Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2808/19.4T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 1. ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
PRESSUPOSTOS
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
EXONERAÇÃO
ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO
JUSTA CAUSA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA, CONFIRMANDO-SE O DESPACHO DO RELATOR
Sumário :
I – O aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.

II – Não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial.

III – A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.

IV – Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Conferência do Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. QUESTÕES & SUGESTÕES, LDA., intentou ação declarativa de condenação contra CONDOMÍNIO DO CLUBE PRAIA ... - BLOCO I, representado em juízo pela sua administradora A..., Lda., pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de €119.925,00, acrescida de juros calculados desde o dia em que for efetuada a citação, contados à taxa legal aplicável às dívidas comerciais, por o réu ser uma pessoa equiparada a uma pessoa coletiva, e contados até ao dia em que o pagamento da dívida for integralmente efetuado.

2. Regularmente citado, o Réu contestou, impugnando a factualidade alegada, invocando que apesar de existir justa causa, a destituição não carecia sequer dessa invocação, e deduziu reconvenção, pedindo a condenação da autora/reconvinda «a pagar ao réu a quantia global de 221.486,95€ pelos danos patrimoniais que lhe foram causados pela autora; e pelos prejuízos que vierem a resultar da improcedência dos processos executivos devido à prescrição verificada pelo não cumprimento da sua função de cobrar as receitas, cujo apuramento do valor concreto dos danos será feita em sede de liquidação de sentença».

3. A sentença do tribunal de 1.ª instância decidiu o seguinte:

«Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente e o pedido reconvencional parcialmente procedente, e, em consequência, decido:

a) Absolver o réu CONDOMÍNIO DO CLUBE PRAIA ... - BLOCO I, do pedido formulado pela autora QUESTÕES & SUGESTÕES, LDA.;

b) Condenar a autora/reconvinda a restituir ao réu/reconvinte a quantia correspondente à retribuição dos meses de julho a setembro de 2019, num total de € 9225 (nove mil duzentos e vinte cinco euros);

c) Absolver a autora /reconvinda do restante pedido reconvencional.

Custas a cargo das partes, na proporção do decaimento».

4. Inconformada, a Autora apelou, tendo o Tribunal da Relação decidido, sem qualquer voto de vencido, o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida».

5. QUESTÕES & SUGESTÕES, LD.ª, na qualidade de Recorrente, tendo sido notificada do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que confirmou a sentença do tribunal de 1.ª instância, e com ele não se conformando, veio interpor recurso de revista ordinária, nos termos dos artigos 671.º, n.ºs 1 e 3, e 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, em que peticiona a revogação do acórdão recorrido.

6. Tendo o réu nas suas contra-alegações de recurso suscitado a questão prévia da não admissibilidade da revista, a Relatora proferiu despacho a notificar a autora para se pronunciar sobre esta questão prévia, ao abrigo do artigo 655.º, n.º 2, do CPC, vindo, após ouvir a autora, a proferir despacho de não admissibilidade, por entender verificada a dupla conformidade impeditiva da admissão do recurso de revista.

7. Questões e Sugestões, Lda.ª, notificada da decisão singular de não admissibilidade do recurso de revista, por si interposto, veio apresentar reclamação para a Conferência, que aqui se considera integralmente transcrita, entendendo que as decisões das instâncias se basearam em fundamentação essencialmente diferente, peticionando que seja procedente a reclamação e substituída a decisão impugnada por outra que admita o recurso de revista ordinária.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

1. O teor do despacho de não admissibilidade do recurso foi o seguinte:

«O objeto da presente decisão é a resolução da questão de saber se a sentença do tribunal de 1.ª instância e o Acórdão da Relação adotaram uma fundamentação essencialmente distinta, ficando quebrada a dupla conformidade para o efeito de admissibilidade do recurso de revista geral.

Vejamos:

Entende a autora que o Tribunal da Relação entendeu que o ónus da prova dos requisitos de destituição da empresa de administração de condomínios cabia aos réus, enquanto a sentença do tribunal de 1.ª instância entendeu que essa destituição podia ser unilateral e sem necessidade de demonstração das motivações.

O Tribunal da Relação desenvolveu o tema do ónus da prova, distinguindo o regime do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, sustentando que quando a administrador de condomínio é uma empresa especializada é sempre necessário alegar e provar que houve justa causa de destituição. Concluiu confirmando integralmente a sentença de 1.ª instância, ainda que com uma fundamentação parcialmente diferente.

