Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1308
Nº Convencional: JSTJ000324
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
DENÚNCIA DE CONTRATO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
Nº do Documento: SJ200205230013082
Data do Acordão: 05/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7898/2001
Data: 10/04/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR CONTRAT.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 12 N2.
L 55/79 DE 1979/09/15 ARTIGO 2.
RAU90 ARTIGO 107 N1 B.
CPC67 ARTIGO 268 ARTIGO 493 N3 ARTIGO 496.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC379/00 DE 2000/06/01 2S.
ACÓRDÃO STJ DE 1996/04/30 IN CJSTJ ANOIV T2 PAG39.
Sumário : I - As leis relativas às Relações Jurídicas de arrendamento são, em princípio, de aplicação imediata por visarem não o "Estatuto Contratual" das partes, mas antes o respectivo "Estatuto Legal", atingindo-as assim não tanto como partes contratantes mas enquanto sujeitos de direito ligados por um particular e específico vínculo contratual:
II - Ocorrendo a inovação legislativa da pendência da acção aplica-se à Relação Jurídica (subsistente), julgando-se a causa ainda que em recurso em conformidade com a mesma.
III - O princípio da estabilidade da instância é imposto apenas quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, e não em relação à lei em vigor à data em que seja proferida a decisão recorrida.
IV - A permanência do arrendatário no prédio arrendado durante um determinado período temporal - e não interessa a duração do contrato - não é caducidade mas sim circunstância impeditiva da constituição do direito de renúncia e por sua própria natureza dependente da vontade do réu.
V - Porque excepção peremptória não é de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :

1. A, instaurou, no 2° Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Cascais, acção ordinária contra B, pedindo a declaração da denúncia do contrato de arrendamento do prédio sito na Avenida...., nº...., Cascais, com a consequente condenação da Ré a entregar-lhe o mesmo livre e devoluto para o termos do prazo da sua renovação, alegando, para o efeito e em síntese, necessitar do andar para sua habitação, por residir em casa de sua mãe e pretender contrair matrimónio.
2. Contestou o Réu por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocando quer a ilegitimidade do Autor quer a sua própria «ad causam».
Por impugnação, os factos articulados, tendo, em reconvenção, solicitado a condenação do Autor a satisfazer-lhe a quantia de 20618903 escudos, a título de indemnização e juros de mora, para além da prevista no artigo 72°, nº 1 do RAU90.

3. Replicou o Autor, respondendo à matéria das excepções e da reconvenção, e clamando pela respectiva improcedência, e concluindo, no mais, como na petição inicial.
4. Foi pedida a intervenção principal, pelo lado passivo, de C, que foi admitida por despacho de fls 107 e 108.
5. Por sentença de 12-1-01, o Mmo. Juiz do Tribunal de Círculo de Cascais julgou procedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência :
- julgou extinto, por denúncia, o contrato de arrendamento tendo por objecto o prédio urbano, denominado Vila....., sito no n°.... da Av....., Monte Estoril, concelho de Cascais, do qual era arrendatário o Réu B, e condenou os Réus a despejarem esse prédio, entregando-o ao Autor livre de pessoas e bens;
- condenou o Autor a pagar aos Réus as quantias de 322350 escudos e de 5600000 escudos e ainda juros de mora sobre esta quantia desde 15-3-1994, até integral pagamento da mesma, calculados sobre ela, às taxas definidas por lei, que tem sido até hoje de 15% ao ano até 30-9-1995, 10% ao ano, após essa data e até 16-4-1999, e 7% ao ano após essa data; e ainda a quantia equivalente ao custo actualizado das seguintes obras realizadas pelo Réu no arrendado, a liquidar em execução de sentença: substituição da instalação eléctrica, substituição das canalizações e instalação de novas canalizações para os quartos de banho; substituição dos mármores das lareiras e terraço, substituição de um portão e reparação de outro no exterior.
- no mais absolveu o Autor do demais peticionado pelo Réu em reconvenção.

6. Inconformados com tal decisão, dela vieram recorreram o Autor e o Réu, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 4-10-01, concedido provimento ao recurso, revogando, em consequência, a sentença recorrida e julgando extinto o direito de denúncia do A e absolvendo o A. do pedido reconvencional contra si formulado pelo Réu.

