titularidade do prédio que é dos autores. O que está em causa é saber se o prédio tem determinadas características, isto é se determinada área do solo – caminho – integra o prédio.

Provou-se que o acesso para os prédios dos autores a pé e de carro de bois, se fez pelo caminho durante mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos réus (…), o que seria suficiente para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem, por usucapião.

Mas não são factos suficientes para se concluir pelo direito de propriedade do caminho e muito menos que ele é parte integrante do prédio dos autores.

(…) o que resulta provado é que os autores utilizam o caminho para acesso ao seu prédio, há mais de 34 anos, caminho esse que se desenvolve pelo nascente dos prédios das 1º e 2 rés  e 3º réus, que se inicia junto à estrada de ...-..., o que fazem convictos de exercerem um direito próprio.

Por outro lado a ré tem impedido o acesso dos autores.

Tendo-se apenas provado que os autores têm o direito de passagem a pé e de carro de bois para o seu prédio referido em 1, pelo caminho descrito em 8, 9 e 10, não pode daí retirar-se que o caminho é parte integrante do referido prédio.

E assim, a acção não pode proceder a não ser quanto ao primeiro pedido, o que, no caso não é posto em causa pelos réus.”

Concebe-se, para efeito de raciocínio, conquanto não se conceda, que a fundamentação aduzida no acórdão recorrido possa ser deficiente, medíocre ou errada, no entanto tal só afectaria, acaso o reconhecêssemos, o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

O aresto agora sob escrutínio, não deixou de identificar o objecto do litígio, cuidando de fixar a questão que ao Tribunal cumpria solucionar, ao que se seguiu os fundamentos, enunciando os factos e aplicando as normas jurídicas entendida por condizentes, sem deixar de plasmar, fazendo referência bastante, fundamentando minimamente, a decisão, sustentada num discurso inteligível, atenta a explicação da razão por que se decidiu da maneira consignada no respectivo dispositivo.

A nosso ver, a decisão recorrida está suficientemente fundamentada, decorrendo daqui, inexistir qualquer vício que encerre um desvalor que exceda o erro de julgamento, pelo que, ao termos percebido, o processo cognitivo percorrido pelo Tribunal recorrido, que fundamentou o aresto em escrutínio, concluímos pela não verificação da arrogada nulidade da sentença, soçobrando, assim, neste particular, a argumentação recursiva.

Por outro lado, este Tribunal ad quem, também não reconhece a arguida nulidade, ancorada na arrogada ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida (alínea b) do nº. 1, do artº. 615º, do Código de Processo Civil), acarretando virtualidade bastante de modo a considerar-se ter havido erro de julgamento.
A invocada nulidade da sentença, sustentada na ambiguidade ou obscuridade da decisão, remete-nos para a questão, que aqui acentuamos, dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto no aresto (obscuridade).
Destacamos que a nulidade do acórdão, suportada na ambiguidade ou obscuridade da mesma, pressupõe duas ou mais interpretações de qualquer ponto da decisão, ou, da leitura da sentença escrutinada, não é possível conhecer, com exactidão, qual o pensamento exposto, determinando que os respectivos destinatários fiquem sem saber, inequivocamente, qual o resultado consignado no acórdão.
Revertendo ao caso dos autos, divisamos que, não só a decisão proferida, em qualquer dos respectivos segmentos, não permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou, tão pouco, coloca incerteza quanto ao pensamento exposto no acórdão (obscuridade).
Reiteramos que no acórdão recorrido está inequivocamente afirmado: “a presente acção é uma acção de processo comum, real de propriedade tendente a que seja reconhecido que aquele trato de terreno (o caminho) é parte integrante do prédio dos autores, e também de reivindicação ao ser peticionado a restituição do caminho.
(…) Provou-se que o acesso para os prédios dos autores a pé e de carro de bois, se fez pelo caminho durante mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos réus (…) o que seria suficiente para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem, por usucapião. Mas não são factos suficientes para se concluir pelo direito de propriedade do caminho e muito menos que ele é parte integrante do prédio dos autores. (…) não pode daí retirar-se que o caminho é parte integrante do referido prédio. E assim, a acção não pode proceder.”
Cotejado o aresto, tomando por referência os excertos consignados, descortinamos um discurso decisório inteligível, onde não é possível qualquer outra interpretação que não aquela condizente à circunstância de os Autores não terem direito a ver reconhecido o arrogado direito de propriedade sobre o caminho ajuizado, sendo, pois, possível saber, com toda a certeza, qual o pensamento exposto no acórdão, o qual conduziu, inelutavelmente, à parcial improcedência da demanda, o que não quer dizer que a decisão recorrida esteja juridicamente correcta, sendo esta uma outra questão, a apreciar adiante, quando conhecermos da substância jurídica do aresto ora escrutinado.

