Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1571/22.6T8VRL-A.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
SEGURADORA
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O pedido de indemnização civil emergente de crime, enxertado em processo penal, assume a natureza de verdadeira acção cível, vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio de adesão obrigatória (art. 71º do CPP), só podendo sê-lo em separado nas situações excepcionais previstas no art. 72º do CPP;

II – Tendo os lesados demandado no processo crime o autor do facto ilícito, pedindo a sua condenação a indemnizá-los pelos danos causados pela actuação criminosa, e este chama a intervir nos autos, a título de intervenção acessória, a seguradora para a qual tinha transferido a responsabilidade civil, intervenção acessória que foi admitida, não podem os lesados instaurar posteriormente acção cível de condenação contra a seguradora;

III - A autoridade do caso julgado no enxerto cível quanto à intervenção da seguradora – como parte acessória – no litígio que opõe os Autores aos herdeiros de DD, obriga as parte da presente acção, pelo que não pode aquela ser demandada a título principal, como responsável pelo pagamento da indemnização.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e BB instauraram a presente acção contra Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de €109.917,81, acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento.

Alegaram para tanto e em síntese:

No dia ... de julho de 2017 faleceu CC no estado de solteira e sem descendentes, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando a suceder-lhe como únicos e universais herdeiros os seus pais, aqui autores;

Naquele dia, pelas 21h30m, no lugar da Recta ..., em ..., EN n.º 15, freguesia de ..., concelho de ..., a CC seguia a pé do lado esquerdo da estrada com uma amiga, envergando um colete refletor;

Na mesma altura e local, DD (já falecido) andava no exercício da caça ao javali munido de uma espingarda de caça;

Nesse momento, o DD apontou a espingarda na direção a um javali que parou na estrada, acabando por apontar em simultâneo na direção da CC, tendo efetuado um disparo que atingiu aquela na base do pescoço e face, causando-lhe lesões que foram causa direta, necessária e adequada da sua morte.

Estes factos deram origem ao Processo nº 858/17.4... que correu termos no Juízo Central Criminal de ..., sendo DD condenado pela prática de:

a) Um crime de homicídio por negligência;

b) Um crime contra a preservação da fauna e espécies cinegéticas;

c) Um crime de omissão de auxilio.

Foi ainda condenado a pagar a titulo de indemnização a quantia de 250.000,00 € acrescida de juros de mora à taxa legal.

Nesse processo DD deduziu incidente de intervenção de terceiros contra a ré, a qual, em sede de recurso, veio a ser condenada, no que ao segurado diz respeito, como interveniente acessória.

Os herdeiros de DD até à data não procederam ao pagamento de qualquer valor da indemnização devida, tendo inclusivamente tentado dissipar o seu património.

Sucede que, entre DD e a ré na qualidade de seguradora foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Responsabilidade Civil Caçador” titulado pela apólice n.º CC......19 ao abrigo do qual aquele transferiu para esta a responsabilidade civil pelos danos emergentes da caça como a responsabilidade civil dos portadores de armas, limitado a um capital máximo de 100.000 €.

Inexiste qualquer causa de exclusão da responsabilidade da seguradora.

Mas, ainda que assim não se entenda, nos termos da cláusula 23º, n.º3, do contrato de seguro, as eventuais causas de exclusão da responsabilidade civil da ré não são oponíveis pelo segurador ao lesado, ou seja, não são oponíveis aos autores.

Sem prejuízo do único condenado ser o homicida, a decisão proferida quanto à intervenção da ré faz apenas caso julgado formal, ou seja, apenas vincula o tribunal naquele processo em concreto.

Inexiste, também, identidade entre a causa de pedir e o pedido aqui formulado.

A ré teve conhecimento do sinistro com a citação para contestar (1/12/2019) dispondo do prazo de 30 dias para levar a cabo as averiguações necessárias à avaliação dos danos causados pelo segurado, e, verificados que se mostram os requisitos pagar a indemnização a que estes têm direito. Como não o fez naquele prazo terão de ser contabilizados juros até efetivo e integral pagamento, que, na data da instauração da presente ação ascendem a € 9.917,81.

