Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28999/18.3T8LSB-B.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
APREENSÃO DE CORREIO ELETRÓNICO E REGISTOS DE COMUNICAÇÕES DE NATUREZA SEMELHANTE
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
DESPACHO
INQUÉRITO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 07/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: VERIFICADA A OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário :
I. A decisão sobre a entidade competente para autorizar, ordenar ou validar a busca e apreensão de “documentos”, no âmbito dos processos em causa, quando o objeto da apreensão se refere a correio eletrónico – mensagens marcadas como lidas, implica, face ao teor das normas do art. 18.º, n.º 1, al. c) da LdC e do art. 17.º da Lei do Cibercrime, a apreciação sobre se aquelas mensagens constituem documento.

II. Com efeito, não prevendo a LdC um regime específico para a apreensão de mensagens de correio eletrónico, referindo-se, tão somente, a “documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte”, a aplicabilidade do seu art. 20.º a mensagens de correio que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, implica, necessariamente, uma decisão (que teve lugar nos 2 acórdãos) sobre a distinguibilidade juridicamente relevante entre umas e outras, no que à respetiva apreensão em processo sancionatório respeita.

III. A resposta à questão colocada demandará, eventualmente, um percurso interpretativo complementar que pondere, entre outros elementos, a natureza empresarial dos visados e a defesa da concorrência na Carta e no TFUE.

IV. Contudo, é dela basilar a pronúncia sobre a suscetibilidade de distinção e diversa categorização, para o efeito, das mensagens marcadas como lidas ou não lidas.

V. Não sendo totalmente coincidentes as questões jurídicas a decidir num e outro recursos, certo é que a oposição de julgados no presente RFJ implica o conhecimento, compreendido diretamente na jurisprudência a fixar, do objeto do recurso supra identificado, em que a oposição foi já reconhecida.

VI. Razão pela qual se justifica a suspensão dos termos do presente recurso até à decisão pelo Pleno do RFJ n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1, em que foi já reconhecida a oposição de julgados.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. VODAFONE PORTUGAL – COMUNICAÇÕES PESSOAIS, S.A., vem, nos termos dos arts. 437.º, n.ºs 2 a 5, e 438.º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n. 2 433/82, de 27 de outubro ("RGCO"), por remissão do artigo 83.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, que aprovou a Lei da Concorrência ("LdC"), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 26.09.2022, transitado em julgado em 27.02.2023, que julgou procedente o recurso, interposto pela Autoridade da Concorrência, de despacho proferido por juiz de instrução criminal.

Identifica, como acórdão fundamento, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.06.2022, proferido no âmbito do processo n.º 10626/18.0T9LSBB.LI-PICRS.

2. Alega a recorrente, em conclusões: (transcrição)

“1.ª O presente recurso de fixação de jurisprudência vem interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.09.2022, que revogou o Despacho proferido pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, de 15.12.2020, que tinha declarado a nulidade da apreensão dos emails recolhidos pela AdC na sede da Recorrente, no âmbito de diligências de busca e apreensão realizadas em processo de contraordenação de direito da concorrência, ao abrigo de mandado emitido pelo Ministério Público, por se encontrar em contradição com o Acórdão da Relação de Lisboa, de 15.06.2022, proferido no âmbito do processo n. º 10626/18.0T9LSB-B.L1-PlCRS.

2.ª Ambos os Acórdãos Recorrido e Fundamento versam sobre a validade da apreensão de mensagens de correio eletrónico pela AdC, no âmbito de diligências de busca e apreensão conduzidas em processo contraordenacional de direito da concorrência, ao abrigo do artigo 18º, n.º 1, alínea c), da LdC e sem autorização ou ordem judicial para o efeito.

3.ª O Acórdão Recorrido revoga o Despacho do Tribunal de Instrução Criminal que declara nula a apreensão de todos os emails recolhidos pela AdC nas instalações da Recorrente, por considerar que a apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada em buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência no âmbito de processo contraordenacional encontra suporte no Regime Jurídico da Concorrência (artigos 18º/1 c e 20º da Lei 19/2012, de 8 de Maio) — e não nas normas previstas do RGCO, no CPP ou na Lei do Cibercrime - não se enquadrando o correio electrónico lido/aberto na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um mero documento e como tal apartado da tutela constitucional do sigilo da correspondência.