Na sequência do que agora enunciamos, relativamente à fundamentação aduzida no aresto recorrido e respectivo dispositivo, temos de convir inexistir qualquer ambiguidade ou obscuridade do acórdão recorrido.

No que respeita à invocada nulidade do aresto, sustentada na contradição entre os seus fundamentos e decisão, reconhecemos que esta nulidade pressupõe um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adoptada, ou seja, apenas ocorre a nulidade do acórdão prevista na consignada alínea c) do n.º 1, do artº. 615º, do Código de Processo Civil, quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que veio expresso no dispositivo do dito acórdão.
Na decorrência do que já ficou exposto, temos também de convir que não enxergamos a nulidade do aresto, sustentada agora na contradição entre os seus fundamentos e a decisão, ancorada em qualquer erro lógico na argumentação jurídica aduzida, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adoptada.
Na verdade, os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo conduzem, logicamente, ao resultado expresso no dispositivo do acórdão recorrido.

Como já adiantamos, o Tribunal a quo, subsumindo juridicamente os factos adquiridos processualmente, concluiu que, tendo-se provado que o acesso para os prédios dos Autores, a pé e de carro de bois, se fez pelo caminho durante mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente, dos réus, tal seria, em seu entendimento, suficiente para a prova da aquisição de um direito de servidão de passagem, por usucapião, todavia, também sublinha o Tribunal recorrido, não são factos suficientes para se concluir pelo direito de propriedade do caminho, e muito menos que ele é parte integrante do prédio dos Autores, pelo que, assim, a acção não pode proceder.

A sustentação consignada no acórdão recorrido é congruente, importando reconhecer inexistir qualquer erro lógico na argumentação jurídica, ou tão pouco que haja conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adoptada, sendo razoável admitir que, sendo a presente demanda, uma acção real de propriedade, tendente a que seja reconhecido que o ajuizado trato de terreno (o caminho), é parte integrante do prédio dos Autores, e, consequentemente, lhes seja restituído, mas, provando-se apenas que o acesso para os prédios dos Autores, a pé e de carro de bois, se fez pelo aludido caminho, durante mais de 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente, dos réus, concebe-se que tal será suficiente para a aquisição de um direito de servidão de passagem, por usucapião, mas aquém da prova exigida, no entendimento do Tribunal recorrido, para concluir pelo reconhecimento aos Autores, do direito de propriedade do caminho, donde, acentuamos, os Autores não poderiam ter ficado surpreendidos com a consignada decisão.

Importa dizer que, julgada improcedente, nos termos consignados, a arguida nulidade do acórdão recorrido, nada invalida, antes se impõe, sublinhamos, a apreciação que adiante se consignará, acerca da bondade da subsunção jurídica da facticidade adquirida processualmente, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, sendo, aliás, uma das questões que decorre do objecto do presente recurso de revista.

No que a esta particular questão da arguida nulidade respeita, e na reconhecida inteligibilidade do discurso decisório, não podemos concordar com a posição assumida pelos Recorrentes/Autores ao invocar a nulidade do aresto sustentada, quer na omissão de fundamentação, quer na sustentação de que os fundamentos do aresto estão em oposição com a decisão, outrossim, na ambiguidade ou obscuridade que tornou a decisão ininteligível, e, acreditando ser despiciendo outras considerações a este respeito, soçobra, nesta conformidade, e nesta parte, a revista interposta.