A Ré contestou, por excepção, invocando a ilegitimidade dos AA para intentarem a presente ação ao abrigo do disposto no art. 323º, n.º4, do Cód. Proc. Civil e a incompetência material do tribunal por violação do princípio da adesão do art. 71º, do Cód. Proc. Civil.

A 1ª instância julgou improcedentes as excepções arguidas, designadamente considerou não violado o princípio de adesão obrigatório fixado no art. 71º do CPPenal.

Apelou a Ré, vindo a Relação de Guimarães, por acórdão de 11.05.2023, a conceder provimento ao recurso, tendo julgado procedente a excepção dilatória da incompetência material com a consequente absolvição da Ré da instância.

É a vez dos Autores interporem recurso de revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.º- Regulado nos art.ºs 77.º a 84.º do CPP, o Pedido de Indemnização Cível só admite dois articulados, devendo o juízo criminal remeter para os meios comuns questões que, passíveis de resposta em sede de um terceiro articulado, acabariam por gerar incidentes que retardam intoleravelmente o processo penal;

2.º- Os incidentes de intervenção principal provocada e de intervenção acessória provocada só podem, nos termos do disposto nos art.ºs 318.º e 322.º do CPC ser deduzidos na fase dos articulados;

3.º- Permitir-se ao demandante cível que se pronuncie quanto a pedido formulado pelo arguido na contestação permite apenas tomar posição processual quanto à admissibilidade e oportunidade do chamamento, não permite deduzir um incidente autónomo;

4.º- Inexistindo um terceiro articulado no âmbito do Pedido de Indemnização Cível e limitada a notificação do requerente à admissibilidade ou não do incidente deduzido pelo arguido, não é admissível que este deduza incidente de intervenção principal provocado como resposta a um incidente de intervenção acessória provocada;

5.º- Desconhecendo o demandante cível para que seguradora o arguido havia transferido a responsabilidade pelo pagamento de danos causadas no exercício da caça, não lhe pode ser exigido que tivesse demandado essa (desconhecida) companhia de seguros no Pedido de Indemnização Cível;

Sem prescindir

6.º- No presente aresto não se mostra violado o princípio da adesão porquanto os recorrentes formularam Pedido de Indemnização Cível que foi admitido e parcialmente julgado procedente, por provado, ainda que limitado esse pedido ao arguido;

7.º- Acresce que, conforme acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 07/05/2020 no âmbito do processo que correu os seus termos com o n.º 900/19.4T8CTB-A.C1.S1, nada impede os recorrentes de, havendo uma responsabilidade solidária, reclamar o pagamento da indemnização em sede cível, como o fazem na presente acção;

8.º- A questão que aqui se teria de colocar e bem foi analisada pelo Juízo Central Cível de ..., é que, verificada uma possibilidade séria do credor não ser pago pelo devedor demandado no âmbito duma obrigação solidária, permite-se que este demande os demais devedores, sob pena de não ser ressarcido dos prejuízos sofridos;

9.º- O que legitima e permite o recurso à presente acção, permite que os recorrentes possam exigir, directamente da recorrida, o pagamento da indemnização a que têm direito, ainda que limitada ao capital seguro, inoponíveis que lhe são eventuais causas de exclusão da responsabilidade;

10.º- Ao assim não decidir violou o Tribunal “a quo” o preceituado nos artigos 71.º a 84.º do CPP, 318.º, 322.º do CPC e 512.º, 519.º do CC;

11.º- Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas, julgarem procedente o presente recurso de revista e, em consequência disso, revogarem o acórdão recorrido, mantendo a douta decisão do Tribunal de Comarca, ordenando o prosseguimento dos presentes autos, farão os Colendos Conselheiros, uma vez mais, serena, sã e objectiva justiça.


///


Contra alegou a Ré pugnando pela improcedência do recurso e requerendo a ampliação do objecto do mesmo.

