Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
| Descritores: | RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES DIREITO INTERNACIONAL INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA DIREITO DE DEFESA DIREITOS FUNDAMENTAIS ADVOGADO PATROCÍNIO JUDICIÁRIO PROCESSO TUTELAR PROCESSO URGENTE ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
| Data do Acordão: | 06/09/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA, ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO. | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
| Sumário : | I - A aplicação das hipóteses previstas nas als. a) e b) do art. 13.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças não pressupõe necessariamente que a criança tenha sido deslocada do Estado de residência habitual há mais de um ano. II - A recorrente (mãe da criança de 3 anos, que trouxe do Reino Unido para Portugal, sem oposição do pai, mas sem autorização das entidades tutelares britânicas) foi notificada, de modo urgente, para comparecer em tribunal, sem que a sua advogada (com procuração nos autos principais) tivesse sido notificada. Ouvida em tribunal, foi de imediato proferida sentença que determinou o regresso da criança ao Reino Unido. Sozinha em tribunal, não teve oportunidade de contrariar o alegado na petição que sustentava o pedido de regresso da criança. III - A eficácia e a operatividade normativa dos instrumentos jurídicos internacionais não se podem sobrepor, a todo e qualquer custo, aos direitos de defesa e à consideração do superior interesse da criança, porquanto tal interesse tem acolhimento direto entre os valores estruturantes da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, encontrando-se também expressamente formulado no art. 3.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança. | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 1677/20.6T8PTM-A.E1.S1 Recorrente: AA Recorrido: Ministério Público
I. RELATÓRIO
1. Por solicitação da Autoridade Central de Portugal (a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais), o Ministério Público instaurou, em 28.09.2020, em representação de BB, nascida em XX/XX/2017, filha de CC e de AA, processo tutelar comum, pedindo o imediato regresso da criança ao Reino Unido (o Estado da sua residência habitual), ao abrigo do disposto nos artigos 1º, 2º, 3º, nº1, a), 7º, 11º e 12º todos da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia a 25.10.1980. Alegou o MP que a menor BB nasceu em ..., no Reino Unido, a XX.XX.2017, sendo filha de CC e de AA (nascida em ...), ambos com residência habitual em ..., ..., ..., no Reino Unido, acrescentando que a criança, (devido a vulnerabilidades que a progenitora apresentava e que comprometiam o seu bem estar) foi, desde o seu nascimento, acompanhada pelas competentes autoridades do Reino Unido, tendo inicialmente, mãe e filha sido alvo de medida de institucionalização, entretanto substituída, por medida de apoio em meio natural de vida junto da mãe, mediante acompanhamento pelas entidades competentes. Referiu ainda o MP: que corre termos, no Reino Unido, o processo nº NN ……31, a favor da criança, estando a mesma sujeita a uma medida “Interin Card Order”, aplicada pelo ... County Court, por decisão proferida a 04.04.2019, que a colocou sob proteção e acompanhamento da Autoridade Local competente, ordenando que as responsabilidades parentais da BB fossem transferidas para a referida autoridade (... County Council). Determinou ainda que: “ninguém pode remover a criança do Reino Unido, sem a permissão por escrito, de todas as pessoas com responsabilidade parental ou autorização do tribunal”. Todavia, a mãe da BB, AA, sem autorização do tribunal e sem consentimento da Autoridade Local para a qual o tribunal transferiu as responsabilidades parentais, em dia indeterminado do mês de julho de 2020, ausentou-se com a criança do Reino Unido para parte incerta. Acrescentou o MP que: após terem sido realizadas várias diligências no sentido de localizar a criança, e se ter apurado que a mesma teria estado em ... e ..., e daí ter seguido para Portugal, mantendo-se em situação de grande vulnerabilidade junto da mãe, o ... County Council, na qualidade de titular das responsabilidades parentais, requereu junto do Royal Court of Justice (caso nº FD…..63) uma ordem de regresso da criança ao Reino Unido; pedido este que o tribunal deferiu, em 03.08.2020, ordenando que a menor BB fosse restituída ao país de origem, o Reino Unido, ficando sob a tutela do tribunal, e nomeando como tutora DD. Alegou ainda o MP: que nas diligências efetuadas pelas autoridades do Reino Unido, em articulação com as autoridades portuguesas, foi possível apurar duas moradas, onde a mãe teria estado com a criança, a primeira na Rua ..., ..., nº ..., ..., ..., e a última