II. 3.2. A facticidade demonstrada, importa subsunção jurídica diversa da sentenciada? (2)

A exegese seguida na decisão recorrida considerou que estamos perante uma acção de reivindicação, enquanto corolário da faculdade ou direito de sequela dos direitos reais, maxime do direito de propriedade, tendo em vista a que seja reconhecido que o ajuizado trato de terreno (o caminho) é parte integrante do prédio identificado no art.º 1º da petição inicial, com a consequente restituição aos Autores.

O que está em causa é saber se o prédio tem determinadas características, isto é, se determinada área do solo - caminho - integra o prédio.

Saber se o trato de terreno (caminho), é parte integrante do prédio que, reconhecidamente, foi adquirido pelos Autores/AA e BB, encerra a questão essencial desta revista.

Os Autores/AA e BB pedem que seja declarado que o prédio, melhor identificado no art.º 1.º da petição inicial é sua propriedade; sejam os Réus condenados a reconhecerem que o articulado caminho, identificado em Juízo, faz parte integrante do aludido prédio consignado no art.º 1.º da petição, com consequente restituição aos Autores, do livre acesso ao caminho que faz desse prédio, livre e desocupado de pessoas e bens, encargos e obrigações; outrossim, sejam os Réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam o livre acesso pelo caminho, a pé, de carro de bois e tractor para o prédio enunciado em citado art.º 1 da petição inicial.

O perfil da acção de reivindicação afere-se, por um lado, pela causa pretendi que, nas acções reais é o facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e, por outro lado, pelos pedidos, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, apud, Código Civil anotado, volume III, página 100, outrossim, caberá ao demandado invocar e provar, o facto impeditivo da entrega ou restituição do bem, pois, caso não demonstre que tem sobre o prédio outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a possui por virtude de direito pessoal bastante, ou ainda que o bem pertence a terceiro, nada obstará à sua restituição.

Assim, a acção de reivindicação que, como acção real, tem como causa de pedir o facto jurídico de que deriva o direito real e como finalidade a declaração de que o direito de propriedade pertence a quem o invoca, outrossim, a restituição do objecto do direito, importando ainda alegar e provar a posse ou detenção abusiva por parte de terceiro, tendo em conta a característica de exclusividade do direito de propriedade.

Sem prejuízo do funcionamento das regras próprias do registo predial, mais concretamente da presunção de propriedade a favor do beneficiário do direito registado, a prova da propriedade não se basta pela demonstração da aquisição derivada da coisa, devendo aquele que reivindica provar uma forma de aquisição originária, como sejam a ocupação, a acessão ou a usucapião.

De acordo com o art.º 1311º do Código Civil “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade (…)”, sendo que este direito se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei - art.º 1316º do Código Civil - .

O direito substantivo civil permite ao proprietário exigir judicialmente de qualquer detentor ou possuidor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, porém, se é indubitável a necessidade de a acção ser exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário da coisa, neste sentido, Mota Pinto, apud. Direitos Reais, 1971, página 238, terá o demandante de demonstrar isso mesmo, ou seja, o seu direito de propriedade que abrange, entre outros o direito de restituição, demonstrando também que a coisa ora reivindicada se encontra na posse ou detenção de outrem, neste sentido, Manuel Rodrigues, apud, A Reivindicação no Direito Civil Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57, pág. 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil anotado, página 114, volume III.

É sabido que dos modos legítimos de aquisição, uns são meros actos translativos do direito, também designados de “modos de aquisição derivada”, como são os casos do contrato e da sucessão mortis causa, enquanto outros são constitutivos do próprio direito, e, por isso, designados de “modos de aquisição originária”, como acontece com a usucapião (art.º 1287º do Código Civil), a ocupação (artºs. 1318º e seguintes do Código Civil) e a acessão (artsº. 1325º e seguintes do Código Civil).

Reconhecemos que a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, que aqui interessa, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objectivos e subjectivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil).

Assim, a posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indica. É o fenómeno da usucapião, definido no art.º 1287º do Código Civil. A usucapião opera para o beneficiário que a invoca com êxito, a transformação de um estado de facto em situação jurídica consolidada.

É sabido que a posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova deste último elemento pode resultar de uma presunção, ou seja, a existência do corpus faz presumir a existência do animus - artºs. 1251º e 1252º do Código Civil – neste sentido, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido em 14 de Maio de 1996, ao fixar jurisprudência no sentido de que: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

Na prescrição aquisitiva, o possuidor actual pode juntar à sua, a posse do seu antecessor (art.º 1256º do Código Civil) e mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art.º 1257º do Código Civil).

Sublinhamos que, no caso que somos chamar a dirimir, a propriedade do prédio identificado no art.º 1.º da petição inicial, está pacificamente aceite entre os intervenientes processuais, e reconhecido em Juízo, como sendo dos Autores/AA e BB, encerrando o objecto do recurso, conhecer se o articulado trato de terreno (o caminho), é parte integrante daquele prédio identificado no art.º 1º da petição inicial, importando, ao cabo e ao resto, saber se este prédio tem determinadas características, isto é, se determinada área do solo - o caminho - integra o prédio identificado no art.º 1º da petição inicial.

Caberá, assim, aos Autores, não só alegar mas também demonstrar - art.º 342º n.º 1 do Código Civil - os factos integradores de que são, igualmente, proprietários do trato de terreno (caminho), e de que este faz parte integrante daqueloutro prédio rústico identificado no art.º 1º da petição inicial (denominado “Campo do Sobreiro”, com área de 4.030 m2, descrito como confrontante de Norte com DD, Nascente e Poente com EE e de Sul com FF, sito no lugar de Sobreiro, ..., inscrito na respectiva matriz predial rústica, sob o art.º 500, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 263), substanciados em facticidade concreta, subsumível ao alegado modo de aquisição do direito de propriedade, tanto mais que, como sabermos, os elementos identificadores do prédio constantes do registo são da exclusiva responsabilidade de quem os presta, não se encontrando abrangidos pela força da presunção legal de propriedade que dele emJJ, a favor do titular inscrito do registo definitivo, sendo que as inscrições matriciais têm uma finalidade fiscal, não tendo virtualidade para atribuir o direito de propriedade sobre os respectivos prédios.

Como acabamos de discorrer, o nosso ordenamento jurídico, no âmbito dos direitos reais de gozo, assenta, sobretudo, na posse e na usucapião, não no registo predial nem na matriz das finanças, muito embora se presuma a existência do direito real registado, como pertencente ao titular inscrito, não importando afirmar ali, a existência de um prédio se esse prédio não tiver uma existência real e concreta.

No que ao caso sub iudice interessa, atendendo à formulada pretensão jurídica, anotamos que o direito substantivo civil estatui sobre o conteúdo do direito de propriedade - art.º 1305º do Código Civil – “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, sobressaindo deste direito, a sua tendente plenitude, uma vez que a propriedade abrange todos os direitos sobre a coisa; e a sua elasticidade, já que o direito à partida vai alargar-se ao máximo de faculdades possíveis, consoante haja ou não outros direitos reais sobre determinada coisa.

Relembrando os factos adquiridos processualmente nos autos, depois de reapreciada a decisão de facto, pelo Tribunal da Relação, temos que se encontra inscrita a favor dos Autores, no registo predial, a aquisição da propriedade do prédio rústico denominado “Campo do Sobreiro”, com área de 4.030 m2, descrito como confrontante de Norte com DD, Nascente e Poente com EE e de Sul com FF, sito no lugar de Sobreiro, ..., inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o art.º 500, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 263 (item 1 dos Factos Provados); sendo que o respectivo acesso foi sempre, desde há mais de 34 anos, feito, a pé e de carro de bois, por um caminho que se inicia junto da estrada de ...-... (item 8 dos Factos Provados), confrontando a nascente com os prédios dos Réus (item 9 dos Factos Provados); com um comprimento de cerca de 30m e largura variável entre 3,00m e 2,15m (item 10 dos Factos Provados), sendo que os Autores e seus antecessores têm utilizado o mencionado caminho para acederem ao seu prédio (item 11 dos Factos Provados); e esse caminho foi sempre feito de pé e de carro de bois, sem a oposição de ninguém (item 12 dos Factos Provados); à vista de toda a gente (item 13 dos Factos Provados); Sempre o usando (item 14 dos Factos Provados); sempre convictos de exercerem um direito próprio, e pois, não lesando terceiros (item 15 dos Factos Provados); caminho que sempre, ao longo de várias dezenas de anos, se apresentou com divisões feitas em pedra, delimitando o mesmo dos prédios que a nascente se encontram (item 16 dos Factos Provados).

Daqui resulta, inequivocamente, que os Autores demonstram o domínio sobre a coisa - o acesso ao prédio identificado no art,º 1º da petição inicial foi sempre, desde há mais de 34 anos, feito, a pé e de carro de bois, por um caminho que se inicia junto da estrada de Turiz-... - constituindo o corpus do instituto possessório, todavia, para que os possuidores, Autores, possam ser juridicamente considerados como tal, terão que demonstrar ter agir convictos de que são titular do direito que pretendem fazer valer - tantum praescriptum quantum possessum - isto é, terão que demonstrar terem actuado com animus que será de proprietário, uma vez que é este o direito de propriedade que se arrogam - o animus rem sibi habendi - .

Importa, assim, averiguar sobre o animus, enquanto requisito integrante da posse, o qual se circunscreverá à questão de saber se, os actos materiais praticados pelos Autores/AA e BB, reconhecidos possuidores em relação ao caminho que se inicia junto da estrada de Turiz-... e que dá o acesso ao prédio identificado no art,º 1º da petição inicial, feito, a pé e de carro de bois, desde há mais de 34 anos, revelam, a qualquer pessoa que os observe, a vontade de agir como se se tratasse do titular do direito a que os Autores/AA e BB se arrogam – direito de propriedade - ou, ao invés a qualquer outro direito real de gozo, mormente, o exercício de gozo, sobre coisa alheia, usufruindo ou aproveitando de vantagens ou utilidades de prédio alheio, em benefício do seu, não podendo ser rejeitadas a presença e a relevância desse elemento quando o corpus que o traduz denote, por parte de quem o exerce, a vontade de criar, em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente a esse direito real, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2018.

Ora, invocando a figura do comportamento concludente (em que a intenção está intimamente ligada à actuação), traduzido numa intenção exteriorizada dos Autores, através do respectivo comportamento, não de um mero facto interno inacessível, distinguimos que a intenção dos Autores, e seus antecessores, revelada dos factos que traduzem o corpus possessório, diz-nos que os mesmos se comportaram e comportam, como titulares do direito real de gozo, sobre coisa alheia, correspondente aos actos de passagem por eles praticados, numa perspectiva prática, que em nada se distingue, qualitativamente, da intenção de exercitar um direito de uso da coisa, ou seja, da circulação com o convencimento de o fazerem sobre um caminho que lhes não pertence, usufruindo ou aproveitando de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efectivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão.

Da consignada facticidade adquirida processualmente, concebe-se poder a mesma, constituir uma servidão predial, configurada como um encargo ou limitação ao direito de propriedade sobre outro prédio, em proveito exclusivo daquele, donde, conquanto se reconheça que os Autores/AA e BB venham praticando actos materiais sobre o trato de terreno reivindicado - caminho que se inicia junto da estrada de Turiz-... e que dá o acesso ao prédio identificado no art.º 1º da petição inicial, feito, a pé e de carro de bois, desde há mais de 34 anos - fruindo-o, não o fazem, contudo, como se fossem seus proprietários, ou seja, no exercício do direito de propriedade sobre a mesma parcela, faltando assim provar o respectivo elemento do animus possidendi, que competia aos Autores/AA e BB.