Já a sentença de 1.ª instância não abordou a questão do ónus da prova da justa causa para a destituição e aplicou apenas o n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, sem o conjugar com o n.º 3 do mesmo preceito e sem distinguir consoante a exoneração se reporta a uma empresa ou a um dos condóminos, como fez o Tribunal da Relação.

Todavia, a decisão foi exatamente a mesma, os factos que a sustentam também, o enquadramento jurídico foi idêntico: a interpretação do artigo 1435.º do Código Civil.

As diferenças de fundamentação assinaladas pela recorrente não foram relevantes para a decisão de direito, têm o mesmo enquadramento jurídico-legal, e não se revestem de essencialidade, pois, na verdade, a sentença do tribunal de 1.ª instância foi muito sintética nos seus fundamentos, não se podendo afirmar que a sua posição de direito seja distinta, em aspetos essenciais, da posição assumida pelo Tribunal da Relação, que desenvolveu mais o tratamento a dar à questão de direito em causa. O que releva, para o efeito, é que os factos do caso demostram inequivocamente que ficou provada a existência de justa causa para a destituição (na questão essencial a decisão das instâncias foi igual), e que este Supremo não tem poderes para os modificar. Assim, qualquer que seja a posição adotada na querela desenvolvida pelo Tribunal da Relação sobre a diferença entre o alcance do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 1435.º, sempre se consideraria lícita a destituição da autora sem direito de indemnização, tal como decidiram as instâncias, não sendo claro, nem inequívoco que o fundamento tenha sido diferente, muito menos essencialmente diferente como exige a lei para considerar quebrada a dupla conformidade.

Uma vez que a recorrente não interpôs, em via subsidiária, recurso de revista excecional, não se envia o processo para a Formação e decide-se não admitir o recurso de revista como revista geral ou ordinária».

2. Sustenta a reclamante que o despacho impugnado é contraditório nos seus termos na medida em que, por um lado, reconhece que o Tribunal da Relação apresenta uma fundamentação parcialmente distinta da aduzida na sentença, e, por outro, afirma que o enquadramento jurídico é idêntico.

3. Vejamos:

Verifica-se uma dupla conforme nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, nos casos em que o acórdão da Relação confirma integralmente, sem voto de vencido, a decisão do tribunal de 1.º instância.

O artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC dispõe o seguinte: «Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.»

4. Não há dúvida nem carece de especial labor demonstrativo que o dispositivo do acórdão da Relação confirmou, integralmente e sem voto de vencido, a sentença apelada.

Todavia, para apreciar acerca da existência ou não de dupla conformidade importa analisar se a sentença e o acórdão da Relação apresentam uma fundamentação idêntica ou essencialmente diferente, sendo que nesta última hipótese considera-se que fica quebrada a dupla conformidade e o recurso de revista é admissível.

5. Assim, para analisar a questão suscitada na presente reclamação – saber se a revista é inadmissível por dupla conformidade – importa indagar se a sentença do tribunal de 1.ª instância e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que confirmou integralmente a condenação do ora reclamante nos termos decididos pela sentença, utilizam para chegar à mesma decisão uma fundamentação essencialmente diferente (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), de acordo como entendimento que a jurisprudência tem feito destes conceitos indeterminados. Ou seja, só estamos perante uma quebra dessa dupla conformidade se a sentença e o acórdão recorrido trilharam percursos jurídicos diversos, sendo irrelevantes as diferenças de pormenor ou a mera densidade ou desenvolvimento do discurso fundamentador.

Assim, «Há fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada» (cfr. Acórdão de 31-05-2016 - Revista n.º 109/14.3T8CMN.G1.S1).

«Para efeitos de verificação da dupla conformidade a que alude o art. 671.º, n.º 3, do CPC, deve considerar-se que as fundamentações são essencialmente diversas quando seguem percursos distintos, acolhendo raciocínios jurídicos diferentes, não quando divergem em pormenores ou em aspetos secundários, sem que se possa afirmar que seguiram linhas de pensamento autónomas» (cfr. Acórdão de 29-04-2021, Revista n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1).

A jurisprudência também destaca que a desconformidade entre as decisões tem de circunscrever-se à matéria de direito, não implicando a divergência no julgamento da matéria de facto, se não teve repercussão na análise das questões de direito, a discrepância decisória geradora da admissibilidade da revista ordinária (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2018, proc. n.º 2639/13.5TBVCT.G1.S1).