4.ª É esta interpretação de que (i) as buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência no âmbito de processo contraordenacional encontra suporte na LdC e não na Lei do Cibercrime e (ii) o correio eletrónico lido/aberto não se enquadra na noção de correspondência, tratando-se de um "mero documento" que pode a AdC, em sede de diligências de apreensão de correspondência eletrónica no processo contraordenacional da concorrência apreender validamente, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 1, alínea c), da LdC, sem autorização ou ordem judicial para o efeito, que se encontra em oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.06.2022, proferido no âmbito do processo n.º 10626/18.OT9LSB-B.L1-PlCRS.

5.ª O Acórdão Fundamento declara a nulidade dos atos de apreensão de correspondência digital levados a cabo nas mesmas circunstâncias, perfilhando, ao invés, que a apreensão de correspondência digital no quadro de busca a realizar em investigação da prática de contraordenação é regida pelo art. 17.º da Lei do Cibercrime, o qual não faz distinção entre correspondência aberta ou fechada ou comunicação digital lida e não lida, sendo do juiz a competência para autorizar ou ordenar a apreensão mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante.

6.ª Nos termos dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 437.º e do n.º 1 do artigo 438.º do CPP, é admissível recurso para fixação de jurisprudência, quando (i) no domínio da mesma legislação, (ii) relativamente à mesma questão de direito, (iii) forem proferidos, in casu por um tribunal de relação, dois acórdãos que assentem em soluções opostas, devendo ainda (iv) o recurso ser tempestivamente interposto e (v) não ser admissível recurso ordinário do acórdão de que se recorre

7.ª Em primeiro lugar, verifica-se que ambos os Acórdãos são proferidos no âmbito da mesma legislação, uma vez que estão em causa exatamente os mesmos normativos, sem que tenha ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

8.ª Em concreto, estão em causa nos dois arestos as normas que preveem os poderes de busca, exame, recolha e apreensão da AdC, assim como as regras aplicáveis à apreensão de correio eletrónico e sobre a inviolabilidade da correspondência, nomeadamente, e em concreto, os artigos 18.º, n 1, alínea c) e 20.º da LdC, os artigos 41.º e 42.º do RGCO, os artigos 179.º e 126.º do CPP, o artigo 17.º da Lei do Cibercrime e o artigo 34.º da CRP, os quais são referidos, com maior ou menor, exaustividade no Acórdão Recorrido e no Acórdão Fundamento.

9.ª Em segundo lugar, a questão de direito em apreço é a mesma em ambos os Acórdãos: a de saber se a apreensão de mensagens de correio eletrónico no âmbito de processos contraordenacionais de direito da concorrência é regulada, em exclusivo, pela LdC (artigos 18.º, n.º 1, alínea c) e 20.º ) ou antes pelas normas processuais penais (artigos 179.º e 126.º do CPP aplicáveis ex vi do artigo 41.º do RGCO, ex vi do artigo 13.º n.º 1, da LdC), e pela Lei do Cibercrime (artigo 17.º ), devendo, respetivamente, considerar-se as mensagens de correio eletrónico lidas/abertas como meros documentos ou antes como correspondência propriamente dita, gozando da tutela conferida pelo artigo 34.º da CRP.

10.ª Em terceiro lugar, está verificado que os acórdãos se encontram em oposição ou contradição, após terem sido confrontados com uma questão jurídica e um quadro factual em tudo idênticos.

11.ª O quadro factual que subjaz ao Acórdão Recorrido e ao Acórdão Fundamento é o mesmo, tanto que ambos os acórdãos foram proferidos na sequência de recursos interpostos de decisões do Juiz de Instrução Criminal que conheceram da arguição da invalidade das buscas realizadas nas instalações de visadas pelo mesmo processo contraordenacional de direito da concorrência, o PRC/2019/1.

12.ª Factualmente, em ambos os casos:

a.  estamos no âmbito de um (mesmíssimo) processo de contraordenação instaurado pela AdC por suspeitas de práticas restritivas da concorrência;

b     foram conduzidas e executadas diligências de busca e apreensão pela AdC, no âmbito das quais foi apreendida correspondência eletrónica nas instalações das visadas, ao abrigo de mandado emitido pelo Ministério Público;

c.    as visadas pelas diligências de busca e apreensão no âmbito das quais foi apreendida correspondência eletrónica — ou seja, a NOS e a VODAFONE - arguiram a nulidade das buscas realizadas perante Juiz de Instrução Criminal, com fundamento, entre o mais, no facto de terem sido apreendidas mensagens de correio eletrónico, independentemente de se encontrarem abertas ou fechadas, sem habilitação legal para o efeito;

d.  foi proferida decisão pelo Juiz de Instrução Criminal que, declarando-se competente, decidiu sobre o mérito das invalidades arguidas pelas visadas das buscas;  em ambos os casos, por existir discordância face à decisão proferida pelo Juiz de instrução Criminal, foi interposto recurso junto do Tribunal da Relação de Lisboa.

