Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22020/23.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMIDIO SANTOS
Descritores: AÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
GARANTIA
DIREITOS DO CONSUMIDOR
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE ADESÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PRAZO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 04/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Não é de indeferir a petição de acção popular com o fundamento de que é manifestamente improvável a procedência do pedido, quando um dos fundamentos da acção é constituído por um documento da ré, que contém a política de garantia dela para equipamento recondicionado e dele decorre que tal política é menos vantajosa para os consumidores do que o regime previsto no n.º 1 e na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18-10-2021
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association, com sede na Praceta Entre Muros, 42 rés-do-chão, direito, freguesia de Canidelo, concelho de Vila Nova de Gaia, propôs a presente acção popular contra ISERVICES, Lda, sede na Avenida Infante Dom Henrique, 238, cave B, Freguesia Parque das Nações, 1800-223 Lisboa, pedindo:

A. Se declarasse que a ré teve o comportamento descrito no §3 da petição;

B. Se declarasse que violou qualquer uma das seguintes normas:

1. dos artigos 12 (1) e 13 (1), do decreto-lei 84/2021;

2. dos artigos 3 (a) (e) (f), 4 e 9 (1) da lei 24/96;

3. dos artigos 12 e 15, do decreto-lei 446/85;

4. dos artigos 473 e 483, do Código Civil (“CC”);

5. dos artigos 10 (1) e 11 (1), da diretiva (UE) 2019/771;

6. do artigo 3, da diretiva 93/13/CE.

C. Se declarasse que teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e

1. doloso; ou, pelo menos,

2. grosseiramente negligente;

D. Se declarasse que agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos suprarreferidos, com os autores populares;

E. Se declarasse que, com a totalidade ou parte desses comportamentos, lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;

F. Se declarasse que causou danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços e, em consequência,

G. Se condenasse a ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas nos últimos dois anos (a contar da entrada da ação em juízo) e no que respeita à redução do prazo da garantia, em montante global:

1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas, até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

H. Subsidiariamente ao ponto anterior, se condenasse a ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita à redução do prazo da garantia, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 20 % da sua faturação anual, desde 20.09.2021;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares nos termos da alínea anterior;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

I. Subsidiariamente ao ponto anterior, se condenasse a ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita à redução do prazo da garantia, em montante global a apurar em liquidação de sentença, caso tais danos não possam de imediato serem apurados.

J. Se condenasse a ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca inferior a 10 euros por autor popular;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

K. Se condenasse a ré a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

1. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;

2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;

L. Se condenasse a ré a pagar todos os encargos que a autora representante da classe tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora representante da classe;

M. porque o artigo 22 (2), da Lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora representante da classe neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes;

N. Subsidiariamente, e nos termos do §4 (j): comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pela redução do prazo da garantia, tal como sustentando em § 4 (j) supra. em qualquer caso, deve:

O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou em qualquer caso, deve:

P. Serem declaradas nulas as cláusulas contratuais que eliminam a garantia ou a reduzem de três anos para um ano para bens como as baterias e carregadores.

Requereu ainda:

Q. Se decidisse relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

R. Se decidisse relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;

S. Se publicasse a decisão transitadas em julgado, a expensas da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;

T. Se declarasse que a autora, representante da classe, tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;

U. Se declarasse, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;

V. Se declarasse uma remuneração, com uma taxa anual de 5% sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;

W. Se declarasse que a autora, representante da classe, tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.

Para o efeito alegou em síntese:

• A ré dedica-se comercialmente à reparação de telemóveis, tablets, computadores e smartwatches;

• Todos esses produtos reparados pela ré têm baterias;

• No seu sítio da internet e nas suas lojas, a ré informa sobre o prazo de garantia de conformidade dos bens constante no Decreto-Lei 84/2021, tal como imposto pelo artigo 4 (s), do Dcreto-Lei 24/2014;

• Sendo no caso das baterias de iPhones, MacBooks, iPads e Apple Watch recondicionados pela ré, esta reduz o prazo de garantia previsto no artigo 10 (1), da diretiva (EU) 2019/771 e do artigo 12 (1), do decreto-lei 84/2021, de três anos para um ano;

• Sendo que, no caso das restantes baterias e no caso de carregadores, a ré recusa-se a dar garantia prevista no artigo 10 (1), da diretiva;

• O comportamento da ré descrito no número anterior é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, os aqui autores populares, e que consubstancia numa violação dos direitos dos consumidores na compra de bens, e numa prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzem, de modo secante, na defesa do consumidor.

