Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22/98.0GBVRS.E2.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: RECURSO PENAL
IN DUBIO PRO REO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
HOMICÍDIO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
CO-ARGUIDO
DIREITO AO SILÊNCIO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 12/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROVA / MEIOS DE PROVA / RECONSTITUIÇÃO DO FACTO – JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / PRODUÇÃO DE PROVA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSOS PERANTE AS RELAÇÕES / PODERES DE COGNIÇÃO.
Doutrina:
- Eurico Balbino Duarte, Making Of – A Reconstituição do Facto no Processo Penal Português, em Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, 2.ª reimp., p. 12;
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 213;
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 5.ª ed., p. 159;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4.º ed., p. 519.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 150.º, 345.º, N.º 4, 356.º, N.º 7, 357.º, N.º 2, 410.º, N.º 2, 427.º E 428.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 32.º, N.ºS 1 E 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 27-02-2014, PROCESSO N.º 1572/11.0JAPRT.P1;
- DE 10-04-2014, PROCESSO N.º 431/10.8GAPRD.P1.S1.
Sumário :
I - O princípio in dubio por reo, além de constituir uma garantia subjectiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Constitui também jurisprudência uniforme que a apreciação de tal princípio respeita à matéria de facto, à Relação competindo, em última instancia, o respectivo julgamento e não ao STJ (art. 427.º e 428.º, ambos do CPP). O STJ só pode sindicar a sua aplicação quando a dúvida resulte evidente da decisão recorrida em termos idênticos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, quando for possível concluir que, tendo o tribunal ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

II - Face ao texto do acórdão recorrido e da motivação da sua convicção, não resulta, por si ou em conjugação com as regras da experiencia comum, que o processo decisório do tribunal desembocou num estado de dúvida.

III – Quanto aos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP tratam-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, à partida subtraídos à alegação do recorrente para este STJ e, por isso, também fora dos seus poderes de cognição, sem prejuízo, é certo, de deles poder conhecer oficiosamente se a partir do próprio texto da decisão constituírem entrava à decisão de direito.

IV – O vício do erro notório na apreciação da prova trata-se de um vício caracterizado por uma incompatibilidade evidente e manifesta entre o facto e a realidade, vício de tal modo patente, ostensivo ou clamoroso, que não escapa à observação de um homem de formação média, de tal forma que resulte para o tribunal de recurso que a prova foi mal apreciada, erro esse que deve resultar do próprio texto da decisão (2.ª parte do n.º 2 do art. 410.º do CPP) e não da apreciação da prova recolhida que, não se tratando de prova vinculada, está fora do poder de cognição do STJ.

V - Da motivação do recurso não se identifica nenhum erro notório, antes de que o recorrente discorda é de uma errada valoração da prova, determinada a partir do reexame das provas pela Relação e das presunções e ilações extraídas, com destaques para as reconstituições do facto em que intervieram os co-arguidos C e L e depoimentos e declarações prestadas sobre o modo como tais diligências decorreram.

VI - A reconstituição do facto está sistematicamente autonomizado como um dos meios de prova típicos no art. 150.º do CPP. Contrariamente à generalidade dos demais meios de prova, a reconstituição não tem por finalidade imediata, pelo menos em regra, a comprovação de um facto histórico, antes de verificar se um determinado facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e na forma em que terá sido executado. Trata-se de um modo de testar uma dada hipótese factual e se os seus resultados corroborarem o sentido da investigação de acordo com as provas e indícios até então obtidos tal não significa que o facto aconteceu efectivamente dessa forma, tão-somente que a hipótese em causa é plausível, verosímil.

VII - A reconstituição tem, pois, natureza experimental, de confirmação ou infirmação de determinadas hipóteses factuais sendo a sua finalidade testar, pôr à prova, o que se diz ou pensa ter ocorrido. Observando os autos de reconstituição deles facilmente se conclui que a coberto das explicações dadas todo o seu teor se traduz, não em reconstituição do facto por forma a determinar se os factos relacionados com o homicídio poderiam ter ocorrido de certa forma, mas em declarações de um e outro arguido interveniente, mais ou menos coincidentes sobre locais, percursos e acontecimentos, neles envolvendo o outro arguido, enquanto autor material dos disparos sobre a vítima.

VIII - O conteúdo dos autos de reconstituição não passam, na essencialidade, de declarações de arguidos, auto-incriminatórias de determinados factos e de incriminação para co-arguido que em tais diligências não participou. As declarações, a que materialmente e em substância os autos de reconstituição se reconduzem, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos arts. 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, ambos do CPP.

IX - À semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art. 345.º do CPP e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento, e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.

X - Assim impõe-se que o tribunal recorrido reaprecie os termos da causa sem valoração dos mencionados “autos de reconstituição” e dos depoimentos prestados sobre como tais diligências decorreram, dado não constituírem meio de prova válido para alicerçar a convicção.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AA, [...], foi julgado juntamente com dois outros arguidos (BB e CC, entretanto absolvidos pelo acórdão ora recorrido quanto ao imputado crime de homicídio qualificado, relativamente aos quais foi ainda declarada a prescrição quanto aos crime de sequestro e ocultação de cadáver da vítima DD), no Proc. n.º 22/98.0GBVRS do então Círculo Judicial de Faro e aí absolvido por acórdão de 27 de Janeiro de 2014 da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c), f) e g), do CP ao tempo vigente, bem como do pedido cível de indemnização deduzido pelo assistente EE e pela demandante FF.

Já antes, em 13 de Julho de 2012, havia sido proferida idêntica decisão de absolvição, sensivelmente com o mesmo conteúdo, entretanto declarada nula pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Agosto de 2013, por “falta de fundamentação e exame crítico da prova”.

Daquele acórdão de 27 de Janeiro de 2014 interpôs então recurso para esse Tribunal da Relação o M.º P.º, o assistente e a demandante civil, em cujas motivações impugnaram a decisão sobre a matéria de facto e suscitaram a questão da validade da prova resultante das “reconstituições de facto”, vindo a ser proferido acórdão em 6 de Junho de 2017 que modificou a decisão de facto proferida em 1.ª instância e condenou o arguido na pena de 18 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e g), do CP/95 e quanto à parte cível no pagamento ao assistente e demandante civil da indemnização global de 160.477,46 €.

Inconformado com esta decisão recorreu agora o arguido para este STJ, em cuja motivação formulou as seguintes conclusões: 
 “1 – No Tribunal Judicial de Faro - Tribunal Colectivo do 1° Juízo de Competência Especializada Criminal - o Ministério Público acusou os arguidos AA, BB e CC imputando-lhes a prática de factos susceptíveis de integrar a prática, em co-autoria e sob a forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º, 131° e 132º, nº 1 e 2, alíneas e), h) e j) do Código Penal [previsto e punível à data dos factos pelos artigos 26º, 131° e 132º, nº 1 e 2, alíneas c), f) e g) do Código Penal (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março)].