13ª Por último, perante a mesma questão de direito, os dois Acórdãos propugnam soluções evidentemente opostas.

14.ª A questão que se coloca é a de saber se, no âmbito de processo de direito contraordenacional da concorrência, é permitido à AdC apreender validamente mensagens de correio eletrónico que se encontrem lidas/abertas como se de meros documentos se tratassem, ao abrigo de mandado de busca e apreensão emitido pelo Ministério Público e com fundamento no artigo 18.º, n. 1, alínea c) da LdC.

15.ª De acordo com o Acórdão Recorrido, a resposta é afirmativa, por se entender que "[a] apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada em buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência no âmbito de processo contraordenacional encontra suporte no Regime Jurídico da Concorrência (artigos 18º/1 c e 20º da Lei 19/2012, de 8 de Maio) e não na Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15 de Setembro), não se enquadrando o correio electrónico lido/aberto na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um mero documento e como tal apartado da tutela constitucional do sigilo da correspondência".

16.ª Na ótica do Acórdão Fundamento, a resposta terá de ser negativa, na medida em que "[a] apreensão de correspondência digital no quadro de busca a realizar em investigação da prática de contra-ordenação é regida pelo art. 17.º da Lei do Cibercrime" , sendo que "[t]al preceito não faz distinção entre correspondência aberta ou fechada ou comunicação digital lida e não lida" , cabendo ao "juiz a competência para autorizar ou ordenar a apreensão mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante".

17.ª O dispositivo de cada uma das decisões é deveras demonstrativo de que as soluções de direito conferidas por cada um dos arestos são verdadeiramente antagónicas entre si: ao passo que o Acórdão Recorrido considera válidos os emails apreendidos pela AdC, o Acórdão Fundamento declara a nulidade dos atos de apreensão de correspondência digital, quando praticados nas mesmíssimas condições, num e noutro caso.

18.ª O presente recurso está em tempo, uma vez que deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar e, tendo a Recorrente interposto recurso do Acórdão Recorrido perante o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º n.º 1, alínea b), da LTC, mas não tendo reclamado para a conferência da Decisão Sumária, de 15.02.2023, que decidiu não conhecer do objeto do recurso, a qual lhe foi notificada em 17.02.2023, o Acórdão Recorrido transitou em julgado em 27.02.2023, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 78.º-A, nº 3, da LTC e 149.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC, e 80.º n.º 4, da LTC.

19.ª O Acórdão Recorrido não admite recurso ordinário, por força do disposto no artigo 75º n.º 1, do RGCO e, em todo o caso, no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

20.ª Estão, pois, cumpridos os requisitos impostos pelo artigo 437.º e 438.º do CPP, para que o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência seja admitido, devendo a Recorrente ser notificada para apresentar as respetivas alegações, com fundamentação do sentido em que entende que deve ser fixada jurisprudência.”

3. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer, no sentido do prosseguimento dos autos, nos seguintes termos: (transcrição)

“(…) no mesmo processo de contraordenação da Autoridade da Concorrência, diante da mesma realidade de facto e no mesmo quadro legal, os acórdãos em confronto divergiram expressamente quanto à questão de saber as mensagens de correio eletrónico abertas/lidas apreendidas pela autoridade administrativa com base em despacho proferido pelo MP ao abri-go do art. 20.º, n.º 1, da Lei da Concorrência gozam, ou não, da tutela conferida pelo art. 34.º, n.º 1, da Constituição e se, como tal, estão, ou não, abrangidas pelo disposto no art. 17.º da Lei do Cibercrime que atribui competência exclusiva ao juiz de instrução para autorizar ou ordenar a sua apreensão.

Mostrando-se, então, reunidos todos os pressupostos da sua admissibilidade, incluindo o da oposição de julgados sobre uma mesma questão de direito, emite-se parecer no sentido do prosseguimento do recurso nos termos do art. 441.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal.”