• Nos termos do artigo 51 (1), do Decreto-Lei 84/2021, é nulo o acordo, informação ou cláusula contratual pelo qual se reduza o prazo de garantia estabelecido no artigo 12 (1), do Decreto-Lei n.º 84/2021;

• No ordenamento jurídico interno, o comportamento da ré é violador: dos artigos 12 (1) e 13 (1), do decreto-lei 84/2021; dos artigos 3 (a) (e) (f), 4 e 9 (1) da lei 24/96; dos artigos 12 e 15, do decreto-lei 446/85; dos artigos 473 e 483, do Código Civil (“CC”).

• O comportamento da ré viola o seguinte direito da União Europeia: artigos 10 (1) e 11 (1), da diretiva (UE) 2019/771; artigo 3, da diretiva 93/13/CE; diretiva 2014/104/UE – quanto às regras que regem às ações de indemnização por infração do direito da concorrência;

• Por sua vez, os autores populares têm direito à reparação integral dos danos sofridos por violações de tais regras quer nos termos das supra aludidas normas, como nos termos gerais do direito, designadamente, à luz dos artigos 227, 334, 483, 487, 496 e 798 do CC, do artigo 12 (1), da lei 24/96, e da diretiva 2014/104/UE.

A Meritíssima juíza da 1.ª instância indeferiu a petição por entender que era manifestamente improvável a procedência do pedido e condenou a autora nas custas, que fixou em 2/10 das que normalmente seriam devidas, nos termos do artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto.

Apelação

A autora interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão e a remessa dos autos à 1.ª instância, a fim de a acção prosseguir aí os seus termos.

O tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 7-11-2024, julgou improcedente a apelação e, em consequência, manteve o despacho recorrido e condenou a recorrente nas custas do recurso de apelação, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), e n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais.

Revista

A autora não se conformou com o acórdão, tanto na parte relativa à decisão sobre custas, como na que confirmou a decisão de indeferimento da petição, e interpôs recurso de revista excepcional ao abrigo do artigo 672.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e c), do CPC.

A revista excepcional foi admitida por acórdão proferido em 12-02-2025, restrita à questão de saber qual a interpretação a dar ao documento 3 junto com a petição inicial, respeitante à política de garantias da ali ré.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O tribunal a quo, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu julgar improcedente a ação, indeferindo a mesma, por considerar ser manifestamente improvável a procedência do pedido (cf. artigo 13 da Lei 83/95).

2. Tal juízo liminar, de primeira instância, foi sustentado no entendimento que a ação é manifestamente improvável de ser viável por se não verificarem os pressupostos da proposta ação popular. Isto porque entendeu que a Política de Garantia dos Equipamentos Recondicionados da ré, escrita e disponibilizada ao público, onde consta a redução da garantia legal de três anos para um ano, no caso das baterias recondicionadas, é uma mera informação e que por isso não vincula a ré e concomitantemente não se pode considerar, enquadrada ou qualificar com sendo um acordo ou uma cláusula contratual. Deste modo, entende o tribunal de primeira instância que os efeitos negativos de tal declaração, podem ser questionados por cada consumidor individualmente e, se necessário, acionando individualmente a ré em cada situação concreta, pondo então em causa a homogeneidade dos interesses da classe.

3. O tribunal a quo sindicou tal entendimento da primeira instância

4. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu sem o acerto e ponderação que se lhe exigia o caso sub judice.

5. Da mesma forma o tribunal a quo entendeu,

6. As questões a resolver circunscrevem-se a saber se:

a. se a Política de Garantia de Equipamentos Recondicionados iServices que reduz a garantia legal de três anos para um ano no caso de baterias é uma informação prestada ao consumidor sem vincular o declarante e, por isso, não representa uma compressão dos direitos dos consumidores à garantia legal;

b. Se, face a uma leitura total e global do documento que suporta a presente ação, não se pode concluir que a dita informação reduz a garantia legal de três anos para um ano;

c. se são devidas custas em caso de indeferimento liminar da petição inicial por o tribunal entender ser manifestamente improvável a procedência do pedido.