2 – EE foi admitido a intervir nos autos como assistente, deduziu acusação particular, que consta de folhas 3.025, aderindo à acusação pública, alegando mais alguns factos. O assistente e esposa, FF, deduziram, a fls. 3.026 e seguintes pedido de indemnização civil contra AA, BB e CC, pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de 160.477,46 € pelos danos morais que os demandantes sofreram em virtude da morte de seu filho (causada por acto doloso dos demandados), pelos danos próprios da vítima, pelo dano morte e por danos patrimoniais.
3 – Julgada a causa, o Tribunal Colectivo de Faro julgou parcialmente improcedente a acusação do Ministério Público e do assistente, absolvendo os arguidos da prática dos ilícitos por que vinham acusados e do pedido de indemnização cível.
4 – Não se conformando com esta decisão, o Ministério Público e o assistente vieram recorrer da mesma para o Venerando Tribunal da Relação de Évora.
Tudo aqui dado por reproduzido.
5 – Que, após apreciação dos recursos em apreço, alterou a decisão de facto e de direito proferida pelo Tribunal Colectivo de Faro, julgando provados e não provados os factos, nos termos que se alcançam do ponto F do douto acórdão, aqui dados por integralmente reproduzidos, sem necessidade, com todo o respeito, de os reproduzir.
6 – O tribunal ora recorrido, decidiu de direito:

C.1 - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e g) do Código Penal na versão dada pelo Decreto-Lei n. º 48/ 95, de 15 de Março, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;

C.2 - Absolver os arguidos BB e CC da prática de um crime de homicídio qualificado, p. ep. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal,·

C.3 – Declarar prescrito o procedimento criminal relativamente ao crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal e ao crime de ocultação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1. al.  a) do  CP;

D.1 - Declarar o, pedido cível procedente e, consequentemente, condenam o arguido AA a pagar a EE e esposa, FF, o montante global de 160.477,46 € (cento e sessenta mil quatrocentos e setenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos).

D.2 - Declarar o, pedido cível improcedente quanto aos demandados BB e CC.

 – O arguido AA, não se conformando com a decisão, vem da mesma recorrer para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça.

8 – O tribunal em recurso fundamentou a decisão num enunciado de considerandos acerca dos vícios de que enferma o acórdão do tribunal da 1.ª instância.

9 – O recorrente AA entende que a convicção do Tribunal Colectivo de Faro se mostra suficientemente objectivada e motivada, nos termos legais, sendo capaz de se impor a todos os que dela houverem de tomar conhecimento.

10 – O Venerando Tribunal da Relação de Évora colheu fundamento essencial, para a douta decisão de facto proferida, nos autos de reconstituição de fls. 1758 a 1762 (BB) e de fls. 1775 a 1779 (CC) que apresentam divergências entre si e estão em contradição com a prova testemunhal e pericial.

11 – O teor e a substância destes autos, porque desiguais entre si e supostamente a configurar a mesma realidade, não podem ser aceites como versão credível. Resta sempre a dúvida acerca do que aconteceu, nomeadamente quanto ao autor do homicídio.

Outras diferenças existem quanto a outros elementos de prova como sejam as declarações de GG em relação ao momento em que a vítima sai do trabalho e ao local por onde passa.

O relatório da autópsia indica dois orifícios de bala existentes na nuca do DD. No auto de reconstituição, o BB diz que o AA deu dois tiros na parte frontal da cabeça da vítima; o CC conta que o AA só disparou um tiro na nuca do DD.

Outra divergência a apontar e digna de relevo quanto aos autos de reconstituição na parte respeitante ao presumível local do homicídio; são as declarações do Inspector Chefe da Polícia Judiciária HH (gravadas em suporte informático, com início em 10:48:23 e fim a 11:01:01, de 18 de Maio de 2012) que, à data dos factos, exercia funções na Directoria do Sul e fez diligências de investigação no âmbito dos presentes autos.

Em resumo afirma que é impossível a hipótese de alguém largar um corpo já falecido no local onde foi encontrado o DD e o atirasse naquela ribanceira por causa da posição do corpo e do sítio onde foram encontrados o sapato e as canetas do DD. Tudo o fez pensar, quando se deparou com o cenário, que a execução teve lugar naquele local, uma valeta perto de Castro Marim. Notava-se que a vítima houvera tentado a fuga pela posição do corpo, com as mãos na terra, tipo a gatinhar. Terá sido morto naquela ocasião.

 12 – Ainda quanto aos autos de reconstituição:

O Venerando Tribunal da Relação de Évora valorou e aceitou sem qualquer dúvida, como meio de prova, os autos de reconstituição, como elemento essencial da sua convicção.

13 – O recorrente, porém, não aceita tal decisão.

Entende, como mais consentânea com o caso dos autos, considerado o teor dos relatos de tais diligências a decisão do tribunal de 1.ª instância no sentido de que as chamadas “reconstituições dos factos” não o são verdadeiramente, não podendo ser consideradas como meio de prova, como também não podem ser valorados os depoimentos das testemunhas que se referiram ao modo como tais diligências decorreram, declarações a constituir apenas meras declarações ilustradas dos arguidos no âmbito de uma diligência de inquérito.

14 – A decisão do tribunal ora recorrido violou o princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo), sindicável em sede de revista, porquanto através de uma análise pertinente e lógica, respeitando o disposto no artigo 127.º, do C.P.P., do teor dos autos de reconstituição, da falta de corroboração, das presunções a considerar, mostra-se que este tribunal valorou contra o arguido os autos de reconstituição, sem qualquer corroboração de elementos de prova, antes pelo contrário, apesar da subsistência de uma dúvida razoável, desfavorecendo o tribunal o arguido nesta situação. Firmou a sua convicção dando como provado contra o arguido um facto altamente relevante, o homicídio de uma pessoa.

O sentido da prova, extraído do material probatório de que se serviu o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorada a favor do recorrente.

O processo decisório evidenciado através da motivação da convicção aponta para uma conclusão que, em matéria de prova, haveria de consistir na não imputação ao arguido da prática do homicídio. Este percurso de raciocínio não suporta de forma suficiente, e deixa dúvidas irremovíveis, quanto à prova em que assentou a convicção. 

O Venerando Tribunal da Relação de Évora, na douta convicção, vem referir e aplicar o instituto das presunções judiciais.

