Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3218
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO GENÉRICA
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
CONSTITUCIONALIDADE
MOTIVAÇÃO DO RECURSO
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
BURLA
CRIME DE EXECUÇÃO VINCULADA
CRIME DE RESULTADO
ERRO
ENGANO
ASTÚCIA
PREJUÍZO PATRIMONIAL
ENRIQUECIMENTO ILEGÍTIMO
CONSUMAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
PENA SUSPENSA
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200710310032183
Data do Acordão: 10/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O recorrente que impugne a matéria de facto, visando a modificabilidade dos seus termos pela Relação, ao abrigo do art. 431.º do CPP, há-de cumprir o ónus de impugnação previsto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma, em particular indicando e impugnando especificadamente os pontos de facto que reputa incorrectamente julgados.
II - O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
III - Não satisfaz, pois, ao desígnio legal uma impugnação genérica dos factos que se quede por uma insatisfação difusa ante o quadro factual fixado, explanada sem ser por referência, ainda que com um mínimo de tradução no texto da motivação, a factos concretos.
IV - O TC e o STJ têm decidido pela inconstitucionalidade do entendimento que rejeita o recurso quanto à matéria de facto sem previamente convidar o recorrente a suprir as deficiências e obscuridades das conclusões do mesmo – cf. Acs. do TC n.º 529/2003, de 31-10, publicado no DR, II Série, de 17-12-2003, e do STJ de 30-10-2002, Proc. n.º 2535/02 - 3.ª, SASTJ, n.º 64, pág. 90.
V - Mas estes são casos em que o recorrente expôs de forma válida e consistente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinalou devidamente nas conclusões, permitindo-se-lhe, em nome de uma proibição de excesso, do princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2, da CRP), de compressão ao mínimo dos direitos, a correcção da sua omissão.
VI - Quando o recorrente no corpo da motivação do recurso se abstém do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciando as especificações, o convite à correcção não comporta sentido, porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, inscreveria um novo recurso, com inovação da motivação e novas conclusões, precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do direito ao recurso.
VII - A correcção há-de mover-se dentro dos termos da própria motivação. Esta conclusão mostra-se, hoje, inteiramente suportada pela lei, muito particularmente pelo art. 417.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29-08, onde se consente o convite ao aperfeiçoamento das conclusões em ordem à harmonização com a motivação, mas sempre dentro dos limites da motivação do recurso – neste sentido se pronunciou o Ac. do TC n.º 140/2004, de 10-03-2004, Proc. n.º 565/03, reafirmando a inconstitucionalidade da interpretação dos n.ºs 3, als. a), b) e c), e 4 do art. 412.º do CPP que sustenta o não conhecimento da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, mas desde que da motivação constem aquelas indicações faltosas.
VIII - A lei, nos arts. 420.º, n.º 1, e 414.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, alude à improcedência do recurso por falta de motivação. Porém, respeitando a falta de indicação de elementos atinentes à impugnação da matéria de facto na motivação, tudo se passando como se ela estivesse parcialmente ausente, não seria justo prejudicar a apreciação do mérito da causa sobre o ponto de vista do direito, de acordo com a regra utile per inutile non vitiatur, situando-se, pois, numa linha de coerência a simples rejeição parcial, ficando a apreciação do recurso adstrita à matéria de direito.
IX - A burla constitui-se como um crime de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico decorre da consequência de uma muito particular forma de comportamento, que se traduz na utilização de um expediente tendente a induzir outra pessoa em erro. Para que a conduta integre a previsão do ilícito não basta o emprego de um simples meio enganoso, necessário é que este seja causa efectiva do erro em que se encontra a vítima.
X - Revestindo a natureza de um crime material ou de resultado, a sua consumação passa por um duplo nexo de imputação objectiva: primeiro, entre a conduta enganosa do arguido e a prática pelo burlado de actos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio, e, depois, entre os últimos, ou seja, os actos executados pelo burlado, e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial – cf. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 293.
XI - Assim, para que se esteja em face de um crime de burla, não basta o simples emprego de um meio enganoso, torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo; e também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro, requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais. Podendo a burla consumar-se através de declarações ou palavras, ou inferir-se de actos concludentes ou de omissões, a atitude externa do agente só passa a integrar aquele delito quando assume um especial conteúdo, caindo então na alçada penal.
XII - Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios, pelo empolar de qualidades que o objecto negocial não preenche, ou o seu preço não justifica, ou as circunstâncias negociais não legitimam, o acto praticado pode ser analisado à luz de um dolo civil, afastando-se o criminal. Este só se ajusta à fattispecie penal quando o burlão, pelo recurso à mentira, à maquinação, no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro, usa de astúcia, enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida.
XIII - A astúcia é, materialmente, algo mais que aquela mentira; é um plus que lhe acresce e que lhe empresta, sob a forma de cenário criado, uma mise-en-scène, que tem por fim dar crédito à mentira e inevitavelmente enganar (escreve Garraud, citado pelo Prof. Beleza dos Santos, in RLJ, ano 76, n.º 27, pág. 278). A astúcia torna a mentira, já de si condenável, em verdade intransponível.
XIV - Na burla, no plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista.
XV - Na imputação objectiva, admite-se a teoria da adequação, tendo em atenção a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g., mercê da fragilidade intelectual, da inexperiência ou de especiais relações de confiança com o agente) e, na conformidade com aquela, a possibilidade de se concluir pela idoneidade de um meio enganador por via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas (cf., ainda, Almeida Costa, ob. cit., págs. 294-295).
XVI - Assim, para a verificação do crime de burla deverá exigir-se, num primeiro momento, a ocorrência de uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha em erro ou engano o lesado e, num segundo momento, a constatação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro. Por outro lado, na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento (cf. Ac. do STJ de 23-01-1997, in BMJ 463.º/276).
XVII - Num caso em que os arguidos criaram uma situação de erro sobre a condição económica da empresa – situação diferente da real – fazendo crer, falsamente, aos ofendidos (seus tios) que esta se achava numa situação à beira da ruptura, e aproveitaram esse erro (aqui se situando a astúcia) para induzir aqueles à venda das quotas, acabando, em agravação do modo de execução do plano, por as alienar por valor inferior ao nominal, apesar de terem recebido instruções dos sócios para o não fazerem, vindo mais tarde, sempre movidos pelo mesmo objectivo de enriquecimento – conseguido, no valor global de, pelo menos, € 41 596,38 – à custa dos ofendidos – que empobreceram, cada um dos quatro, em pelo menos € 9923,27 –, a constituir uma outra sociedade, com o mesmo escopo social e com todo o seu património (equipamento mobiliário, viaturas, instalações e pessoal), mostra-se verifica a prática do crime de burla qualificada.
XVIII - Este ilícito era punido à data da prática dos factos, por força do disposto no art. 314.º, al. c), do CP82, com uma moldura penal abstracta de 1 a 10 anos de prisão. Actualmente, o CP, no seu art. 218.º, n.ºs 1 e 2, al. a)), pune a burla qualificada com uma pena abstracta de 2 a 8 anos de prisão. De imediato, numa ponderação meramente abstracta, sem necessidade de recurso à comparação concreta de regimes, se alcança que o regime de maior favor para os arguidos, considerando que o limite mínimo da pena é mais elevado no domínio da lei nova do que no da anterior, é o que resulta do CP82, sendo, dentro dos limites que este prescreve, adequado condenar os arguidos em 3 anos de prisão, suspensa por 5 anos com a condição de, em 1 ano, pagarem aos assistentes a totalidade dos valores indemnizatórios por que foram condenados (danos patrimoniais: € 41 596,38 (e juros) + [€ 17 457,93 x 3] (e juros) + danos não patrimoniais: [€ 12 250 x 4] (e juros)).
XIX - No que concerne ao aspecto da proporcionalidade da condição, nenhum reparo há a dirigir à mesma: em primeiro lugar, porque não se trata de uma indemnização fixada em moldes exorbitantes, que os ofendidos não estejam em condições de satisfazer, inclusive pelo recurso ao crédito; depois, porque o contencioso nutrido com os lesados se estende há vários anos, devendo estar preparados para que o litígio sofra este desfecho, designadamente com um fundo de reserva capaz de lhe fazer face; finalmente, porque os lesados formaram posteriormente uma sociedade, não sendo a sua situação geradora de qualquer apreensão em termos de satisfação das quantias arbitradas.
Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum com intervenção do Tribunal colectivo , sob o n.º 542/96 . OTASTR , da 5.ª Vara Criminal -1.ª Sec., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa ,foram submetidos a julgamento:

AA e BB, vindo , a final , a ser condenados :

como co-autores de um crime de burla , p . e p . pelos art.º s 313 .º e 314.º al. c), do CP ( versão originária ) na pena de 3 anos de prisão , suspensa na sua execução por 5 anos , com a condição de, em 1 ano , pagarem aos assistentes a totalidade dos valores indemnizatórios por que foram condenados e , concretamente :

- aos assistentes, a quantia global de € 41.596,38 (quarenta e um mil quinhentos e noventa e seis euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora devidos desde 25-05-95 , até efectivo e integral pagamento;

- aos assistentes CC, DD e EE, a importância, para cada um, de € 17.457,93 (dezassete mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora devidos desde 25-05-95 até efectivo e integral pagamento;

- A cada um dos assistentes, a quantia € 12.250,00 (doze mil duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora desde o trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento.