7. Importa também saber se a declaração em causa é ou não uma cláusula contratual geral que, por contraria à lei, deve ser declarada nula.

8. O tribunal de primeira instância não deu como provados ou não provados quaisquer factos provados, baseando-se no entendimento de que, na fase de indeferimento liminar da petição inicial, tal é dispensável. No entanto, um olhar mais atento, permite verificar que a sentença deu como “provado”, ou pelo menos verificado, que a Política de Garantia de Equipamentos Recondicionados da iServices não reduz o prazo de garantia legal para as baterias, com base na análise integral do documento relevante – embora tal resulte de uma interpretação de direito, secundada pelo recorrido, e que por isso, como o devido respeito, se ataca neste recurso de revista.

9. Em jeito conclusivo, sempre se dirá que o documento 3 junto com a petição inicial, relativamente a política de garantias da ré, é claro quando declara que a garantia dos produtos recondicionados comercializados pela ré é de 3 anos após a compra, exceto para baterias recondicionadas que têm apenas 1 ano de garantia.

10. Sendo que as definições finais no documento 3, alinhadas com o Decreto-Lei 84/2001, não alteram a interpretação de que as baterias estão excluídas da garantia após um ano sobre a sua compra, pois era essa a interpretação que um consumidor médio, baseado na declaração ali constante, entenderia.

11. Em resumo, a declaração da ré leva os consumidores a não exercerem seus direitos à garantia, especialmente no que diz respeito às baterias após um ano da compra.

12. Vinculação Contratual da Declaração de Garantia: a Política de Garantia de Equipamentos Recondicionados da ré, que reduz a garantia legal de três anos para um ano no caso de baterias, é considerada vinculativa segundo as diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2011/83/UE. As informações sobre garantias fornecidas aos consumidores devem ser consideradas parte dos termos do contrato de venda.

13. De acordo com os artigos 2 (12) e 17 da diretiva 2019/771, qualquer informação fornecida sobre a garantia comercial torna-se um compromisso do vendedor e é interpretada como parte integrante do contrato.

14. Sob a ótica do direito interno, a declaração em questão é uma declaração negocial expressa, válida nos termos do artigo 219 do CC, e torna-se eficaz conforme o artigo 224 (1) do mesmo código.

15. Mesmo sendo uma informação publicitária, a declaração enquadra-se no âmbito do artigo 3 do Decreto-Lei 330/90, sendo igualmente vinculativa e a sua violação pode resultar inclusivamente resultar em responsabilidade civil nos termos do artigo 30 do mesmo Decreto-Lei.

16. A política de garantia da ré, conforme declarado, efetivamente comprime os direitos dos consumidores, limitando indevidamente o período de garantia estabelecido por norma legal imperativa.

17. Neste exato sentido vai o douto acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, processo 8086/23.3T8LSB.I1.s1, tratado em 5.1. supra, que aqui se dá como reproduzido.

18. O processo 8086/23.T8LSB.I1.s1, é uma cópia perfeita do presente, onde praticamente se altera apenas a sociedade ré e, eventualmente os autores populares.

19. Declaração de Nulidade da Cláusula: argumenta-se pela declaração de nulidade da cláusula que limita a garantia das baterias, com base na imperatividade do direito à garantia legal estabelecido no decreto-lei 84/2001 e na natureza do contrato de garantia como contrato de adesão, nos termos do §6, que aqui se dá como reproduzido por uma questão de proficiência.

A ré respondeu, sustentando a confirmação da decisão recorrida. Os fundamentos expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O recurso de revista não é idóneo à reapreciação da matéria de facto, nem a revista excepcional concretamente requerida pela Autora, a ser admitida, tem ou pode ter esse objecto, pelo que tal questão é impertinente nesta sede e não poderia nunca ser aqui conhecida, se de verdadeira questão de facto se tratasse.