6. Regressando ao caso, comparemos então os fundamentos da sentença e do Acórdão do Tribunal da Relação.

A questão central do processo residiu numa deliberação da assembleia de condóminos, que exonerou a administradora do condomínio das funções que vinha exercendo.

O cerne da divergência que opõe as partes diz respeito ao pedido indemnizatório da administradora de condomínios, aqui recorrente, e ao cumprimento ou não do ónus da prova pelo réu da existência de justa causa para a exoneração da autora da administração do condomínio réu.

6.1. Quanto aos fundamentos de facto, o acórdão da Relação aditou à factualidade dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância o seguinte facto:

«10-a5. Na ata dessa assembleia geral extraordinária de condóminos consta «no ponto Um, destituição com efeitos imediatos da administração de condomínio, o presidente da mesa fez uma exposição sobre as causas que levaram à convocação da assembleia extraordinária. Na assembleia foram enunciadas várias razões pelas quais os condóminos consideram que a atual administração de condomínio deve ser destituída ou exonerada com efeitos imediatos, que se prendem com o não cumprimento dos deveres de informação, de diligência, de acessibilidade, de imparcialidade, de respeito, que impendem sobre a administração de condomínio, bem como os condóminos entendem que as funções da administração não têm sido cumpridas ou prestadas de forma adequada».

6.2. O facto aditado não introduziu nada de inovatório na fundamentação, nem teve qualquer consequência relevante na análise da questão de direito, pois que se limitou a transcrever o que constava numa ata junto ao processo que se reportava à necessidade sentida pelos condóminos de destituir ou exonerar a empresa que administrava o condomínio, por incumprimento de deveres. Como esclareceu o próprio acórdão recorrido, tratou apenas de verter para a matéria de facto o que constava da ata, por se tratar de prova documental, que não tendo sido validamente impugnada, o tribunal sempre poderia considerar ao abrigo do disposto nos artigos 663.º, n.º 2, e 607.º, n.º 4, do CPC.

6.3. Em conclusão, o aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos, que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.

6.4. Relativamente à matéria de direito, a decisão do acórdão recorrido baseou-se na aplicação do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, relativo à exoneração do administrador de condomínio, concluindo que o réu logrou demonstrar que houve justa causa para a exoneração, não tendo por isso de pagar qualquer indemnização:

« (…)

Nesse caso, mercê do n.º 3 do artigo 1435.º do CC, é claro que ao condómino incumbe o ónus de alegar e provar factualidade que integre qualquer um dos dois fundamentos que podem servir de base à possibilidade excecionalmente conferida pelo mencionado preceito, de exoneração contenciosa do administrador: a prática de irregularidades ou a atuação com negligência no exercício das funções que lhe foram cometidas, conforme previsto no segmento final do referido artigo legal

A questão que os autos convocam, está em saber se, por não constar no n.º 1 do preceito idêntica exigência, a exoneração do administrador pela assembleia de condóminos é ou não livre.

Na sentença recorrida, acolheu-se a posição expressa pelo réu condomínio de que, competindo aos condóminos, reunidos em assembleia, decidir a eleição e exoneração do administrador, “sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento”, já que só nas situações do n.º 3, “é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções”. Nesse pressuposto, concluiu que no “caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora”.

Sendo certo que, aparentemente, a lei distingue ambas as situações, referindo a necessidade de invocação de justa causa para a destituição do administrador apenas nas situações em que a mesma não seja deliberada pela assembleia, e seja peticionada ao tribunal, a verdade é que, casos existem em que outros princípios do ordenamento jurídico, designadamente da liberdade contratual, eficácia dos contratos e boa fé, interpelam a uma interpretação que não se contenha dentro da literalidade do preceito e se adeque às distintas situações em presença, tratando de forma diversa o que é efetivamente diferente.

Assim, a afirmação de que o administrador pode ser exonerado pela assembleia a qualquer tempo, sem necessidade de invocação de justa causa, não significa sempre que a exoneração sem justa causa não possa dar lugar a indemnização. Por outras palavras, uma coisa é a assembleia dos condóminos poder fazer cessar unilateralmente o mandato conferido ao administrador antes do seu termo, outra é que esse seja uma espécie de poder discricionário que nunca confere à contraparte, independentemente da sua qualidade, o direito a indemnização.