Mais assinalou que “se encontra pendente na ... secção deste Supremo Tribunal o recurso de fixação de jurisprudência 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1 para dirimir a questão jurídica de «saber se a circunstância de uma mensagem de correio eletrónico se mostrar sinalizada como aberta ou lida, aquando da respetiva apreensão, afasta a aplicação do regime previsto no art. 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, ou se, diferentemente, essa circunstância é irrelevante, aplicando-se o regime da citada norma a todas as mensagens de correio eletrónico apreendidas, independentemente do facto de as mesmas estarem sinalizadas como abertas ou lidas ou, ao invés, como fechadas ou não lidas».”

Realizado o exame preliminar a que alude o art. 440.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência, nos termos do art.440.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

II. Fundamentação


1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica assegurar alguma certeza às orientações jurisprudenciais, evitando ou anulando decisões contraditórias, concretizando, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei[1].

Ora, de acordo com a jurisprudência deste tribunal[2], constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b) a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c) a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d) o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e) justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a) existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b) que os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c) terem sido ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.


Note-se, por fim, que a expressão soluções opostas respeita às decisões e não aos fundamentos respetivos.


2. Da análise da certidão junta, resultam a tempestividade do recurso e a legitimidade da recorrente, arguida nos autos, além dos demais requisitos formais.

No que à verificação dos pressupostos substanciais respeita, fixemo-nos na decisão dos acórdãos em causa.

a. No que ora importa, é o seguinte o teor do acórdão recorrido: (transcrição):

“A questão que se suscita prende-se com a validade da apreensão de mensagens de correio electrónico lidas/abertas apreendidas pela AdC em diligências de buscas ao abrigo do art. 18º/1 c) da Lei da Concorrência, devidamente autorizadas pelo Ministério Público.

Aderimos à tese sustentada pela ora recorrente, entendimento que sustentámos recentemente no acórdão proferido em 24/2/2022 no âmbito do P. nº 71/18.3YUSTR-M.L1, de cujo sumário consta que:

A apreensão de mensagens de correio electrónico efectuada em buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência no âmbito de processo contraordenacional encontra suporte no Regime Jurídico da Concorrência (artigos 18º/1 c) e 20º da Lei 19/2012, de 8 de Maio) e não na Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15 de Setembro), não se enquadrando o correio electrónico lido/aberto na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um mero documento e como tal apartado da tutela constitucional do sigilo da correspondência”

A questão convoca-nos, desde logo, para a análise do art. 34º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que, sob a epígrafe «inviolabilidade do domicílio e da correspondência», estabelece:

1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.

2. A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.

3. Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei.

4. É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

De tal norma, densificadora do direito da reserva da intimidade da vida privada consagrado no art. 26º/1 da CRP, extraímos claramente que o acesso à correspondência é constitucionalmente tutelado e que a ingerência na correspondência apenas é admissível em matéria de processo criminal.

Como se afirma no acórdão do TC n.º 464/2018, o art. 34.º da Constituição “tem por propósito consagrar e proteger o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, ou seja, prima facie, a liberdade de manter a esfera de privacidade e sigilo, livre de interferência e ingerência estadual, quer no que respeita ao domicílio (…)  quer quanto à comunicação. É, aliás, entendimento doutrinal sedimentado que o âmbito de protecção da norma constitucional abrange todos os meios de comunicação individual e privada, e toda a espécie de correspondência entre as pessoas, em suporte físico ou electrónico, incluindo não apenas o conteúdo da correspondência, mas também o tráfego como tal (…)”

Não podemos olvidar a especificidade do direito contra-ordenacional ou de mera ordenação social, cuja autonomia é reconhecida pela Constituição, face aos demais ramos do direito (cf. art. 165º/1 d) da Constituição da República Portuguesa).

A natureza dos bens jurídicos e a desigual ressonância ética estabelecem a principal distinção entre crimes e contra-ordenações (acórdão do TC nº 344/93 de 12/5/93).

A questão em análise prende-se com o conceito de correspondência.

Não existe consenso ao nível da doutrina e jurisprudência relativamente à questão de saber se tal conceito abarca apenas as mensagens de correio electrónico não lidas ou também as mensagens lidas.

A distinção releva para efeitos da aplicação do art. 17º da Lei do Cibercrime, que remete para o regime de apreensão de correspondência previsto no CPP (art. 179º).

(…) Com efeito, conforme sustentámos no supra referido acórdão proferido no âmbito do P. nº 71/18.3YUSTR-M.L1, o correio electrónico lido/aberto não se enquadra na noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de “mero documento” apartado da proteção do sigilo que é conferida à correspondência pela Lei Fundamental.

Para tanto, reportamo-nos à definição de correio electrónico constante do art. 2.º/1, b) da Lei n.º 46/2012 de 29 de agosto ou seja é correio electrónico “qualquer mensagem textual, vocal, sonora ou gráfica enviada através de uma rede pública e comunicações que possa ser armazenada na rede ou no equipamento terminal do destinatário até que este a recolha”.

Assim, a partir do momento em que a mensagem de correio electrónico é recolhida pelo seu destinatário, deixou de ser correio electrónico, passando a ser informação em arquivo (correio electrónico aberto e lido), isto é, passando a ser um “mero” documento. E, sendo um documento, deixa de merecer a tutela do sigilo consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, podendo a AdC, reunidos os demais requisitos, apreender esses documentos, nos termos do art. 18º/1 c) do RJC.

Nas palavras de Pedro Verdelho (vide Revista do CEJ, pág. 105 e “Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal”, Revista do Ministério Público, Ano 25.º, nº 100, outubro- dezembro, 2004, pp. 161 164), citadas naquele acórdão, «é pacificamente aceite que a correspondência aberta deixa de estar abrangida pela protecção constitucional de sigilo de correspondência».

Aliás, a norma do art. 34º da CRP, decalcada do art. 8º/1 da CEDH, não construiu o apontado círculo garantístico (da privacidade individual) em torno da privacidade empresarial, além de que tal norma não tem como referente o direito da concorrência, em cujo âmbito as empresas não gozam do tipo e nível de protecção garantido pelo art. 34º da CRP, bem se podendo afirmar que no presente contexto os seus direitos são incompatíveis (v. art. 12º/2 da CRP a contrario) com a tutela reservada ao indivíduo pelo art. 34º da CRP.

Assim, no caso dos autos a apreensão das mensagens de correio electrónico encontra suporte no disposto no art. 18º/1 c) do RJC.

(…) Não vislumbramos fundamento para a aplicação ao caso de qualquer regime subsidiário (cf. art. 13º, 59º/2 e 83º do RJC), porquanto não se nos afigura existir lacuna no regime jurídico da concorrência, já que o regime aplicável às práticas restritivas previstas no art. 9º se encontra expressamente regulado no mencionado art. 18º do RJC.

Por outra banda, entendemos que deve ser excluída a aplicação ao caso da Lei 109/2009 (Lei do Cibercrime), cujo objecto e âmbito de aplicação é bem distinto do da Lei da Concorrência. Aquela lei aplica-se aos processos crime, como flui do seu art. 1º, além de que não existe qualquer remissão para esse diploma, quer no RJC, quer no CPP (ex vi art. 41º/1 do RGCO). No sentido da inaplicabilidade da Lei do Cibercrime no domínio do direito contraordenacional da concorrência, vide o acórdão desta Secção PICRS proferido, em 21/12/2020, no apenso D do processo nº 18/19.0YUSTR, assim como o acórdão proferido pela 3ª Secção Criminal deste TRL em 4/3/2020 (processo nº 71/18.3YUSTR-D.L2). Do exposto é forçoso concluir que a prova apreendida nos autos pela AdC assenta nas disposições conjugadas dos art.s 18º/1 c) e 20º/1 e 2 do RJC, sendo inaplicável ao caso o RGCO (art. 42º/2) e o CPP (art. 126º/1), perfilhando-se o entendimento de que a apreensão de mensagens enviadas por email, já lidas, porque se trata de documentos, não está sujeita à tutela prevista no art. 34º/4 da CRP, não se afigurando que a tese perfilhada seja susceptível de violar qualquer norma ou princípio constitucional.