Com todo o respeito, tais doutos considerandos por parte do tribunal recorrido não merecem ser atendidos, porquanto se suscitam demasiadas dúvidas sobre se o recorrente teve alguma intervenção nos factos, dúvidas essas intransponíveis também por recurso à mera presunção judicial.

15 – Com estes mesmos fundamentos, o acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova.

16 – Os arguidos BB e CC levaram a cabo a reconstituição, envolvendo o arguido AA.

A aceitarem-se os autos de reconstituição como meio de prova ou considerarem-se como declarações, tudo haveria de ser corroborado e confirmado por outros elementos probatórios.

Não se alcançam dos autos quaisquer outras provas quanto à autoria do homicídio que tenham sido analisadas em julgamento ou constem dos autos.

17 – Nenhuma outra prova existe acerca de qual os arguidos matou a vítima, que meio utilizou e onde. Nem as testemunhas inquiridas em audiência confirmaram o facto.

18 – O Venerando Tribunal da Relação de Évora violou o disposto no artigo 127.º, 150.º, 410.º, n.º 2, alínea c), do C.P.P. e artigo 32.º, da C.R.P.

19 – O Venerando Tribunal da Relação de Évora fundamentou a decisão de alteração da matéria de facto tida por provada pelo tribunal da 1.ª instância nos autos de reconstituição que entendeu valorar sem limites nos termos do artigo 150.º do C.P.P. que dispõe:

1 - Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

2 - O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.

3 - A publicidade da diligência deve, na medida do possível, ser evitada.

O tribunal ora recorrido considerou os autos de reconstituição como elemento principal na formação da convicção, nos termos do referido artigo 150.º do C.P.P.

Verifica-se que os autos de reconstituição foram realizados pelos arguidos BB e CC com a colaboração dos órgãos de polícia criminal. O arguido ora recorrente não esteve presente nas reconstituições, muito embora estivesse disposto a fazê-lo, só que não foi sequer avisado ou notificado para tal. Não foi nomeado a qualquer dos arguidos, defensor.

A reconstituição contém apenas declarações dos co-arguidos do ora recorrente.

Os arguidos não prestaram declarações em audiência de julgamento.

20 – O tribunal ora recorrido interpretou o disposto no artigo 150.º, n.º 1, do C.P.P. (1 - Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.) no sentido da comprovação de um facto histórico (homicídio), quando haveria de interpretar esta norma no sentido do auto de reconstituição determinar, tão só, se um facto poderia ter ocorrido de certa forma e reproduzir apenas as condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

21 – Dispõe o artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P. que:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

22 – O Venerando Tribunal da Relação de Évora, ao interpretar como o fez (conclusão 20) o artigo 150.º, do C.P.P. e aplicá-lo ao caso dos autos, não assegurou todos os direitos de defesa do recorrente.

23 – O AA vem suscitar a inconstitucionalidade da norma do artigo 150.º, n.º 1, do C.P.P. na interpretação que lhe foi dada pelo tribunal em recurso, no sentido de que os autos de reconstituição se destinam a comprovar um facto histórico (homicídio), quando haveria de interpretar esta norma no sentido do auto de reconstituição determinar, tão só, se um facto poderia ter ocorrido de certa forma e reproduzir apenas as condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

24 – O Venerando Tribunal da Relação de Évora, na determinação da medida da pena, não se pronunciou acerca das condições pessoais do arguido (artigo 71.º, n.º 2, alínea d), do C.P.), factos relevantes que resultaram da discussão da causa e importantes para a decisão, que enferma, assim, do vício da insuficiência da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do C.P.P.).

Nestes termos e nos mais de Direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido, substituindo-se por outro em que seja aceite e confirmada a decisão fáctica e de direito proferida pelo Tribunal Colectivo de Faro quanto ao arguido AA que deverá ser absolvido da prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e g), do Código Penal na versão dada pelo Decreto-Lei n. º 48/ 95, de 15 de Março e do pagamento ao assistente EE e esposa, FF, do montante global de 160.477,46 € (cento e sessenta mil quatrocentos e setenta e sete euros e quarenta e seis cêntimos).

Suscitada pelo AA a inconstitucionalidade da norma do artigo 150.º, n.º 1, do C.P.P., nos termos expostos, deverá o Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente”.

O M.º P.º junto da Relação respondeu no sentido da manutenção da decisão, o mesmo acontecendo com a demandante civil quanto ao pedido cível formulado.

O Exmo. Procurador-Geral da República junto desde STJ emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso nos segmentos em que o recorrente visou o reexame da decisão de facto e do improvimento quanto à única questão de direito suscitada, da valoração como meio de prova da reconstituição dos factos/direito ao silêncio e princípio do contraditório.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPP, nada respondeu o arguido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência, vindo suscitadas nas conclusões da motivação (elas mesmas delimitadoras do objecto do recurso, sendo que as 10 primeiras são meramente descritivas, nenhuma questão, em rigor, encerrando) as seguintes questões:

a) – Violação do princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo) (cls. 11.ª, 14.ª e 17.ª);

b) – Vício do erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, alín. c), do CPP) (cls. 15.ª e 18.ª);

c) – Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto às condições pessoais do arguido (art.º 410.º, n.º 2, alín. a), do CPP) (cls. 24.º);

d) – Valoração, como meio de prova, das reconstituições dos factos em que participaram os co-arguidos, bem como dos depoimentos das testemunhas que se referiram ao modo como tais diligências decorreram (cls. 12.ª, 13.ª, 16.ª, 19.ª e 20.ª);

e) – Inconstitucionalidade da interpretação normativa do art.º 150.º, n.º 1, do CPP no sentido de que os autos de reconstituição se destinam a comprovar um facto histórico, com o que não foram assegurados “todos os direitos de defesa do recorrente” (cls. 21.ª, 22.ª e 23.ª).