(…)

Com efeito, por exemplo, se o órgão executivo que decide da vida do condomínio, entender exonerar o administrador-condómino, que gratuitamente exerce essas funções, tomando validamente tal deliberação, considerando os seus poderes legalmente conferidos pelo n.º 1 do artigo 1435.º do CC, não se vislumbra que o não possa fazer, quando o entender, sem necessidade de invocar qualquer causa para essa manifestação de vontade e sem que incorra em qualquer obrigação de o indemnizar. Porém, se o administrador não for um condómino, mas antes, como ocorre na espécie, um terceiro ao condomínio, que exerça tais funções por lhe ter sido conferido esse mandato também no seu interesse, então já não cremos que tal princípio se aplique.

Este é, aliás, o ensinamento que colhemos de ARAGÃO SEIA27, quando distingue os casos, enfatizando que “a assembleia pode deliberar livremente a exoneração do administrador-condómino, sem que tenha necessidade de alegar razões para o fazer, o que, convenhamos, não será muito normal. E pode fazê-lo na assembleia convocada para discussão e apreciação das contas como sanção para a má administração efectuada, sem que haja necessidade de a exoneração constar da ordem de trabalho; trata-se de uma sequência da prestação e aprovação ou não das contas.

Quanto ao terceiro, se o mandato tiver sido conferido também no seu interesse – e é-o se se tratar de uma entidade especializada em administração de condomínios que, por isso, aufere remuneração, não pode ser revogado sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa.” (o itálico de destaque é nosso)

Trata-se precisamente da situação que ocorre no caso que nos ocupa, donde não sufragamos o entendimento acolhido na decisão recorrida, a este respeito, tornando-se, por isso, inútil a apreciação da questão da inconstitucionalidade do preceito interpretado no sentido de que a exoneração da administração do condomínio pela assembleia de condóminos, é sempre livre a todo o tempo e não dá lugar a indemnização, ainda que não ocorra justa causa.

In casu, configurando a eleição da empresa autora, que leva a cabo a administração de condomínios profissionalmente, a concomitante celebração de um contrato de prestação de serviços, ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, as disposições sobre o contrato de mandato, na modalidade de mandato oneroso, com representação (artigos 1154.º a 1156.º, 1158.º, n.º 2, todos do CC), contrato que estava vigente à data em que, por carta de 17.06.2019, o condomínio ora recorrido, comunicou à empresa ora recorrente, que por deliberação da assembleia extraordinária de condóminos, reunida no dia 18 de maio de 2019, havia deliberado a exoneração da autora da qualidade de administradora do condomínio, para a qual havia sido eleita pela assembleia de condóminos que teve lugar no dia 14 de dezembro de 2017, para exercer as referidas funções pelo período de cinco anos, com início no dia 1 de janeiro de 2018 e termo a 31 de dezembro de 2021, dúvidas não existem que com aquela exoneração fez cessar o contrato que vinculava ambas as partes unilateralmente antes do respetivo termo28.

Consequentemente, tal como precisa o Conselheiro ARAGÃO SEIA nestas circunstâncias, “a exoneração pode ditar a obrigação de indemnização por parte do condomínio, pelo prejuízo que o terceiro vier a sofrer, nos termos do artigo 1172.º”, mais concretamente da sua alínea d), aplicável se a revogação proceder do mandante, e versar sobre mandato oneroso, sempre que o mandato tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto, ou que seja revogado sem a antecedência conveniente, salvo ocorrendo justa causa, conforme decorre do n.º 2 do artigo 1170.º, ambos do CC.

Na espécie, a autora deduziu a pretensão de lhe serem satisfeitas pelo condomínio réu todas as retribuições que a mesma receberia se continuasse a exercer as suas funções até ao final do mandato, invocando apenas que a sua destituição foi deliberada sem justa causa ou fundamento.

Por seu turno, na contestação, a Ré alegou um conjunto de factos que, a verificarem-se, integrariam a existência da justa causa, que afasta a obrigação de indemnizar a autora.

Sabendo que não é pacífica a questão da distribuição do ónus da alegação e prova da factualidade atinente à existência de justa causa, cremos ser correta a distribuição efetuada pelas partes.

Entende a autora que da ata não consta a factualidade da qual se extraia a existência de justa causa para a destituição.

Porém, não cremos que, na perspetiva que temos da correta distribuição do ónus da prova, nos termos assinalados, tal tenha qualquer relevância.

Com efeito, na ata da assembleia em que destituiu a autora, o condomínio fez constar a referência a que ali foram enunciadas «várias razões pelas quais os condóminos consideram que a atual administração de condomínio deve ser destituída ou exonerada com efeitos imediatos, que se prendem com o não cumprimento dos deveres de informação, de diligência, de acessibilidade, de imparcialidade, de respeito, que impendem sobre a administração de condomínio, bem como os condóminos entendem que as funções da administração não têm sido cumpridas ou prestadas de forma adequada».

Cremos ser bastante, porquanto, aquando da notificação da sua exoneração, a autora ficou a conhecer que o condomínio considerava ter motivos para deliberar a extinção do contrato entre ambos vigente, desde logo pelo segmento final vertido na ata a respeito da avaliação que os condóminos faziam do (pelo menos) defeituoso cumprimento do contrato.

Não se conformando com a imputação genérica efetuada, a Autora, sem qualquer prejuízo para a sua posição jurídica, instaurou a ação com a simples menção acima reproduzida, devolvendo à ré, o ónus de alegação e prova da factualidade integrante da invocada justa causa.

Vejamos, pois, se o réu logrou demonstrar factos que integrem o conceito de justa causa que, sendo um conceito indeterminado exige a aplicação valorativa do caso concreto, encontrando lugar paralelo que aponta o sentido da sua densificação no n.º 3 do artigo 1435.º, devendo, pois, o condomínio aduzir factualidade que demonstre que a administração exonerada praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções.

(…)

In casu, os comportamentos que podem fundar a existência de justa causa dão obviamente anteriores à deliberação, pelo que, com maior relevância, o condomínio réu alegou e provou os factos constantes dos pontos 26, 27, 29 e 30, dos quais decorre que, para além de não ter providenciado pela jardinagem, manutenção e segurança das partes comuns de forma considerada aceitável por parte dos condóminos, ocorrendo a entrada de estranhos do prédio, sem controlo, ainda mais impressivamente, a autora não providenciou pela existência de seguro do prédio, obrigação que, como já vimos sobre si impendia, e que assume a maior relevância, nomeadamente em caso de sinistro (veja-se o que dispõe o artigo 1428.º do CC). Acresce que, durante o período em que administrou o condomínio, a autora calculou as prestações isentando a condómina proprietária das frações designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, e “F” que representam 30,325, e celebrou contratos de trabalho sem termo que não foram aprovados pela assembleia de condóminos, nomeadamente assumindo a antiguidade de empregados, pelo menos, desde 2012, sendo que os mesmos exerciam funções também para os Blocos desde essa data. Significa esta factualidade, não apenas que a autora não cumpriu obrigações que sobre si impendiam (vg. a que decorre da alínea c) do artigo 1436.º, respeitante à verificação da existência do seguro), como extravasou as respetivas funções (cfr. artigos 1430.º e 1436.º do CC), isentando, sem deliberação da assembleia, o pagamento dos encargos de conservação e fruição (artigo 1424.º do CC), devidos por um dos condóminos, que detém mais de 30% da proporção do valor das frações, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 1424.º do CC, e assumindo encargos com a celebração de contratos de trabalho, que igualmente também não foram aprovados pela assembleia de condóminos.

Ora, ao administrador do condomínio estão cometidas as funções elencadas no artigo 1436.º do CC e outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia.

Não lhe tendo esta cometido à administradora assunção dos encargos em causa, que obrigam o condomínio futuramente, nem tendo deliberado a redução da receita, tal como decidida pela administração ao isentar de quotas condómino com tão elevada proporção nas partes comuns, violou de forma grave os deveres legais e contratuais que sobre si impendiam atenta a específica função exercida, de tal forma que não tornou inexigível ao condomínio a manutenção da relação contratual.

Conclui-se, portanto, pela existência de justa causa de exoneração, que constitui facto impeditivo do direito de indemnização invocado pela autora, tornando consequentemente inútil apreciar se a sua alegação era ou não bastante à procedência da pretensão formulada.

(…)»

6.5. Já a sentença do tribunal de 1.ª instância, como esclarece o acórdão recorrido, não se pronunciou sobre a existência ou não de justa causa para a exoneração, pois entendeu que este ato não carece de se basear em justa causa para ser lícito praticá-lo, não tendo por isso surgido na esfera jurídica da administradora de condomínio qualquer direito de indemnização:

«Daqui resulta que compete aos condóminos, reunidos em assembleia (cuja regulação, incluindo quanto ao tempo, está prevista nos arts. 1431.º e 1432.º do Código Civil), decidir a eleição do administrador (neste caso, pelo período de cinco anos), mas também exonerá-lo, sem que a norma exija a necessidade de apresentação de qualquer fundamento.

Considerando que existem regras para a aprovação de uma proposta e convertê-la em deliberação, pode suceder que, não sendo aprovada, qualquer um dos condóminos possa requerer a exoneração do administrador por outra via e aí, em minoria, qualquer condómino pode vir a Tribunal requerer a exoneração judicial do administrador. Só nesta situação é que deve ser demonstrado fundamento para a exoneração, a justa causa, quando se mostre que praticou irregularidades ou agiu com negligência no exercício das suas funções – art. 1433.º, n.º 3.

No caso dos autos, a assembleia deliberou, a deliberação não veio a ser impugnada e, por isso, tem-se como assente, sem que tenha surgido na esfera jurídica do réu a obrigação de indemnizar a autora».

6.6. Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.

Ora, confrontadas as fundamentações de direito das instâncias, verifica-se que ambas se reportam às consequências indemnizatórias do ato de exoneração da administradora de condomínio, tendo ambas decidido pela inexistência de qualquer indemnização.

O tribunal de 1.ª instância baseou essa decisão no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil e na circunstância de ninguém ter impugnado a deliberação de exoneração.

Já o Tribunal da Relação, analisando com mais profundidade a questão, entendeu que a exoneração sem invocação de justa causa não significa sempre que a exoneração não possa dar lugar a indemnização, tendo optado por fundamentar a não concessão de qualquer direito de indemnização à autora na existência de justa causa para a exoneração nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, porque os factos integradores do conceito se encontram provados (pontos 26, 27, 29 e 30 da matéria de facto provada).

Como se admitiu no despacho reclamado a fundamentação das instâncias é parcialmente distinta, pois que a sentença do tribunal de 1.ª instância bastou-se com a não impugnação da deliberação da assembleia de condóminos para que não tenha surgido qualquer indemnização na esfera jurídica da administradora de condomínio, enquanto o Tribunal da Relação exigiu justa causa e considerou que a matéria de facto dada como provada pela sentença integrava este conceito indeterminado.

Mas não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2016, proc. n.º 551/13.7TVPRT.P1.S1).

A lei exige para considerar quebrada a dupla conformidade que essa diferença de fundamentação seja essencial, isto é, que se reporte a institutos jurídicos distintos ou a doutrinas inovatórias. Ora, no caso concreto, não estão em causa institutos jurídicos autónomos, nem normas ou interpretações normativas totalmente diversas. O que sucedeu foi que o acórdão recorrido desenvolveu, em termos doutrinários, a questão da exoneração da administração de condomínio, elencando várias hipóteses de solução e caminhos argumentativos distintos, enquanto a sentença, porque analisou de forma mais sumária a questão doutrinal, prescindiu de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa, a qual, contudo, como afirmou o acórdão recorrido, resultava da matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância.

A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.

6.7. Assim, não pode afirmar-se que estamos perante um acórdão da Relação que «(…)se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância» (cfr. Acórdão 28-05-2015, proc. n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1).

A esta luz, conclui-se que as diferenças assinaladas entre os fundamentos aduzidos pelas instâncias não se consideram essenciais. Não se justifica, pois, a quebra da dupla conformidade.

7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – O aditamento de um ponto à factualidade provada, que não teve reflexo na decisão final, com o objetivo de explicitar o conteúdo de um documento junto aos autos que não foi impugnado, não é apto a descaraterizar a dupla conformidade.

II – Não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme impeditivo do recurso de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que a sentença e o acórdão apresentem fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial.

III – A diferença de fundamentação entre o tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido não é essencial, se o acórdão recorrido decidiu negar a indemnização à autora, por ter entendido que da matéria de facto decorre que houve justa causa de exoneração da administradora de condomínio, nos termos do n.º 3 do artigo 1435.º do Código Civil, e a sentença, prescindindo de qualquer consideração de direito acerca da noção de justa causa (mas tendo fixado os factos integradores do conceito de justa causa), entendeu, com base no n.º 1 do artigo 1435.º do Código Civil, que a exoneração exercida através de deliberação da assembleia geral de condóminos, desde que não impugnada, não faz nascer na esfera jurídica da autora o direito de indemnização.

IV – Para apreender o sentido da fundamentação, é necessário proceder a uma interpretação dos fundamentos da sentença e do acórdão recorrido.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e confirmar o despacho reclamado.

Custas pela reclamante.

Lisboa, 19 de dezembro de 2023

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Jorge Leal (1.º Adjunto)

Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)