I . Inconformados com o decidido , interpuseram os arguidos recurso para o Tribunal da Relação , que lhes negou provimento ; de novo , irresignados , interpondo recurso para este STJ , alegam nas conclusões que :

1. Considerou o acórdão recorrido haverem os recorrentes violado o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art..º 412.º , do CPP, não tendo dado satisfação a nenhuma das als . do n.º3 ;

2. Considerou-se no acórdão recorrido que, não se poderia conhecer do recurso que versava a matéria de facto e que o recurso se deveria restringir à matéria de direito ;

3. Representa tal posição, rejeição do recurso que versava a matéria de facto ;

4. Tal equivale a rejeição de recurso ;

5 . Da letra da lei, nomeadamente, do disposto nos art..º 420.º n.º 1; 412°, n.º 2 e 412°, n.º 3, todos do CPP, não resulta a possibilidade de o Tribunal "ad quem" rejeitar o recurso que verse matéria de facto se o recorrente não proceder às especificações contidas nas als. do n.º 3, nem der cumprimento ao disposto no n.º 4 do art..º 412° CPP; pois,

6. O art.º 420.º , que regula genericamente a rejeição do recurso, não lhe faz referência como causa de rejeição;

7. Só a falta das especificações previstas nas alíneas do n.º 2 do art.º 412.º , permitem a rejeição de recurso e somente quanto ao recurso que verse matéria de direito;

8. Relativamente ao recurso que verse matéria de facto, não comina a lei com a rejeição a eventual omissão das especificações que os n.ºs 3 e 4 , do art.º 412.º , do CPP impõem para este género de recurso;

9. Considerando-se terem os recorrentes omitido as especificações previstas no n..º 3 , do art.º 412.º , do CPP e a referência prevista no n.º 4, deveria o relator ter facultado a oportunidade de suprir tal de deficiência, convidando ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no n.º 4 , do art.º 690° do Cód. Civil, aplicável por força do disposto no art.º 4° do CPP;

10. A aplicabilidade da norma do n.º 4 do art.º 690° CPC, resulta do facto de a lei processual penal não regular expressamente os casos de omissão de tais especificações, existindo, assim, lacuna que carece de integração;

11. Tal integração de lacuna, nos termos do art.º do 4° CPP, deve ser feita por recurso ao processo civil;

12. Até porque o regime previsto no processo civil é o que serviu de paradigma ao processo penal, dada a quase perfeita similitude de regime e redacção entre os n.ºs 1 e 2 do art.º 690.º -A , do CPC e os n.ºs 1 e 2 , do art.º 412° do CPP; e os n.ºs 1 e 2 do art.º 690.º -A , do CPC e os n.ºs 3 e 4 do art.º 412° CPP;

13. No regime do processo civil, ao inverso do processo penal, prevê-se a rejeição de recurso no caso de omissão das especificações obrigatórias no recurso que verse matéria de facto, e aperfeiçoamento no recurso que verse matéria de direito;

14. Consequentemente, só pode concluir-se que o legislador processual penal, ao estatuir o regime em causa, invertendo (relativamente ao processo civil) a cominação para a omissão das especificações, não pretendeu a rejeição do recurso nos que versem sobre matéria de facto, mas sim nos que versem sobre matéria do direito;

15. Indicando-se no processo civil, solução para o caso de omissão de especificações em recurso onde tal omissão não implique, “expressis verbis “ , a rejeição, (recurso que verse matéria de direito), tal como no processo penal (recurso que verse matéria de facto) é esta a que deve ser seguida; ou seja, a do n.º 4 , do art.º 690.º do CPC;

16. Tal entendimento impõe-se, por maioria de razão, quando confrontados com a doutrina do Ac. do Tribunal Constitucional n.º 320/2002 , de 9 de Julho, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 2 do art.º 412° CPP no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções aí contidas tenha como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência;

17. Se se impõe, por via do cit. Acórdão do Tribunal Constitucional, que seja facultada a oportunidade de suprir a deficiência em causa, convidando-se ao aperfeiçoamento das conclusões em recurso onde a lei, “ expressis verbis “ , comina a falta com a rejeição, por maioria de razão, se impõe que em recurso que verse matéria de facto, onde não se comina a falta das especificações previstas nos n.ºs 3 e 4, do art. ° 412° CPP, “ expressis verbis “ , com a rejeição se deve convidar o recorrente ao aperfeiçoamento, facultando-lhe a oportunidade de suprir tal deficiência;

18. Consideram-se violadas pelo acórdão recorrido as normas constantes do n..º 1 do art.º 420.º , n.º 3 e 4 do art.º 412°, todos do CPP e n.º 4 do art..º 690° do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do art.º 4° do CPP;

19. Considera-se que o Tribunal recorrido interpretou as normas constantes dos n.ºs 3 e 4 do art.º 412° , do CPP, no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas als . do n.º 3 e n.º 4, tem como efeito a rejeição liminar do recurso dos arguidos, sem que a eles seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência;

20. Ao invés, deveria ter interpretado tais normas no sentido de ser facultada aos recorrentes a oportunidade de suprir tal deficiência, de acordo com a doutrina do Ac. TC. n. ° 320/2002 e aplicado o disposto no n. ° 4 , do art. ° 690° CPC;

21. É inconstitucional, por violação das normas contidas no n.º 1 , do art.º 32° e n.º 4 do art.º 200.º , ambos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação (e decisão) partilhada no acórdão recorrido, no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412° CPP, terem como efeito a rejeição liminar do recurso dos arguidos, ou o seu não conhecimento, sem que aos mesmos seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência, convidando-se ao aperfeiçoamento;

22. Tal interpretação restringe drasticamente as garantias de defesa dos arguidos no presente processo criminal, violando os princípios de garantia de defesa e de dupla jurisdição prevista no n.º 1 , do art.º 32° da CRP e n.º 1 do art. ° 428° CPP; bem assim como, limita drasticamente a possibilidade (esperada) de um julgamento equitativo;

23. Porém, os arguidos, nos fundamentos e conclusões da sua motivação no recurso sobre a matéria de facto, não violaram as disposições contidas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412° CPP, havendo indicado os pontos de facto que consideraram incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa de recorrida, tendo-o feito por referência aos suportes técnicos, estes em obediência ao disposto no n.º 2 do art.º 690.º-A e n.º 2 do art.º 522°- C, ambos do C P Civil, aplicáveis por lacuna no processo penal susceptível de ser integrado nos termos do disposto no art. o 4° CPP, tendo-se ordenado e feito a respectiva transcrição;

24. Em consequência das conclusões atrás expostas, deve o Acórdão recorrido ser revogado, desde logo, por ilegalidade ou utilização de interpretação inconstitucional, mandando-se que o Tribunal da Relação de Lisboa, proceda ao julgamento do recurso quanto à matéria de facto, mandando cumprir o disposto no n.º 4 do art.º 690.º , do Cód. Proc. Civil, na medida em que entenda deficiente as conclusões da motivação. Quando assim não se entenda ,

25. Deve considerar-se não estarem reunidos os elementos necessários ao preenchimento do crime de burla e os arguidos absolvidos em conformidade;

26. De acordo com os factos provados e as normas da "experiência comum", ainda que o arguido propalasse a situação difícil da empresa, ela, na realidade, vivia-a, com os cortes de abastecimento de fornecedores que representavam "pelo menos 80% da sua actividade", pelo que, o arguido mais não fazia do que alertar os restantes sócios para as dificuldades que inexoravelmente e de acordo com as regras da "experiência comum" se aproximariam, como se aproximaram;

27. Essa situação de dificuldade económica da empresa, não podia deixar de ser do conhecimento do EE e FF, principalmente, mas das outras sócias também, atento o acompanhamento de gestão que faziam;

28.Falecem elementos objectivos e subjectivos do crime de burla imputado aos arguidos. Na verdade, não se deu como provado astuciosamente factos sobre os quais os assistentes estariam em erro. Tal matéria, respeitaria à criação de condições para paralisia da empresa (perda de fornecedores e aumento dos custos fixos) o que não se deu como provado, também, que tenham provocado qualquer erro sobre os factos (os assistentes bem conheciam a situação da empresa, quanto às suas dificuldades e estabilização em 1994) e, não lhes foi criado prejuízo, na medida em que o valor apurado no acórdão recorrido como sendo o valor da empresa é um valor meramente contabilístico, que nada pode ter que ver com o valor venal da empresa. Como valor venal há-de ter-se o de 1.500 000$00 oferecido pela M...,L... e livremente aceite pelos assistentes, por ser esse o que resulta das leis da oferta e da procura.

29. Não se encontra preenchido o elemento subjectivo, na medida em que, não existe dolo dos arguidos quanto a um eventual enriquecimento, que não se provou;

30. Não se encontra provado que o alegado plano urdido pelos arguidos, antes ficou por demonstrar o plano descrito na acusação e atribuído aos arguidos;

31. No julgamento da causa, deve ser dada relevância à alegada conduta antijurídica dos assistentes, que alegam não terem tido conhecimento da verdadeira situação da sociedade, quando a eles competia, na qualidade de gerentes (que o arguido não era) estarem devidamente bem informados, em ordem a realizar os seus deveres e responsabilidades legalmente prescritas, essencialmente, na lei comercial;

32. Quando as instâncias não atribuem qualquer relevância à circunstância referida na conclusão anterior, estão a desresponsabilizar ilegalmente a conduta alegada e confessadamente negligente e laxista dos assistentes, que só por causa dela (segundo alegam) se teriam deixado burlar pelos arguidos;

33.Este comportamento antijurídico dos arguidos não deve ser caucionado pelos Tribunais e deve ser considerado como concorrente para a produção do resultado;

34. A conduta dos assistentes representa um abuso de direito na modalidade “ venire contra factum proprio “ ;

35. A assim considerar-se, aos assistentes deve, então, ser atribuído o alegado desconhecimento sobre a real situação da sociedade, considerando-se de nulo efeito jurídico a alegada indução dos arguidos no comportamento dos assistentes;

36. Compreendendo, na tese da acusação, a conduta dos arguidos dois segmentos, ou seja, a criação de uma condição económica e financeira da empresa favorável a induzir os assistentes a venderem as suas quotas e a indução em si, não se verificando a primeira à segunda não pode ser dada relevância criminal;

37. Assim, encontra-se a matéria de direito incorrectamente julgada, de acordo com o que se deixou atrás concluído e alegado, no sentido de que não foram correctamente aplicados aos requisitos do art.º 313° (actual 217°) do C.Penal aos factos provados e não provados, como se alegou;

38. Não resultando provados os requisitos do crime de que são acusados, deviam os arguidos ter sido absolvidos; ou, quando muito,

39. Considerar-se existir dúvida razoável e, assim, em obediência ao princípio do "in dubio pro reo “ , absolver os arguidos;

40. A arguida BB deveria ter sido considerada inocente e absolvida, porque contra ela não se provaram quaisquer factos que sustentem a Acusação formulada, apenas que tinha conhecimento e havia consentido nos "planos" do marido. Porém, nenhum facto provado sustenta a conclusão pelo "conhecimento e consentimento";

41. Quando assim não se entender, a pena a aplicar-lhe deveria ter sido muito menor, atento o seu muito menor alegado grau de participação no eventual "plano" do marido.