*

II. Fundamentação

1 – A matéria de facto tida como provada após modificação pelo Tribunal da Relação, que para melhor inteligibilidade agora aqui se alinha (mantendo-se o realce da numeração cuja redacção foi alterada), é a seguinte:GG

“1. O arguido AA manteve uma relação de namoro com s durante cerca de nove anos, a qual terminou em data não concretamente apurada do ano de 1997, mas anterior a Outubro;

2. Após o final de tal relação, GGs, em Outubro ou Novembro de 1997, iniciou uma relação de namoro com DD;

3. Durante o período temporal em que durou esta última relação, o arguido AA, por diversas vezes, entrou em contacto com GG, solicitando-lhe que terminasse a relação com DD e reatasse a relação que mantivera consigo, pedido a que aquela nunca acedeu;

4. Numa ocasião, em data não concretamente apurada mas situada entre Outubro ou Novembro de 1997 e o dia 2 de Fevereiro de 1998, o arguido AA chegou a esperar por GGs na porta da residência da avó ou da mãe, em ..., e quando a mesma chegou a casa, o arguido dirigiu-se ao veículo automóvel em que ela se fazia transportar;

5. Após, o arguido AA e GG tiveram uma discussão sobre o namoro desta com DD;

6. Durante tal discussão, o arguido AA desferiu um murro com a mão no tablier do carro da GGs e pediu-lhe que reatasse a relação de namoro com ele;

7 – (VII) - Em data não concretamente apurada o arguido AA contactou o arguido BB e pediu-lhe a colaboração para sequestrar DD;

7-a) – (VIII) - O arguido BB concordou em colaborar com o AA e contactou o arguido CC, o qual também acordou na execução do plano.

7-b) - (IX) - Para concretizar este desígnio conjunto dos três arguidos os arguidos BB e CC passaram a monitorizar a actividade diária de DD, a fim de conhecerem o percurso habitual do mesmo, bem como os seus hábitos e, desse modo, escolherem o momento e o local para o interceptarem;

7–c) - (X) - Assim, no dia 2 de Fevereiro de 1998, no período compreendido entre as 19:30 e as 21:00 horas, numa estrada utilizada por DD, na deslocação entre o seu local de trabalho, sito na ..., e a sua casa, sita na ..., o arguido BB, tripulando um automóvel Renault Clio e acompanhado pelo arguido CC, bateu com a frente do veículo na traseira da viatura Rover, matrícula ...-HX, conduzida por DD;

7–d) - (XI) - DD, convicto de que se tratava de um acidente de viação, abrandou a marcha, encostou o Rover à berma e saiu do carro;

7–e) - (XII) - Ato contínuo, o arguido CC foi ao encontro de DD e obrigou-o a entrar no Rover;

7–f) - (XIII) - Então, o arguido BB abandonou o Renault Clio, entrou para o banco traseiro do Rover;

7–g) - (XIV) - O arguido CC passou para o volante do carro e DD sentou-se no banco dianteiro direito da viatura;

7–h) - (XV) - Os três seguiram para as imediações de São Brás de Alportel, em Faro, onde se encontraram com o arguido AA;

7–i) - (XVI) - Em sequência, o arguido AA no seu veículo, e CC ao volante do Rover juntamente com o arguido BB e DD, seguiram até a um lugar sito nas imediações da casa dos pais do arguido AA, em ..., Faro, local esse desprovido de qualquer habitação e afastado de toda a zona urbanizada da referida localidade;

7–j) - (XVII) - Aí chegados, os arguidos BB e CC imobilizaram o Rover e apearam-se com DD;

7–l) - (XVIII) - Também o arguido AA abandonou a sua viatura e dirigiu-se a DD;

7–m) - (XIX) - O arguido AA começou a desferir socos e pontapés em DD;

7–n) - (XX) - DD procurou a fuga;

7–o) - (XXI) - No momento em que DD procurou a fuga, o arguido AA munido com uma arma de fogo calibre 6,35 mm, deflagrou a mesma, efectuando dois disparos dirigidos à base da nuca de DD, atingindo-o na metade inferior da região occipital;

8 - (XXII) - A supra descrita conduta do arguido AA provocou, directa e necessariamente, em DD;

a -  No hábito externo: ferida perfurante de forma ovalar, de bordos regulares, dirigida no sentido transversal, com 1,3 cm no seu maior diâmetro e 0,6 no menor, localizada na região occipital na sua metade inferior, a cerca de 1,5cm para a esquerda da linha média; orla de contusão com cerca de 2 mm de altura, rodeando todo o orifício descrito; escoriação de forma circular com cerca de 1cm de diâmetro na região da bossa frontal direita; tumefacção de forma circular com cerca de 8cm de diâmetro, com diversas escoriações, na face esquerda, junto ao ângulo da mandíbula; algumas escoriações na região malar esquerda e arcada zigomática;

b - No hábito interno: hematoma subcutâneo de toda a metade inferior da região occipital; hematoma subcutâneo da região frontal, em toda a sua metade esquerda; dois orifícios, com 0,9 cm de diâmetro cada, separados um do outro cerca de 1cm, no sentido vertical, localizados na occipital na sua metade esquerda e inferior a cerca de 1,5 cm para a esquerda da linha média; lesão cerebral perfurante em toda a extensão do hemisfério cerebral esquerdo, no sentido póstero-interior; hemorragia cerebral extensa em ambos os hemisférios cerebrais e região cerebelosa; fractura cominutiva, esquirolosa, do osso frontal, na sua metade esquerda, a cerca de 3 cm da arcada supra ciliar do mesmo lado;

9 - As fracturas cranianas descritas, bem como a lesão cerebral e a hemorragia cerebral resultaram, também directa e necessariamente dos disparos efectuados, os quais causaram a morte de DD;

9–a) - (XXIII) - Imediatamente após os disparos, os arguidos colocaram o cadáver de DD no automóvel do arguido AA e abandonaram-no no local referido em 10 da matéria de facto julgada provada;

9–b) - (XXIV) - O arguido AA agiu por ciúme, motivado por um sentimento de vingança em relação a DD, porquanto este mantinha uma relação de namoro com GG, a qual o arguido queria reconquistar para si.

9–c) - (XXVI) - Os três arguidos agiram em conjunto, na execução do sequestro através de  plano que previamente haviam delineado e sobre o qual reflectiram e em cuja execução persistiram durante mais de 24 horas.

10 - O cadáver de DD foi encontrado no sítio dos ..., concelho de ..., numa ribanceira da estrada nacional nº 122, a cerca de 4 km da fronteira com Espanha;

11 - (XXVII) - O arguido AA planeou a morte de DD e agiu, na concretização do plano delineado, de modo calculista, frio, com reflexão sobre os meios empregados, premeditação, calmo na preparação e execução, e persistente na resolução ao longo de cerca de um mês.

11-a) - (XXVIII) - O arguido AA, com a conduta descrita, quis e conseguiu causar a morte de DD;

11-b - (XXIX) - Agiu o arguido AA livre, voluntaria e conscientemente, ciente de que a sua conduta era, como é, proibida e punida por lei.