2. De todo o modo, a pretensão da Autora de que se dê como provados factos para efeitos do despacho de indeferimento liminar não tem qualquer fundamento, desde logo porque, tendo o douto despacho recorrido a natureza de um despacho liminar proferido ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Lei da Acção Popular, não cabe fixar neste despacho a matéria da causa mas antes apurar, em face da alegação da Autora, se da mesma poderia, num juízo de probabilidade razoável, resultar a procedência do pedido

3. Ainda que assim não fosse, a matéria que a Autora pretende que se dê liminarmente como provada — saber se da “Política de Garantia dos Equipamentos Recondicionados iServices” anunciada no site da Ré resulta um efeito vinculante em matéria de prazos de garantia e se esse efeito é o de redução do prazo de garantia contratual face ao previsto em determinado diploma legal — não tem a natureza de um facto mas de uma conclusão de Direito e, por isso, sempre teria de estar arredada de uma suposta fundamentação de facto do douto despacho recorrido.

4. A Autora procura sustentar na sua alegação a tese de que o Documento n.º 3 junto com a petição inicial constitui declaração vinculante que reduz o prazo legal de garantia no caso das baterias de iPhone, MacBook, iPad e Apple Watch recondicionados pela Ré e que, por isso, não se verificaria a manifesta improbabilidade de procedência da acção que esteve na base do indeferimento liminar, mas também aqui, ressalvado o devido respeito, se verifica que a Autora não acerta com aquilo que é realmente o fundamento da decisão de indeferimento liminar.

5. A acção proposta pela Autora é uma acção que assenta na suposta redução, nuns casos, e exclusão, noutros, da garantia que é prestada pela Recorrida aos seus clientes na venda de baterias e carregadores de telemóveis, tablets, computadores e smartwatches, por referência ao prazo mínimo de garantia que seria imposto por lei, pelo que o que estaria em causa seria uma alegada prática contratual ilegal por parte da Ré.

6. Ora, verifica-se que a Autora, ao alegar na petição inicial a factualidade destinada a integrar a causa de pedir da acção, não invoca factos concretos que revelem que na prática contratual da Ré ocorra a alegada redução ou eliminação do prazo de garantia legal.

7. A Autora, na petição inicial, não se reporta nem alude a quaisquer contratos de compra e venda celebrados entre a Ré e consumidores, seus Clientes, que pudessem dar corpo à alegação da existência de uma prática contratual no sentido da redução ou eliminação do prazo de garantia legal dos produtos comercializados, e também não alega, sequer, que o conteúdo dos contratos integre efectivamente cláusulas violadoras das disposições legais que invoca em seu apoio.

8. Não tendo a Autora dado satisfação ao ónus que sobre si recaía de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, e de os alegar em termos que permitam, se provados tais factos, conduzir à procedência da acção, é manifesto que a acção não deve prosseguir, porque não existe qualquer probabilidade séria de ela poder ser julgada procedente.

9. Foi esse o juízo feito no acórdão recorrido: o Tribunal analisou os fundamentos de facto constantes da petição inicial — que assentam essencialmente na existência de uma informação constante do site da Ré, parcialmente transcrita na petição inicial e no Documento n.º 3 da petição inicial —, e concluiu que este não revelava a alegação da existência de qualquer contrato com imposição de uma redução ou exclusão de garantias alegadamente ilegal.

10. Assim, bem vista a decisão recorrida, o ponto discutido pela Recorrente, de saber se da informação parcialmente reproduzida no Documento n.º 3 resulta ou não uma declaração de redução do prazo legal de garantia, não é, efectivamente, relevante ou pelo menos essencial para essa decisão — sem prejuízo de, como bem se demonstra no despacho recorrido, a análise do teor integral dessa informação infirmar até as acusações da Recorrente.

11. O que é essencial e decisivo é, antes, a constatação que é feita no despacho de indeferimento liminar e no acórdão recorrido, de que a acção, assentando unicamente na informação contida no mencionado Documento n.º 3, não dispõe de uma base factual integradora da sua causa de pedir que, ainda que provada, pudesse servir de base à procedência dos pedidos.

12. Como se viu já em sede de refutação da admissibilidade do recurso como revista excepcional, o indeferimento liminar é também fundamentado, no douto acórdão recorrido, na constatação de não serem alegados, na petição inicial, factos que pudessem servir de base à demonstração da existência de danos imputáveis à conduta da Ré e que pudessem suportar o pedido de condenação em indemnização formulado na presente acção.