42.Relativamente ao valor indemnizatório arbitrado não deve prevalecer; pois,

43. O relativo a indemnização pela diferença de valor entre o valor da sociedade e o valor de venda das quotas, é ele apurado em função do valor contabilístico das quotas, que não é o mesmo que o valor venal das mesmas;

44. Os assistentes ao tempo da cessão de quotas, conheciam ou tinham condições para conhecer o valor contabilístico das quotas. Se venderam por valor inferior ao valor contabilístico, tal eventual falta de informação ou vontade de vender abaixo daquele valor, não pode ser imputado e revertido contra os arguidos;

45. Deve, pois, considerar-se não ter havido qualquer prejuízo dos assistentes no que a este valor respeita;

46. Relativamente às remunerações deixadas de auferir pelas assistentes, não devem os arguidos ser por elas responsabilizados, dado que, como se provou, ao tempo a sociedade passava por dificuldades económicas sérias, os próprios trabalhadores ficaram sem aumentos de vencimento de Janeiro de 1993 a Dezembro de 1996, e os assistentes, face a esses reais problemas, voluntariamente abdicaram das remunerações, incluindo a arguida BB;

47. Ela não fez seus tais valores. Ao passarem para a sua conta contabilística, foi mera operação dessa natureza, acrescendo que em 1995 deixou de ser sócia, nunca tendo levantado aquelas quantias que, de resto não existiam;

48. Quanto aos invocados danos não patrimoniais dos assistentes, não existem eles, ou não devem ser considerados, uma vez que venderam a empresa livremente, a quem e pelo preço que entenderam (M..., 1500 contos); e, depois, porque se não o fizeram (que fizeram) de forma livre e informada, tal negligência a eles unicamente se deve, dado que tinham todas as condições de informação ao tempo (iguais às postas ao dispor das instâncias). Não deve, pois, tal eventual, mas inexistente, falta de informação ser assacada e revertida contra os arguido, por traduzir um comportamento negligente dos assistentes;

49. Existe litispendência entre o pedido de indemnização civil e a causa que corre no Tribunal de Almeirim, pelo que assim devia ter sido declarado e os arguidos absolvidos da instância;

50. A sentença da 1.ª instância é nula por não conter o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, conforme exige o n.º 2 do art..º 374.º , do Coo. Proc. Penal e comina a al.a) do n.º 1 do art.º 379.º do mesmo diploma;

51. Deve, em conformidade com o alegado e as conclusões que antecedem, ser dado provimento ao recurso, o acórdão recorrido revogado em conformidade.

O M.º P.º e os assistentes defenderam , em contramotivação , a acerto da decisão recorrida .

II . Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos , a considerar :

Em 20/01/79, no Cartório Notarial de Almeirim, foi constituída a sociedade comercial por quotas designada « GG, Herdeiros, Limitada », intervindo nessa constituição, como sócios, HH, os ora assistentes, DD, EE, II e JJ, todos irmãos entre si, e ainda, a arguida BB, sobrinha destes e filha do seu já falecido irmão, LL.

Esta sociedade fixou a sua sede na vila de Almeirim, Campo da Feira e encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Almeirim sob o n° 284 e tinha por objecto social o comércio de refrigerantes, águas minero-medicinais e cerveja.

Na referida data da sua constituição, o capital social da « GG, Herdeiros, Lda » era de 2.400.000$00 ( dois milhões e quatrocentos mil escudos ), correspondente à soma de seis quotas iguais, no valor nominal de 400.000$00 ( quatrocentos mil escudos ).

Esta sociedade sucedeu a uma sociedade familiar com a mesma designação, fundada por GG, pai dos sócios HH e dos ora assistentes, DD, EE, II, JJ, esta avó da arguida.

Com o falecimento de GG, em Dezembro de 1947, sucedeu-lhe à frente dos destinos da sociedade, o seu filho, LL, pai da arguida.

Após o falecimento de LL, em 1970, o ora assistente EE e FF, marido da sócia e aqui assistente II, dedicaram-se a gerir a sociedade, na medida do que lhes era possível, uma vez que não residiam em Almeirim e cada uma tinha actividades profissionais à margem da actividade comercial da sociedade familiar.

Foi por isso que EE e FF, com o conhecimento e consentimento dos demais sócios e familiares, desde 1988, começaram a confiar no arguido os assuntos correntes de rotina da gestão da sociedade, por estarem impedidos de o fazer por razões profissionais ( tendo o FF ido prestar serviço em Angra do Heroísmo ) e por estarem convictos de que o arguido seria a pessoa mais adequada para exercer tais funções.

Por um lado, o arguido era marido da arguida, sobrinha dos demais sócios e também ela, sócia da « GG, Herdeiros, Lda ».

Por outro lado, o arguido conhecia bem o ramo de actividade que era objecto da sociedade, tendo inclusive, chegado a trabalhar como empregado da « GG, Herdeiros, Lda ».

Deste modo, tendo aceite o convite que lhe foi formulado pelos seus tios, no decurso do ano de 1988, o arguido ficou encarregue da gestão da sociedade e foi, pouco a pouco, ganhando poderes efectivos no giro corrente da empresa, embora não fosse formalmente gerente da sociedade familiar.

Assim, o arguido linha total liberdade para decidir sobre compras, vendas, contratação, despedimentos de empregados e todas as outras questões que respeitassem à gestão da sociedade, ainda que sobre algumas situações de maior importância para a vida da empresa, como, por exemplo, a aquisição de viaturas, o arguido se aconselhasse com o ora assistente EE

A confiança que nele tinha sido depositada pelos tios, foi sendo cultivada pelo arguido, que, ao longo dos anos em que esteve a administrar a sociedade, sempre demonstrou perante aqueles que a actividade da sociedade « GG, Herdeiros, Lda » decorria dentro da normalidade, assegurando-lhes que a mesma estava em franca expansão.

Era assim um confiança ilimitada atento sobretudo o facto de todos pertencerem à mesma família.

Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a Janeiro de 1993, os arguidos decidiram conjugar esforços e agir concertadamente, com vista a obterem para si proveito económico originado pela aquisição para si, a preço muito inferior ao real, das quotas dos demais sócios da sociedade « GG, Herdeiros, Lda », traçando um plano estruturado com vista a alcançar tal finalidade.

Assim, na execução desse plano, no início do ano de 1993, o arguido, com o conhecimento e consentimento da arguida, em telefonemas que fazia para o assistente EE, que sabia ser uma pessoa mais sensível a questões de honra e para quem a falência da sociedade familiar seria uma vergonha ( atento o meio pequeno ), começou por afirmar que a sociedade estava praticamente falida, em risco de ruptura financeira, informações que aquele transmitia às demais assistentes, deixando-as muito preocupados.

Paralelamente, alegando tamanhas dificuldades financeiras, o arguido, em Janeiro de 1993, com o conhecimento e consentimento da arguida, logrou convencer as tias CC ( mulher do tio EE ), DD e EE a prescindirem de receber a remuneração de 125.000$00 mensais, que lhes eram devidas enquanto sócias gerentes da « GG , Herdeiros, Lda ».

Não obstante, foi pedindo que continuassem a assinar os correspondentes recibos, ao que aquelas acederam, assinando recibos de remunerações de gerência que não receberam.

Por outro lado, da conta da sociedade eram emitidos cheques relativos às remunerações que as sócias CC, DD e EE, deveriam receber, os quais posteriormente eram dados sem efeito, sendo o respectivo valor contabilizado como empréstimo das sócias à empresa.

Em 1995, os saldos das sub-contas de empréstimos das sócias CC, DD e EE foram anuladas por transferência para a conta da arguida, ficando assim anuladas as dívidas da sociedade para com aquelas sócias.

Em data indeterminada do ano de 1994, teve lugar na sede da sociedade « GG, Herdeiros, Lda » uma reunião em que estiveram presentes todos os sócios, bem como o arguido.

Nessa reunião, o arguido voltou a alarmar os tios com a possibilidade da falência da « GG, Herdeiros, Lda » e com os riscos que corriam os respectivos patrimónios pessoais dos seus sócios, tendo mesmo sustentado, que a única solução era a venda.

Dessa reunião, os sócios e ora assistentes, DD, EE, II e EE, saíram convencidos que a situação económica da « GG, Herdeiros, Lda » era bastante débil, que a sociedade familiar se encontrava à beira da falência e que a única solução possível era a venda da mesma.

Perante o receio que se viessem a concretizar os riscos tão proclamados pelo arguido, os referidos sócios e ora assistentes decidiram, desse modo, que iriam proceder à venda das respectivas quotas, como única forma possível de se libertarem do embaraço da falência da sociedade pertencente há tantos anos à sua família.

Os referidos sócios disso deram conhecimento ao arguido alertando-o de que a cessão das respectivas quotas, deveria ser efectuada pelo melhor preço, mas em caso algum inferior ao valor nominal do capital, de 2.400.000$00, dividido em seis quotas iguais de 400.000$00 cada

No início de Março de 1995, cada um dos sócios e ora assistentes, EE, II, DD e EE ( HH tinha entretanto falecido ) receberam do arguido, um cheque no montante de 300.000$00 do BCI, da conta do Dr. MM, Ilustre Mandatário dos arguidos nos presentes autos.

Como tinha ficado assente que as quotas nunca seriam vendidas por valor inferior ao nominal, aquando da recepção de tal montante, julgaram os referidos sócios tratar-se de um sinal e começo de pagamento pela venda das respectivas quotas que cada um detinha na « GG, Herdeiros, Limitada ».

Dias depois, os arguidos compareceram junto de EE, II, DD e EE e solicitaram-lhes que assinassem uma acta de assembleia geral da « GG Herdeiros, Lda » a fim de ultimar a cessão das quotas e ser efectuada a competente escritura ao que aqueles acederam sem ler o seu conteúdo, atenta a invocada pressa dos arguidos.

Nessa acta, datada de 30/11/94, constava que os sócios DD, EE, II e JJ e a arguida BB deliberaram, por unanimidade, ceder as respectivas quotas da « GG, Herdeiros, Lda » à sociedade « M...I... Ld », pelo preço de 1.500.000$00, cabendo a cada sócio receber a quantia de 300.000$00.

Mais constava dessa acta, terem os sócios deliberado, por unanimidade, nomear para os representar na escritura de cessão de quotas o arguido AA.

Na posse da referida acta, no dia 25/05/95, os arguidos dirigiram-se ao 4º Cartório Notarial de Lisboa e aí, em representação dos sócios e ora já identificados assistentes, celebraram com a sociedade « M... I... Ld », representada no acto pelo advogado MM, o contrato de cessão de quotas da sociedade « GG, Herdeiros, Lda ».

Assim, especificamente, nos termos desse contrato, a arguida, enquanto sócia e gerente da « GG, Herdeiros, Lda » e o arguido, enquanto gerente e em representação dos sócios EE, II, DD e EE, cederam à sociedade « M... I... Ld », pelo preço de 300.000$00, a quota de valor nominal de 400.000$00 que todos possuíam em comum e sem determinação de parte ou direito e que correspondia à quota da falecida HH e que os mesmos tinham adquirido por sucessão hereditária.

Por outro lado, o arguido, em representação do sócio EE e mulher, II e marido e DD, cedeu à sociedade « M... I... Lda », pelo preço de 300.000$00, cada uma das quotas de valor nominal de 400.000$00 que estes detinham na sociedade « GG, Herdeiros, Lda ».

No mesmo dia e no mesmo Cartório Notarial, em Lisboa, foi celebrada uma outra escritura de cessão de quotas referente à sociedade « GG, Herdeiros, Lda », nos termos da qual a arguida e a sócia EE, representada pelo arguido, cederam ao filho dos arguidos, NN pelo preço de 300.000$00, as respectivas quotas por si tituladas no valor nominal de 400.000$00, cada uma.

Por seu turno, no mesmo acto, a sociedade « M... I... Ld », representada pelo advogado MM, cedeu, pelo preço de 300.000$00, ao mesmo NN uma quota no valor nominal de 400.000$00 e a OO, também filha dos arguidos, três quotas no valor nominal de 400.000$00, igualmente pelo preço de 300.000$00 cada uma.

Assim, no mesmo dia, a sociedade « GG, Herdeiros, Lda » passou da titularidade dos sócios e ora assistentes, DD, EE, II, JJ e da arguida, para os actuais sócios, J...F... e M...J...F..., ambos filhos dos arguidos, passando ainda pela titularidade da sociedade « M... I... Ld », ainda que por breves instantes.

Em 10/01/00 foi alterado o pacto social da sociedade « GG, Herdeiros, Lda », tendo sido nomeados como gerentes da mesma ambos os arguidos.

Em 1994, os sócios e aqui assistentes DD, EE, II e EE decidiram que a melhor solução seria vender a sociedade « GG, Herdeiros, Lda », porque foi a única solução que encontraram para tirar a mesma da alegada falência que o arguido tanto proclamava.

No entanto, ao invés, nunca, no decurso dos anos de 1993 a 1998 a sociedade « GG, e Herdeiros, Lda » esteve numa situação de falência ou mesmo numa situação de « pré-falência ».

Com efeito, o capital próprio da sociedade, entre os anos de 1992 e 1998 sempre foi positivo, atingindo o seu valor mais baixo em 1993, no montante de 11.189 contos, onde, ainda assim, o activo cobria a totalidade do passivo, excedendo-o em cerca de 20%.

Ainda que nos anos de 1993 e 1994, a sociedade tenha tido menos volume de vendas, em consequência dos cortes de fornecimento por parte de alguns dos seus fornecedores, entre eles, o da « Unicer », a verdade é que já em 1994, mercê das medidas de contenção de custos tomadas, se conseguiu obter um resultado positivo, o qual se manteve nos anos seguintes.

Com efeito, no período que decorreu entre os anos de 1993 e 1997, a sociedade « GG, Herdeiros, Lda » denotou algumas dificuldades de tesouraria, mas sem nunca atingir um valor preocupante, uma vez que o valor da sua liquidez geral traduziu sempre equilíbrio financeiro.

A sociedade não tinha dívidas para com a administração fiscal ou para com a segurança social.

Igualmente a sociedade não tinha dívidas para com fornecedores ou empregados, cumprindo atempadamente as suas obrigações financeiras.

Por outro lado, as quotas nominais de 400.000$00 detidas por cada um dos sócios, em Maio de 1995, não valiam apenas o seu valor nominal e, muito menos, apenas o valor de 300.000$00 pelo qual foram vendidas.

Na verdade, tendo em conta, fundamentalmente, o seu património, em Maio de 1995, o valor de cada uma das quotas da sociedade « GG, Herdeiros, Lda » era, pelo menos, de 1.907.865$00 ( € 9.516,39 ), sendo o valor patrimonial da empresa de 11.447.192$00 (€57098,35).

Assim, ao apoderarem-se das quotas da sociedade, os arguidos lograram obter vantagem patrimonial que se cifrou em, pelo menos, 8,339.325$00 ( € 41.596,38 ).

Causando aos ora assistentes DD, EE, II e JJ, um prejuízo no valor de 1.607.865$00 ( € 8.020 ), acrescido de 1/5 da quota indivisa que lhes pertencia por sucessão hereditária de HH no valor de 381.573$00 ( € 1.903,28 ), num total, para cada um dos assistentes, de, pelo menos, 1.989.438$00 ( € 9.923,27).

Os arguidos agiram sempre de comum acordo, em execução de um plano por eles previamente traçado, com vista a alcançarem proventos económicos a que sabiam não ter direito.

Para alcançarem os seus propósitos, os arguidos criaram e encenaram perante os tios DD, EE, II e EE, uma alegada situação de falência da sociedade « GG, Herdeiros, Lda », realidade essa que bem sabiam não corresponder à verdade, já que esta se encontrava equilibrada financeiramente.

Com o estratagema supra descrito, conseguiram os arguidos, como pretendiam, conduzir os ora assistentes DD, EE, II e EE, à convicção de que a única solução para evitar uma eventual falência da « GG, Herdeiros, Lda », era a venda das quotas da sociedade.

Apenas por se terem convencido dessa falsa realidade, apresentada pelo arguido e da qual a arguida tinha perfeito conhecimento, os mencionados sócios e aqui assistentes DD, EE, II e EE aceitaram vender as respectivas quotas, acabando por o fazer nos termos estritamente delineados e planeados pelos arguidos, que assim os prejudicaram no valor de, pelo menos, e em relação a cada um dos assistentes, 1.989.438$00 ( € 9.923,27 )

Sabiam os arguidos que assim obtinham um enriquecimento indevido, como queriam e obtiveram, no valor global de, pelo menos, 8.339.325$00 ( € 41.596,38 ).

Mais conseguiram os arguidos como queriam, através do estratagema montado, que as tias CC, DD e EE viessem a prescindir, em Janeiro de 1993 das remunerações de 125.000$00, que cada uma tinha direito enquanto gerentes de tal sociedade, sendo que aquelas sócias e ora assistentes apenas prescindiram dessas remunerações por estarem erradamente convencidas que, desse modo, contribuíam para evitar a alegada falência da sociedade e apenas por essa razão.

Através dessa conduta causaram os arguidos às assistentes CC, DD e EE, um prejuízo de 3.500.000$00 ( € 17.457,93 ), a cada uma, correspondente a 28 prestações de 125.000$00, que as mesmas deixaram de receber indevidamente e das quais os arguidos se apropriaram para a sociedade « GG, Herdeiros, Lda ».

Com tal actuação lograram os arguidos obter para a « GG, Herdeiros, Limitada » um enriquecimento indevido, no valor global de 10.500.000$00 ( € 52.373,78 ), que nunca restituíram às mencionadas assistentes, apropriando-se definitivamente desse valor quando a sociedade passou a ter os seus filhos como únicos sócios.

Os arguidos deliberada livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhes era proibida e punida por lei.

Os aqui assistentes, interpuseram no Tribunal Judicial de Almeirim, contra os ora arguidos, uma acção declarativa de condenação, que corre os seus termos sob o nº 138/01, onde peticionam a anulação das supra mencionadas escrituras de cessão de quotas, lavradas em 25/05/95, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, pelas quais as quotas da « GG, Lda » foram transmitidas, primeiro, à sociedade « M..., I..., Lda » e depois aos filhos dos arguidos, com a consequente restituição das partes à situação em que se encontravam antes do negócio da cessão de quotas da « GG, Lda », tendo ainda deduzido, em termos alternativos, pedidos de indemnização civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais no valor global de 110.000.000$00 cujo contravalor em euros perfaz o montante de 548.677,60.

Com a descrita conduta dos arguidos, os assistentes sofreram um profundo desgosto e vergonha, alicerçado no sentimento de traição por parte de alguém que muito consideravam, até porque os arguidos são sobrinhos dos assistentes e estes nutriam por aqueles uma enorme estima e afectividade e neles depositavam, designadamente, na pessoa do arguido, uma confiança ilimitada, razões pelas quais, após terem conhecimento dos factos cometidos pelos arguidos e que atrás se descreveram, têm diminuído o convívio com familiares e amigos.

A arguida não geria de facto a empresa, não dava ordens a empregados, não contratava pessoal, nem os despedia, não realizava negócios para a empresa, não contactava com clientes ou fornecedores, não ia com regularidade às instalações da empresa mas apenas esporadicamente e nunca para tratar dos seus negócios correntes, nunca negociou financiamentos com bancos ou outras entidades de credito e só tinha conhecimento dos assuntos da empresa por aquilo que o arguido lhe transmitia.

O arguido foi gestor durante bastantes anos na sociedade Rical conhecendo bastante bem a área de negócios onde a sociedade “ EE, Herdeiros, Lda’, exercia a sua actividade, a do ramo de distribuição de produtos alimentares e bebidas.

O arguido nunca foi gerente da sociedade, sendo sempre as ora assistentes DD e EE quem assinavam como gerentes da sociedade e, ocasionalmente, a própria arguida.

A « GG, Herdeiros, Lda » era distribuidora de importantes produtos da marca « Coca-Cola », « Matutano » ( produtos alimentares secos ) e « Unicer » (cervejas), empresas que representariam, pelo menos, cerca de 80 % da sua actividade.

Em 1991, a empresa perdeu a representação da « Coca-Cola », que provocou uma acção judicial proposta pela sociedade « Refrige, SA » (Coca-Cola), que em 1994 ainda corria termos, tendo a « GG, Herdeiros, Lda » vindo a decair e em 1992, perdeu a representação da « Matutano ».

Em Maio de 1993, a « Unicer » cortou os fornecimentos à « GG, Herdeiros, Lda » retirando-a do canal de distribuição, por uma questão de estratégia comercial ( como faz a mais de 100 empresas em todo o país ).

Os salários dos seus trabalhadores não sofreram qualquer aumento de Janeiro/93 a Dezembro/96.

O arguido tinha alguns avales pessoais à empresa, na medida em que, perante os bancos ele era o « rosto » da empresa

A arguida, tal como as mencionadas assistentes, também não recebeu as remunerações mensais como sócia, na altura em que supra se fez referência.

Em 1997, os arguidos constituíram uma outra sociedade, com a designação de « Canelas Irmãos, Lda », com o mesmo objecto social da « GG, Herdeiros, Lda », sendo que o património desta passou para aquela, os seus trabalhadores são os trabalhadores desta última empresa, parte do equipamento mobiliário e das viaturas é o mesmo, tendo funcionado nas mesmas instalações em que laborou a « GG, Herdeiros, Lda ».

O arguido é gerente desta sociedade , auferindo cerca de 1250 € mensais .

III . Os arguidos reclamam ante este STJ contra a solução adoptada pela Relação que lhes recusou o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do seu recurso , por da motivação não figurar uma impugnação da matéria de facto dada como provada , nos moldes enunciados no art.º 412.º n.ºs 3 e 4 , do CPP , isto por aplicação do regime consagrado no art.º 690.º -A , do CPC , integrando a lacuna existente no CPP , que não preconiza qualquer sanção para o caso , impondo-se a observância da jurisprudência emanada do AC. do TC n.º 320/2002 , de 9/7 , que declarou a inconstitucionalidade , com força obrigatória geral do art.º 412.º n.º 3 , do CPP , no sentido de que a falta de tais indicações implica aquela rejeição .

O recorrente que impugne a matéria de facto, visando a modificabilidade dos seus termos pela Relação, ao abrigo do art.º431.º , do CPP , há-de cumprir o ónus de impugnação , sob pena de sofrer as desvantajosas consequências da sua omissão , previsto no art.º 412.º n.ºs 3 e 4 , daquele diploma , em particular indicando especificadamente os pontos de facto que reputa incorrectamente julgados ; e impugnar especificadamente é enumerá-los um a um , primeiro porque o novo julgamento que deles se pede à Relação , para assegurar um efectivo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto , é um julgamento segmentado , respeitando a aspectos parcelares , um remédio para questões pontuais e nunca uma reapreciação global daquela matéria , depois porque o tribunal de recurso não dispõe de poderes adivinhatórios, exigindo , numa óptica de colaboração ,de lealdade mas sobretudo de celeridade processual ,dispensando a controvérsia e a evitável demora processual , a satisfação daquela enumeração , das concretas provas que autorizam uma diferente solução, por referência aos suportes magnéticos onde constam as provas , havendo lugar à transcrição das provas.

O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.

Não satisfaz ao desígnio legal , pois , uma impugnação genérica dos factos que se quede por uma insatisfação difusa ante o quadro factual fixado, explanada sem ser por referência , ainda que com um mínimo de tradução no texto da motivação , a factos concretos , evidente sendo pela leitura das conclusões , que à discordância pontual se sobrepõe o seu desacordo ,envolvendo comentários , a seu modo , aos factos provados , aos meios de convicção do tribunal , invocando razões que em seu ver afastam a conclusão a que chegou o tribunal, hipótese em que os recorrentes à convicção própria do Colectivo sobrepõem a sua , na óptica dos seus interesses .

E do mesmo modo que os recorrentes se abstiveram de enumerar os factos , havidos por erroneamente provados , também pela leitura das conclusões se não colhem referências a concretas provas e os concretos locais onde constam no registo magnetofónico respectivo.

Os arguidos consciencializaram-se dessa sua omissão , de outro modo não se justificaria a petição , nas 31 primeiras conclusões do recurso, para este STJ ,invocando um Ac. do TC , no sentido de superação do déficit processual em que incorreram , pelo convite ao aperfeiçoamento conclusivo .

É verdade que o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça têm decidido pela inconstitucionalidade do entendimento que rejeita o recurso quanto à matéria de facto sem previamente convidar o recorrente a suprir as deficiências e obscuridades das conclusões do mesmo – veja Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 529/2003 , de 31.10 , publicado no DR , II Série, de 17.12.2003 e Acórdão do STJ, de 30.10.2002, Proc. n.º 2535/02-3ª, SASTJ, n.º 64, pág. 90 .

Compreende-se: são casos em que o recorrente expôs de forma válida e consistente as razões concretas da sua discordância, mas depois, por lapso, não as assinalou devidamente nas conclusões. Isto em nome de uma proibição de excesso , do princípio da proporcionalidade( art.º 18.º n.º 2 , da CRP) , de compressão ao mínimo dos direitos , essencialmente do arguido , na filosofia marcada ao direito processual , que , enquanto instrumental , serve o direito material , substantivo.

Esse convite ao aperfeiçoamento conhece limites , pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus , que não é meramente formal , antes com implicações gravosas ao nível substantivo , não enunciou as especificações , então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação , ao fim e ao cabo , contas direitas , inscreveria um novo recurso , com novas conclusões e inovação da motivação , precludindo a peremptoriedade de prazo de apresentação do direito ao recurso .

A correcção há-de mover-se dentro dos termos da própria motivação , e esta conclusão mostra-se , hoje , inteiramente suportada pela lei , muito particularmente do art.º 417.º n.ºs 3 e 4 , do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 , onde se consente , na concretização legislativa , da jurisprudência constitucional e sem o ser , o convite ao aperfeiçoamento das conclusões em ordem à harmonização com a motivação, mas sempre dentro dos limites da motivação do recurso .Neste sentido se pronunciou o AC. do TC , de 10.3.2004 , n.º 140/2003 , P.º n.º 565 /2003 , reafirmando a inconstitucionalidade da interpretação dos n.ºs 3 a) , b) e c) e 4 , do art.º 412.º, do CPP , quando sustenta o não conhecimento da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte , sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento das conclusões , mas desde que da motivação constem aquelas indicações faltosas.

O convite não vai ao ponto de “ substituição ainda que parcial “ da motivação ; a jurisprudência do TC não vai ao extremo de permitir , por ex.º , ao arguido “ apresentar uma segunda motivação de recurso , quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso ou a completar a primeira , caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos “ –AC. do TC n.º 259/02 , de 18/6 , DR , II Série , de 13/12/2002.

A jurisprudência constitucional nunca consagrou um genérico direito de aperfeiçoamento nas novas conclusões .

IV. O regime geral dos recursos mostra-se global, unitária e autonomamente regulamentado no CPP , sendo sempre motivado , como forma de desencorajar pretensões , à partida sem qualquer viabilidade , considerando que uma percentagem significativa de recursos no domínio do CPP de 29 , se mostrava infundamentada, disciplina essa sem necessidade de recurso ao CPC enquanto lei subsidiária, por força do art.º 4.º , do CPP .

A falta de impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto explicitamente , distinguindo a lei entre recurso respeitando à matéria de facto e de direito , cindindo os respectivos planos em termos de poder cognitivo –art.º 403.º , do CPP - não pode deixar de levar à improcedência parcial , prejudicando o conhecimento da matéria de facto .

A lei alude à improcedência do recurso por falta de motivação, no art.º 420.º n.º 1 e 414.º n.ºs 1 e 2 , do CPP , porém respeitando a falta de indicação de elementos atinentes à impugnação da matéria de facto na motivação , tudo se passando como se ela estivesse parcialmente ausente , não seria justo prejudicar a apreciação do mérito da causa sobre o ponto de vista do direito , de acordo com a regra “ utile per inutile non vitiatur “, situando-se , pois , numa linha de coerência a simples rejeição parcial.

O recurso ao art.º 690.º -A , do CPC , por razão de integração de inexistente lacuna , seria bem mais severo , pois , sob pena de rejeição , deve , obrigatoriamente , o recurso indicar as exigências idênticas à previstas no art.º 412.º n.ºs 3 e 4 , do CPP .

IV. Adstrito o recurso à reapreciação da matéria de direito, cumpre decidir , desde logo quanto à configuração típica do crime de burla , dispondo-se no art.º 313 .º n.º1 , do CP , vigente na data dos factos , que incorre em crime de burla :

“ 1 . Quem com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre os factos que , astuciosamente , provocou , determinar outrém à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa , prejuízos patrimoniais será punido com prisão até 3 anos “ .

A pena será de 1 a 10 anos se “ O valor do prejuízo for consideravelmente elevado e não for reparado pelo agente , sem dano ilegítimo de terceiro , até ser instaurado procedimento criminal “ –al. c) , do art.º 314 .º , do CP , na sua versão originária .

A burla integra um crime de execução vinculada em que a lesão do bem jurídico decorre da consequência de uma muita particular forma de comportamento , que se traduz na utilização de um expediente tendente a induzir outra pessoa em erro ; não basta o emprego de um simples meio enganoso , antes que seja causa efectiva do erro em que se encontra a vítima .

Revestindo a natureza de um crime material ou de resultado a sua consumação passa por um duplo nexo de imputação objectiva : entre a conduta enganosa do arguido e a prática pelo burlado de actos tendentes a uma diminuição do património , próprio ou alheio , e , depois , entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial –cfr . A. M. Almeida Costa , in Comentário Conimbricense do Código Penal , II , pág . 293 .

Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais .

Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a um diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial (cfr. , ainda , autor citado in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág. 292-293).

No essencial trata-se de indagar o valor ou o conteúdo comunicacional , globalmente considerado , na relação desenvolvida .

É que podendo a burla consumar-se através de declarações ou palavras , inferir-se de actos concludentes , ou de omissão , a atitude externa do agente só passa a integrar aquele delito quando assume um especial conteúdo , caindo então na alçada penal .

Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios , que, pelo empolar de qualidades , o objecto negocial não preenche , ou o seu preço não justifica ou as circunstâncias negociais não legitimam , o acto praticado pode ser analisado à luz de um dolo civil , afastando-se o criminal .

Este só se ajusta à “ fattispecie “ penal quando o burlão pelo recurso à mentira , à maquinação , no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro , usa de astúcia , enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida .

A astúcia é, materialmente , algo mais que aquela mentira ; é um “ plus “ que lhe acresce e que lhe empresta , sob a forma de cenário adrede criado , uma “ mise- en- scéne “ , que tem por fim dar crédito à mentira e inevitavelmente enganar , escreve Garraud , citado pelo Prof. Beleza dos Santos , in Estudo publicado na R L J , ano 76 , n.º 27 , 278 .

A palavra “ astuciosamente “ empregue no preceito citado , com fonte no CP suíço , tem o sentido de artificiosamente , acrescendo à mentira , funcionando como seu reforço , manifestado habilmente sob a forma de factos , atitudes e aproveitamento das circunstâncias , que aquela inverdade tornem crível .

A astúcia torna a mentira , já de si condenável , em verdade intransponível .

A burla configura uma hipótese de “ auto-lesão “ , estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio de facto do “ homem de trás “ deriva do estado de erro do executor acerca do circunstancialismo em que actua ( cfr. Comentário , cit. , pág . 289 -299 ) .

No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista.

Na imputação objectiva , admite-se a teoria da adequação, tendo em atenção a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g., mercê da fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança com o agente) e na conformidade com aquela a possibilidade de se concluir pela idoneidade de um meio enganador por via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas (cfr. , ainda , Almeida Costa, ob. cit., pág. 294-295).

Assim, para a verificação do crime de burla há a considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha em erro ou engano o lesado e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro. Por outro lado, na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento (cfr. Ac. do STJ de 23-01-97, in BMJ, 463º- 276).

V. A matéria de facto comprovada põe a inequívoco descoberto que os arguidos , ela sobrinha dos assistentes e ele , seu marido , urdiram um plano de se apoderarem da sociedade por quotas, GG , Herdeiros , constituída em 20/01/79, no Cartório Notarial de Almeirim, sendo seus sócios, HH , os ora assistentes, DD, EE , II e JJ, todos irmãos entre si, e ainda, a arguida BB, sobrinha destes e filha do seu já falecido irmão, LL.

Ao arguido , não sócio e nem seu gerente nomeado , incumbia , de facto , a gerência da firma , sendo a sua face visível ante terceiros , tomando as decisões mais importantes sobre a vida da empresa a conselho dos assistentes .

Como se provou, era o arguido que, apesar de nunca ter sido sócio ou gerente da sociedade , geria de facto a empresa, era o seu operacional, o seu rosto perante terceiros, a pessoa que tomava todas as decisões, sem embargo, de nas mais importantes, se aconselhar com os sócios, com quem tinha contactos regulares , gerando-se , atentos os laços familiares reinantes entre assistentes e arguidos uma relação de visível e ilimitada confiança .

Em vista da concretização daquele plano o arguido começou por convencer , falsamente , que a sociedade estava em estádio pré-falimentar com o risco de os patrimónios pessoais dos próprios sócios serem afectados.

Face a este cenário de iminente catástrofe financeira , o arguido apresentou , antes de Janeiro de 1993 , como alternativa última a venda das quotas sociais. .

Em data indeterminada do ano de 1994, em reunião social em que estiveram presentes todos os sócios, bem como o arguido , este voltou a alarmar os tios com a possibilidade da falência da « GG, Herdeiros, Lda » e com os riscos que corriam os respectivos patrimónios pessoais dos seus sócios, tendo mesmo sustentado que a única solução era a venda.

Dessa reunião, os sócios e ora assistentes, DD, EE, II e EE, saíram convencidos que a situação económica da « GG, Herdeiros, Lda » era insustentável e que a venda era a derradeira solução .

No entanto, ao invés, nunca, no decurso dos anos de 1993 a 1998 , a sociedade « GG, e Herdeiros, Lda » esteve numa situação de falência ou mesmo numa situação de « pré-falência ».

A realidade era bem outra e a saber :

Entre os anos de 1992 e 1998 o capital social , atingindo o seu valor mais baixo em 1993, no montante de 11.189 contos, ainda assim, o activo cobria a totalidade do passivo, excedendo-o em cerca de 20%.

Nos anos de 1993 e 1994, a sociedade assistiu a um menor volume de vendas, em consequência dos cortes de fornecimento por parte de alguns dos seus fornecedores, entre eles, o da « Unicer », mas já em 1994, mercê das medidas de contenção de custos tomadas, se conseguiu obter um resultado positivo, o qual se manteve nos anos seguintes.

Com efeito, no período que decorreu entre os anos de 1993 e 1997, a sociedade « GG, Herdeiros, Lda » denotou algumas dificuldades de tesouraria, mas sem nunca atingir um valor preocupante, uma vez que o valor da sua liquidez geral traduziu sempre equilíbrio financeiro.

A sociedade não tinha dívidas para com a administração fiscal ou para com a segurança social.

Igualmente a sociedade , de natureza familiar , não tinha dívidas para com fornecedores ou empregados, cumprindo atempadamente as suas obrigações financeiras.

A partir da “ mise –em scène “ criada , também , com o acordo e total conhecimento da arguida , sócia da sociedade , foram encetadas diligências para a venda , recomendando os assistentes que as quotas sociais deviam ser vendidas pelo melhor preço , mas nunca abaixo do valor global 2.400.000$00 , e 400.000$00 , cada uma das 6 quotas detidas .

No início de 1995 , receberam os sócios -excepção feita quanto a HH , falecida entretanto –um cheque 300.000 $00 da conta do advogado dos arguidos, MM , que , face à directiva quanto ao preço a praticar -400.000$00 –tomaram como sinal e princípio de pagamento daquela alienação .

Com data de 31.11.94 , em acta assinada pelo sócios EE , DD , II , JJ e a arguida BB , deliberaram , por unanimidade , ceder as quotas a “ M... I... , Ld.” pelo preço de 1.500. 000 $00 , representando-os o arguido no “ negócio “ .

Na escritura de cessão, outorgada no 4.º Cartório Notarial de Lisboa , em 25/5/95 , a sociedade -a “ M...” - foi representada por aquele advogado , que as adquiriu ; os arguidos , em representação dos sócios e assistentes venderam pelo preço de 300.000$00 a quota do valor nominal de 400.000 $00, detida por cada :EE , DD , II , JJ e a correspondente à falecida HH , adquirida por sucessão .

Ainda no mesmo dia e Cartório , a arguida e a sócia JJ, representada pela arguido, cederam ao filho dos arguidos J...F... , por 300.000 $00 as quotas por si tituladas no valor nominal de 400.000 $00 cada .

No mesmo acto , a sociedade” M... “ representada pelo supracitado advogado , cedeu por 300.000$00 ao dito filho dos arguidos uma quota no valor nominal de 400.000$00 e em favor de M...J... R... , filha dos arguidos , três quotas no valor nominal de 400.000$00 , igualmente no valor de 300.000$00 .