18 - DD gozava de boa saúde (quer física quer psicológica), do que os demandantes tinham conhecimento;

18-a – (XXXV) - Entre o momento do sequestro e o da morte, a vítima foi assustada, violentada na sua liberdade e integridade física;

18-b – (XXXVI) - A vítima teve medo e receio pela sua integridade e pela sua vida;

18-c – (XXXVII) - A vítima anteviu a sua morte como possível, e por isso tentou a fuga, o que lhe causou grande medo e pânico (até morrer), e a angústia natural de se sentir perdido;

19 - Os demandantes e o seu filho DD tinham uma relação afectiva estreita, com amor entre eles, não tendo a relação conflitos relevantes;

20 - Os demandantes e DD viviam na mesma casa;

21 - Os demandantes eram pessoas saudáveis;

22 - Dormiam e alimentavam-se normalmente, sem quaisquer perturbações de nenhuma destas funções básicas;

23 - Logo que tomaram conhecimento da morte do filho, a demandante passou desde então a ser uma pessoa triste e reservada, sentiu angústia e aflição;

24 - A demandante passou a sofrer depressão e a andar chorosa pela perda do filho;

25 - A demandante passou a sofrer de insónia persistente, que se mantém;

26 - A demandante deixou de ter interesse em actividades sociais;

27 - A demandante passou a sofrer de alterações de humor;

28 - Em consequência do relatado nos números anteriores, a demandante teve que frequentar consultas médicas de clínica geral e de especialidade (concretamente, psiquiatria e neurologia), tendo iniciado medicação que ainda mantém;

29 - Também a angústia e aflição que o demandante sofreu ao tomar conhecimento da morte do filho o obrigou a recorrer a consultas médicas e à ingestão de medicamentos;

30 - Desde a data da morte de DD, o demandante passou a ter insónias;

31 - Desde a data do falecimento de DD, os demandantes tiveram intervenção no processo e levaram o caso à televisão visando conseguir que o crime não fique impune;

32 - Os demandantes foram contactando e sendo contactados pela polícia, pelo Ministério Público, pela comunicação social, por eventuais testemunhas, recebendo telefonemas anónimos, etc.;

33 - Rememorar o sucedido custa-lhes e afecta-os;

34 - Os demandantes irão recordar toda a situação relacionada com a morte do filho ao longo do presente processo;

35 - Sentem-se ambos os demandantes há doze anos muito indignados e revoltados;

36 - Os demandantes ainda sentem mágoa e desespero pela perda sofrida;

37 - Os demandantes passam a maior parte dos seus dias, não obstante o apoio e o carinho de quantos os rodeiam, tristes, amargurados, saudosos e apreensivos, chorando em qualquer local e a qualquer hora por saudades do filho;

38 - Os demandantes, que até à data da morte de DD eram bastante comunicativos, tornaram-se muito reservados, não comunicando com terceiros como o faziam anteriormente. Os demandantes, até à data da morte do filho, eram calmos, afáveis, descontraídos, com grande carinho e proximidade física com o seu filho e demais familiares, muito delicados no trato e de bom relacionamento com a generalidade das pessoas;

39 - Após terem tomado conhecimento da morte do filho, os demandantes perderam o apetite, tendo passado refeições sem tocar nos alimentos;

40 - Em virtude do falecimento do seu filho, os demandantes suportaram as seguintes despesas: 300 000,00$00 (correspondente a € 1 496,39) com exéquias fúnebres de DD; 100 000$00 (correspondentes a € 498,80) pelo gavetão no Cemitério Municipal de Faro;~

41 - Igualmente como resultado da morte de DD ficou totalmente inutilizada a roupa que a vítima trazia vestida: Uma camisa de valor não apurado; Umas calças e casaco de valor não apurado; E calçado de valor não apurado;

42 – (XLI) - Após a morte de DD, os arguidos ou alguém a quem eles forneceram os cartões bancários do falecido, procedeu ao levantamento com os cartões bancários que àquele pertenciam, de uma quantia de 30 000$00 (correspondente a € 149,64) e outra de 30 637$20 (correspondente a € 152,81);

43. Os demandantes receberam já os valores que a seguir se indicam: A Companhia de Seguros ... pagou um seguro de vida do falecido, no valor de 50.000,00 €; A Companhia de Seguros ..., anexa a cartão de crédito, pagou um seguro do falecido, no valor de 100 000$00 (equivalente a € 498,80); A Segurança Social reembolsou, por conta do funeral, 300 000$00 (equivalente a € 1 496,39);

44. O processo de socialização de AA decorreu de forma globalmente normativa, tanto ao nível familiar, como escolar e profissional;

45. Quando tinha cerca de 9 anos de idade, os progenitores separaram-se, tendo AA começado por ficar aos cuidados da progenitora, em Lisboa;

46. Quando tinha cerca de 12 anos de idade, foi viver com o progenitor na região do Algarve;

47. Em ambos os agregados o ambiente familiar revelou-se estruturado, tendo os progenitores e as respectivas famílias reconstituídas assegurado uma educação consistente e consonante com padrões normativos;

48. AA concluiu o 12º ano de escolaridade, depois de um percurso escolar regular, isento de reprovações, absentismo ou problemas de comportamento;

49. Findo o ensino secundário, concorreu ao curso superior de biologia, mas a média escolar alcançada não foi suficiente para ingressar no mesmo;

50. Quando tinha cerca de 24 anos de idade ingressou no curso de ciências do mar, na Universidade ..., mas viria a desistir do mesmo por dificuldade em conciliar os estudos com a actividade profissional;

51. As primeiras experiências laborais de AA ocorreram sob a forma de trabalhos de verão, nomeadamente, como nadador-salvador na praia da ...;

52. Quando tinha cerca de 23 anos de idade, seguindo o seu interesse pela biologia, fez um estágio não remunerado com a duração de 6 meses numa empresa, onde não permaneceu por ter surgido a oportunidade de trabalhar na Estação de ... do Oceanário de Lisboa, com a função de aquarista;

53. Em Abril de 1997, com 24 anos de idade, estabeleceu vínculo contratual com esta entidade;

54. AA encetou uma relação afectiva com GG quando tinha cerca de 16 anos de idade, que vira a prolongar-se durante cerca de 9 anos, sem que tivessem coabitado;

55. O término da relação coincidiu com a altura em que AA conheceu a actual cônjuge, II;

56. Do processo de socialização de AA destaca-se ainda a dedicação à prática desportiva;

a) - Quando tinha 7 anos de idade começou a praticar ginástica, tendo sido federado desta modalidade durante cerca de 2 anos;

b) - Com 10 anos de idade dedicou-se ao hóquei em patins;

c) - Com cerca de 16 anos de idade começou a praticar polo aquático, desporto que também praticou como atleta federado;

57. A dedicação ao desporto e o interesse pela natureza conferiram ao arguido uma valorização de estilos de vida saudáveis, não existindo indicadores de consumos de substâncias estupefacientes ou abuso de bebidas alcoólicas;

58. À data dos factos que constam da presente acusação, AA residia com o progenitor, a cônjuge daquele e o irmão em ...;

59. Tinha vínculo contratual de efectividade com o Oceanário de Lisboa, onde mantinha a actividade de aquarista, que exercia na Estação de ...;

60. Auferia um vencimento de cerca de 800,00 euros mensais;

61. Mantinha a actividade desportiva de polo aquático e namorava com a atual cônjuge, II;

62. Conhecia o co-arguido BB do contexto social, nomeadamente em contexto de saídas nocturnas;

63. Já havia visto o co-arguido CC;

64. No fim do ano de 1998, AA fixou-se em Lisboa, por ter passado a exercer funções nas instalações do Oceanário de Lisboa;

65. Manteve a actividade no Oceanário de Lisboa até Março de 2011, altura em que saiu desta empresa, por mútuo acordo, para prosseguir outros objectivos profissionais;

66. Passou então a integrar um inovador projecto de aquacultura que o obrigava a frequentes deslocações, quer no território nacional quer no estrangeiro.

67. AA tem vindo a trabalhar, desde Setembro de 2001, com um ex-colega de trabalho, numa empresa em regime de prestação de serviços de consultoria, gestão, instalação e manutenção de aquários e sistemas vivos de animais e plantas;

68. No momento actual, AA coabita com II, com quem contraiu matrimónio em 2002, e com os dois filhos do casal, de 8 e 7 anos de idade, em casa própria localizada no Parque nas Nações, em Lisboa;

69. A dinâmica relacional é descrita como estável, coesa e apoiante, não existindo referência a conflitos graves ou a incidentes violentos no relacionamento interpessoal do casal;

70. Mantém uma relação de proximidade com o progenitor, sendo ainda referida uma relação particularmente coesa com a família de origem de II;

71. AA aufere um vencimento médio de 800,00 euros mensais;

72. O cônjuge, licenciada em saúde ambiental e técnica de higiene e segurança no trabalho, está em situação de desemprego desde Junho de 2010, sendo beneficiária de subsídio de desemprego no valor de 860,00 euros mensais;

73. No rendimento do casal inclui-se ainda o valor do arrendamento de uma habitação, da qual são proprietários no Montijo, no valor de 400,00 euros mensais;

74. Como encargos do agregado destaca-se o pagamento da prestação do crédito contraído para adquirir a habitação, no valor de 600,00 euros mensais, a mensalidade da escola dos filhos, no valor total de 400,00 euros mensais, assim como as despesas domésticas correntes;

75. AA continua a valorizar um estilo de vida saudável e a prática de desporto. Nos tempos livres fica no espaço doméstico ou a praticar desporto ao ar livre na companhia de amigos e do cônjuge;

76. O fim-de-semana é dedicado ao convívio com os filhos.

77. Em termos individuais, AA apresenta-se como uma pessoa sociável, que valoriza os laços familiares e de amizade;

78. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais;

79. BB desenvolveu-se num contexto familiar estruturado ao nível da definição de papéis, responsabilidades e educação;

80. Os progenitores procuraram veicular valores relativos à sociabilidade e afectividade, valorizando, concomitantemente, a educação formal, o respeito e os valores morais vigentes.

81. O pai faleceu quando BB tinha 10 anos, vítima de acidente cardiovascular, em casa, na presença da mulher e dos filhos;

82. BB frequentou de forma regular a escola tendo concluído o 10° ano;

83. Com cerca de 17 anos, pretendendo obter autonomia financeira e contra a vontade da mãe, abandonou o sistema de ensino, por opção sua, tendo conseguido colocação laboral em barcos de cruzeiro;

84. Tal colocação laboral proporcionou-lhe rendimentos mensais muito satisfatórios;

85. Depois do regresso a Portugal, com cerca de 19 anos, permaneceu durante a algum tempo com a sua companheira, com a qual tinha estabelecido relação durante o tempo de permanência em cruzeiro, tendo posteriormente, o casal, ido residir para o Algarve;

86. BB foi desempenhando diversas actividades na zona algarvia (restauração, área comercial) e alterando a sua residência, procurando condições mais satisfatórias;

87. O casal manteve um relacionamento de forma geral gratificante em termos afetivos;

88. Em 1998, BB residia com a sua companheira em habitação arrendada, dispondo o casal de um contexto habitacional e económico estável;

89. Em termos laborais, o arguido trabalhava como coordenador de marketing, de forma regular;

90. Devido a alegados problemas psicoemocionais da sua companheira, esta regressou ao Reino Unido (de onde era natural), o que determinou a ruptura do relacionamento com BB;

91. Este, entretanto, estabeleceu novos relacionamentos e manteve uma vida profissional regular;

92. Conheceu os co-arguidos do presente processo;

93. Com cerca de 32 ou 33 anos estabeleceu relação com outra companheira;

94. Aos 34 anos estabeleceu contrato com uma empresa (Panasonic), depois de uma experiência enquanto co-gestor de restaurante, do qual a sua companheira era a legal proprietária;

95. BB referiu que a sua integração na referida empresa foi muito positiva e que permitiu adquirir formação e experiência na área comercial e na área das novas tecnologias;

96. O relacionamento do arguido com sua companheira terminou há cerca de 2 anos;

97. BB apesar das alterações que foi vivenciando em termos profissionais, habitacionais, laborais e relacionais terá, de forma geral, mantido um estilo de vida normativo não sendo conhecidos, para além do presente, outros contactos com o sistema de Justiça Penal;

98. Ao nível da avaliação da personalidade, o arguido dispõe de recursos cognitivos para avaliar, compreender e agir sobre a realidade;

99. Apesar de dispor desta capacidade, BB apresenta tendência para não valorizar a sua habilidade para sopesar os problemas com os quais se confronta e para delinear estratégias para a sua resolução, o que pode afluir em condutas socialmente censuráveis. Neste contexto releve-se concomitantemente a propensão para a utilização pelo arguido de uma expressão emocional dramatizada, superficial, impulsiva e pouco reflectida, a qual poderá ser um obstáculo à autocensura e imposição de limites pessoais, sobretudo, se associado a ambivalência emocional;

100. Apesar da existência de alguns factores de risco, nomeadamente, ao nível das características psicoemocionais do arguido, considera-se que subsistem diversos factores de protecção, que permitem considerar que a prognose é positiva no que concerne ao enquadramento pessoal e social do arguido;

101. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais;

102. CC provém de um grupo familiar constituído por 4 elementos e inscrito num estrato socioeconómico e cultural modesto, sendo o pai motorista e a mãe doméstica;

103. A sua infância foi bem investida em termos de afectos por parte dos progenitores, com preponderância da figura materna, usufruindo durante o seu processo de crescimento de uma ambiência familiar estável e de um quadro normativo de acordo com os cânones socialmente vigentes;

104. Em termos do seu percurso escolar, registou após o 1º ciclo dificuldades de inserção em crescendo, vindo a abandonar os estudos aquando da frequência do 8º ano, quer por factores motivacionais, quer por uma crescente prioridade de autonomia económica, dadas as dificuldades familiares a este nível;

105. Com cerca de 16 anos abandonou o habitat familiar e deslocou-se para Espanha com o objectivo de se ligar a um partido político humanista, ali tendo permanecido cerca de um ano, após o que regressou, primacialmente por motivos de problema oncológico do pai, o qual viria a falecer pouco tempo depois;

106. Posteriormente e na sequência de uma tentativa gorada de implementação de partido político congénere ao de Espanha, iniciou percurso laboral como vendedor em várias empresas comerciais, tendo ainda desenvolvido, durante cerca de dois anos funções de segurança no aeroporto de Lisboa;

107. Objectivando melhores condições de vida e na sequência de proposta de trabalho no ramo do imobiliário, CC deslocou-se para Albufeira, onde permaneceu cerca de 8 anos e a adquiriu um nível de vida pautado por alguma estabilidade e poder económico;

108. É neste contexto profissional que estabelecer relação de amizade com o co-arguido BB;

109. Contudo e na sequência das alterações das condições de trabalho, CC estabeleceu-se por conta própria como vendedor de jogos para estabelecimentos de restauração, durante cerca de 9 anos, actividade que abandonou, para se dedicar à exploração de uma oficina de automóveis com BB;

110. Em termos sócio afectivos protagonizou uma primeira relação marital durante cerca de 12 anos gorada na sequência do cumprimento de pena de prisão, seguida de uma outra de cerca 8 anos;

111. À data dos factos subjacentes ao presente processo, residia com a primeira companheira em apartamento próprio;

112. Em termos laborais, geria com BB uma oficina de automóveis;

113. Economicamente, debatia-se com algumas dificuldades económicas que viriam progressivamente a constituir-se como factor de risco comportamental;

114. Após o cumprimento de parte de uma outra pena de prisão, mas ainda durante período de liberdade condicional, retomou actividade de distribuidor e vendedor numa empresa de panificação, onde permaneceu cerca de dois anos;

115. Nos últimos anos CC tem vindo a desenvolver actividade de vendedor de serviços e produtos de segurança e respectivo aconselhamento, movimentando-se desde há dois anos, num quadro progressivamente recessivo, por motivos associado à crise e à procura empresarial;

116. Actualmente e desde há 7 meses, o arguido passou a partilhar casa com um elemento do seu grupo de amizades, com a qual assumiu entretanto uma relação de namoro;

117. Face ao presente processo manifesta-se algo distanciado e incomodado com o presente processo dado pôr em causa a sua imagem pessoal e social;

118. Não obstante o que se deixa dito, actualmente nada consta do certificado do registo criminal do arguido CC”.

*

2. Apreciando, a propósito do princípio da presunção de inocência, na vertente do in dubio pro reo, sustenta o recorrente a falta de credibilidade dos autos de reconstituição de fls. 1758 a 1762 (BB) e 1775 a 1779 (CC) pelas discrepâncias que os respectivos teores apresentam.

Invoca também a falta de corroboração de outros meios de prova, entendendo que “o sentido da prova extraído do material probatório (…) era de molde a gerar uma dúvida razoável que devia ser valorada a favor do recorrente”, sendo que, “o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção aponta para uma conclusão que, em matéria de prova, haveria que consistir na não imputação ao arguido da prática do homicídio. Este percurso de raciocínio não suporta de forma suficiente e deixa dúvidas irremovíveis, quanto à prova em que assentou a convicção”.

Daqui se extrai ser entendimento do recorrente que face ao “sentido da prova” o tribunal da condenação deveria ter ficado em estado de dúvida razoável a valorar a favor do recorrente.

Antes de mais, cumpre aqui assinalar que aquele princípio do in dubio pro reo, além de constituir uma garantia subjectiva, é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4.º ed., pág. 519).

Trata-se de um princípio que não se destina a controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, antes a prevenir o procedimento do tribunal de que quando teve dúvidas sobre a matéria de facto um non liquet na questão da prova (…) tem que ser sempre valorado a favor do arguido (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 213).

Constitui também jurisprudência uniforme que a apreciação de tal princípio respeita à matéria de facto, à Relação competindo, em última instância, o respectivo julgamento e não ao STJ (art.ºs 427.º e 428.º, do CPP).

O STJ só pode sindicar a sua aplicação quando a dúvida resulte evidente da decisão recorrida em termos idênticos aos dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, quando for possível concluir que, tendo o tribunal ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido (v. Ac. de 17.06.2015-3.ª).

Ora, face ao texto do acórdão recorrido e da motivação da sua convicção, não resulta, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, que o processo decisório do tribunal desembocou num estado de dúvida.

Ao contrário, na forma como valorou as provas e sem prejuízo de os autos de reconstituição dos factos não poderem constituir meio de prova válido, como iremos ver, foi peremptório na conclusão de condenação alcançada.

Em suma, do acórdão impugnado, não resulta que o tribunal a quo ficou em estado de dúvida e que nesse estado decidiu contra o arguido.

Por outro lado, saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto cujo conhecimento ultrapassa os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista, que conhece apenas de direito (art.º 434.º do CPP).

Improcedem, deste modo, as conclusões 11.ª, 14.ª e 17.ª.

*

3. Quanto aos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, concretamente os invocados nas alíneas a) e c), ou seja, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, importa assinalar que se trata de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, à partida subtraídos à alegação do recorrente para este STJ e, por isso, também fora dos seus poderes de cognição, sem prejuízo, é certo, de deles poder conhecer oficiosamente se a partir do próprio texto da decisão constituírem entrave à decisão de direito, o que claramente não ocorre no caso em apreço.

É, de resto, essa a jurisprudência uniforme deste STJ (Acs. de 27.02.2014, Proc. 1572/11.0JAPRT.P1-5.ª e de 10.04.2014, Proc. 431/10.8GAPRD.P1.S1-5.ª).