7. Inconformado agora com tal aresto, dele veio o Autor A recorrer de revista para este Supremo, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões :
1ª. Em momento algum o tribunal de primeira instância deixou de considerar o acórdão 97/2000 do Tribunal Constitucional de 16 de Fevereiro de 2000, publicado no DR, Iª Série-A, de 17 de Março de 2000;
2ª. Precisamente por ter tido em conta tal acórdão, o Tribunal de primeira instância considerou ser aplicável ao caso o preceito contido na alínea b) do número 1 do artigo 2° da Lei 55/79 de 15 de Setembro;
3ª. A previsão contida na alínea b) do número 1 do artigo 2° da referida Lei 55/79 estabelece de forma clara, como circunstância impeditiva do exercício do direito de denúncia para habitação, a permanência do inquilino no locado há vinte anos ou mais;
4ª. A permanência do inquilino no locado há vinte anos ou mais consiste em matéria fáctica, recaindo assim, sobre a parte na acção que se pretenda prevalecer da mesma, a sua alegação e prova, conforme prescreve o artigo 264º do Código de Processo Civil;
5ª. A publicação do acórdão do Tribunal Constitucional em momento posterior ao da apresentação da contestação por parte dos recorridos, veio trazer a possibilidade destes virem à acção deduzir a excepção traduzida na verificação de uma circunstância impeditiva do exercício do direito de denúncia por parte do recorrente, por força do artigo 489º do CPC, o que estes não fizeram;
6ª. A permanência dos recorridos no locado há vinte anos ou mais não se pode presumir da matéria de facto dada como provada na presente acção;
7ª. A permanência dos recorridos no locado há vinte anos ou mais é uma realidade fáctica distinta da duração do contrato de arrendamento celebrado com o recorrente;
8ª. Os recorridos não fizeram prova de qualquer circunstância impeditiva do exercício do direito de denúncia do contrato de arrendamento por parte do recorrente, sendo a estes que cabia alegar e provar os factos tendentes à verificação de tal circunstância impeditiva, pelo que, encontrando-se reunidos todos os requisitos para que essa denúncia operasse, bem andou o Meritíssimo Juiz de Primeira Instância ao decretar a extinção do contrato de arrendamento por denúncia, não devendo por isso ter sido revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, sob pena de violação do nº 2 do artigo 342º do Código Civil.
9. O Acórdão recorrido aplicou incorrectamente o direito, tendo violado a norma contida na alínea b) do nº 1 do artigo 2º da Lei 55/79 de 15 de Setembro, bem como o disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil e o disposto no artigo 264º do Código de Processo Civil.
8. Contra-alegaram os RR recorridos B e mulher, sustentando a correcção do julgado.
9. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
10. Em matéria de facto relevante, limitou-se a Relação a remeter, ao abrigo do disposto no nº 6 do artº 713º do CPC, para a já elencada pelo tribunal de 1ª Instância, a qual se traduz nos seguintes pontos :
Relativamente ao pedido principal
I - O prédio urbano, denominado Vila...., sito no n°.... da Av....., Monte Estoril, concelho de Cascais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n° 5578 e inscrito na respectiva matriz sob o mo 42° foi inscrito, pela ap. 09/020530, a favor de D;
II- Pela ap. 27/271293, o prédio referido em I foi inscrito, sem determinação de parte ou direito, a favor de E, F, A, G e H, por sucessão por morte;
III - Pela ap. 27/271293, foi inscrito o usufruto da herança indivisa a favor de H;
IV - Pela ap. 02/090197 foi inscrita a transmissão a favor de E do direito que pertencia a H, por compra;
V - Pela ap. 20/020398 foi inscrito, provisoriamente por dúvidas, a transmissão a favor de I, J, L, M, N, do direito que pertencia a G, por sucessão por morte;
VI - Por acordo verbal de 1 de Agosto de 1975, o prédio referido em I foi cedido ao R. para habitação deste, mediante a retribuição mensal de 3000 escudos;
VII - A retribuição referida em VI é actualmente de 10745 escudos;
VIII- Por carta de 11 de Novembro de 1989, registada com A/R, o R., através do seu advogado, comunicou à cabeça de casal da herança, de que faz parte o arrendado, que pelo facto de desde há longos anos não terem sido feitas quaisquer obras de conservação o prédio dos autos encontrava-se em más condições de salubridade e solidez, verificando-se infiltrações de águas e humidades pelo telhado, tectos a caírem, madeiramento de sustentação do telhado prestes a ceder e o próprio telhado em vias de ruir a qualquer momento, e solicitou a realização das obras necessárias;
IX - Por carta de 13.12.89, registada com A/R, o R., ainda através do seu advogado, e na sequência da carta referida em VIII, comunicou à cabeça de casal que ruíra nesse mesmo dia a cimalha nascente da casa que arrastou consigo parte do telhado, o que provocou a intervenção dos Bombeiros e da PSP, uma vez que a Rua da Nazaré ficou parcialmente obstruída com os destroços;
X - Em 19.12 1989 o R. requereu à C.M. de Cascais uma vistoria para a execução de obras de conservação;
XI - Pela cópia da planta que instruiu o pedido de vistoria e pela vistoria o R. pagou em 19.12.89 a quantia de 2300 escudos;
XII - Por oficio de 22.05.90, a C.M. de Cascais comunicou ao R., que, relativamente ao pedido de vistoria referido em X, por deliberação de 08.05.90, fora mandada notificar E, a cabeça de casal, para no prazo de 30 dias mandar proceder aos trabalhos de "reparação geral da cobertura de modo a conter infiltrações de água e humidades que se fazem sentir no interior da habitação e restauro da cimalha que em parte já ruiu do prédio sito na Av......, n.º....., Monte Estoril";
XIII - Pelo oficio referido em XII a C.M.. de Cascais informava que "no caso da notificação não ser cumprida, a Câmara não executaria as obras, por dificuldades orçamentais, pelo que poderia requerer a execução do respectivo orçamento";
XIV - Em 19 de Setembro de 1990 o R. requereu à C.M. de Cascais um orçamento das obras;
XV - Por oficio de 29.10.90, a C.M. de Cascais enviou ao R. orçamento das obras, reconstrução da cimalha em betão armado 1.1. Lintel para suporte da cimalha, cimalha em betão armado, reparação geral do telhado com aproveitamento de 50% das telhas, reparação dos tectos e paredes danificadas pelo desmoronar da cimalha, pintura de tectos e paredes reparados, no valor de 5600000 escudos;
XVI - Por carta de 31.10.90, registada com A/R, o R. enviou à cabeça de casal o orçamento que recebera da C.M. de Cascais;
XVI - As obras referidas em xv foram mandadas executar pelo R., tendo a C.M. de Cascais, por oficio de 01.03.94, confirmado a execução das mesmas, após vistoria efectuada ao local pela fiscalização técnica da Câmara em 31.01. 94;
XVIII - Por carta de 11.03.94, registada com A/R, recebida em 15-3-1994, o R. comunicou à cabeça de casal a realização das obras e exigia-Ihe o pagamento da quantia de 5600000 escudos, no prazo de 30 dias, a contar da recepção da carta, sob pena de àquela verba acrescerem os juros de mora à taxa legal;
XIX - A quantia referida em XVIll não foi paga ao Réu;
XX- O A. reside com a sua mãe;
XXI - O Autor tem a frequência de um curso superior de gestão, faltando algumas cadeiras para o completar, esteve a trabalhar numa companhia de seguros desde 1989 a Junho de 2000 e actualmente é empresário duma pequena empresa em início de actividade, tendo desde há anos independência económica;
XXII - O Autor deseja viver sozinho, não tendo em casa da mãe as condições de privacidade que necessita;
XXIII - O A. não tem casa que satisfaça as suas necessidades habitacionais, para além da casa referida em I;
XXIV - O A. não tem há mais de um ano casa própria ou arrendada na localidade de Cascais nem na área da Comarca de Lisboa ou suas limítrofes;
XXV - O R. pagou pelas obras referidas em XV a quantia de 5600000 escudos;