Nesse mesmo dia , por pouco espaço temporal , jurídicamente , a sociedade GG , Herdeiros , Ld.ª , passou da “ M... “ para os dois filhos dos arguidos .

O valor de cada quota social da GG , Herdeiros , Ld.ª era , pelo menos , de 1.907.865$00 ( € 9.516, 39) , sendo o valor patrimonial da empresa de 11.447.192$00 ( € 57.098, 35 ) .

Os arguidos criaram uma situação de erro sobre a condição económica da empresa , uma situação económica diferente da real , fazendo-lhes falsamente crer que se achava numa situação à beira da ruptura e aproveitaram esse erro , aqui se situando a sua astúcia , para induzir à venda das quotas , agravando o modo de execução do plano , o terem alienado as quotas por um valor inferior ao nominal , apesar de terem recebido instruções dos sócios para o não fazerem .

Ora, foi precisamente o convencimento sobre uma determinada verdade da situação financeira da «GG», que lhes havia sido transmitida pelos arguidos, que levou os ora assistentes – laborando em erro sobre pressupostos que não eram verdadeiros – a tomarem decisões que lhes provocou prejuízo patrimonial com o correspondente benefício dos arguidos, sendo seguro, como se deu por provado, que apenas por existir esse erróneo convencimento é que os assistentes se decidiram pela venda da empresa na sequência do conselho e da sugestão dos arguidos.

E tudo , intencionalmente , com o objectivo de os lesar , obtendo um enriquecimento patrimonial para eles próprios , correspondente ao valor das quotas cedidas , com o consequente empobrecimento .

A inverdade transmitida pelos arguidos levou a um convencimento erróneo , por sua vez conducente à decisão de se desfazerem da sociedade , o que de outro modo não sucederia e nem os arguidos lograriam obter , formalmente , por intermédio dos filhos , por um valor abaixo do valor do capital social , uma empresa , empresa essa que nunca esteve em situação de pré-falência , que no estado anterior à alienação apresentou lucros ,e da qual foram transferidas instalações , bem móveis e trabalhadores , para uma empresa do mesmo ramo .

Com nitidez o elemento objectivo do crime se mostra espelhado no comportamento erróneo , constituído base do “ negócio “ de alienação das quotas sociais , o ardil , viciando-lhes a vontade , que àquela levou , na alegada conveniência na fuga à situação de falência , tudo num clima envolvente de pura inverdade , tornado mais credível a partir dos elos de afecto que ligavam os sócios entre si e na deslocação patrimonial indevida consequente à venda das quotas , por uma valor venal inferior ao real , com a sua ulterior concentração nos filhos , forma ínvia , fraudulenta , de se manterem no seu domínio , através de um engenhoso e bem urdido simulacro de verdade , causador de prejuízo .

O crime de burla consuma-se quando o agente , através desse processo artificioso , induza , em erro ou enganosamente outrém , em vista de obter um enriquecimento injusto ; o elemento subjectivo não prescinde , à luz do art.º 317.º n.º 1 , do CPP , de uma especial intenção de obter para si ou para terceiro , um prejuízo patrimonial ,um dolo específico , amplamente fundamentado , subsistindo um verdadeiro nexo de causalidade adequada entre os meios empregues , o engano e os actos patrimoniais prejudiciais para os queixosos (cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 8-02-96, in CJ (Acs. do STJ), Ano IV, Tomo I, pág. 208).

Mantendo –se fiéis ao mesmo fim , movidos pelos mesmo objectivo de enriquecimento à custa , acobertados pela mesma intenção , os arguido induziram as sócias , suas tias ,CC , DD e JJ , a prescindir da prestação de 125.000 $00 , ao longo de 28 meses , de remuneração da gerência , por estarem convencidas de que assim evitavam a queda em falência .

Os arguidos constituíram uma outra sociedade com a designação de Canelas , Irmãos , Ld.ª , com o mesmo escopo social , sendo que o património da sociedade anterior –GG , Herdeiros , Ld.ª - passou para aquela , equipamento mobiliário , viaturas , instalações e pessoal

VI . A decisão recorrida , homologada pela Relação , mostra-se amplamente fundamentada , em termos de exposição dos factos provados , não provados , dos motivos de facto e de direito , que fundaram a decisão , com indicação de provas , da mais diversa índole , bem como exame crítico das provas , que não é mais do que a sua menção , a análise que delas se fez , e a adopção criticamente assumida e exposta , da valia que , umas e o outras , mereceram ao Colectivo ou deixaram de o ter , da sua atendibilidade ou inatendibilidade , na obediência dos requisitos a que deve obedecer uma sentença –art.º 374.º n.º 2 , do CPP .

A sua fundamentação não tem que ser “ épica “ , mas tal que leve ao convencimento do caminho trilhado pelo julgador , por forma a convencer que assenta em critérios objectivos, lógico-racionais , à margem do capricho do julgador , que cumpre nessa estruturação uma prestação de contas dos resultados adquiridos através das provas e sua valoração , afirmando a sua independência e imparcialidade , o distanciamento de quaisquer das partes , no propósito de afirmação da verdade , na realização da justiça , valor acima e além dos que se digladiam nos pleitos .

O exame crítico das provas , já exigido pela jurisprudência antes de ter tradução legal , a coberto da Lei n.º 59/98 , de 25/8 , já comportava a imposição para o julgador de enunciar os elementos que , em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência , escreveu-se no paradigmático AC. deste STJ , de 18.12.91 , BMJ 412/383 , cumprindo-se a finalidade pública daquele exame , já que os destinatários das suas decisões não são , apenas , os sujeitos processuais , mas também a comunidade mais vasta de cidadãos , de modo que a motivação cumpre e é instrumento de controle do direito à administração da justiça .

Só por um evidente lapso é que se assinala à decisão de 1.ª instância um qualquer défice de fundamentação , que cumpre criteriosamente , e sem razão para a mais leve crítica .

VII . Quanto à medida concreta da pena , o Colectivo , teve , e bem , de tal modo grave o comportamento dos arguidos ,que escreveu situar-se a suspensão da execução da pena nos “ limites “ .

Ao ilícito praticado corresponde a moldura legal abstracta de prisão de 1 a 10 anos (artº 314º, al. c), do CP/82) ou de 2 a 8 anos ( artº 218º, nºs 1 e 2, al. a), do CP vigente ) , sendo , por uma ponderação meramente abstracta , sem necessidade de recurso , por comparação de regimes a alcançar , por concreto confronto , à luz de uma e outra molduras , que o regime de maior favor para os arguidos , considerando o limite mínimo da pena mais elevado no domínio da lei nova a anterior , que é esta de se lhes aplicar.

A pena é um conceito complexo , em cuja magnitude se cruzam os respectivos fins , que influenciam , decisivamente , o seu concreto “ quantum “ , em vista da satisfação interesse público e privado , de prevenção do crime através da influência que ela exerce sobre a comunidade , considerando a gravidade da lesão , ditando a necessidade punitiva , proporcionada e limitada ao mínimo de compressão dos direitos individuais , e , ainda , sobre o seu agente , em termos de prevenção da reincidência , de emenda cívica de que se mostra carente , sem esquecer os meios necessários , precisos , para que o agente leve de novo uma vida ordenada e conforme à lei ( cfr. Kohlraush, citado por Iesheck , Tratado de Derecho Penal , Parte General pág. 1195) ou seja da prevenção geral e especial , respectivamente –art.º s 40.º n.º 1 e 71.º , n.ºs 1 e 2 , do CP .

A pena é , no entanto, condicionada pela medida da culpa do agente , quaisquer que sejam as razões de prevenção , que formam uma submoldura que opera na moldura da culpa.

Na formação da medida da pena e na sua moldura abstracta acha-se uma medida óptima de protecção de bens jurídicos e das expectativas comunitárias , mas abaixo desse ponto óptimo outros existem em tal tutela é possível e consistente , pela consideração de outros factores , que a podem limitar , até se alcançar um limiar mínima abaixo do qual se não pode descer sob pena de se colocar em crise aquela tutela e de ao sentimento comunitário se mostrar incompreensível a tutela dispensada -CFr. Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , pág. 229 .

A culpabilidade dos arguidos é muito grave , agindo com uma vontade criminosa, perdurante no tempo , firme , de se apropriarem da sociedade , assumindo dolo muito intenso

O modo de execução , confere um grau de contrariedade à lei , ou seja um grau de ilicitude , agravado : o convencimento sobre uma falsa realidade , a criação de engano sobre a ela e a indução dos ofendidos , de acordo com essa falsa representação , viciando-lhes a vontade de determinação .

A agravar o juízo de censurabilidade perfilam-se o desprezo pelos laços familiares dos ofendidos que , depositando neles confiança , foram traídos ; o motivo determinante , uma vantagem patrimonial desmedida , elevado sendo o montante do prejuízo , sem um substracto , uma contrapartida económica justa e equilibrada , tornando-se , através da cessão das quotas por um valor inferior ao de mercado a favor de uma sociedade , que a s transmitiu aos filhos , para , no futuro , e na prática , se tornarem seus donos .

Anote-se que os arguidos vão ao ponto de serem instruídos de que na venda das quotas devia ser respeitado o valor de 400.000$00 , pelo menos , mas , até , esse desiderato acabaria por ser desrespeitado .

A sua personalidade , enquanto centro de resposta às exigências comunitárias do dever -ser –ético- existencial , tal como o direito as conforma , correspondendo a medida do ilícito , à medida da desconformação , actualizando o agente uma personalidade desvaliosa quando o pratica , os arguidos denotam uma personalidade mal formada , malsã .

Por tudo o que se deixa dito , em nome de elevadas exigências de prevenção geral , considerando a frequência na prática de tais delitos , as manifestas necessidades de interiorização dos maus efeitos do crime , que são preocupantes , não obstante serem delinquentes primários , mas sem revelarem qualquer arrependimento .

O grau de censura e de reprovabilidade a dirigir-lhes é muito elevado , de um ponto de vista moral , social e jurídico.

Na conduta dos arguidos não há que traçar diferenciação entre ambos , para o efeito de à arguida mulher fazer corresponder uma pena mais leve , em nome do princípio da igualdade , exigindo que na determinação judicial da pena se não façam distinções arbitrária s –cfr. , ainda , Iescheck , op . cit ., pág . 1192

Os procedimentos de ambos são de equiparar ; sobre ela , como familiar directa dos assistentes , sua sobrinha , impendia o dever especial de não cometer o crime , da forma traiçoeira como o fez , colaborando no projecto criminoso , tudo conhecendo , tudo sabendo , nada opondo , em igual medida beneficiando .

Interveio , inclusive , na escritura de cessão de quotas em 25/5/ 95.

O juízo de censura e de reprovação individual e colectiva parificam-se .

Nenhuma censura a endereçar à pena aplicada e à sua suspensão e nem se diga que a condição de suspensão é desmedida , em ofensa do princípio da razoabilidade da condição , no sentido de que , como resulta da lei ,do art.º 51.º n.º 2 , do CP , não devem ser impostas obrigações cujo cumprimento não seja irrazoável de lhes exigir , como adiante se explicitará .

O princípio “ in dubio pro reo “ , manifestação do princípio da presunção de inocência , carece de pertinência ao ser invocado não só porque o Colectivo não teve dúvidas quanto à responsabilidade criminal dos arguidos deixando-a transparecer do contexto decisório e , apesar disso , proferiu acórdão condenatório , tão pouco ressalta que , só por erro notório na apreciação das provas , não se deixou conduzir por essa solução em benefício dos arguidos .

A decisão de 1.ª instância é fruto de um labor convicto , de um actuado esforço racional e sério sobre a determinabilidade da culpabilidade dos arguidos , adquirido pela imediação com as provas e a oralidade , tornando insustentável o inexistente estado de dúvida de que os arguidos se querem prevalecer .

IX. Os danos não patrimoniais sofridos pelos assistentes, abrangem o profundo desgosto e vergonha, alicerçado no sentimento de traição por parte de alguém que muito consideravam, até porque os arguidos são sobrinhos dos assistentes e estes nutriam por aqueles uma enorme estima e afectividade e neles depositavam, designadamente, na pessoa do arguido, uma confiança ilimitada, razões pelas quais, após terem conhecimento dos factos cometidos pelos arguidos, têm diminuído o convívio com familiares e amigos.

A indemnização por facto ilícito , por dano não patrimonial , há-de medir-se por um padrão-objectivo , segundo as circunstâncias do caso concreto e não há luz de um critério subjectivo , de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada –cfr. Das Obrigações em Geral , Prof. Antunes Varela , I , pág. 486 .

O montante do dano repousará de acordo com as regras da boa prudência , do bom senso , da justa medida das coisas , da criteriosa ponderação das realidades da vida fundando a equidade no arbitramento daquele “ quantum “ , nos termos do art.º 496 .º n.º 1 , do CP .

Aqui não vigora a teoria da diferença , nos termos do art.º 562 .º , do CC ; a indemnização , que , em princípio , visa remover todo o dano real à custa do lesante , não cobra aqui aplicação pois se propõe compensar , por atribuição de uma soma pecuniária , o desgosto e o sofrimento , pelo prazer que aquela soma proporciona .

O dano não patrimonial desempenha uma função de reprovação do ilícito praticado como uma sanção que acresce às penais , visando reprovar , atendendo à sua natureza de carácter misto, compensatório e de reprovação ou castigo , no plano civilístico , e com os meios de direito privado , transpostos para o campo do direito processual penal , e á luz dos quais se gere , nos termos do art.º 129.º , do CP .

Ora, tendo presente que se tratava de uma empresa familiar, laborando em pequeno meio , o montante indemnizatório que foi fixado, a título de danos morais, em € 12.250,00, para cada um dos assistentes , afigura-se-nos justo e equilibrado , a não merecer qualquer reparo .

X. No referente aos danos patrimoniais sofridos pelos assistentes mostra-se assente que:

- em Maio de 1995, o valor de cada uma das quotas da sociedade «GG, Herdeiros, Lda» era, pelo menos, de 1.907.865$00 (€ 9.516,39), sendo o valor patrimonial da empresa de 11.447.192$00 (€ 57.098,35);

- ao apoderarem-se das quotas da sociedade, os arguidos lograram obter vantagem patrimonial que se cifrou em, pelo menos, 8.339.325$00 (€ 41.596,38);

- causando aos assistentes DD, EE, II e EE, um prejuízo no valor de 1.607.865$00 (€ 8.020), acrescido de 1/5 da quota indivisa que lhes pertencia por sucessão hereditária de HH no valor de 381.573$00 (€ 1.903,28), num total, para cada um dos assistentes, de, pelo menos, 1.989.438$00 (€ 9.923,27);

- o arguido, em Janeiro de 1993, com o conhecimento e consentimento da arguida, logrou convencer as tias CC (mulher do tio EE), DD e EE a prescindirem de receber a remuneração de 125.000$00 mensais, que lhes eram devidas enquanto sócias gerentes da «GG , Herdeiros, Lda».

Nenhuma disposição da lei autoriza a conclusão dos arguidos de que o valor da quota , em caso de cessão , é determinada , calculado por um contabilista ; funcionam as regras de valor de mercado ; o seu valor venal é o que resulta do seu valor pecuniário real .

O CSCOM , reguladas nos art.ºs 197 e segs . , dispõe no art.º 219.º, sobre o valor das quotas de entrada social , as quais , nominalmente , nenhuma pode ser inferior a 100 € , medindo-se os direitos e obrigações inerentes à quota segundo a proporção entre o valor nominal da quota e o capital , salvo se a lei disser o contrário , sendo omissa no que respeita ao valor de venda voluntária da quota .

Retornando à questão da proporcionalidade da condição nenhum reparo há a dirigir porque , desde logo , se não trata de uma indemnização em moldes exorbitantes , que não estejam em condições de satisfazer , inclusive pelo recurso ao crédito , depois porque o contencioso nutrido com os lesados se estende há vários anos , devendo estar preparados para o litígio sofre este desfecho e , consequentemente , a coberto de um fundo de reserva , capaz de lhe fazer face .

E se formaram uma sociedade posteriormente a sua situação económica não é geradora de qualquer apreensão em termos de satisfação das quantias arbitradas .

Do que não pode abstrair-se é que a solução que melhor desempenha a eficácia da suspensão da pena passa pela sujeição da suspensão a tal condição , com tradução e apoio no sentimento colectivo , sem compreensão se a solução oposta fosse a seguida , inteiramente ajustada às condições do caso concreto , suportada pelos parâmetros da responsabilidade civil extracontratual : culpa , na forma mais agravada de dolo , facto , ilicitude , dano e nexo causal entre este e aquele , nos termos dos art.ºs 483.º , 496.º , 562 e 563 .º , do CC.

XI . Sobre a excepção (dilatória ) da litispendência :

Invocam os recorrentes uma pretensa litispendência entre o pedido cível formulado nos presentes autos e a acção pendente no Tribunal Judicial de Almeirim, sob o n.º 138/01 , pelo que deveriam ser absolvidos da instância –art.º 494.º e 497 .º , do CPC .

Pressupondo, além do mais, a litispendência coincidência de sujeitos e de pedido em ambas as causas – arts. 497º e 498º, do C.P.Civil – basta atentar nas petições iniciais apresentadas em ambos os casos (cfr. fls. 599 e segs. e 982 e segs.) para imediatamente verificar que os demandados não são os mesmos nem o são os pedidos formulados.

Em acção declarativa de condenação, substancia-se ali o pedido na anulação das supra mencionadas escrituras de cessão de quotas, lavradas em 25/05/95, no 4º Cartório Notarial de Lisboa, pelas quais as quotas da «GG, Lda» foram transmitidas, primeiro, à sociedade «M..., I..., Lda» e depois, aos filhos dos arguidos, com a consequente restituição das partes à situação em que se encontravam antes do negócio da cessão de quotas da «GG, Lda».

Estes são os pedidos principais e é sobre estes que a questão da litispendência se coloca inexistindo identidade de pedido e de causa de pedir.

E o mesmo se diga quanto aos pedidos alternativos que ali se formulam, de condenação civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais no valor global de 110.000.000$00, cujo contravalor em euros perfaz o montante de 548.677,60.

Tais pedidos assentam em duas realidades que este Tribunal não considera: um determinado valor comercial atribuído à «GG» e a possibilidade de as gerentes se poderem pagar pelas suas remunerações também desde a data da celebração das escrituras públicas de cessão de quotas da «GG».

Ora, esta última matéria, escreveu-se no acórdão de 1.ª instância, “ está exclusivamente dependente da decisão de anulação das correspondentes escrituras, matéria que será apreciada exclusivamente no processo civil a correr termos no Tribunal de Almeirim e sobre o qual, naturalmente, este Tribunal não se debruça.

Nessa medida, também por aqui não se verifica a invocada excepção de litispendência invocada pelos arguidos que, por isso, vai indeferida” , decisão que , com o rigor assinalado , sem mais se aceita .

XII . Termos em que se nega provimento ao recurso , confirmando-se a decisão recorrida .

Cada um dos arguidos vai condenado ao pagamento de 15 UC,s de taxa de justiça , acrescendo a procuradoria de ½ .

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Outubro de 2007

Santos Monteiro (Relator)

Santos Cabral

Oliveira Mendes

Maia Costa