Ainda assim se salienta que, quanto ao primeiro vício arguido, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto à falta de consideração das condições pessoais do recorrente relevantes para determinação da medida da pena (cls. 24.ª), a alegação não tem razão de ser, dado que tal matéria consta ex abundanti dos pontos n.ºs 44.º a 78.º da decisão de facto proferida em 1.ª instância e mantida, nesse particular, pela Relação.

Já quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova trata-se de um vício caracterizado por uma incompatibilidade evidente e manifesta entre o facto e a realidade, vício de tal modo patente, ostensivo ou clamoroso, que não escapa à observação de um homem de formação média, de tal forma que resulte para o tribunal de recurso que a prova foi mal apreciada, erro esse que deve resultar do próprio texto da decisão (2.ª parte do n.º 2 do art.º 410.º, do CPP) e não da apreciação da prova recolhida que, não se tratando de prova vinculada, está fora do poder de cognição do STJ.

Ora, da motivação do recurso não se identifica nenhum erro notório, antes do que o recorrente discorda é de uma errada valoração da prova, determinada a partir do reexame das provas pela Relação e das presunções ou ilações extraídas, com destaque para as reconstituições do facto em que intervieram os co-arguidos BB e CC e depoimentos e declarações prestadas sobre o modo como tais diligências decorreram.

Improcedem, assim, as conclusões 15.ª e 18.ª.

Passemos, então, à verdadeira questão de direito que as conclusões da motivação encerram, qual seja, a proibição de valoração da prova dos autos de reconstituição do facto, em que intervieram aqueles arguidos juntamente com os órgãos de polícia criminal e a Magistrada do M.º P.º.

*

4. A “reconstituição do facto” está sistematicamente autonomizada como um dos meios de prova típicos no art.º 150.º do CPP (Capítulo V do Título II), admissível, na definição legal, “quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma” e consistindo “na reprodução, tão fiel quanto possível das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.

Contrariamente à generalidade dos demais meios de prova, a reconstituição não tem por finalidade imediata, pelo menos em regra, a comprovação de um facto histórico, antes verificar se um determinado facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e na forma em que terá sido executado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 5.ª ed., pág. 159).

Trata-se de “um meio de prova através do qual se controla experimentalmente a veracidade de uma determinada hipótese factual, relevante para o processo, cuja possibilidade ou modo de ocorrência se pretende confirmar ou excluir” (Eurico Balbino Duarte, Making Of – A Reconstituição do Facto no Processo Penal Português, em Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, 2.ª reimp., pág. 12).

Numa formulação mais simplista, dir-se-ia que se trata de um modo de testar uma dada hipótese factual e se os seus resultados corroborarem o sentido da investigação de acordo com as provas e indícios até então obtidos tal não significa que o facto aconteceu efectivamente dessa forma, tão-somente que a hipótese em causa é plausível, verosímil.

A reconstituição tem, pois, natureza experimental, de confirmação ou infirmação de determinadas hipóteses factuais sendo a sua finalidade testar, pôr à prova, o que se diz ou pensa ter ocorrido.

Havendo participação do arguido na reconstituição coloca-se (como no recurso se coloca) a questão da valoração das declarações que prestar no seu âmbito se em audiência de discussão e julgamento optar pelo direito ao silêncio, conforme legalmente lhe é facultado (art.ºs 61.º, n.º 1, alín. b) e 345.º, n.º 1, do CPP), mormente se incriminar um outro arguido, como no caso aconteceu relativamente ao recorrente e que optou também pelo seu direito ao silêncio.

Antes de ser dada uma resposta, importa relançar os olhos sobre os autos de reconstituição em causa, insertos a fls. 1759 (BB) e 1777 (CC).

Observando-os, deles facilmente se conclui que a coberto das explicações dadas (“Explicou que…explicou que”) todo o seu teor se traduz, não em reconstituição do facto por forma a determinar se os factos relacionados com o homicídio poderiam ter ocorrido de certa forma, mas em declarações de um e outro arguido interveniente, mais ou menos coincidentes, sobre locais, percursos e acontecimentos, neles envolvendo o outro arguido, ora recorrente, enquanto autor material dos disparos sobre a vítima.

O conteúdo dos autos de reconstituição não passam, na essencialidade, de declarações de arguidos, auto-incriminatórias de determinados factos e de incriminação para o co-arguido que em tais diligências não participou.

Com salienta o segundo autor acima citado (ob. cit. pág. 63), “é preciso distinguir a reconstituição do facto - meio de prova tipificado e regulado no art.º 150.º do Código – da mera demonstração presencial onde não há lugar à reprodução das condições nem à repetição simulada do facto, pelo que ainda que ocorra in loco não tem valor autónomo como meio de prova, reconduzindo-se ao regime das declarações de arguido (art.ºs 140.º e 143.º). Não é, pois, por este «mostrar» onde e como é que as coisas se passaram que aquelas declarações deixam de valer como tal para serem promovidas a reconstituição”.

Do que se afirma já se pode ver que as declarações, a que materialmente e em substância os autos de reconstituição em apreço se reconduzem, não podem deixar de estar sujeitas às restrições que decorrem dos art.ºs 357.º, n.º 2 e 356.º, n.º 7, do CPP.

É caso, pois, para a este propósito repristinar a posição assumida no acórdão do tribunal colectivo de 1.ª instância quando, negando a natureza de verdadeiros autos de reconstituição dos factos às duas diligências encetadas, sustentou que a respectiva valoração levaria o tribunal, não a determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, mas a demonstrar o facto em si mesmo e quem foi o seu autor através das declarações dos co-arguidos neles intervenientes, não podendo ser valorados como meios de prova porque os arguidos se remeteram ao silêncio em audiência de julgamento, tal como não podem ser valorados os depoimentos de testemunhas que se referiram ao modo como tais diligências decorreram.

À semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art.º 345.º do CPP e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente assegurados (art.º 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição de valoração de prova.

Foi essa a situação ocorrida com o arguido recorrente, razão por que procedem as suas conclusões recursivas 12.ª, 13.ª, 16.ª, 19.ª e 20.ª, impondo-se que o tribunal recorrido (Tribunal da Relação de Évora) reaprecie os termos da causa sem valoração dos mencionados “autos de reconstituição” e dos depoimentos prestados sobre como tais diligências decorreram, dado não constituírem meio de prova válido para alicerçar qualquer convicção.

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III. Decisão

Face ao exposto, na parcial procedência do recurso, acordam em revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra onde o tribunal recorrido reaprecie a causa sem valoração dos denominados autos de reconstituição de fls. 1759 e 1777 e dos depoimentos das testemunhas prestados sobre o modo como essas diligências decorreram.

Sem custas.

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Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Dezembro de 2018

Francisco Caetano

Carlos Almeida