1ª. A lei processual penal não só não afasta ou proíbe, como admite, prevendo, a intervenção espontânea e que o PIC seja deduzido apenas contra responsáveis cíveis (art.º 73º, n.º1 do CPP), destrinçando muito bem entre Demandados e Intervenientes (art.º74º do CPP), como decorre da jurisprudência anteriormente citada e que se invoca nos termos do art.º 8º, n.3 do C.Civil.

2. A resposta à 1ª questão formulada pelos Recorrentes só seria negativa, no sentido de não ser admissível apresentarem requerimento de intervenção provocada da Seguradora/Recorrida, quando e se não se verificassem os pressupostos dessa intervenção e/ou se desta viesse a resultar um atraso intolerável para a tramitação do processo crime.

3. O tribunal penal ao ter admitido a Intervenção Acessória da seguradora/recorrente, deduzida pelo Arguido e à qual os Recorrentes não se opuseram e/ou nada disseram – apesar de notificados para o efeito – afastou a inadmissibilidade de um incidente de intervenção por dele resultar um” atraso intolerável” para o processo crime, tal como previsto no art.º 88º do CPP.

4. A RESPOSTA À PRIMEIRA QUESTÃO FORMULADA PELOS RECORRENTES TERÁ DE SER POSITIVA, OU SEJA, É LEGALMENTE ADMISSÍVEL APRESENTAR NO ÂMBITO DO PROCESSO CRIME OUTRO ARTICULADO PARA ALÉM DO PIC E DA CONTESTAÇÃO, NOMEADAMENTE O PEDIDO DE INTERVENÇÃO DE TERCEIROS RESPONSÁVEIS CÍVEIS, tal como decorre da jurisprudência maioritária, nomeadamente, a supracitada e ao abrigo de uma interpretação sistémica, tendo por pano de fundo o princípio da adesão, dos artigos 71º, 73º e 74º do CPP e 146º do RJCS.

5. Sendo igualmente positiva a resposta à questão que colocam, se “poderiam os recorridos opor-se à intervenção acessória e pugnar pela intervenção principal” que formulam nas suas alegações, pois como decorre do oficio de 17/12/2019doc.7 certidão recurso apelação – foram os Recorrentes notificados no processo crime, na pessoa do seu Ilustre Mandatário constituído nos autos, para “para responder ou deduzir oposição ao pedido de intervenção, conforme duplicado que se junta”: e nada disseram ou a nada se opuseram, nomeadamente, opondo-se á intervenção acessória, com o fundamento de que a mesma devia ser admitida/convolada como intervenção principal da seguradora, face ao conhecimento do seguro obrigatório celebrado pelo Arguido

6. Nos art.ºs 71º e 73º do CPP estão fixadas normas especiais sobre a competência material dos tribunais penais, para conhecerem de PIC por factos que integrem um ilícito criminal, a qual é atribuída ao tribunal que aprecie a responsabilidade criminal, em sede do respectivo processo, e só excepcionalmente aos tribunais civis, quando ocorra situação subsumível na previsão do art.º 72º do CPP: o que não ocorre nestes autos!

7. As excepções previstas neste artigo visam aquelas situações em que o lesado, por factos que integrem um ilícito criminal, optando por não deduzir qualquer PIC no processo crime, o faz em acção cível posterior e autónoma, ao abrigo de qualquer uma daquelas excepções – a mesma situação, distinta da que que nos ocupa nestes autos, é objecto da extensa jurisprudência citada pelos Recorrentes.

8. Mas as circunstâncias destes autos são bem distintas, já que no processo que correu termos pelo Juízo Central Criminal de ..., Juiz 3, com o n.º 858/17.4..., os Recorrentes exerceram o direito de deduzir PIC, mas optaram por o fazer apenas contra o Arguido Segurado da Ré e não também contra esta, apesar de o puderem fazer e de tal lhes ser imposto, por estar em causa um seguro obrigatório, do qual tiveram conhecimento na pendencia do processo crime.