Acresce que as temáticas em apreciação devem ser apreciadas à luz do primado do Direito da União Europeia proclamado, entre outros, no conhecido Acórdão Costa c. Enel cuja primazia perante a ordem constitucional interna apenas cederá, nos termos do n.º 4 do artigo 8 da CRP, em face de ameaça dos aspectos essenciais dos princípios fundamentais do Estado de direito, sendo que a Directiva ECN+ (DIRETIVA (UE) 2019/1 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 11 de Dezembro de 2018) vem constituir um instrumento adicional de defesa da concorrência e de garantia do bom funcionamento do mercado interno em face dos novos desafios que emergem do ambiente digital (…)".

b. O acórdão fundamento defende solução jurídica divergente, em todos os seus aspetos:

 “Está em causa nos autos a apreensão, pela Autoridade da Concorrência, na sequência da prolação de despacho do Ministério Público nesse sentido, de «mensagens lidas e arquivadas em suporte digital». Tal apreensão foi alegadamente feita nos termos do disposto no n.º 1 do art. 20.º da Lei n.º 19/2012, de 08.05 (Novo Regime Jurídico da Concorrência – NRJC).

Este preceito refere, genericamente, a apreensão de documentos pelo que há que averiguar se existe norma que, com maior precisão e nível de especialidade, abranja as ditas mensagens electrónicas.

(…) A propósito desta problemática, vem questionado se existe distinção juridicamente relevante entre correspondência digital aberta e fechada e se apenas esta será merecedora de particular tutela legal e constitucional, cabendo aquela na mole genérica de «documentos», assim gerando a aplicação do regime abrangente da al. c) do n.º 1 do art. 18. e no n.º 1 do art. 20.º do NRJC.

A este respeito, importa começar por referir que a questão não tem o menor suporte na letra do mencionado artigo 17.º da Lei do Cibercrime (doravante também LC) o que logo convoca o brocardo latino «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus». Com efeito, o legislador não fez tal distinção entre correspondência lida ou por ler.

Do texto do referido artigo antes se extrai que o criador da norma quis proteger a correspondência digital em qualquer estado do processo comunicacional e até após o termo deste, fazendo englobante menção a «mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante».

À luz desse diploma legal, não tem suporte qualquer tentativa de separação conceptual e classificativa.

A jurisprudência posterior à aprovação desse texto normativo não podia, pois, deixar de espelhar a opção do legislador. Neste sentido, encontramos no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.09.2012 (processo n.º 787/11.5PWPRT.P1, in http://www.dgsi.pt) ajustada referência ao câmbio de paradigma ao convocar «um olhar diferente sobre a temática» que fizesse um corte com a comum restrição da tutela da correspondência imposta pelo art. 34.º da Constituição da República Portuguesa e pela lei, às comunicações não abertas.

Aceita-se a afirmação de que, na área do correio electrónico, não se pode verdadeiramente falar em abertura de correspondência, embora se possa também tomar em consideração que os diversos programas de correio electrónico contêm mecanismos de marcação das mensagens como lidas o que corresponde à menção a um acto digital de abertura de correspondência e poderia, pois, ter influência na análise que se empreende. Esta referência não assume, porém, relevo no caso que nos ocupa já que, na verdade, o legislador nada segregou.

Não podia, neste contexto, a doutrina deixar de espelhar o que, de forma clara e, logo, insofismável, emerge da lei – vd., neste sentido e por todos, o afirmado por ALBUQUERQUE, Paulo Pinto no excerto do seu Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 4.ª ed., 2011, pág. 510, invocado pela Recorrente nas suas alegações e recurso, com o seguinte teor:

O artigo 17.º da Lei n.º 109/ 2009, de 15.9, não revogou o disposto no artigo 189.º sobre a intercepção de correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática. Portanto, a apreensão de correio electrónico "armazenado" ou "guardado" e de outros "registos" de comunicações e transmissão por via telemática rege-se, sem quaisquer restrições, pelo disposto no artigo 17.º da Lei n.° 109/2009, conjugado com o disposto nos artigos 179.º e 252.° do CPP (acórdão do TRL, de 11.1.2011, 5412/08.9TDLSB-A.L1-5).

Não se divisam, efectivamente, como bem referiu este autor, quaisquer restrições de regime.

Resulta directamente daquele art. 17.º que é do juiz o poder de autorizar ou ordenar a apreensão de correspondência electrónica.

Este monopólio de intervenção legitimadora emerge devidamente esclarecido do referido aresto jurisprudencial do Tribunal Constitucional, que patenteou, com relevo para o que aqui se aprecia (ainda que em sede de fiscalização preventiva da alteração proposta para o referido art. 17.º pelo Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República):

Nestes termos, considerando todos os argumentos até agora aduzidos, não se duvida de que os interesses prosseguidos pela investigação criminal constituem razões legítimas para uma afetação restritiva dos direitos fundamentais à inviolabilidade da correspondência e sigilo das comunicações (artigo 34.º, n.os 1 e 4, da CRP), e à proteção dos dados pessoais, no domínio da utilização da informática (artigo 35.º, n.os 1 e 4 da Lei Fundamental), enquanto manifestações particular e intensamente tuteladas da reserva de intimidade da vida privada (n.º 1 do artigo 26.º da CRP). Contudo, a restrição de tais direitos especiais, que correspondem a refrações particularmente intensas e valiosas de um direito, mais geral, à privacidade, não pode deixar de respeitar não apenas as condições genericamente impostas pelo texto constitucional para qualquer lei restritiva de direitos fundamentais, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, como a exigência específica, em sede de processo criminal, de intervenção de um juiz, consagrada no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição.

(…) A intervenção do juiz visada pelo legislador na redação vigente do art. 17.º é inicial e não meramente posterior e confirmativa, face à ausência de verbalização normativa conducente a essa conclusão.

De qualquer forma, também os factos analisados neste processo não têm conexão com distinta hipótese, tudo se reconduzindo a uma intervenção investigatória meramente sustentada em despacho do Ministério Público e destituída de acto confirmativo posterior.

A consequência do incumprimento do regime legal avaliado é a nulidade dos actos praticados – cf. o disposto no n.º 1 do art. 179 do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art. 41.º do RGCO e da parte final do art. 17.º sob ponderação, bem como o n.º 3 do art. 126.º do mesmo Código.

Não há, no entanto, lugar ao pretendido decretamento de anulação do despacho do Ministério Público, por não se estar perante decisão judicial.

Flui do exposto ser positiva, mas nos termos enunciados, a resposta que merece a questão analisada, o que terá expressão final na parte dispositiva desta decisão.”

c. Ambos os Acórdãos, Recorrido e Fundamento, versam sobre a validade da apreensão de mensagens de correio eletrónico pela AdC, no âmbito de diligências de busca e apreensão conduzidas em processo contraordenacional de direito da concorrência, ao abrigo do artigo 18º, n.º 1, alínea c), da Lei de Defesa da Concorrência e sem autorização ou ordem judicial para o efeito.

Em suma:

- O acórdão recorrido validou a apreensão de mensagens de correio eletrónico, autorizada pelo Ministério Público e efetuada em buscas levadas a cabo pela Autoridade da Concorrência, no âmbito de processo contraordenacional, ao abrigo dos arts. 18º, n.º 1, al. c) e 20º do Regime Jurídico da Concorrência, entendendo que o correio eletrónico lido/aberto não integra a noção de correspondência/meio de comunicação, tratando-se de um mero documento e como tal apartado da tutela constitucional do sigilo da correspondência;

- O acórdão fundamento julgou a mesma questão, em sentido oposto, declarando nula a apreensão, por considerar que a apreensão de correspondência digital, no quadro de busca em investigação da prática de contraordenação, é regida pelo art. 17.º da Lei do Cibercrime, que esta norma não distingue entre correspondência aberta ou fechada ou comunicação digital lida e não lidas e que tal decisão é, sempre, da competência de um juiz.

Ou seja, perante idênticas situações de facto, os dois acórdãos decidiram de forma oposta, por perfilharem diferente interpretação quanto ao regime jurídico aplicável na apreensão de mensagens de correio eletrónico sinalizadas como lidas, no âmbito de processo de contraordenação de direito da concorrência, sendo certo que entre a prolação dos mesmos não teve lugar qualquer alteração legislativa.

Verificando-se, assim, oposição de julgados.

2. O art. 18.º da LDC, sob a epígrafe “Poderes de busca, exame, recolha e apreensão”, dispõe na al. c), do n.º 1, que:

“1 - No exercício de poderes sancionatórios, a AdC, através dos seus órgãos ou trabalhadores pode, designadamente:

c) Tirar ou obter sob qualquer forma cópias ou extratos dos documentos controlados e, sempre que o considere adequado, continuar a efetuar esse tipo de pesquisa de informação e seleção de cópias ou extratos nas instalações da AdC ou em quaisquer outras instalações designadas”

E o n.º 1 do art. 20.º do mesmo regime que:

1 - As apreensões de documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte, são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.

O n.º 1, do art. 13.º da Lei de Defesa da Concorrência define o direito aplicável aos processos de contraordenação: “Os processos por infração ao disposto nos artigos 9.º, 11.º e 12.º regem-se pelo previsto na presente lei e, subsidiariamente, com as devidas adaptações, pelo regime geral do ilícito de mera ordenação social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro”.