sita em ..., Caixa Postal ..., ... –... ..., levando à transmissão formal do pedido à Autoridade Central Portuguesa, sublinhando que nos termos das decisões judiciais proferidas no Reino Unido, as responsabilidades parentais estão atribuídas às autoridades daquele Estado, não podendo a criança ser retirada do país pela mãe, sem a sua autorização ou autorização do tribunal do Reino Unido, país da sua residência habitual, concluindo que a deslocação e a manutenção da BB em Portugal é ilícita porque efetuada em violação do regime do exercício das responsabilidades parentais que se encontravam em vigor relativamente a esta criança e das decisões judiciais tomadas nos processos que correm termos no Reino Unido em relação à mesma. 2. Entretanto, em 11.08.2020, havia sido proposta por AA uma ação visando a regulação do exercício das responsabilidades parentais da BB, contra o pai da criança - CC, na qual requereu que o Exercício das Responsabilidades Parentais fossem regulados nos seguintes termos: “a) O Exercício das Responsabilidades Parentais relativas aos atos da vida corrente da menor cabe à Mãe, com a qual esta fica a residir em Portugal. b) O exercício relativo às questões de particular importância para a vida da menor se possível deverão ser exercidas, em comum, por ambos os Progenitores, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos Progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível. c) O pai pode conviver com a menor e visita-la sempre que o deseje, devendo para isso avisar a mãe com antecedência necessária, sendo que que considerando a idade da menor as visitas deverão ser feitas em Portugal. d) A mãe poderá deslocar-se para o estrangeiro com a menor sem a competente autorização do outro Progenitor. e) A título de pensão de alimentos, o Pai paga mensalmente a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros). f) A quantia supramencionada será entregue à mãe através de transferência bancária com conta a designar. g) A pensão de alimentos será atualizada anualmente de acordo com a taxa de inflação em vigor. h) O pai compromete-se ainda a pagar metade de todas as despesas médicas e medicamentosas, despesas escolares nomeadamente no que concerne a todo o material de apoio que venha a ser necessário e ainda metade das despesas de vestuário e atividades extracurriculares.”
3. Em 29.09.2020, foi determinado, por despacho proferido nos presentes autos, que estes fossem apensados aos autos da Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais. E foi solicitado à autoridade policial que, com urgência, notificasse a progenitora para se apresentar em juízo no dia 1 de outubro de 2020, pelas 11:30 horas, a fim de ser ouvida. Também o Ministério Público e a tutora (“Guardian”), designada à criança no processo tramitado no Reino Unido, DD, foram notificados para comparecer nessa diligência.
4. No dia 01.10.2020 realizou-se a diligência agendada, tendo a senhora juíza explicado à progenitora da menor a finalidade da diligência. Do auto das declarações que lhe foram tomadas consta o seguinte: “declara que está em ... desde 25.07.2020 com a sua filha, a residir na casa de uma prima, EE, em casa arrendada. Tem previsto mudar para outro apartamento em ..., com melhores condições, a partir de 15 de Outubro, em morada que neste momento não sabe precisar. Que veio para Portugal de autocarro, vinda de ... e destino a ..., onde permaneceu em casa de familiares. Estava infeliz em Inglaterra e com medo de lhe retirarem a filha para ser encaminhada para adoção; por esse motivo saiu da acomodação onde se encontrava com a filha e saiu do país sabendo que não o podia fazer. Declara, em face da situação do presente processo, que pretende regressar ao Reino Unido de forma voluntária e fazer regressar voluntariamente a filha ao Reino Unido e cumprir as ordens das autoridades Inglesas. Que irá contactar a Assistente Social do Reino Unido que a acompanhou, para a ajudar na logística do regresso. Consigna-se que o seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, conforme consta da aplicação informática, disponível e em uso neste Tribunal, com inicio às 12H00 e termo às 12H25”. Dada a palavra à senhora Procuradora da República, pela mesma foi dito: “Em face da disponibilidade da progenitora de , que se compromete a voltar a Inglaterra com a criança e a cumprir as ordens das autoridades inglesas, promovo se notifique a mesma no presente ato para, em 5 dias, vir juntar aos autos cópia dos bilhetes de avião para a sua deslocação e a da criança para Inglaterra. Promovo se comunique à autoridade central que a mãe se disponibilizou para fazer a entrega da criança e ao seu regresso imediato a Inglaterra. Promovo ainda que se notifique a Tutora nomeada no Reino Unido, a fim de assegurar o regresso da Criança àquele país.”