9. Ao optarem por não demandarem também a Recorrente em sede do PIC, por pretenderem responsabilizar apenas o Arguido e Segurado desta, não deram cumprimento ao princípio da adesão contra o responsável cível/seguradora, ao abrigo do art.º 73º do CPP, e precludiu o direito de apresentarem novo PIC apenas contra este, para apreciação dos mesmos factos e pedido, em acção cível posterior e autónoma, como é o caso da presente lide, ao abrigo de alguma das excepções previstas no art.º 72º, n.º1 do CPP.

10. Tal como bem se decidiu no acórdão recorrido, ao optarem – por estratégia processual própria justificada pelas razões que só os próprios conhecem – ao deduzir e prosseguirem com o PIC apenas contra o Arguido em sede de processo crime anterior, os Recorrentes, em relação à Recorrida, “não observaram o princípio da adesão previsto no art.º 71º do CPP, que impunha que o pedido civil fosse também intentado contra a aqui Ré/Recorrente, o que determina a preclusão do seu direito de intentarem acção cível posterior contra a mesma e a incompetência deste Tribunal cível, em razão da matéria, ao terem prescindido, por opção processual própria, de demandarem a Recorrente de forma directa, ao abrigo da cobertura de um seguro obrigatório, preferindo demandar, em sede de procedimento judicial prévio, apenas o segurado desta”.

11. Os próprios Recorrentes nas suas alegações não alegam a existência de uma impossibilidade no cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização em que foi condenado o Arguido/Segurado, que ao abrigo do art.º 519º do C. Civil permitisse a demanda da Recorrente.

12. Referem-se apenas a “uma possibilidade séria” – vide formulação da 3ª questão – que não se encontra demonstrada e, pelo contrário, fica prejudicada pela alegação da “procedência de um arresto não contestado”, perante as tentativas de dissipação de património que podiam impossibilitar de forma definitiva aquele pagamento pretendido – cfr. art.º 27º da PI.

13. Nem estamos perante uma qualquer causa de exclusão da responsabilidade da seguradora, prevista no texto da apólice, tal como os Recorrentes alegam, que não seria oponível aos lesados face à natureza obrigatória do seguro celebrado com a Recorrida – a mesma natureza obrigatória do seguro, cujos efeitos os Recorrentes apenas alegam no sentido que interessa à sua pretensão, na medida em que a desconsideram quando se trata de avaliar e retirar os efeitos que lhes impunha a demanda directa da Seguradora, em sede do processo crime anterior, nos termos do art.º 146º do RJCS e do principio da adesão (art.ºs 71º a 73º do CPP).

14. E não colhe a tese de que a impossibilidade decorrente das normas jurídicas supra invocadas, de os Recorridos demandarem a Recorrente na presente lide seria uma “uma fórmula da recorrida, apesar do seguro celebrado, nada pagar, fosse a que título fosse, seja aos sinistrados, seja aos segurados o que não se concede como possível.” - pág. 9 das alegações.

15. Nestas circunstâncias, que decorrem unicamente da estratégia processual anterior assumida pelos Recorrentes, existindo uma decisão judicial anterior que condenou o segurado da Recorrente na totalidade da indemnização devida pelos mesmos factos objecto destes autos, na presente lide só poderia ser proferida condenação condicional, ou seja, só poderia condenar-se a Recorrente no pagamento do valor aqui peticionado, se os herdeiros ou a herança do devedor solidário, não realizarem esse pagamento no futuro, o que não é possível ao abrigo do art.º 621º do CPC.

16. Solução que também se justifica face à possibilidade de os Recorrentes virem a ser pagos, pela herança do Segurado, pelo valor global da quantia em que este foi condenado no processo crime - já que se encontram munidos de decisão judicial para oefeito - e, posteriormente, ser a aqui Ré confrontada com posterior acção de reembolso dessa mesma herança, nos termos do art.º 323º, n.º4 do CPC, a reclamar o pagamento do valor dessa indemnização abrangido pela cobertura do seguro supra identificado.