13. Não se percebe bem o que pretende a Autora ao levantar a questão da pretensa nulidade da declaração constante do Doc. n.º 3 neste recurso, uma vez que o que está nele em causa é apenas a apreciação da decisão de confirmação do indeferimento liminar da petição inicial e a condenação em custas e não a apreciação do fundo da causa.

14. De todo o modo, e como bem se afirma no despacho proferido em Primeira Instância, a Autora não invocou na acção qualquer cláusula contratual que pudesse ser sindicada quanto à sua validade à luz do estabelecido no regime do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, ou no regime de controlo das cláusulas contratuais gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.

15. A Autora limitou-se a invocar, como fundamento da acção, a informação parcialmente transcrita na petição inicial e no Documento n.º 3 da petição inicial, mas esta não constitui uma cláusula inserida num contrato nem sequer contém uma cláusula contratual geral que o Tribunal pudesse apreciar.


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Questão suscitada pelo recurso:

Como resulta do acima exposto, a revista excepcional foi admitida pela formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC restrita à interpretação a dar ao documento 3 junto com a petição inicial, respeitante à política de garantias da ali ré.


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Factos relevantes para a decisão do recurso:

Com a petição inicial a autora Citizens’ Voice Consumer Advocacy Association e Autores Populares juntou o documento nº 3 com o seguinte teor:

Garantia, Trocas e Devoluções

Política de Garantia dos Equipamentos Recondicionados iServices

Todos os produtos comercializados na iServices incluem uma garantia standard limitada ao abrigo do DL n.º 84/2021, de 21 de Outubro. Os iPhones, MacBooks, iPads e Apple Watch Recondicionados da iServices estão cobertos por garantia limitada de até 3 anos, exceto baterias (1 ano de garantia).

O período da garantia tem início na data de compra. A fatura de compra original (recibo de venda), que inclui a data de compra, serve como prova de compra e garantia. Esta garantia cobre os encargos com peças de substituição e mão-de-obra necessários para restabelecer o bom funcionamento do equipamento.

A Garantia Limitada não abrange:

Danos causados por água ou humidade, descargas eléctricas, pancadas e/ou quedas, danos físicos, ecrã partido, capa traseira partida, rachada ou torta.

Danos cosméticos, como por exemplo, riscos e amolgadelas, teclas e símbolos das teclas arranhados, apagados ou descolorados, tampas e componentes de plástico, ou danos causados por má utilização, como por exemplo LCD partido ou manchas causadas por produtos abrasivos ou à base de álcool, ou marcas de pressão.

Defeitos causados por desgaste normal (ex: riscos no ecrã, folgas, folgas em conectores usb, entradas de alimentação).

Se o produto foi alterado, reparado e/ou modificado (incluindo ampliações) por pessoas não autorizadas.

Intervenção por conta própria (incluindo ampliações) ou de terceiros e/ou reparações realizadas por técnicos não autorizados. As avarias e as consequências relacionadas à intervenção de uma empresa, ou conta própria, não autorizada pela iServices, reparação ou tentativa de reparação, intervenção técnica por pessoas ou centros de reparação, alheias ao Departamento Técnico e os serviços iServices.

Se o número de serie do equipamento (IMEI), portátil, componentes ou acessórios forem alterados, cancelados ou removidos, ou tornados ilegíveis.

Se o selo de garantia estiver rasgado ou alterado, qualquer equipamento ou peças do mesmo cujas etiquetas ou números de série tenham sido modificados ou tornados ilegíveis;

Se há um dano causado por uma falha eléctrica externa, acidente, desastre natural, mau uso intencional ou acidental, abuso, negligência ou manutenção imprópria, ou uso sob condições anormais, em virtude da utilização do Equipamento para outro fim que não a sua utilização normal

Se há um dano causado por uma instalação indevida ou uma conexão incorrecta a um dispositivo periférico (impressora, leitor óptico, etc).

Reparação de danos resultantes de uma causa externa ao aparelho (por exemplo, um acidente, choque, flutuação de corrente, oxidação, presença de areia, etc).

Alteração, por motivos estéticos, de componentes, chassi e display não autorizadas pela iServices.

Danos causados por transporte efectuado pelo Cliente, ou terceiros em sua representação.

A utilização nociva à conservação do aparelho.

Instalação imprópria de software, e actualizações mal efectuadas ou não efectuadas quando o sistema operativo assim o solicita, mau funcionamento de software terceiro;

Se há dano ou perda de qualquer programa, dados ou armazenamento removível, ou se há custos de recuperação de dados ou programas.

Infecções por vírus informáticos, instalação e utilização de software não fornecido ou incorrectamente instalado. Desgaste normal e natural de produtos, incluindo consumíveis, peças que exigem uma substituição periódica durante a utilização normal do equipamento ou cuja vida útil possa ser inferior à duração da Garantia Limitada, incluindo, sem qualquer tipo de limitação, as baterias, carregadores ou peças e acessórios específicos ao visual do equipamento.

Por questões de higiene, não são aceites auriculares.

O cliente poderá proceder à troca/devolução dos produtos adquiridos, num prazo máximo de 14 dias após a recepção dos equipamentos desde que:

Os produtos não tenham sido utilizados.

Os dispositivos mantenham as suas características originais e etiquetas intactas.

Os produtos se encontrem completos. Todo o material (equipamento adquirido e acessórios, como por exemplo o carregador) que acompanha a encomenda deve ser devolvido, juntamente com a fatura.

O equipamento não deverá apresentar qualquer dano causado pela má utilização do mesmo e deverá estar formatado com as definições de origem do dispositivo (sem código de desbloqueio e/ou iCloud desativa, no caso dos smartphones recondicionados).

O Cliente deverá solicitar a devolução da encomenda ou dos serviços de garantia através do e-mail lojaonline@iservices.pt indicando o(s) artigo(s) que quer devolver ou reparar, assim como o número ou referência da encomenda.

Após a receção do equipamento, a equipa especializada de técnicos da iServices irá realizar um conjunto de testes, de forma a apurar o estado de conservação do dispositivo. Caso se verifique o cumprimento de todos os requisitos, anteriormente mencionados, a iServices poderá proceder das seguintes formas:

Realizar o reembolso, no prazo de 10 (dez) dias úteis, os montantes pagos, através do mesmo método de pagamento anteriormente utilizado pelo cliente.

Proceder à troca do dispositivo, caso surja algum problema com o equipamento, que não seja da responsabilidade do utilizador.

Reparação do dispositivo, sem quaisquer custos adicionais, dos elementos protegidos pela bateria.

A iServices reserva-se ao direito de não aceitar a devolução e de recusar o reembolso dos mesmos nos seguintes casos

Caso os artigos devolvidos estejam danificados, com marcas de uso ou gastos.

Cujo Serial Number já tenha sido registado/associado a uma conta de utilizador. A iServices não se responsabiliza por quaisquer danos resultantes de manuseamento inadequado, utilização indevida, negligências, desgaste por utilização habitual uma vez que este tipo de incidências não estão incluídas na garantia e anulam a mesma.

Estas condições são válidas para devoluções e trocas em Portugal.

Política de Entrega Pré-Reparação

A iServices aconselha sempre a salvaguardar os seus dados antes de qualquer reparação realizada nas nossas instalações.

Consulte a nossa política de pré-reparação.


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DEFINIÇÕES:

Equipamento Novo: 3 Anos de garantia limitada de acordo DL n.º 84/2021, de 21 de Outubro.

Equipamento Seminovo ou Usado: 2 Anos de garantia limitada de acordo DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro.

Equipamento Recondicionado: 3 Anos de garantia limitada de acordo DL n.º 84/2021, de 21 de Outubro.

(Definições ao abrigo do DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro).


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Resolução da questão:

Como se escreveu acima, a questão que levou a formação a admitir a revista excepcional foi a da interpretação do documento junto com a petição inicial, sob o n.º 3, respeitante à política de garantias da ré, ora recorrida.

Ao dizer que a interpretação respeita à política de garantias da ré, quis significar que não estava em causa a interpretação de todo o documento, pois este diz respeito não só à política de garantia, mas também à política de troca e devoluções.

E dentro da política de garantia da ré, o que está em causa no presente recurso é apenas a interpretação da política de garantia em relação a alguns equipamentos recondicionados. Mais concretamente, está em causa a interpretação do documento na parte onde é declarado pela ré o seguinte: “Todos os produtos comercializados na iServices incluem uma garantia standard limitada ao abrigo do DL n.º 84/2021, de 21 de Outubro. Os iPhones, MacBooks, iPads e Apple Watch Recondicionados da iServices estão cobertos por garantia limitada de até 3 anos, exceto baterias (1 ano de garantia)”. É esta parte final [exceto baterias (1 ano de garantia)] que está em causa.

Cabe dizer que, no recurso não está apenas em questão o sentido e alcance do trecho acima transcrito. Como se assinala no acórdão da formação, discute-se ainda “... se a política de garantias veiculada pela ré na sua página de internet, na qual se opera uma redução de garantias dos consumidores, pode considerar-se ilegal”.

O acórdão sob recurso, pronunciando-se sobre o sentido e o valor do documento n.º 3, afirmou o seguinte:

• O documento n.º 3 que servia de base à acção constituía uma informação retirada de uma página da internet que se referia a garantias, trocas e devoluções ou publicidade dos serviços da ré, que não vinculava esta última, na medida em que não existia qualquer declaração negocial, qualquer contrato ou compromisso do qual resulte a imposição de uma política quanto a garantias, trocas e devolução dos produtos por si comercializados;

• Mesmo que estivesse em causa uma publicidade ilícita (nos termos do art.º 12º do DL 330/90), sempre teriam de estar alegados os eventuais danos decorrentes da mesma, passíveis de indemnização (ao abrigo do art.º 30º do mesmo DL), o que não acontece nos autos;

• A informação constante do documento n.º 3 não reduzia a garantia legal de 3 anos para um ano no caso das baterias recondicionadas, nem impedia os consumidores de exercerem os seus direitos à garantia no caso das baterias com mais de um ano e menos de três;

• Qualquer cliente, exposto à referida informação ou publicidade podia livremente, caso não concordasse com tal política de garantia oferecida pela Ré, optar, simplesmente, por não contratar com a Ré;

• Não fazia sentido invocar a violação do artigo 51.º do DL 84/2021, que refere claramente acordo ou cláusula contratual pelo qual se excluam ou limitem os direitos do consumidor” previstos no Decreto-Lei, nem tão pouco ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85 de 25 de Outubro);

• Na acção não estava alegada a celebração de qualquer contrato pelo que a referida informação veiculada pela ré, na sua página da internet, não configurava uma cláusula contratual geral referente á garantia de qualquer um dos produtos comercializados pela ré, não podendo proceder a nulidade da cláusula em questão.

Com base nesta fundamentação, confirmou a decisão da 1.ª instância, que entendera que era manifestamente improvável a procedência dos pedidos.

A recorrente opõe-se a esta fundamentação com a seguinte linha argumentativa:

• A informação constante do documento n.º 3 sobre direitos de garantia é de considerar vinculativa e faz parte do contrato face ao disposto nos artigos 2.º e 17.º Directiva (UE) 2019/771;

• À luz do direito interno, a informação constante do documento é de considerar como declaração negocial, como decorre do artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que a mesma vincula o declarante e torna-se eficaz nos termos do artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil;

• Ainda que se considere que a mesma é uma mera informação publicitária que entre no conceito do artigo 3.º do Decreto-lei n.º 330/90, ela também é vinculativa.

• Além disso seria proibida nos termos do artigo 12.º do mencionado Decreto-Lei porque atenta contra o direito dos consumidores, nomeadamente o direito à garantia;

• Que no caso de publicidade ilícita, o que seria o caso, os danos que resultassem da mesma seriam passíveis de indemnização nos termos do artigo 30.º do mesmo diploma;

• A declaração constante do documento n.º 3 comprime os direitos dos consumidores ao reduzir a garantia legal de três anos para um ano no caso das baterias recondicionadas. Tal informação impede-os de exercerem o seu direito à garantia no caso das baterias com mais de um ano e menos de três, sejam os consumidores que tentam exercer a garantia junto da ré são confrontados com essa política, seja os que se confrontam com essa declaração na página da ré e nem tentam exercer o seu direito á garantia, conformando-se com a má sorte de terem comprado à ré.