5. De seguida, foi proferida a seguinte sentença: «Nos presentes autos de Tutelar Comum, veio o Ministério Público peticionar o regresso da criança , nascida a XX/XX/2017, filha de AA e CC, em conformidade com pedido do Reino Unido junto da Autoridade Central. Nos termos da Convenção de Haia, procedeu-se à audição da progenitora, a qual informou o Tribunal que se fará regressar voluntariamente com a criança ao Reino Unido, sendo que para tal irá contactar a assistente social naquele país com vista ao seu regresso. Em face disto, está acautelado o regresso peticionado, o qual, também se determina e sempre se determinaria em face dos elementos existentes nos autos, determinando-se então para o efeito que: - Se notifique a progenitora da criança para em 5 (cinco) dias juntar aos autos, os comprovativos, designadamente cópia de bilhetes de avião seu e da menor, que assegurarão o regresso da criança ao Reino Unido: - Se contacte de imediato a Autoridade Central, dando conta do regresso voluntário da menor com a progenitora ao REINO UNIDO, remetendo cópia da presente ata; - Se notifique via Autoridade Central Portuguesa a Tutora Instituída pelo Tribunal do Reino Unido, DD, dando conta da vontade de regresso voluntário da progenitora com a filha ao Reino Unido a fim de diligenciarem pelo respetivo regresso. Consigna-se que não se procedeu à audição da criança , uma vez que, em face das regras da experiência comum quanto ao desenvolvimento humano, não era de todo espectável que a mesma tivesse capacidade e muito menos maturidade, para articular qualquer discurso lógico ao Tribunal e responder a qualquer questão que lhe fosse colocada. Registe e notifique. Valor da acção: 30.000,01 € (trinta mil euros e um cêntimo) Sem custas por não serem legalmente devidas»
6. Em 05.10.2020, o Gabinete Nacional SIRENE transmitiu aos presentes autos a seguinte informação: “Exmo. Meritíssimo Juiz de Direito, para conhecimento do processo, cumpre-me transmitir a informação recebida da nossa congénere do Reino Unido. Segundo informação das referidas autoridades, a Srª. AA efectou reserva no voo ..., com partida de ... em 05.10.2020, pelas 10H00, e com destino a ..., para si e para a sua filha, a menor BB. Com base nesta informação foi de imediato informado o SEF do Aeroporto de .... No dia de hoje foi-nos comunicado pelo SEF, que tanto a progenitora bem como a sua filha, não efectuaram o Check In, bem como não se apresentaram para embarque no referido voo.” 7. Em 05.10.2020, AA, progenitora da menor BB, apresentou uma peça nos presentes autos, subscrita pela sua advogada, requerendo o seguinte: «Pelo exposto, a Requerente mãe opõe-se, com todas as suas forças, a esta decisão, pois não só prova que a custódia da criança não pertencia exclusivamente ao Governo Inglês mas era partilhada com ela, como pelo exposto prova que Requerente e filha viviam “à sua custa”, na casa de uma tia, como nunca as autoridades inglesas se opuseram à vinda da menor para Portugal; antes pelo contrário, pediram informações à Segurança Social Portuguesa. Requeremos que o tribunal SUSPENDA de imediato esta decisão, inquirindo as testemunhas apresentadas, como a requerer todos e quaisquer meios de prova que atestem a felicidade da menor BB. Se assim não for, o tribunal apenas estará entregando uma criança de 3 anos nas mãos da Segurança Social inglesa, destruindo uma vida que apenas começou há 3 anos, violando desta forma a Convenção da Haia bem como a Convenção dos Direitos da Criança.» Este pedido de suspensão da decisão de fazer regressar a criança ao Reino Unido foi acompanhado de uma declaração do pai da criança – CC – na qual este afirma (em inglês) concordar com o facto de a criança viver em Portugal com a mãe. Nesse requerimento, foi também pedida a produção de prova, tendo em vista demonstrar a integração familiar da criança em Portugal, bem como demonstrar os riscos que a criança correria sendo restituída ao Reino Unido.