17. Obrigação (solidária) da Recorrente, aliás, que não se encontra reconhecida, porquanto a Recorrente contesta a inclusão dos factos imputados ao seu Segurado no âmbito da cobertura das apólices que subscreveu com este, matéria que seria objecto de ulterior acção de regresso a intentar pelo Segurado, no caso a herança após pagamento aos Recorrentes, nos termos do art,.º 323º, n.º4 do CPC, porquanto os Recorrentes aceitaram a intervenção meramente acessória nos antecedentes autos de processo crime.

AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

18. São os próprios Recorridos que baseiam a sua causa de pedir num “(…) crédito do homicida, em sede de direito de regresso” contra a Recorrente, em harmonia com o estatuto processual desta no âmbito do processo crime antecedente, onde foi admitida como Interveniente Acessória.

19. E neste enquadramento alegado e confessado pelos próprios Recorrentes, a legitimidade para intentar a presente acção não cabe aos próprios, na qualidade de terceiros lesados, porque a causa de pedir que alegam, na responsabilidade da Recorrente pelo

pagamento do valor peticionado, ao abrigo do contrato de seguro, emerge da “existência de um crédito do homicida, em sede de direito de regresso” é subsumível na previsão do art.º 323º, n.º4 do CPC.

20. Estamos perante uma questão de ilegitimidade substantiva dos recorrentes para intentarem a presente acção, na medida em que reconhecem que a titularidade do crédito que permite demandar a Recorrente existe na titularidade do seu segurado ou seus herdeiros, o que importa a absolvição do pedido, nos termos do art.º 576º, n-º3 do CPC.


///


Objecto do recurso:

Saber se os Recorridos podem instaurar acção autónoma de responsabilidade civil fundada na prática de um crime contra a seguradora do responsável pelo facto ilícito.


///


Fundamentação.

Para a decisão da questão decidenda relevam os seguintes factos:

A

Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... o processo comum colectivo nº 858/17.4..., contra o arguido DD, tendo sido proferido acórdão em 24.06.2021, que decidiu:

“I - Condenar o arguido DD pela prática em co-autoria material, de um crime de homicídio por negligência (p.p. pelo art. 127º/2 do CPenal, agravado nos termos do art. 86º, nº3, do Regime Jurídico das armas e munições (Lei nº 5/2006 de 23.2), na pena de seis anos de prisão;

II – Condenar o arguido pela prática, em autoria material de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas (p.p. pelo art, 19º/2, 30º/1 e 2 da Lei de Bases da Caça), na pena de seis meses de prisão;

III – Condenar o arguido, pela prática de um crime de omissão de auxílio (p.p. no art 200º, nº2, do Cód. Penal, na pena de um ano e dez meses de prisão.

IV – Em cúmulo, foi o arguido DD condenada na pena única de oito anos de prisão;

(…)

Parte cível:

Julga-se parcialmente procedente o pedido de formulado pelos demandantes AA e BB, fixando-se o valor da indemnização a atribuir aos demandantes na quantia de €250.000,00, sendo a Fidelidade Companhia Seguros SA, condenada a pagar-lhes a quantia de €100.000,00 e o demandado DD condenado a pagar-lhes a quantia de €150.000,00, em ambos os casos acrescidos de juros de mora (…);

B

Recorreram desta decisão o arguido e a interveniente Fidelidade, vindo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 10.01.2022, a conceder parcial provimento ao recurso do arguido, que foi condenado na pena única de 5 anos e 8 meses de prisão, e total provimento ao recurso interposto pela Fidelidade, os seguintes termos:

“Decretar a nulidade da parte cível da sentença que conheceu da relação jurídica de que era titular a interveniente acessória (Fidelidade, Companhia de Seguros, S.A.) e a condenou em parte do pedido, determinando a prolação de nova decisão (apenas quanto a essa parte), que livre do referido vício retire as consequências jurídicas que tiver por convenientes.”

C

O arguido e demandado cível DD faleceu no dia ... .04.2022, com a idade de 62 anos.