E o n.º 1, do art. 41.º do RGCO estatui que “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.”

Por sua vez, a Lei do cibercrime define o regime da apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, em processo criminal, no art. 17.º:

“Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”

3. A decisão sobre a entidade competente para autorizar, ordenar ou validar a busca e apreensão de “documentos”, no âmbito dos processos em causa, quando o objeto da apreensão se refere a correio eletrónico – mensagens marcadas como lidas, implica, face ao teor das normas do art. 18.º, n.º 1, al. c) da LdC e do art. 17.º da Lei do Cibercrime, a apreciação sobre se aquelas mensagens constituem documento.

A interpretação (defendida no acórdão recorrido) que entende ser aplicável, à apreensão do correio eletrónico marcado como lido, o regime da Lei de Defesa da Concorrência sustenta-se, fundamentalmente, na consideração da natureza documental daquelas mensagens, excluindo-as, por essa via, da proteção constitucional da correspondência e do regime processual penal da apreensão de correio eletrónico.

Por sua vez, o entendimento segundo o qual a Lei do Cibercrime se aplica subsidiariamente à apreensão dessas mensagens, no âmbito dos processos em causa, procede da consideração da inexistência de base legal para a distinção entre correio marcado como lido e marcado como não lido.

Com efeito, não prevendo a LdC um regime específico para a apreensão de mensagens de correio eletrónico, referindo-se, tão somente, a “documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte”, a aplicabilidade do seu art. 20.º a mensagens de correio que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, implica, necessariamente, uma decisão (que teve lugar nos 2 acórdãos) sobre a distinguibilidade juridicamente relevante entre umas e outras, no que à respetiva apreensão em processo sancionatório respeita.

Decisão essa que, na interpretação que conclui pela aplicação da Lei do Cibercrime, se afigura ainda mais evidente.

4. A resposta à questão colocada demandará, eventualmente, um percurso interpretativo complementar que pondere, entre outros elementos, a natureza empresarial dos visados, a defesa da concorrência na Carta e no TFUE.

Contudo, é dela basilar a pronúncia sobre a suscetibilidade de distinção e diversa categorização, para o efeito, das mensagens marcadas como lidas ou não lidas.

Ora, como bem refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, encontra-se pendente de submissão ao Pleno das Secções Criminais o recurso n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1, visando a fixação de jurisprudência sobre a seguinte questão jurídica:

Na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas ou lidas no momento da respetiva apreensão, devendo o juiz de instrução criminal delas tomar prévio conhecimento, a fim de decidir pela junção aos autos daquelas que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

Dispõe o n.º 2, do art. artigo 441.º do CPP que se “a oposição de julgados já tiver sido reconhecida, os termos do recurso são suspensos até ao julgamento do recurso em que primeiro se tiver concluído pela oposição”.

Não sendo totalmente coincidentes as questões jurídicas a decidir num e outro recursos, certo é que a oposição de julgados no presente RFJ implica o conhecimento, compreendido diretamente na jurisprudência a fixar, do objeto do recurso supra identificado, em que a oposição foi já reconhecida.

Razão pela qual se justifica a suspensão dos termos do presente recurso até à decisão pelo Pleno do RFJ n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1, em que foi já reconhecida a oposição de julgados.


III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

1. Julgar observados todos os requisitos formais e substanciais, incluindo a oposição de julgados, entre os dois referenciados acórdãos (recorrido e fundamento) e, em consequência, determinar o prosseguimento do presente recurso (art. 441.º n.º 1, 2.ª parte, do C.P.P.)

2. Determinar a suspensão dos termos do presente recurso, até à decisão pelo Pleno do RFJ n.º 184/12.5TELSB-R.L1-A.S1 (n.º 2, do artigo 441.º do CPP).

Sem tributação.


Lisboa, 11.07.2023


Teresa de Almeida (Relatora)

Ana Maria Barata Brito (1.º Adjunto)

Sénio Alves (2.º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Pereira Madeira, in Código Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 3.ª Edição Revista, 2021, pág. 1402, e acórdão deste tribunal e desta secção, de 24/3/2021, no proc. n.º 64/15.2IDFUN.L1-A.S1.
[2] Cfr., por todos, acórdão de 28.01.2015, no proc. n.º 7/14.0.SFGRD.C1-A.S1, 3.ª secção.