• A declaração que consta do documento n.º 3 não se pode afastar de um verdadeiro contrato, na modalidade de adesão e naquele tipo e cláusulas contratuais gerais, aqui referente à garantia, ainda que o mesmo não tenha sido subscrito pelos autores populares;

• Tal cláusula é proibida nos termos da aplicação conjunta dos artigos 15 e 16 do Decreto-Lei n.º 446/85, conjugado com o artigo 19, alínea d).

O recurso é de julgar procedente.

Em primeiro lugar, no entender deste tribunal, o documento n.º 3, na parte em que se refere à política de garantia da ré em relação às baterias recondicionadas é de interpretar no sentido que lhe é dado pela recorrente, ou seja, a garantia das baterias recondicionadas comercializadas pela ré é de um ano. Vejamos.

Na interpretação do documento, é de atender fundamentalmente a duas regras:

À regra do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, segundo a qual “a declaração negocial vale com um sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

E à regra do n.º 1 do artigo 238.º do mesmo diploma, segundo a qual nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Considerando a 1.ª regra e a circunstância de o documento se referir, em duas partes, à garantia sobre equipamentos recondicionados – uma, logo no início, reservada especificamente à política de garantia, e outra, na parte final, relativa a definições -, cabe perguntar a que parte é que um declaratário normal, ou seja, nas palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto, “pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário..” (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, Coimbra Editora, página 444), que consultasse tal informação para ficar a saber qual era a prática da ré, em matéria de garantia de equipamentos recondicionados, daria relevância. Seria à parte reservada especificamente à política de garantia? Ou seria à parte que continha a definição de equipamento recondicionado?

A resposta afigura-se-nos inequívoca. Seria à parte que versa especificamente sobre a garantia. E de acordo com ela, as baterias recondicionadas comercializadas pela ré estão cobertas pela garantia de um ano.

Logo, o sentido a dar ao documento, na parte relativa à política de garantia de baterias recondicionadas comercializadas pela ré, é o de que esta só respondia por qualquer falta de conformidade que se manifestasse no prazo de um ano a contar da data da compra, pois nesse mesmo documento a ré declara que o período de garantia tem início na data da compra.

Em segundo lugar, a política de garantia em relação às baterias recondicionadas ofende os direitos dos consumidores. Vejamos.

O documento n.º 3 é de qualificar como informação pré-contratual pública sobre a política de garantias dos equipamentos recondicionados IServices, trocas e devoluções. Os seus destinatários são os consumidores interessados nos serviços prestados pela ora recorrida.

Como sustenta a recorrente, a informação pré-contratual sobre a política de garantia da ré, no que diz respeito às baterias recondicionadas, oferece condições menos vantajosas para os consumidores do que as previstas na lei. Com efeito, enquanto decorre do n.º 1 e da 2.ª parte do n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-lei n.º 84/2021 que, nos contratos de compra e venda de bens recondicionados, o profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem, de acordo com a informação pré-contratual da ré, ora recorrida, esta só assume a responsabilidade por qualquer falta de conformidade das baterias recondicionadas que se manifeste dentro do prazo de um ano a contar da venda do bem.

É patente, pois, que a informação pré-contratual em causa é menos vantajosa para os consumidores do que o regime legal. E sendo menos vantajosa do que o regime legal, é de afirmar, à semelhança do que sucede com o acordo ou cláusula contratual pelo qual se se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no citado decreto-lei, que tal informação é nula (n.º 1 do artigo 51.º do Decreto-lei n.º 84/2021. Isto é, a ré, ora recorrida, não se pode prevalecer dela para se eximir ao cumprimento da responsabilidade prevista no n.º 1 e da 2.ª parte do n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-lei n.º 84/2021.

Contendo o documento n.º 3 informação pré-contratual desrespeitadora dos direitos dos consumidores e constituindo esse mesmo documento um dos fundamentos da presente acção popular, que visa, além do mais, prevenir e fazer cessar infracções aos direitos dos consumidores e obter indemnização para o lesado ou lesados com tais infracções (n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 1.º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 83/95, de 31-08-1995, não se pode afirmar na fase inicial do processo que é manifestamente improvável a procedência de todos os pedidos.

Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e substitui-se o mesmo por decisão a ordenar o prosseguimento do processo.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrida ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Lisboa, 3 de Abril de 2025

Relator: Emídio Santos

1.º Adjunto: Orlando dos Santos Nascimento

2.º Adjunto: Ana Paula Lobo