XXVI - O R. procedeu à substituição da instalação eléctrica por a existente ser perigosa e não permitir a instalação de máquina de lavar roupa e loiça, frigorifico, televisão e vídeo, tendo despendido nesta obra quantia não apurada;
XXVII - Substitui as canalizações, e instalou novas canalizações para os quartos de banho, tendo despendido nestas obras quantia não apurada;
XXVIII - Substituiu os mármores das lareiras e terraço que se encontravam partidos, tendo despendido nesta obra quantia não apurada;
XXIX - Substitui um portão e reparou outro no exterior, que se encontravam danificados, tendo despendido nesta obra quantia não apurada;
Relativamente ao pedido reconvencional :
a)- por carta de 11 de Novembro de 1989, registada com A/R, o R., através do seu advogado, comunicou à cabeça de casal da herança, de que faz parte o arrendado, que pelo facto de desde há longos anos não terem sido feitas quaisquer obras de conservação o prédio dos autos se encontrava em más condições de salubridade e solidez, verificando-se infiltrações de águas e humidades pelo telhado, tectos a caírem, madeiramento de sustentação do telhado prestes a ceder e o próprio telhado em vias de ruir a qualquer momento, e solicitou a realização das obras necessárias;
b)- Por carta de 13 de Dezembro de 1989, registada com A/R, o R., ainda através do seu advogado, e na sequência da carta referida comunicou à cabeça de casal que ruíra nesse mesmo dias a cimalha nascente da casa que arrastou consigo parte do telhado, o que provocou a intervenção dos Bombeiros e da PSP, uma vez que a Rua da Nazaré ficou parcialmente obstruída com os destroços;
c)- Em 19.12 1989 o R. requereu à C.M. de Cascais uma vistoria para a execução de obras de conservação;
d)- Por ofício de 22.05.90, a C.M. de Cascais comunicou ao R., que, relativamente ao pedido de vistoria referido em J), por deliberação de 8.5.90, fora mandada notificar E, a cabeça de casal, para no prazo de 30 dias mandar proceder aos trabalhos de "reparação geral da cobertura de modo a conter infiltrações de água e humidades que se fazem sentir no interior da habitação e restauro da cimalha que em parte já ruiu do prédio sito na Av....., n.º...., Monte Estoril e informava que "no caso da notificação não ser cumprida, a Câmara não executaria as obras, por dificuldades orçamentais, pelo que poderia requerer a execução do respectivo orçamento";
e)- Em 19.9.90 o R. requereu à C.M. de Cascais um orçamento das obras;
f)- Por ofício de 29.10.90, a C.M. de Cascais enviou ao R. orçamento das obras, reconstrução da cimalha em betão armado 1.1. Lintel para suporte da cimalha, cimalha em betão armado, reparação geral do telhado com aproveitamento de 50% das telhas, reparação dos tectos e paredes danificadas pelo desmoronar da cimalha, pintura de tectos e paredes reparados, no valor de 5600000 escudos;
g)- Por carta de 31.10.90, registada com A/R, o R enviou à cabeça de casal o orçamento que recebera da C.M. de Cascais;
h)- As obras foram mandadas executar pelo R, tendo a C.M. de Cascais, por ofício de 1.3.94, confirmado a execução das mesmas, após vistoria efectuada ao local pela fiscalização técnica da Câmara em 31.01.94;
i)- Por carta de 11.03.94, registada com A/R, recebida em 15/3/1994, o R. comunicou à cabeça de casal a realização das obras e exigiu-lhe o pagamento da quantia de 5600000 escudos, no prazo de 30 dias, a contar da recepção da carta, sob pena de àquela verba acrescerem os juros de mora à taxa legal;
j)- Esta quantia não foi paga ao Réu;
l)- Provou-se que efectivamente o Réu pagou por essas obras 5600000 escudos.

Passemos agora ao direito aplicável.

11. O contrato de arrendamento teve, como vimos, início em 1-8-75, sendo que a acção para denúncia desse contrato deu entrada em juízo em 24-6-98, tendo tido por base a norma constante da al. a) do nº 1 do artigo 69° do RAU90 - necessidade do arrendado para habitação do senhorio-denunciante, e ora recorrente.
O limite anterior de permanência no arrendado fixado no artº 2º da L 55/79 de 15/9 para obstar à pretensão de denúncia era de apenas 20 anos, limite esse depois elevado pelo RAU90 (artº 107º nº 1 al. b) ) para 30 anos.
Aquando pois da propositura da acção, para poder ser invocado e funcionar o facto impeditivo do direito de denúncia, já teria o arrendatário que ter permanecido no local arrendado por um período de tempo de 30 ou mais anos nessa qualidade - conf. o artº 107º nº 1, al. b) do RAU 90, na sua primitiva redacção -, período esse reportado ao momento em que a denúncia devesse produzir efeito - o termo do prazo do contrato ou da sua renovação (feita com antecedência legal).
O contrato deve ser denunciado com a antecedência de 6 meses relativamente ao fim do prazo da renovação ( artº 70º, do RAU 90 ), pelo que o inquilino tem que ser citado com essa antecedência.
Nesta acção o Réu foi citado em 7-8-98, pelo que, tendo o contrato sido celebrado em 1-8-75, para que a comunicação da denúncia possuísse uma antecedência de 6 meses com referência ao prazo de renovação, a mesma só surtiria eficácia em 1-8-99, data já superada pela própria pendência da acção,, podendo por isso o despejo ser decretado com efeitos imediatos.
Quid juris pois ?
O «thema decidendum» prende-se com a relevância / irrelevância, para o desfecho da solução de mérito da lide, da declaração, com força obrigatória geral - pelo Ac do TC nº 97/2000, de 16-2-00, in DR nº 65, I Série-A, de 17-3-00 - da inconstitucionalidade da norma constante da al. b), do nº 1 do artº 107°, n° 1, do RAU 90 por violação do disposto na al. h), do nº 1 do artº 168° da Constituição e também da entrada em vigor, em 4-2-01, do DL 329-B/2000 de 22/12, que veio dar nova redacção à mesma alínea b).
A primeira dessas questões foi já objecto de pronúncia expressa pelas instâncias, a segunda sucita-se agora «ex-officio» face à ulterior entrada em vigor da nova lei.
Diga-se, antes de mais, e preliminarmente que, conforme este Supremo Tribunal vem reiteradamente decidido, as leis relativas às relações jurídicas de arrendamento ou locatícias são, em princípio, de aplicação imediata às relações já constituídas, por visarem, não propriamente o «estatuto contratual» das partes, mas antes o respectivo «estatuto legal», atingindo-as, desse modo, não tanto como partes contratantes, mas enquanto sujeitos de direito entre si ligados por um particular e específico vínculo contratual - conf., neste sentido, e v.g o Ac do STJ de 1-6-00, in Proc 379/00 - 2ª Sec, citando Baptista Machado, in "Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil", págs 122 e ss.
Por outras palavras, e na esteira deste autor, "a disposição legal qualificar-se-á como pertinente a um «estatuto legal» ou - o que é o mesmo - abstrairá da situação jurídica contratual, quando for dirigida à tutela de uma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica (v.g de arrendamento )...".
Como bem se obtempera na sentença de 1ª instância as normas relativas ao inquilinato e arrendamento, reportam-se à estruturação básica do sistema jurídico e da ordem social, e consequentemente, ao estatuto fundamental das pessoas e das coisas, e que, por isso, são de interesse geral, exigindo a aplicação imediata da lei nova, dado que este tipo de relações se autonomiza, atento o seu estatuto legal, do seu acto criador, conforme resulta da 2ª parte do n° 2 do artº 12° do C. Civil.
Isto sendo sabido que o sistema de regulamentação do arrendamento de prédios urbanos, é entre nós e desde o Decreto de 12-11-1910, marcado por um acentuado carácter de ordem pública, consubstanciado em severas limitações à liberdade contratual e por uma forte incidência de motivações de cariz político-social.
No qua tange especificamente aos pressupostos legais da efectivação da denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio, não é aplicável a lei vigente ao tempo da celebração do contrato, mas sim, e em princípio, a lei vigente ao tempo em que é operada a declaração de denúncia do contrato.
Deste modo, o artº 2º da L 55/79 de 15/9, mais tarde revogado pelo artº 3º nº 1 al. e) do diploma preambular do RAU 90 ( o DL 321-B/90 de 15/10 ) e o artº 107º do RAU 90, quer na sua redacção primitiva, quer na sua redacção actual, dispondo directamente sobre o conteúdo da relação jurídica de arrendamento urbano habitacional, abstraindo do facto ( jurídico ) que lhe deu origem ) aplica-se às relações jurídicas já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor - artº 12º nº 2 do C. Civil.
Abra-se aqui um parêntesis para referir que a última alteração, que veio regular definitivamente a questão, agora já expurgada das dúvidas de constitucionalidade (inovação legislativa), ocorreu já na pendência da presente causa e depois da prolação da sentença em 1ª instância, mas tal facto não é impeditivo da sua aplicação à relação jurídica (ainda subsistente) de arrendamento, pois que não se perfila ainda qualquer decisão "de meritis" já transitada em julgado. A causa deverá pois ser julgada pelo tribunal «ad quem» de harmonia com a lei inovadora vigente aquando da data do julgamento do recurso e não com apelo à lei antiga, em vigor à data da decisão recorrida. Se pois esta última não transitou em julgado, a estatuição da 2ª parte do nº 2 do artº 12º do C. Civil não pode ser arredada sem preceito legal que tal determine.
Isto tudo sem que tal colida com o princípio da estabilidade da instância contemplado no artº 268º do CPC, apenas imposto quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, que não em relação à lei em vigor à data em que seja proferida a decisão recorrida - conf., Pais de Sousa, in "Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano", 6ª ed., 2001, pág 317-318.
Acontece, todavia, que - como adiante veremos - quer em relação à data da propositura e/ou citação, quer em relação à presente data da decisão final em sede de recurso de revista, o regime jurídico aplicável conduzirá a uma sorte do litígio em tudo idêntica à já ditada pela 1ª instância.
Aquando da propositura da acção - 24-6-98 - encontrava-se em vigor o artº 107º do RAU90 na sua redacção primitiva, o qual, na al. b) do seu nº 1, exigia, como fundamento de oposição à denúncia, a permanência no arrendado por 30 anos; mas aquando da decisão final em 1ªinstância - 12-1-01 - e atenta a eficácia retroactiva (ex-tunc) da declaração de inconstitucionalidade, encontrava-se já de novo em vigor, por repristinação, o artº 2º da L 55/79 de 15/9 que, na homóloga al. b) do respectivo nº 1, consagrava, como circunstância obstaculizante da possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento, a permanência do arrendatário no arrendado durante um período de 20 ou mais anos.
Repristinação e aplicabilidade essas a considerar «in abstracto» na decisão, não obstante nada haver sido pelo Réu a tal respeito invocado na contestação, mas apenas em sede de alegações de direito.
É, com efeito, sabido que a permanência do arrendatário no prédio arrendado durante um determinado período temporal, como factor obstativo à denúncia do contrato de arrendamento urbano pelo senhorio, não constitui propriamente um prazo de caducidade desse direito, mas sim uma circunstância impeditiva da sua constituição, podendo qualificar-se, em termos processuais, como uma excepção peremptória atípica ou inominada (artº 493°, n° 3, do CPC) - conf. v.g o Ac do STJ de 30-4-96, in CJSTJ, Ano IV, Tomo II, pág 39.
E as excepções peremptórias, são, em regra, do conhecimento oficioso, ponto sendo que do processo constem - ainda que por aquisição processual - os factos a que a lei atribua os efeitos extintivos, impeditivos ou modificativos correspondentes.
O tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado - conf artº 496º do CPC. Na hipótese vertente, a invocação da excepção, pela própria natureza desta, sempre se encontraria dependente do alvedrio do interessado, pelo que teria sempre que ser alegada e substanciada pelo Réu-arrendatário no adequado momento processual.
Ora, poder-se-ia dizer : aquando da apresentação da contestação, encontrava-se fora de cogitação uma tal alegação, pois que excluída se encontrava à partida a permanência do Réu no prédio arrendado pelo período de 30 anos como a lei ao tempo vigente postulava. Só supervenientemente - face à sobredita repristinação da lei anterior - que para tal prazo cominava o prazo menor de 20 anos é que se veio a deparar ao Réu-arrendatário a possibilidade de uma tal invocação; o que logo fez em sede de alegações de direito em 1ª instância conforme deixámos dito.
Só que para o êxito de uma tal invocação nunca bastaria a mera alegação da subsistência do arrendamento por 20 anos ou mais; tornava-se sempre necessária alegação e prova da manutenção ou permanência do arrendatário na unidade predial em causa pelo período de 20 anos ou mais nessa qualidade.
Conforme bem salienta o senhorio-recorrente, na sua alegação de recurso, a permanência dos recorridos no locado há vinte anos ou mais não se poderia simplesmente «presumir» da matéria de facto dada como provada na presente acção, já que se tratava de uma realidade fáctica distinta da da duração do contrato de arrendamento, cuja substanciação (ónus da alegação e ónus da prova) competiria aos arrendatários (artº 342º nº 2 do C. Civil ).
Ónus esse que manifestamente não foi satisfeito. Com efeito, sem embargo de da matéria fáctica provada constar, por alegação do próprio Autor, que quando foi proposta esta acção, o Réu já era arrendatário da casa cujo despejo se pretende há mais de 20 anos (contados do início do arrendamento) não vem provado que o Réu tenha aí vivido, ou permanecido, durante todo esse período de tempo em que foi arrendatário da casa.
E não era o caso de apresentação de articulado superveniente, pois que expirado o prazo-limite para tal previsto nas leis do processo - conf. artº 506º nº 3 do CPC.
A míngua da satisfação do ónus da afirmação e da prova, seria sempre meramente assertórica a extracção de uma tal conclusão.
Impendendo pois sobre os Réus a invocação dos factos integradores da circunstância impeditiva da constituição do direito do Autor e a submeter ao escrutínio judicial, encargo esse não satisfeito na devida oportunidade, jamais poderia proceder a agora invocada excepção da permanência dos Réus no arrendado por um período superior a 20 anos a contar do início do arrendamento.
Dentro deste entendimento lógico, bem andou o Meritíssimo Juiz de 1ª Instância ao decretar a extinção do contrato de arrendamento por denúncia.
Solução a que teria - acrescentaremos nós agora - também de chegar-se por aplicação da lei nova (a nova redacção dada ao normativo em apreço pelo DL 329-B/2000 de 22/12 entrado em vigor em 4-2-01), como vimos de aplicação imediata à relação material ora controvertida.
Terá agora o arrendatário - para poder obstar à denúncia - que demonstrar haver-se mantido no local arrendado por um período de 30 ou mais anos nessa qualidade «ou por um período de tempo mais curto previsto em lei anterior e decorrido na vigência desta»
Nada pois a obstar à denúncia do contrato de arrendamento impetrada pelo Autor, ora recorrente, verificado que está o preenchimento dos pressupostos constitutivos desse direito e a inexistência do factor impeditivo ora objecto de apreciação.

12. Deverão, contudo, os autos prosseguir para conhecimento do agravo interposto pelo ora recorrente da parte da sentença de 1ª instância em que esta o condenou a pagar aos recorridos uma "quantia equivalente ao custo actualizado das obras realizadas pelo Réu no arrendado, a liquidar em execução de sentença", agravo este que não foi oportunamente conhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em virtude de ter então ficado prejudicado pelo sentido decisório do acórdão revidendo.
13. Procedem, por conseguinte, as conclusões do autor, ora recorrente, pelo que, assim não havendo decidido, não pode manter-se o acórdão recorrido.

14. Decisão :
Em face do exposto, decidem :
- conceder a revista;
- revogar o acórdão recorrido;
- ordenar a baixa dos autos à Relação para conhecimento da matéria do agravo aludido em 12;
- manter subsistente a decisão de 1ª instância, quer quanto ao pedido principal, quer quanto ao pedido reconvencional ( na parte não impugnada mencionada em 12 ), quer quanto ao critério ( provisório ) da condenação em custas.

Lisboa, 23 de Maio de 2002
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos,
Duarte Soares.