D

Os Recorrentes intentaram a presente acção no Tribunal Judicial de ... no dia 12.07.2022, tendo-lhe atribuído o valor de €109.917,81.

O direito.

O quadro factual relevante é em síntese o seguinte:

Os Recorridos, autores na acção, são pais de CC, vítima de homicídio negligente de que foi autor material DD, no exercício da caça;

Correu termos processo crime contra o autor do facto ilícito, e nele os ora Recorrentes deduziram pedido de indemnização cível contra o arguido DD;

Este, alegando ter celebrado um contrato de seguro caçador, requereu a intervenção principal acessória da Companhia de Seguros Fidelidade S.A.;

A seguradora Fidelidade S.A., foi admitida a intervir no enxerto cível como interveniente acessória;

A final, além de condenado pela prática do crime, o arguido DD foi condenado a indemnizar os pais da falecida na quantia de €250.000,00.

Posto isto.

O art. 71º do Código de Processo Penal consagra o princípio da adesão obrigatória da acção civil à acção penal dizendo que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.”

Esta solução “foi determinada pela natureza consequencialmente complexa do facto material que dá origem a ambas as acções, pelo princípio da economia processual, o objectivo de promover o resultado de uniformização de julgados, a ideia de maior rapidez de decisão sobre a reparação devida pelo crime, as vantagens que possam resultar da própria cooperação dada, em função ou por força de interesses privados, ao processo penal, e o fim de uma eficaz protecção a muitas vítimas de uma infração penal” (cf. Cristina Dá Mesquita, Revista Julgar Online, Janeiro de 2018).

Este regime tem de articular com dois outros princípios: i) a indemnização de perdas e danos emergente de crime tem natureza civil; ii) a acção cível enxertada no processo penal conserva para todos os efeitos, a sua especificidade de verdadeira acção civil.

A autonomia do pedido civil enxertado revela-se em termos processuais, nomeadamente, na susceptibilidade de intervenção de pessoas com mera responsabilidade civil, nos conceitos e estatutos processuais de demandante (lesado), demandado e intervenientes na acção civil enxertada, força do caso julgado da acção civil, partes civis e penal da sentença, atentas, respectivamente, as normas dos arts. 73º, nº1, 74º, nºs 1 e 3, 84º, 377º, nº1 e 400º, nº3 do CPP (Cristina Dá Mesquita, local supra citado).

Em face da regra da adesão obrigatória, que tem as excepções constantes do art. 72º do CPP, fundando-se os pedidos de indemnização na alegada prática de crimes, salvo se verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 72º do CPP, é no processo criminal que os lesados civis devem deduzir a sua pretensão indemnizatória, solução justificada não só por razões de economia de meios como também de modo a evitar contradição de julgados.

A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência material do tribunal cível, conforme entendimento pacífico (cf. acórdãos do STJ de 23.05.2019, P. 9918/15, de 21.06.2022, P. 2563/18 e de 15.03.2023, P. 4303/20).

No caso, os Recorrentes observaram este princípio ao deduzirem o pedido de indemnização cível no processo comum colectivo nº 858/17.4...

Sucede que deduziram o pedido apenas contra o arguido, tendo a Recorrida Fidelidade intervindo naquele processo a título de interveniente acessória, tendo sido chamada pelo demandado cível DD.

O campo de aplicação da intervenção acessória provocada consta do art. 321º do CPC, cujo nº1, estatui que “o réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.”

Refere Salvador da Costa, Incidentes da Instância, 11ª edição, p. 102, que “este interveniente acessório intervém no processo, não na qualidade de sujeito passivo da relação material controvertida objecto da ação, mas na posição de sujeito passivo de uma eventual pretensão formulada pelo réu no seu confronto, conexa com o referido objecto.”

O interveniente, em intervenção acessória provocada, não é sujeito da relação material controvertida no processo, já que não é contra ele, mas contra o réu, requerente do chamamento, que é formulado o pedido da acção, razão por que a proceder, é o réu e não o chamado que deve ser condenado (cf. acórdãos do STJ 22.10.2015, P. 678/11, e ainda os acórdãos do STJ de 05.02.2022, P00427202 e de 21.30.2006, CJ/STJ, tomo 1, p. 141).