8. Por despacho judicial, proferido nos presentes autos, em 09.10.2020, foi indeferido o pedido de suspensão daquela decisão, por falta de fundamento legal.
9. No processo principal de RERP foi determinado, por despacho de 07.10.2020, reportando-se à conferência de pais que se encontrava agendada, o seguinte: “Considerando o resultante da diligência realizada no apenso A, fica prejudicada a diligência nestes autos agendada. Desconvoque via expedita atenta a proximidade da data.” 10. Inconformada com a supra referida sentença, a progenitora da criança, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de .... O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
11. O Tribunal da Relação de ..., em 28.01.2021, proferiu a seguinte decisão: «Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pela Apelante AA e em consequência decidem: a) Confirmar a sentença recorrida; b) Fixar as custas a cargo da Apelante nos termos do disposto no artigo 527º, n. 1 e 2 do CPC.» 12. Inconformada com a decisão, a apelante interpôs recurso de revista excecional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões: «1. O presente recurso vem interposto do Acordão da Relação de ... proferido em 28.01.2021, nos termos do qual se decidiu da seguinte forma “Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pela Apelante AA e em consequência decidem: Confirmar a sentença recorrida”; 2. Entende a Recorrente que andou mal o Tribunal da Relação ao decidir pela improcedência do Recurso de Apelação e, consequentemente, pela confirmação da sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância; 3. O presente recurso deve ser admitido por estarem em causa interesses de particular relevância social e a relevância prática e jurídica que assume a questão sub judice para uma melhor aplicação do direito, nos termos do disposto nas alíneas b) e a) do artigo 672.º do CPC. 4. No entender da Recorrente não foi produzida a prova que deveria ter sido para que o Tribunal compreendesse a situação da menor. 5. A Recorrente nunca concordou com a ida voluntária da sua filha menor para o Reino Unido, e se assim se expressou, foi porque pensou que se não o fizesse, considerando que a menor também se encontrava nas instalações do Tribunal, seria levada de imediato pelas técnicas da segurança social do Reino Unido. 6. No entendimento da Recorrente a ida da sua filha para o Reino Unido representa perdê-la para sempre, é sua convicção que a menor vai ser entregue à segurança Social para que se proceda à adoção irreversível da menina. 7. A Recorrente estava sozinha na sala de audiências, sem ter uma noção do que se iria passar ao que acresce não ter um domínio integral da língua portuguesa. 8. A não notificação da mandatária da Recorrente impediu totalmente que a Recorrente se sentisse numa posição confortável ou de igualdade, antes pelo contrário sentiu-se em pânico. 9. E um profundo sentimento de injustiça que a Recorrente sente, pois vê a sua filha feliz, quer que esta cresça em Portugal e com a sua família e com esta decisão do Tribunal português possivelmente perderá a sua filha para sempre para terceiros. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas melhor suprirão, deverá o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência ser declarado nulo o Acórdão da Relação de Évora bem como a sentença proferida no Tribunal de ..., ser de novo a diligência repetida com a produção de prova tida como suficiente para se avaliar de uma forma certa e definitiva a possibilidade de defender os interesses da menor BB, pois só assim se aplicará o Direito e se fará a verdadeira JUSTIÇA.»
13. O Ministério Público apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões: «1-Há, desde logo, que levantar as questões prévias da inadmissibilidade do recurso de revista e da inadmissibilidade formal do recurso de revista excepcional. 2- É que, o Recurso de Revista não é admissível, por se verificar a chamada “dupla conforme” (vide n. 3 do artº 671º do CPC), e o aresto recorrido negou provimento ao recurso de apelação interposto pela ora recorrente, o qual manteve a sentença proferida pelo tribunal de 1ª Instância. 3- Mas, a ora recorrente interpôs Recurso de Revista Excepcional, nos termos do disposto no artº 672º n.1, als. a) e b) do CPC – relevância jurídica do caso e interesse de particular relevância social. 4- Porém, salvo melhor entendimento, nas conclusões apresentadas, a recorrente não fundamenta tais pressupostos, e mesmo no corpo das respectivas alegações, não fundamentou a sua pretensão, ao nível geral, limitando-se a salientar a importância para a recorrente em não ver a filha ser legalmente enviada para o Reino Unido quando pretendia viver com aquela em Portugal. 5- Ora, dispõe-se no artº 672º nº 2 do CPC que “O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição: a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social; (…)”. 6-Assim, formalmente parece haver lugar à rejeição do recurso, o que deverá ser feito através da formação do STJ (vide nº 3 do artº 672º do CPC). 7- Acresce que, quanto à al. a), daquela disposição legal, para além de não ter sido formalmente apresentada qualquer fundamentação, salvo melhor entendimento, não se verifica, de facto, a aludida questão, “relevância jurídica”, que “seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, nem sequer estamos perante uma questão controversa de direito, o que teria de ser trazido pela ora recorrente, o que não sucedeu, sendo certo que, quer o tribunal de 1ª Instância, quer este TR..., decidiram de forma idêntica. 8- Já relativamente à al. b), daquela disposição legal, entende-se, que podemos estar na presença de situação em que estão “em causa interesses de particular relevância social”, admitindo-se, assim, a recorribilidade, caso fosse devidamente fundamentada, o que parece não ser o caso. 9- Ora, caso não seja de rejeitar formalmente o presente recurso, quer como Revista, quer como de Revista Excepcional, como supra referido, o recurso ainda assim, não pode merecer provimento, atentos os fundamentos, de facto e de direito, constantes, quer da Sentença proferida pelo tribunal de 1ª Instância, quer constantes do Acórdão do T.R..., ora sob recurso, e aqui dados por integralmente reproduzidos. 10- Acresce que, quanto ao mérito do recurso é ainda de ter em conta, na parte aplicável, o teor da Resposta ao recurso de Apelação apresentado pela Mº Público no tribunal de 1ª Instância, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, designadamente, a constante das respectivas Conclusões. 11- Na verdade, reconhecendo a ora recorrente a deslocação ilícita da menor da sua residência habitual, esta, tal como foi determinado nos autos, deve ser imediatamente entregue (“… A ilicitude da deslocação ou da retenção é condição para que seja determinada a entrega imediata da criança” – in Ac. do STJ de 24-06-2010- Pº nº 622/07.9TMBRG.G1.S1- Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza). 12- Tal só não deve suceder se se verificarem as excepções previstas no artº 13º da Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto nº 22/83 de 11 de Maio, cujo ónus da prova impendia sobre a requerente, o que não ficou provado (nesse sentido o Ac. do STJ de 05-11- 2009-Pº nº 1735/06.OTMPRT.S1-Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza). 13- Acresce que, “Segundo o artigo 12º da Convenção, se tiver decorrido menos de um ano “entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança” (in Ac. do STJ de 05-11 2009, supra referido). 14- Deve, assim, improceder o recurso, caso seja formalmente admitido.»
14. No despacho que admitiu a subida do recurso foi fixado o seu efeito suspensivo.
15. No STJ, dada a existência de dupla conforme, foram os autos remetidos à Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, tendo o recurso sido admitido como revista excecional, com base na alínea b) do n.1 do art.672º, dada a relevância social da questão. Conclusos os autos à relatora, em 03.05.2021, cabe apreciar.
II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS: 1. Admissibilidade e objeto do recurso - Como referido, o presente recurso foi admitido como revista excecional, com base no art.672º, n.1, alínea b) do CPC. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (em conjugação com o âmbito de admissibilidade da revista excecional), é a seguinte a questão central em apreço: Saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito, e especificamente dos artigos 12º e 13º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (concluída em Haia, em 25.10.1980).
2. Factualidade relevante: A factualidade relevante para a decisão do presente caso é a que já se expôs no relatório supra.
3. O direito aplicável: 3.1. A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25.10.1980, vigente em Portugal desde 01.12.1983, assentou nas seguintes premissas: «Os Estados signatários da presente Convenção, firmemente convictos de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia; desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita.» Daqui decorre que o princípio norteador de toda a estrutura da Convenção é o da proteção da criança e dos seus primordiais interesses, protegendo-a especificamente “dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas”. O disposto na Convenção é, nos termos do art.8º da CRP, parte integrante do direito português. A criança em causa – BB – nasceu em 2017, pelo que, nos termos do art.4º da referida Convenção (sendo menor de 16 anos) as suas normas lhe são aplicáveis. Por outro lado, o Estado onde a criança atualmente se encontra e o Estado onde tem residência fixada – Portugal e o Reino Unido – são signatários dessa Convenção. O caráter ilícito da deslocação da criança do Reino Unido para Portugal, deverá ser aferido à luz do disposto no art. 3º da Convenção. Estatui esta norma: «A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando: a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.»
As consequências de uma deslocação ilícita e o específico modo da sua efetivação encontram-se previstas nos artigos 12º e 13º da Convenção[1]. Estabelece o art.12º «Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança. A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente. Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança.» Dispõe o art.13º da Convenção: « - Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. - A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. - Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.»
Ainda que a deslocação de uma criança possa ser caraterizada como ilícita, à luz do disposto no art. 3º, tal não significa que, em todo e qualquer caso, deva ser ordenado o seu regresso ao Estado de onde foi deslocada. Nos artigos 12º e 13º estabelecem-se limites a essa ordenação, que espelham a prevalência do superior interesse da criança sobre critérios de legalidade estrita. No mesmo sentido, deve ter-se presente o que se estabelece no art. 20 da Convenção: «O regresso da criança de acordo com as disposições contidas no Artigo 12.º poderá ser recusado quando não for consentâneo com os princípios fundamentais do Estado requerido relativos à protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.»
Deve ainda ter-se presente que ao caso concreto também se aplica a Convenção dos Direitos das Crianças, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e ratificada por Portugal em 21.09.1990. Dispõe o art. 3º desta Convenção: «1-Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. 2- Os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.»
3.2. O caso concreto não corresponde a uma hipótese típica de um dos progenitores deslocar a criança do Estado de residência habitual para outro Estado, sem o consentimento do outro progenitor. No presente caso, o regresso da criança ao Reino Unido não foi requerido pelo pai (com o qual a criança nunca viveu). Aliás, o pai declarou (em documento que se encontra junto aos autos) que concordava com o facto de a criança viver em Portugal com a mãe. Por outro lado, também não se identifica, no presente caso, uma tentativa de a mãe ocultar a sua deslocação para Portugal com a criança, porquanto, pouco tempo depois de chegar a Portugal, propôs ação em tribunal, requerendo a Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais (que originou o processo principal, ao qual os presentes autos se encontram apensos). 3.3. Como consta dos autos, a recorrente – mãe da criança – foi ouvida, em primeira instância, sem a presença da sua advogada, apesar de esta ter procuração nos autos principais [de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais]. Assim, sozinha em tribunal, a recorrente declarou que regressaria ao Reino Unido com a criança. A sentença foi, de imediato, proferida, determinando o regresso da criança ao Reino Unido em cinco dias. Não foi, nestes termos, requerida ou produzida qualquer prova que habilitasse o tribunal a concluir se se verificavam circunstâncias que, nos termos do art.13º da Convenção, permitissem concluir que o regresso da criança não deveria ser ordenado. 3.4. Embora, nos termos do art.18º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, a constituição de advogado só seja, em regra, obrigatória em fase de recurso, a advogada da recorrente devia ter sido notificada para essa audiência em tribunal, nos termos do art.247º do CPC, dado ter procuração nos autos principais. A falta de tal notificação conduziria à nulidade dos atos posteriores, caso tivesse sido atempadamente arguida, nos termos dos artigos 195º, 196º e 198º do CPC. Porém, na primeira oportunidade processual que teve, ou seja, quando interpôs o recurso de apelação, a recorrente não invocou a nulidade da sentença, como lhe competia, pelo que o acórdão recorrido não declarou, tem tinha de declarar, essa consequência. Nas alegações de revista, a recorrente conclui pedindo a nulidade do acórdão e da sentença. Todavia, apesar de referir que a sua mandatária não foi notificada para aquele ato, a recorrente não alega que a referida nulidade decorreria daquela ausência de notificação. E ainda que o tivesse feito, a oportunidade para conhecer de tal consequência já se encontraria precludida, por não ter sido invocada na apelação (como consta do acórdão recorrido)[2].
3.5. Vejamos, agora, se existirá fundamento para revogar ou anular o acórdão recorrido com base em errada aplicação da lei. 3.5.1. A recorrente afirma, nas conclusões das suas alegações (ponto 5) que: “nunca concordou com a ida voluntária da sua filha menor para o Reino Unido, e se assim se expressou, foi porque pensou que se não o fizesse, considerando que a menor também se encontrava nas instalações do Tribunal, seria levada de imediato pelas técnicas da segurança social do Reino Unido”. E acrescentou que pelo facto de estar sozinha em tribunal (desacompanhada da sua advogada) e sem ter um integral domínio da língua portuguesa, se sentiu em pânico (pontos 7 e 8). Na decisão recorrida entendeu-se que: «(…) da leitura da acta respeitante ao acto judicial realizado nestes autos em 01/10/2020, de que consta, como já sabemos, a sentença recorrida não decorre que a Apelante se encontrasse toldada pelo pânico, ou sequer atemorizada, durante a sua audição, bem como que tenha sido constrangida a aceitar regressar voluntariamente com a BB ao Reino Unido, daí resultando, como consequência, ter manifestado uma vontade divergente da sua vontade real nas declarações que prestou retratadas na dita acta (…)» Ora, a divergência entre a declaração expressa, registada em ata, e aquela que a recorrente diz ser a sua vontade real nessas circunstâncias (a de não regressar com a filha ao Reino Unido), não pode ser apurada apenas por recurso ao que consta objetivamente dessa ata. Se a própria declarante afirma que a declaração constante da ata não correspondia à sua real vontade e que só a proferiu por medo, não pode dar-se definitivamente como assente que foi encontrada uma solução amigável, nos termos da alínea c) do art.7º da Convenção, como também se entendeu no acórdão recorrido. 3.5.2. Por outro lado, alega a recorrente (ponto 4 das conclusões), que “não foi produzida a prova que deveria ter sido para que o Tribunal compreendesse a situação da menor”. E acrescenta (no ponto 6) que “a ida da sua filha para o Reino Unido representa perdê-la para sempre, é sua convicção que a menor vai ser entregue à segurança Social para que se proceda à adoção irreversível da menina”. No corpo das alegações de revista, a recorrente procura demonstrar que, no caso concreto, será possível provar que se verificam as exceções previstas no art. 13º da Convenção, bem como a integração familiar da criança em Portugal, o que obstará ao seu regresso ao Reino Unido. Deve ter-se presente que, imediatamente após a prolação da sentença, a mãe da criança, apresentou um requerimento nos autos, através da sua advogada, pedindo a suspensão da decisão de regressar ao Reino Unido (como consta do relatório supra), e pedindo a produção de prova para demonstrar a integração familiar da criança em Portugal e os perigos que correria regressando ao Reino Unido. E juntou, nessa altura, a supra referida declaração do pai da criança, nos termos da qual este manifestava concordância com o facto de a criança viver em Portugal com a mãe. Esse requerimento foi indeferido. Alegava a recorrente, procurando demonstrar a verificação da alínea a) do art.13º da Convenção, que, nos meses anteriores à sua deslocação, a criança vivia no Reino Unido com a mãe, em casa de uma tia, não sendo, portanto, a guarda da criança exercida efetivamente por entidades administrativas britânicos. Tia esta que, entretanto, veio viver para Portugal. Por outro lado, a mãe da criança procurou demonstrar a verificação da hipótese prevista na alínea b) do art.13º da Convenção, afirmando que, sendo enviada para o Reino Unido, a criança ficaria sujeita a perigos de ordem física e psíquica, por ser separada da família da mãe e, provavelmente, institucionalizada. Como consta dos autos, a mãe da criança foi notificada, de modo urgente, para comparecer em tribunal no dia seguinte, sem que a sua advogada tivesse sido notificada para esse efeito. Em tribunal, foram-lhe tomadas declarações e, tendo ela afirmado que regressaria com a criança ao Reino Unido, foi de imediato proferida sentença que determinou esse regresso. É, assim, óbvio que a agora recorrente, sozinha em tribunal, não teve oportunidade de contrariar o alegado na petição nem qualquer documento que sustentava o pedido de regresso da criança ao Reino Unido, em inobservância do princípio do contraditório (art.3º, n.3 do CPC) e mesmo da garantia da tutela jurisdicional efetiva consagrada no art.20º da CRP. Ainda que o processo tenha natureza urgente (art.13º do RGTPC), estão em causa matérias respeitantes a direitos, liberdades e garantias da criança (e, indiretamente, da sua mãe), constitucionalmente protegidos (art.18º da CRP) que não podem ser completamente atropelados por razões de celeridade.
3.5.3. Na decisão recorrida entendeu-se que o caso concreto sempre caberia na previsão normativa do primeiro parágrafo do art.12º da Convenção, porquanto a criança havia sido deslocada para Portugal há menos de um ano, pelo que o seu regresso devia ser necessariamente imediato, sem admissibilidade de prova sobre as suas circunstâncias de vida. Afirmou-se nesse acórdão: «(…) perante o dever legal de ordenar um regresso “imediato” plasmado no primeiro parágrafo do mencionado artigo 12º pensamos, como acabamos de referir supra, que apenas na hipótese prevenida no segundo parágrafo do artigo 12º fará sentido a opção entre ordenar, ou não, o regresso (que aqui não se prevê como “imediato”), se em sede de oposição ao regresso resultarem provados os requisitos prevenidos na alínea a), ou na alínea b), do primeiro parágrafo do artigo 13º da Convenção que vimos interpretando. Com efeito, desde logo, a exigência de que o regresso seja “imediato” não se compatibilizará com diligências de prova, que podem implicar algum tempo, tendentes à demonstração dos requisitos da alínea a), ou da alínea b), consoante o que vier a ser concretamente alegado em sede de oposição.»
O acórdão recorrido entendeu, assim, que as exceções previstas nas alíneas a) e b) do art.13º só teriam aplicação quando se verificasse a hipótese prevista no segundo parágrafo do art.12º, ou seja, quando a criança tivesse sido deslocada do Estado de residência habitual há mais de um ano. Logo, como no caso concreto, a deslocação da criança se verificou há menos de um ano, não haveria que equacionar a aplicação das hipóteses previstas no art.13º da Convenção. Trata-se de uma errada interpretação da lei. Se assim fosse não se compreenderia a ressalva feita pelo próprio art.12º, segundo parágrafo, quando se refere à hipótese de a criança se encontrar integrada no seu novo ambiente (que respeita especificamente à hipótese de a deslocação da criança ter ocorrido há mais de um ano)[3].
Apesar de se tratar de uma temática na qual não existe total consenso, nem doutrinal nem jurisprudencial, sobre a melhor forma de equacionar e compatibilizar o funcionamento dos mecanismos internacionais de restituição de crianças ilicitamente deslocadas e a salvaguarda do superior interesse da criança, trata-se de matéria, que, pela sua natureza, não pode ser apreciada pelas instâncias segundo critérios de legalidade estrita[4]. A eficácia e a operatividade normativa dos instrumentos jurídicos internacionais são se podem sobrepor, a qualquer custo, à consideração do superior interesse da criança em cada caso concreto, porquanto tal interesse se reconduz a um dos valores estruturantes da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças[5], e se encontra também expressamente formulado no art.3º da Convenção Sobre os Direitos da Criança.
3.6. Pelo exposto, deve concluir-se que a factualidade constante dos autos é manifestamente insuficiente para sustentar a aplicação que o acórdão recorrido fez dos artigos 12º e 13º da Convenção, ao confirmar a sentença que determinou o regresso da criança ao Reino Unido. Efetivamente, por se encontrar sozinha em tribunal, a recorrente não teve possibilidade de requerer, antes da prolação da sentença, meios de prova que habilitassem o tribunal a ponderar a aplicação das exceções previstas no art.13º da Convenção e, consequentemente, a poder ponderar uma decisão de sentido oposto.
Assim, nos termos do art.682º, n.3 e 683º do CPC, o acórdão tem de ser anulado, voltando o processo ao tribunal recorrido, dado que a matéria de facto tem de ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou seja, para a correta interpretação e aplicação da Convenção, particularmente do seu artigo 13º. Para este efeito sempre o tribunal recorrido pode, nos termos do art.662º, n.2, alíneas a) e b), ordenar a necessária produção de prova.
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DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista e, nos termos do art.682º, n.3 e 683º, n.1 do CPC, declara-se a anulação do acórdão recorrido, devendo os autos ser remetidos ao tribunal recorrido para prolação de nova decisão. Sem custas.
Lisboa, 09.06.2021 Maria Olinda Garcia (Relatora) Ricardo Costa António Barateiro Martins
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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