Confrontada a factualidade tida como provada e não provada, os Autores/AA e BB não podem ver satisfeita a sua pretensão, uma vez que não se provaram factos bastantes para que se dêem como verificados os requisitos necessários para a verificação da aquisição do pretendido direito de propriedade sobre o trato de terreno (caminho) em causa, através da usucapião, sendo, assim, linear concluir, como resulta do acórdão recorrido, a não merecer censura, antes aprovação, “JJlisando os factos dados como provados como já se referiu, o que resulta provado é que os autores utilizam o caminho para acesso ao seu prédio, há mais de 34 anos, caminho esse que se desenvolve pelo nascente dos prédios das 1º e 2 rés e 3º réus, que se inicia junto à estrada de Turiz-..., o que fazem convictos de exercerem um direito próprio.

Por outro lado a ré tem impedido o acesso dos autores.

Tendo-se apenas provado que os autores têm o direito de passagem a pé e de carro de bois para o seu prédio referido em 1, pelo caminho descrito em 8, 9 e 10, não pode daí retirar-se que o caminho é parte integrante do referido prédio.”

E não se diga como o fazem os Recorrentes/Autores/AA e BB que o Tribunal a quo, ao considerar que os Autores são meros detentores do caminho, isto por não terem feito prova do animus da posse, decidiu contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente a vertida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996, que determina: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção da posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”

Na verdade, o que resulta do acórdão recorrido não é, desde logo, que os Autores sejam meros detentores do caminho, isto por não terem feito prova do animus da posse, pois, decorre do acórdão recorrido, “ (…) Tendo-se apenas provado que os autores têm o direito de passagem a pé e de carro de bois para o seu prédio referido em 1, pelo caminho descrito em 8, 9 e 10, não pode daí retirar-se que o caminho é parte integrante do referido prédio.

E assim, a acção não pode proceder a não ser quanto ao primeiro pedido, o que, no caso não é posto em causa pelos réus.

Quanto aos demais pedidos, apesar de se ter provado o uso pelos autores do caminho há mais de 34 anos para acesso ao seu prédio, os mesmos têm que improceder em virtude da improcedência do segundo pedido e porque na acção não foi formulado um pedido de reconhecimento do direito de servidão de passagem a favor do prédio dos autores, e o pedido efectuado não comporta o reconhecimento do direito de servidão.” (sublinhado nosso)

Outrossim, conforme já adiantamos, a posse é integrada por dois elementos - o corpus e o animus - o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova deste último elemento pode resultar de uma presunção, ou seja, a existência do corpus faz presumir a existência do animus, importando, todavia, não esquecer que se Autores demonstram, como reconhecido nos autos, o domínio sobre o ajuizado trato de terreno (caminho), constituindo o corpus do instituto possessório, para que os Autores, possuidores, possam ser juridicamente considerados como tal, terão que agir convictos de que são titular do direito que pretendem fazer valer, no caso a propriedade, o que não lograram demonstrar nos autos, ao invés, a facticidade adquirida processualmente, poder-se-ia equacionar, subsumir-se juridicamente, à servidão predial, enquanto direito real de gozo sobre coisa alheia (ou direito real limitado), afastando-se, no entanto o seu reconhecimento na presente demanda, porquanto não foi formulado um pedido de reconhecimento do direito de servidão de passagem a favor do prédio dos Autores. 

Apreciadas as conclusões retiradas das alegações trazidas à discussão pelos Recorrentes/Autores/AA e BB, não reconhecemos às mesmas virtualidades no sentido de alterarem o destino da presente demanda, mantendo-se o acórdão sob escrutínio.

IV. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente a revista interposta, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes/Autores/AA e BB.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Janeiro de 2019

                                                          (Oliveira Abreu)

                                                         

                                                          (Ilídio Sacarrão Martins)

                                                         

                                                          (Nuno Pinto Oliveira)