Ora, como bem refere a Recorrida, ( nº5 das contra alegações), os Recorrentes foram notificados no processo crime, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, “para responder ou deduzir oposição ao pedido de intervenção, nada tendo dito, designadamente não se opuseram à intervenção acessória com o fundamento de que a mesma devia ser admitida/convolada como intervenção principal da seguradora, face ao conhecimento do seguro obrigatório celebrado pelo Arguido.

Assim, na medida em que foi já decidido no âmbito do excerto cível do processo crime que a seguradora Fidelidade SA, para a qual fora transferida a responsabilidade civil do segurado autor do facto que deu origem à obrigação de indemnizar, não era parte na relação material controvertida, mas apenas titular de uma relação conexa com a que é objeto da acção, não pode ser agora demandada num acção autónoma, como obrigada principal, por a tanto se opor a autoridade de caso julgado formado pelo decisão transitada constante do processo crime.

O caso julgado material (arts. 619º e 621º do CPC), implica dois efeitos – um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 320, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, p. 576, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 2º, p. 599).

Os Professores José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra e local citados, referem:

“A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.”

Este duplo efeito do caso julgado tem sido reconhecido na jurisprudência, como sucedeu em dois recentes arestos do STJ, a saber:

Acórdão de 11.07.2023, P. 2816/20 (Maria Clara Sottomayor);

A autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença num segundo processo, não sendo exigível a coexistência da tripla identidade prevista no art. 581º do CPC.”

Acórdão de 12.12.2023, P. 2369/21 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza):

“Uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não pode a mesma voltar a ser apreciada em acção posterior, quer seja a título principal, caso em que funcionará a excepção de caso julgado, quer a título prejudicial ou seja, suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade de caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.”

Em suma, a autoridade do caso julgado quanto à intervenção da seguradora – como parte acessória – no litígio que opõe os Autores aos herdeiros de DD, obriga as parte da presente acção, pelo que não pode aquela ser demandada a título principal, como responsável pelo pagamento da indemnização.

Acresce que a dedução do pedido cível em separado só pode ocorrer se verificada qualquer uma das hipóteses previstas no art. 72º do CPP, o que não sucede no caso sub judice, como bem decidiu o acórdão recorrido.

Ainda que assim não fosse, as razões invocadas em contrário pelos Recorrentes não procedem, com o devido respeito.

O facto de desconhecerem para que seguradora o arguido havia transferido a responsabilidade civil não justifica não terem demandado a seguradora quando deduziram o pedido cível. Facilmente teriam obtido tal informação no processo, mediante solicitação ao tribunal que a obteria do arguido.

A questão também não é saber se o enxerto cível comporta um terceiro articulado, pois os Recorrentes deveriam era ter formulado o pedido de indemnização também contra a seguradora.

Por último, a questão colocada na conclusão 8ª – possibilidade de demandar a Recorrida como devedora solidária, depois de ter exigido judicialmente a totalidade da prestação do outro devedor sempre exigiria uma razão atendível, como “a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação” (art. 519º, nº1 do CC), circunstâncias que deveriam ter sido alegadas e provadas na acção, o que não sucedeu.

Não colhem assim, com o devido respeito, as conclusões dos Recorrentes, o que conduz ao inevitável naufrágio da revista.


///


Na resposta às alegações dos Recorrentes, a Recorrida requereu a ampliação do objecto do recurso para ser apreciada a questão da ilegitimidade substantiva dos AA, que o acórdão recorrido deixou de apreciar por a considerar prejudicada (art. 608º, nº2 do CPCivil).

Tendo este tribunal confirmado a decisão do acórdão recorrido, não há que conhecer da ampliação do recurso.

Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em:

- Negar a revista dos Recorrentes;

- Não tomar conhecimento da ampliação do recurso.

- Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, 11.01.2024

Ferreira Lopes (relator)

Fátima Gomes

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza