Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM CÚMULO JURÍDICO PENA ÚNICA | ||
| Data do Acordão: | 01/27/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
| Sumário : | I - A doutrina, como a jurisprudência, vêm entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, nos termos definidos, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico. II - A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º, n.º 1, um critério especial estabelecido no art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, ambos do CP. III - Os parâmetros indicados no art. 71.º do CP, servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes. IV - O recorrente André Monteiro Pinto também não indica qualquer norma que estabeleça critérios aritméticos, matemáticos, na determinação da pena única. No entanto, indica a existência de um critério jurisprudencial, que resultará da “prática jurisprudencial”, de sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), se aplicar uma proporção não superior a ¼. V - Existe, efetivamente uma corrente jurisprudencial que perante a constatação de grande amplitude na moldura penal do concurso, estabelece uma fração variável nas penas parcelares a somar à pena mais grave, com vista a consagrar uma alegada objetividade e igualdade entre os arguidos nas operações de fixação de penas conjuntas. VI - Esta corrente foi já de algum modo ensaiada quando entrou em vigor o CP de 1982, para as penas singulares. Alguma jurisprudência, de que são exemplos os acórdãos do STJ de 30-11-1983 e de 19-12-1984 (cf., respetivamente, BMJ n.º 331, p. 363 e BMJ n.º 342, p. 233) também seguiu o entendimento de que face à maior amplitude dos limites máximos das penas relativamente ao CP anterior, se devia definir um ponto para determinação das penas singulares, fixando esse ponto como a média entre os limites mínimo e máximo. Assim, no caso de ausência de circunstâncias que agravem ou atenuem a conduta do agente ou, havendo-as, os respetivos agravativo e atenuativo, por serem iguais, se anularem, a pena deveria a pena ser graduada em concreto à volta da média entre os limites mínimo e máximo estabelecidos em abstrato no preceito incriminatório. Essa corrente jurisprudencial não vingou muito tempo, consolidando-se na jurisprudência e na doutrina, o entendimento de que a fixação das penas singulares deve fazer-se de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no CP, onde não há referência a qualquer ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena estabelecida no tipo penal, como ponto de partida para fixação concreta dessa pena. VI - Em sentido contrário à corrente jurisprudencial a que se arrima o recorrente, existe uma outra, que seguimos, de que a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida, não é compatível com os critérios legais. VII - Reconhecendo que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, acrescenta esta corrente, que essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados. O que importa é proceder a uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas. | ||
| Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 129/13.5TASEI.C1.S1 Recurso Penal *
Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
I - Relatório
1. Nos autos de processo comum coletivo n.º 129/13...., que correm no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., após realização de audiência de julgamento tendo em vista a efetivação de cúmulo jurídico de penas aplicadas ao arguido AA, o Tribunal Coletivo, por acórdão de 12 de abril de 2021, condenou o arguido, em cúmulo jurídico das penas parcelares que lhe foram aplicadas nos processos n.ºs 210/07...., 240/15.... e 129/13...., na pena única de 7 (sete) anos de prisão.
2. Inconformado com este acórdão dele interpôs recurso o arguido AA para o Tribunal da Relação ..., concluindo a sua motivação do modo seguinte: I. Entende o recorrente não terem sido levadas em consideração todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa, sendo que a decisão recorrida não se encontra suficientemente motivada e justificada. II. A decisão recorrida violou os artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal. III. Foi o ora recorrente, AA, julgado e condenado, em cúmulo jurídico (conhecimento superveniente do concurso), no âmbito Processo n.º 129/13...., do Juízo Central Cível e Criminal ..., numa pena de 07 (sete) anos de prisão. IV. Tal pena teve origem em três condenações diferentes, em penas de 04 (quatro) anos e 06 (seis) meses de prisão (Proc. n.º 129/13....), 04 (quatro) anos de prisão (Proc. n.º 210/07....) e 02 (dois) anos e 01 (um) mês de prisão (Proc. n.º 240/15....). V. Ao proferir o despacho do qual se recorre, o Tribunal a quo violou os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, consagrados constitucionalmente no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. VI. O Tribunal a quo aplicou uma proporção de cerca de 2/5 sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), desviando-se assim da “prática jurisprudencial” de aplicar uma proporção não superior a ¼. VII. Pese embora tal decisão seja, em abstrato, legalmente admissível, uma decisão que se desvie da normalidade deve ser especialmente fundamentada. VIII. O Tribunal a quo sopesou as circunstâncias agravantes e, com o devido respeito, não levou em linha de conta o bom comportamento intra muros do recorrente. IX. Pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e substituído por outra que aplique uma pena não superior a 06 (seis) anos de prisão, – como é de Justiça! Termos em que, deve o presente Recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões, como é de Direito e Justiça!!!
3. O Ministério Público, no Juízo Central Cível e Criminal ..., respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo: 1. Nos presentes autos e na sequência da audiência de cúmulo a que alude o art. 472º, nº 1, do Código de Processo Penal, foi realizado o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA, neste processo e nos processos n.º 210/07.... e n.º 240/15...., tendo o Tribunal aplicado ao arguido AA a pena única de 7 (sete) anos de prisão. 2. Ao contrário do que sustenta o recorrente, inexistem critérios matemáticos para a definição da pena aplicável – tão pouco a jurisprudência invocada reflecte tal critério aritmético – impondo-se ao julgador uma ponderação mais profunda e fundamentada de todos os factores em presença, permitindo-lhe fixar a pena dentro de todo o arco da moldura concurso, de acordo com o juízo formulado a final sobre a personalidade do agente. 3. Na determinação da medida concreta da pena única, o Tribunal atendeu aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art.71.º, do CP), efectuou uma ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, à luz do conhecimento superveniente dos novos factos (citado art. 77.º, n.º 1, do CP) e, de forma criteriosa, adequada e suficiente, julgou aplicar ao condenado a pena única de sete anos de prisão, não assistindo aqui qualquer razão ao recorrente quando pugna pela respectiva redução da pena única aplicável. Em suma, afigura-se-nos que o recurso do condenado não merece provimento, devendo manter-se integralmente a douta decisão recorrida.
4. Por decisão sumária proferida em 18 de novembro de 2021, a Ex.ma Juíza Desembargadora relatora no Tribunal da Relação ..., considerando o disposto na alínea c), n.º 1 do art.432.º do Código de Processo Penal, determinou a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça, por ser o Tribunal competente para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA.
5. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça emitiu parecer nos termos do art.417.º do Código de Processo Penal, concluindo que o acórdão recorrido não merece censura, pelo que o recurso deverá improceder, ainda que aceite uma eventual, mas ligeira, redução da pena única.
6. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, respondeu o arguido reiterando o teor das conclusões do recurso apresentado com todas as legais consequências ou, caso assim não se entenda, e sem conceder ou prescindir, não deve em caso algum a pena a aplicar ser superior àquele aceite, ainda que de forma subsidiária, pelo Ministério Público, isto é, 6 anos e 6 meses de prisão.
7. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à Conferência.
II - Fundamentação
8. Em sede de decisão recorrida encontra-se provada, a seguinte factualidade (transcrição): “1- Nos presentes autos, foi o arguido condenado por Acórdão de 17-05-2018, transitado em julgado em 21-06-2018, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a) e c), do Código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova [em síntese, pela seguinte factualidade: - em data não concretamente apurada, mas situada num período anterior a Outubro de 2012 e que perdurou até 27-01-2016, com o intuito de obterem vantagens patrimoniais e explorando a situação de anomalia psíquica dos ofendidos, o arguido e a co-arguida sua companheira, começaram a frequentar a casa daqueles, mostrando-se prestáveis, apoiando-os na realização das tarefas do dia-a-dia, levando-os a passear e ao médico sempre que necessário. Nessas circunstâncias, tendo obtido o conhecimento de que os ofendidos possuíam património imobiliário, auferiam rendas de prédios de sua propriedade e pensões de reforma e que eram titulares de contas bancárias na Caixa Geral de Depósitos e de certificados de aforro nos CTT – Correios de Portugal, S.A., aprovisionadas com alguns milhares de euros, o co-arguido e sua companheira co-arguida forjaram um plano que lhes permitisse dispor do património dos ofendidos em seu benefício e de se apoderar de toda e qualquer quantia de que fossem titulares, explorando para o efeito, o estado de incapacidade, em termos físicos e psíquicos, dos mesmos. Na execução do mencionado plano, em 13-02-2013, lograram convencer os ofendidos a outorgar um testamento a favor dos filhos dos co-arguidos que instituíram herdeiros de todos os seus bens, convencendo-os ainda a constituir o arguido AA seu procurador, fazendo-os crer que este os iria ajudar a administrar os seus bens. Na posse das procurações o arguido e a sua companheira co-arguida passaram a receber rendas e outras quantias monetárias, procedendo ao resgate de um certificado de aforro, tudo sem conhecimento dos ofendidos, movimentando contas bancárias e isto na posse das cadernetas da Caixa de Depósitos dos ofendidos e dos respetivos códigos PIN. O arguido e a co-arguida, com o intuito de se apoderar da venda de imóveis propriedade dos ofendidos, decidiram também dispor do património imobiliário dos ofendidos sem o seu consentimento, deixando-os em situação carenciada. O arguido vendeu ainda aos seus próprios filhos uma fração sita em ..., sem o conhecimento dos ofendidos, nem da curadora provisória nomeada no processo de interdição e isto já depois de estar informado da revogação da procuração que havia conseguido dos ofendidos. Os ofendidos que antes viviam bem, passaram a ter enormes dificuldades para fazer face ás despesas (alimentação, medicação, lar e impostos). O arguido e a co-arguida lograram, assim, apoderar-se de um montante de pelo menos € 63.279,36 (sessenta e três mil duzentos e setenta e nove euros e trinta e seis cêntimos), sem conhecimento ou autorização dos ofendidos, utilizando-o em proveito próprio e não em proveito destes, assim contrariando a sua vontade e interesse, traindo a confiança que neles foi depositada, aproveitando-se do estado de saúde e debilidade mental dos ofendidos, explorando a sua fragilidade e solidão, executando o plano descrito, no sentido de obterem para si uma vantagem patrimonial que não lhes era devida]. 2- No processo comum coletivo n.º 210/07...., do Tribunal Judicial ..., por decisão proferida em 17-07-2013, transitada em julgado em 30-09-2013, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art 160º, nº 1, al b) do Código Penal na pena de 4 anos de prisão e de um crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art 160º, nº 6, do Código Penal na pena de 1 ano de prisão, em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, tendo sido revogada a suspensão por decisão datada de 09-05-2019, transitada em julgado em 15-06-2020 [certidão junta aos presentes autos (de fls 2206 a 2254) da qual decorre a prática, em síntese, da seguinte factualidade: -“Pelo menos desde 2007, agindo de modo livre, consciente e voluntário e com o propósito de obterem proveitos económicos à custa do correspondente prejuízo patrimonial das vítimas, o arguido AA, de comum acordo com outros co-arguidos e como forma de obter dinheiro de modo fácil sem trabalhar, decidiu angariar trabalhadores de nacionalidade ... para trabalhar na ... em ..., assumindo-se como intermediários das entidades patronais ..., com o único objetivo de se apoderarem das remunerações correspondentes ao trabalho prestado pelos trabalhadores angariados e de as gastarem em seu benefício. Para melhor concretizarem os seus propósitos, decidiram contactar homens que sabiam que viviam sozinhos, sem retaguarda familiar ou integrados em famílias com sérias dificuldades familiares, sofrendo de alguma dependência ou fragilidade que os tornava mais suscetíveis de acreditar na promessa de elevados salários. O arguido e demais co-arguidos, receberam assim diretamente das mãos dos patrões ... ou através de transferência bancária para contas bancárias às quais acediam, o dinheiro correspondente aos salários dos trabalhadores a quem devia ser entregue, ficando com o dinheiro todo ou fazendo por vezes entregas de pequenos montantes, locupletando-se com todo o resto. Para o efeito, o arguido e demais co-arguidos retiraram os documentos de identificação, os cartões bancários e os telemóveis pessoais dos trabalhadores, impedindo as vítimas de fugir por desconhecerem o local onde se encontravam e por não possuírem dinheiro]. 3- No processo comum singular n.º 240/15...., do Juízo de Competência Genérica ... – Juiz ..., por decisão proferida em 26-04-2017, transitada em julgado em 26-05-2017, foi o arguido condenado, como autor material de um crime de ameaça na forma agravada, p. e p. pelo art 153º, nº 1, 155º, nº 1, al a), 14º, nº 1 e 26º, todos do Código Penal na pena de 15 meses de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art 86º, nº1, al c) por referência aos artigos 2º, nº 1, al p), 3º, nº 4, al a), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições (aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23-02 e arts 14º, nº 1 e 26º, ambos do C.Penal em concurso efetivo com um crime de detença de arma proibida, p. e p. pelo art 86º, nº 1, al d) da mesma Lei, na pena de 19 meses de prisão, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 1 mês de prisão suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova tendo sido revogada a suspensão por decisão datada de 26-06-2020, transitada em julgado em 17-09-2020 [certidão junta aos presentes autos, de fls 2690 a 2695 e de 2869 a 2899) da qual decorre a prática, em síntese, da seguinte factualidade: “No dia 12-10-2015, de modo livre, consciente e voluntário, com a noção de incorrer em facto proibido e punido pela lei penal, sabendo que não era titular de licença de uso e porte de arma de fogo, nem registo da mesma, o arguido, com o intuito de inquietar, perturbar o ofendido na sua tranquilidade e de o atemorizar, muniu-se de uma arma de fogo e deslocou-se à residência do ofendido. Aí empunhando a arma para cima, efetuou dois disparos. Com o intuito de entrar no interior da referida residência, o arguido desferiu um pontapé na porta de entrada. Ouvindo os disparos, o ofendido aproximou-se da janela da sala da residência e ao avistá-lo o arguido aproximou-se e apontou-lhe a arma dizendo-lhe “vou-te matar cabrão”]. - FACTOS PESSOAIS Entende o Tribunal ser igualmente relevante atender aos seguintes factos, atinentes à situação vivencial do arguido (resultantes da fundamentação das decisões proferidas nos processos acima identificados, assim como nos Relatórios sociais elaborados pela DGRSP juntos aos autos): - o arguido é oriundo de uma família numerosa (11 irmãos) de condição socioeconómica desfavorável; - foi criado numa família bastante carenciada economicamente, mas teve uma infância feliz, sendo afetivamente investido pelos pais; - a sua educação processou-se segundo os valores culturais inerentes à etnia ..., com desvalorização da escolaridade; - terminou os estudos no 2º ano de escolaridade, por falta de motivação e pelo facto de acompanhar os pais nas atividades destes, em Portugal e em ...; - aos 19 anos estabeleceu uma relação afetiva com a atual companheira (“casou” segundo os rituais próprios da etnia ...), tendo sucessivamente vivido com esta na cidade de ..., na localidade de ... e mais tarde, durante 7 meses, em ... onde trabalhou na ...; - de 2016 a 2018 passou a residir em ..., trabalhando como .... - o arguido tem 3 filhos (de 16, 11 e 4 anos) da companheira BB. - trata-se de um indivíduo com um percurso de vida marcadamente desviante no que concerne ao cumprimento das normas e regras socialmente dominantes. - na comunidade, está negativamente referenciado, mormente junto das entidades locais. - encontra-se preso no E.P. ... onde trabalha como ..., atividade que mantem desde 20-12-2019 e que realiza com empenho; - durante a reclusão, em abril de 2020 registou uma repreensão; - desde então, mantem bom comportamento no estabelecimento prisional e uma postura educada ao nível interpessoal; - concluiu o Curso EF AB2 (Educação e Formação de Adultos) de dupla certificação que lhe conferiu o 2º ciclo e certificação profissional como ... da construção civil. - tem vindo gradualmente a revelar alguma evolução ao nível da reflexão crítica sobre a sua conduta delituosa.”
9. Objeto do recurso O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.[1] Como refere Germano Marques da Silva, “As conclusões resumem a motivação, e por isso, que todas as conclusões devem ser antes objeto de motivação. É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta está em falta”.[2] Face às conclusões da motivação do recorrente AA a questão a decidir é a seguinte: Se o acórdão recorrido ao aplicar-lhe uma pena única de 7 anos de prisão, violou o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal e os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade que resultam da conjugação dos artigos 18.º, n.º 2 da C.R.P. e do art.49.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União, pelo que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que lhe aplique pena não superior a 6 anos de prisão.
10. Apreciando.
10.1 Previamente ao conhecimento do objeto do recurso, impõe-se fazer uma breve consideração sobre a competência do Supremo Tribunal de Justiça para o conhecimento do recurso, na medida em que o arguido dirigiu o mesmo ao Tribunal da Relação ..., mas a Ex.ma Relatora nesse Tribunal Superior, para onde os presentes autos foram remetidos pela 1.ª instância, determinou a sua remessa ao Supremo Tribunal de Justiça por o considerar para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA. O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, tendo passado a constar expressamente, na 4.ª revisão constitucional (1997), do art.32.º, n.º 1, da Constituição da República, com o aditamento do inciso «incluindo o recurso». A revisão do Código Penal de 2007, em função do estabelecido no n.º 2 do artigo 432.º do CPP, evidencia claramente a obrigatoriedade do recurso per saltum, desde que o recorrente tenha em vista a reapreciação de pena aplicada em medida superior a 5 anos de prisão e vise exclusivamente a reapreciação da matéria de direito. No caso em apreciação, o objeto do recurso é um acórdão condenatório, proferido por um tribunal coletivo, em que foi aplicada ao recorrente uma pena de 7 anos de prisão – e a essa dimensão se deve atender para definir a competência material –, pelo que, estando em equação uma deliberação final de um tribunal coletivo, visando o recurso apenas o reexame de matéria de direito (circunscrita à redução da medida única da pena aplicada em cúmulo jurídico superveniente), cabe efetivamente ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer do recurso. Conclui-se assim que, neste caso, o recurso interposto pelo arguido é direto, per saltum, sendo o Supremo Tribunal de Justiça o competente para o conhecer, nos termos do art.432.º, n.ºs 1, alínea c) e 2, do Código de Processo Penal.
10.2.1 O recorrente AA defende que o acórdão recorrido ao aplicar-lhe uma pena única de 7 anos de prisão, violou o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal e os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade que resultam da conjugação dos artigos 18.º, n.º 2 da C.R.P. e do art. 49.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, porquanto a pena única não deveria ser superior a 6 anos de prisão Apresenta, no essencial, os seguintes argumentos: (i) o cúmulo jurídico de penas, que resultou do conhecimento superveniente do concurso, teve origem em penas de 4 anos e 6 meses de prisão (Proc. n.º 129/13....), de 4 anos de prisão (Proc. n.º 210/07....) e de 2 anos e 1 mês de prisão (Proc. n.º 240/15....). O Tribunal a quo ao fixar a pena única em 7 anos de prisão, em que condenou o recorrente, aplicou uma proporção de cerca de 2/5 sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), desviando-se assim da “prática jurisprudencial” de aplicar uma proporção não superior a ¼.; (ii) Pese embora a decisão daquilo que é a “prática jurisprudencial” seja, em abstrato, legalmente admissível, uma decisão que se desvie da normalidade deve ser especialmente fundamentada. A falta desta fundamentação, no caso em apreciação, é violadora do disposto nos artigos 71.º e 77.º do Código Penal; (iii) o Tribunal a quo sopesou as circunstâncias agravantes e não levou em linha de conta todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa, como o bom comportamento intra muros do recorrente. Vejamos. 10.2.2. Invocando o recorrente um conjunto de normas e princípios jurídicos que terão sido violados no acórdão recorrido, importa, antes do mais, fazer-lhes uma breve referência, com incidência sobre as partes circunstancialmente adequadas ao caso concreto. Portugal é um «Estado de Direito Democrático», baseado, nomeadamente, na «dignidade da pessoa humana» e «na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais» (artigos 1.º e 2.º da Constituição da República Portuguesa. Como afloramento do «Estado de Direito Democrático», consagrado no art.2.º da C.R.P., o n.º 2 do art. 18.º da Lei Fundamental, estabelece que «A lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.». A última parte do n.º 2, do art.18.º, da Constituição da República Portuguesa, estabelece como um dos pressupostos materiais para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias, o chamado princípio da proporcionalidade. Doutrinariamente, este princípio vem sendo desdobrado em três subprincípios: - princípio da necessidade ou da exigibilidade (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); - princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); e - princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da racionalidade (não poderão adotar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).[3]. O princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou critério de justa medida, está estritamente ligado ao princípio da necessidade da pena criminal e, em face do mesmo, a pena criminal será constitucionalmente admissível se for necessária, adequada e proporcional. O Tribunal Constitucional tem entendido, em jurisprudência uniforme e constante, designadamente nos acórdãos n.ºs 574/95, 958/96, 329/97 e 108/99, que só devem censurar-se as soluções legislativas que contenham sanções que sejam manifesta e claramente excessivas, já que, se “fosse além disso, estaria a julgar o mérito da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que aí há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação”.[4] O princípio da necessidade da pena criminal surge também por vezes referido como princípio da intervenção mínima do direito penal ou como princípio da subsidiariedade do direito penal. O Estado apenas pode limitar direitos fundamentais fazendo intervir a sanção penal quando tal for indispensável para assegurar a defesa de bens jurídicos constitucionais e dessa forma contribuir para a segurança e paz social. Neste mesmo sentido, o art. 49.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sob a epígrafe «Princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas», estatui, no seu n.º 3 que «As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração.».[5] O princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou, noutra formulação, o princípio da proibição do excesso, deve ser respeitado tanto pelo legislador, ao definir as sanções penais pelos crimes que tipifica, como pelo Tribunal, ao determinar concretamente essas sanções penais dentro dos limites definidos na lei. Dúvidas não há, pois, que na determinação da medida concreta da pena deve respeitar-se, como bem refere o recorrente, o art. 18.º da Constituição da República Portuguesa, que contém alguns dos mais importantes princípios materiais comuns aos direitos, liberdades e garantias, bem como art.49.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Nos termos do art.71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele. Culpa e prevenção são os dois vetores através dos quais é determinada a medida da pena. Sintetizando o entendimento da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a propósito destes vetores, pode ler-se no acórdão de 14 de setembro de 2016, que “o modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de proteção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto”. A pena serve “finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena”. A culpabilidade aqui referida não se confunde com a intensidade do dolo ou a gravidade da negligência; é um juízo de reprovação que se faz sobre uma pessoa, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal. Como observa Figueiredo Dias, o facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “…isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”[6] O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena. De acordo com o art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração [7]do agente na sociedade. O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais. Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito. É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial. A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º 2 do art. 71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”. Os fatores da medida da pena podem ser divididos em: 1) Fatores relativos à execução do facto, considerando-se a “execução do facto” num sentido global e complexo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência” e ainda “os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e os motivos que o determinaram”... 2) Fatores relativos à personalidade do agente, onde se incluem as condições pessoais e económicas do agente, a sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto; e 3) Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos.[8] Podem ser agrupados nas alíneas a), b) c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º do C.P., os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), do mesmo preceito, os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), ainda, os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior aos factos.[9] Nas situações em que o agente praticou vários crimes, o concurso efetivo de crimes impõe que se tenham em consideração as regras da punição do concurso. O regime de concurso efetivo ou real de crimes, em termos de consequências jurídicas, é tratado em dois grandes sistemas: a) sistema da acumulação material; e b) sistema da pena única ou conjunta. No sistema da acumulação material de penas, a determinação da medida global das penas corresponde à totalidade das penas individuais aplicadas, que serão sucessivamente cumpridas, se tiverem a mesma natureza. Este sistema, com pouca aceitação nas legislações, tem vários inconvenientes, como as penas aplicadas facilmente ultrapassarem a medida da culpa e não ser compaginável com as finalidades de prevenção especial, na medida em que a execução sucessiva das penas fragmentadas obsta a uma tentativa séria de ressocialização. O cúmulo material de penas nunca foi acolhido por nenhum dos Código Penal portugueses.[10] O sistema da pena única é o adotado pela generalidade das legislações, pois é político-criminalmente aceitável à luz das exigências de culpa e de prevenção, sobretudo de prevenção especial. Este sistema pode assumir, ainda, duas formas diferentes: (i) de pena unitária; ou (ii) de pena conjunta. Em termos muito sucintos, seguindo aqui ainda Figueiredo Dias, a «pena unitária» “existirá quando a punição do concurso sobrevenha sem consideração pelo número de crimes concorrentes e independentemente da forma como poderiam combinar-se as penas que a cada um caberiam. Os crimes concorrentes perdem aqui toda a sua autonomia, não se tornando sequer necessário determinar a pena de cada um: elas não têm relevo decisivo (…) para a pena do concurso.”. [11] No sistema de pena unitária tudo se passa como se o conjunto dos factos praticados pelo agente, que integram o concurso de crimes, constituísse um só crime a punir tendo em conta a culpa e as exigências de prevenção que deles resulta. Era este o sistema previsto no Projeto do Código Penal de 1963, defendido por Eduardo Correia, que no seu art. 91.º, estabelecia que «Quando alguém houver praticado vários crimes será punível na moldura de uma pena que tem como limite superior a soma das que correspondem a cada crime, sem que, porém, possa ultrapassar o seu máximo legal.».[12] As alterações posteriores ao Projeto do Código Penal, tornaram clara a necessidade de exigência de referência às penas concretamente aplicadas aos vários crimes, como o exigia, na altura em que foi elaborado o Projeto, o § 2.º do art.102.º do Código Penal de 1986 então em vigor. O sistema da pena unitária previsto naquele Projeto não foi consagrado pelo legislador no Código Penal de 1982, que no seu art.77.º Código Penal, na atual redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março, estabelece, com interesse para a presente decisão: «1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.». O art.77.º do Código Penal perfilha, sem dúvidas possíveis, o «sistema da pena conjunta», na medida em a punição do concurso de crimes supõe a discriminação das penas concretas que o integram. Na lição de Figueiredo Dias “Pena conjunta existirá sempre que as molduras penais previstas, ou as penas concretamente determinadas, para cada um dos crimes em concurso sejam depois transformadas ou convertidas, segundo um «princípio de combinação» legal, na moldura penal ou na pena do concurso.”. Dentro deste sistema, é habitual configurar-se um princípio de absorção puro, em que a punição do concurso será constituída simplesmente pela pena mais grave dentre as penas parcelares, e um princípio da exasperação ou agravação, em que “a punição do concurso ocorrerá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade dos crimes (sem que, todavia, possa ultrapassar a soma das penas que concretamente seriam aplicadas aos crimes singulares).”. A doutrina vem entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art.77.º do Código Penal, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, nos termos definidos, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.[13] Também a jurisprudência segue este caminho, consignando-se, entre outros, no acórdão do S.T.J. de 3 de outubro de 2012, que o modelo de punição do nosso Código Penal é um sistema misto de pena conjunta “erigido não de conformidade com o sistema de absorção pura por aplicação da pena concreta mais grave, nem de acordo com o princípio da exasperação ou agravação, que agrega a si a punição do concurso com a moldura do crime mais grave, agravada pelo concurso de crimes.”[14]. Doutrina e jurisprudência coincidem em especificar que no cúmulo jurídico, a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida concreta da pena da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente. O agente é sancionado, não apenas pelos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas especialmente pelo conjunto dos factos, enquanto reveladores da gravidade da ilicitude global da conduta do agente e da sua personalidade. A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.71.º, n.º 1, um critério especial estabelecido no art.77.º, nº 1, 2ª parte, ambos do Código Penal.[15] Os parâmetros indicados no art.71.º do Código Penal, servem apenas, porém, de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.[16] Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, na obra que vimos seguindo, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).” Como refere ainda, na doutrina, Cristina Líbano Monteiro, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.[17] As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos. É evidente que condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado. A interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas traduzidas na vontade clara de alteração do comportamento antissocial violador de bens jurídico criminais, assente em factos que o demonstrem, relevam assim, particularmente, no apuramento das exigências de prevenção no momento de determinar a pena única. Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente. Por razões variadas que, em regra, decorrem do desconhecimento da existência de outro ou outros processos em que o arguido foi acusado ou por dedução de acusações em tempos diversos, são frequentes os casos em que os crimes, em concurso efetivo ou real, não são julgados no mesmo processo. Nestas circunstâncias, o legislador admitindo que não seria justo, por violação, desde logo, dos princípios da igualdade, da culpa e da proporcionalidade, estabeleceu no art. 78.º, n.º 1 do Código Penal, que «Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.». Resulta desta norma, além do mais, que as regras da punição do concurso de crimes previstas art. 77.º do Código Penal, se aplicam igualmente ao conhecimento superveniente do concurso efetivo de crimes, desde que os crimes sejam praticados antes da primeira condenação transitada em julgado. Tudo se passa então como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projetando-o retroativamente.[18] Também a pena conjunta do concurso superveniente será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, de acordo com os critérios gerais de medida da pena contidos nos artigos 71.º, n.º 1 e 77.º, a que acrescem os do art.78.º, todos do Código Penal. Neste sentido, sublinha o acórdão do S.T.J. de 15 de novembro de 2012 (proc. n.º 178/09.8PQPRT-A.P1.S1), que “a determinação da medida da pena conjunta num caso de conhecimento superveniente do concurso, nos termos do art.78.º do CP, é feita em função dos critérios gerais da culpa e das exigências de prevenção estabelecidas nos arts. 40.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1, do CP, a que acresce a necessidade de consideração do critério especial da 2.ª parte do n.º 1 do art.77.º do mesmo Código, isto é, que na medida da pena do concurso são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”[19]. É medianamente claro, do exposto, que o legislador ao estabelecer os critérios de determinação da pena única, seja no âmbito do mesmo processo, seja no concurso superveniente, não manda atender a quaisquer critérios aritméticos, matemáticos. O recorrente AA também não indica qualquer norma que estabeleça critérios aritméticos, matemáticos, na determinação da pena única. No entanto, indica a existência de um critério jurisprudencial, que resultará da “prática jurisprudencial”, de sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), se aplicar uma proporção não superior a ¼. Existe, efetivamente uma corrente jurisprudencial que perante a constatação de grande amplitude na moldura penal do concurso, estabelece uma fração variável nas penas parcelares a somar à pena mais grave, com vista a consagrar uma alegada objetividade e igualdade entre os arguidos nas operações de fixação de penas conjuntas. No sentido de que para determinação da pena única a aplicar, se torna necessário começar por definir um ponto, que fixe o encontro entre o limite máximo e o mínimo da pena do concurso, consigna-se no acórdão do STJ de 18 de junho de 2009 (proc. n.º 660/07. 1TDLSB.S1): “Em muito recente colóquio efectuado neste Supremo Tribunal sobre o tema Direito Penal e Processo Penal, o Conselheiro Carmona da Mota defendeu, em comunicação que apresentou, que a pena conjunta, no quadro das penas singulares, é uma pena pré-definida pelo jogo de forças das próprias penas singulares, que, esgotantemente, representam (numericamente) todos os factores legalmente atendíveis, sendo possível, através de um critério ainda jurídico, mas que, na sua operacionalidade, recorre ao auxílio da ciência matemática, encontrar, através dum algoritmo, o terceiro termo de referência, o qual mesmo que possa não constituir um «ponto de chegada», será certamente um importante «passo» na difícil operação jurídica de fixação da pena conjunta. A um critério «matemático» – referiu – recorre o legislador quando agrava determinadas penas em determinada fracção, quando fixa a pena máxima do cúmulo na «soma» das penas parcelares, e/ou quando determina que condenado possa beneficiar da liberdade condicional, a meio ou 2/3 da pena, ou mesmo, quando considera «valor elevado» «aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto», etc. Na busca desse ponto de referência, o Conselheiro Carmona da Mota indica como principais parâmetros: I) A representação das penas singulares na pena conjunta é, em regra, parcial, só se justificando que esta se aproxime ou atinja a sua soma material nos casos em que todas as penas singulares co-envolvidas correspondam a crimes de gravidade similar (puníveis, por exemplo, com penas de 1 a 5 anos de prisão) e a sua soma material se contenha dentro da moldura penal abstracta dos crimes concorrentes (no exemplo, 5 anos de prisão); II) A pena conjunta só deverá conter-se no seu limite mínimo ou na sua vizinhança em casos de grande disparidade entre a gravidade do crime mais grave (representada por uma pena, por exemplo, de 15 anos de prisão) e a gravidade dos demais (representadas por penas que, somadas, não excedam, por exemplo, um ano); III) Nos demais casos (em que os limites mínimo e máximo da pena conjunta distem significativamente), a representação das penas menores na pena conjunta não deve exceder um terço do seu peso quantitativo conjunto (acquis jurisprudencial conciliatório da tendência da jurisprudência mais «permissiva» – na procura desse terceiro termo de referência - em somar à «maior» ¼ ou menos das demais com a jurisprudência mais «repressiva» que àquela usa – com o mesmo objectivo - adicionar metade ou mais das outras); IV) O tratamento, no quadro da pena conjunta, da pequena criminalidade deve divergir do tratamento devido à média criminalidade e o desta do imposto pelo tratamento da criminalidade muito grave, de tal modo que a pena conjunta de um concurso (ainda que numeroso) de crimes de menor gravidade não se confunda com a atribuída a um concurso (ainda que menos numeroso) de crimes de maior gravidade: E daí, por exemplo, que um somatório de penas até 2 anos de prisão – ainda que materialmente o ultrapasse em muito - não deva exceder, juridicamente, 8 anos, por exemplo; que um somatório de penas até 4 anos de prisão não ultrapasse, por exemplo, 10 anos, que um somatório de penas até 6 anos de prisão não ultrapasse, por exemplo, 12 anos; que um somatório de penas até 10 anos de prisão não ultrapasse, por exemplo, 16 anos, etc.; V) A medida da pena conjunta só deverá atingir o seu limite máximo absoluto em casos extremos (quatro penas de 20 anos de prisão, por exemplo), devendo por isso o efeito repulsivo/compressor desse limite máximo ser, proporcionalmente, tanto maior quanto maior o limite mínimo imposto pela pena parcelar mais grave e maior o somatório das demais penas parcelares.”.[20] Ainda no âmbito desta corrente, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de dezembro de 2020 (proc. n.º 388/16.2PHLRS.L2.S1, 3.ª Secção), que “A. G. Lourenço Martins, estudando a jurisprudência deste Supremo sobre a medida da pena, defende a adição de uma proporção do remanescente das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 e 1/5 e acrescenta que se bem que a corrente, que se poderia designar do «factor percentual de compressão», possa relutar a um julgador cioso do poder discricionário (aqui, aliás, mais vinculado que discricionário), desde que o seu uso não se faça como ponto de partida mas como aferidor ou mecanismo de controlo, não nos parece que deva, sem mais, ser rejeitada. Representa um esforço de racionalização num caminho eriçado de espinhos, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa, nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento, que há-de ser encontrado na pena conjunta.”.[21] Se na doutrina Paulo Pinto de Albuquerque segue esta corrente, ao escrever que “… o tribunal determina a pena conjunta somando à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excecionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso.”[22], já Cristina Líbano Monteiro e Nuno Brandão a repudiam, ao comentarem o acórdão do S.T.J. 12 de maio de 2005.[23] Esta corrente foi já de algum modo ensaiada quando entrou em vigor o Código Penal de 1982, para as penas singulares. Alguma jurisprudência, de que são exemplos os acórdãos do S.T.J. de 30 de novembro de 1983 e de 19 de dezembro de 1984[24], também seguiu o entendimento de que face à maior amplitude dos limites máximos das penas relativamente ao Código Penal anterior, se devia definir um ponto para determinação das penas singulares, fixando esse ponto como a média entre os limites mínimo e máximo. Assim, no caso de ausência de circunstâncias que agravem ou atenuem a conduta do agente ou, havendo-as, os respetivos agravativo e atenuativo, por serem iguais, se anularem, a pena deveria a pena ser graduada em concreto à volta da média entre os limites mínimo e máximo estabelecidos em abstrato no preceito incriminatório, Essa corrente jurisprudencial não vingou muito tempo, consolidando-se na jurisprudência e na doutrina, o entendimento de que a fixação das penas singulares deve fazer-se de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no Código Penal, onde não há referência a qualquer ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena estabelecida no tipo penal, como ponto de partida para fixação concreta dessa pena. Em sentido contrário à corrente jurisprudencial a que se arrima o recorrente, existe uma outra, que seguimos, de que a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida, não é compatível com os critérios legais. Sintetizando esta corrente jurisprudencial, pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de maio de 2019 (proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1): “Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu. Rejeita-se assim qualquer critério objetivo na fixação da pena conjunta mediante a agravação da pena parcelar mais grave somando uma fração das restantes penas parcelares, e ainda menos por fórmulas matemáticas. Esses critérios conduzem afinal à aplicação de um sistema de pena conjunta que a lei não consagrou: o da “exasperação”, ou seja, aquele que que pune o concurso no quadro da pena mais elevada, agravada em função das restantes penas.” Reconhecendo que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, e até do mesmo tribunal, acrescenta-se, assertivamente, nesta decisão “que essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados. O que importa é proceder a uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas. Ou seja: o critério adotado pelo legislador português é mais maleável do que as “propostas matemáticas”, impondo ao julgador uma ponderação mais profunda e fundamentada de todos os fatores em presença, permitindo-lhe, pois, fixar a pena dentro de todo o arco da moldura concurso, de acordo com o juízo formulado a final sobre a personalidade do agente. É uma solução que apela a um juízo simultaneamente mais rigoroso e prudencial, mais adequado a uma solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua singularidade.”[25]. Também António Artur Rodrigues da Costa, em estudo elaborado sobre “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ” afirmando que o uso de fórmulas conduz aparentemente a penas conjuntas mais adequadas, conclui que a intervenção de tal algoritmo na realização do cúmulo jurídico não lhe parece “…ter a suficiente solvabilidade jurídica, sobretudo em atenção à teologia que enforma as regras da punição do concurso de crimes.”.[26] 10.2.3. Presentes os critérios e finalidades que se acabam de expor, regressemos ao acórdão recorrido e aos argumentos formulados pelo recorrente visando a redução da pena única em que foi condenado em cúmulo jurídico. Após afastar do cúmulo jurídico as penas em que o arguido AA foi condenado nos processos n.ºs 17/16...., 159/16...., 70/17.... e 8/18...., e de balizar o quadro normativo para encontrar a pena única do concurso no âmbito de três condenações (nos Processos n.ºs 129/13...., 210/07.... e 240/15....), o Tribunal recorrido passou à fixação da pena conjunta, considerando, nos termos n.º2, do art.77.º, do Código Penal, que a pena única a aplicar tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas (4 anos de prisão) e tem como limite máximo a soma material das penas das várias condenações (11 anos e 10 meses de prisão). No recurso em apreciação, o arguido não questiona a adequação da moldura penal abstrata do concurso de crimes que, tal como refere o Tribunal a quo, tem como limiar mínimo 4 anos de prisão e como teto máximo quase 12 anos de prisão, pelo que neste caso a amplitude da moldura não é maior do que em muitas penas descritas em tipo criminais. No acórdão recorrido, a determinação da medida da pena única foi motivada nos seguintes termos: “- O ilícito global apresenta alguma gravidade, considerando o lapso de tempo decorrido entre todos os crimes em concurso e o tempo em que o arguido persistiu na atividade criminosa em dois deles. - Relativamente à personalidade do arguido, há que ter em conta, para além da sua situação vivencial, a circunstância de o arguido ter vindo a praticar os crimes em circunstâncias essencialmente marcadas pela sua errância existencial, sem qualquer estabilidade profissional, com uma predisposição para ilícitos contra a liberdade pessoal, contra o património da pessoa e aproveitando a especial vulnerabilidade da vitimas (cfr. certificado do registo criminal junto aos autos), o que afasta a mera ocasionalidade das condutas. - Analisando globalmente a conduta do arguido, conclui-se que as necessidades de prevenção são particularmente elevadas, dado o alarme social que os crimes em causa, provocaram principalmente no meio social do agregado do arguido e continuam a provocar, especialmente, nos tempos que vivemos de maiores fragilidades sociais. - As exigências de prevenção especial, face à personalidade do arguido manifestada no facto de se mostrarem elevadas, por revelarem não terem produzido efeito anteriores condenações em pena de prisão suspensa, revogadas, entretanto, tudo a postular a aplicação de uma pena que possa ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes e para que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigentes. (…) Deste modo, ponderando estes factos à luz do acima exposto (especialmente as regras contidas no art.77º, n.ºs 1, 2 e 3 C.P.), e dentro das molduras penais abstratas cabidas, procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos processos supra indicados supra em 1-2-e 3- julga-se adequada a pena única de 7 anos de prisão.”. Do exposto, podemos já concluir que o Tribunal recorrido, na determinação da pena conjunta no âmbito do conhecimento superveniente de concurso, não fez qualquer menção à existência de uma “prática jurisprudencial” de aplicação de uma proporção não superior a ¼ relativamente às penas parcelares menos elevadas, nem fundamentou a razão pela qual se desviou dessa prática alegada prática jurisprudencial. Se é uma realidade, como decorre da análise dos critérios jurisprudenciais, a existência de uma corrente, nomeadamente, no S.T.J, que se serve de critérios aritméticos, tendo em vista evitar decisões dispares em situações similares, já está longe de ser uma evidência a invocada “prática jurisprudencial” de aplicação de uma proporção não superior a ¼ relativamente às penas parcelares menos elevadas, sendo frequente ver somada, à pena mais grave, frações das demais penas parcelares que vão desde ½, 1/3, ¼ e até mesmo 1/5. A adição mecânica à pena mais grave, nomeadamente de ¼ a todas as penas parcelares menos elevadas, seria até muito questionável porquanto as circunstâncias em concreto num processo, não são, frequentemente, similares às circunstâncias noutros processos. Uma vez que os Juízes que constituem esta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, não seguem a corrente de uso de fórmulas matemáticas na determinação da pena conjunta, entendemos não merecer censura a decisão recorrida pelo facto de não as ter utilizado, designadamente, a dita proporção não superior a ¼ nas restantes penas parcelares do concurso. Prejudicada fica, ainda, a impugnação da pena única fixada pelo Tribunal a quo por alegada falta de “especial” fundamentação da decisão face ao desvio da “prática jurisprudencial” de aplicar uma proporção não superior a ¼ nas penas parcelares menos elevadas. Resta, assim, decidir, se a pena única deve ser reduzida de 7 anos de prisão para não mais de 6 anos de prisão, por o Tribunal a quo ter sopesado as circunstâncias agravantes, mas não todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa, como o bom comportamento intra muros do recorrente. Vejamos. Observando o ilícito global, que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo como de elevada gravidade. Assim: - Os crimes em concurso são predominantemente contra as pessoas, sendo dois deles crimes de tráfico de pessoas e um outro de ameaça agravada, a que acrescem, crimes de detenção de arma proibida e contra o património (um crime de burla qualificada). Os crimes de tráfico de pessoas praticados pelo arguido integram o conceito de “criminalidade altamente organizada” e um deles é punível com prisão de 3 a 10 anos, o que os afasta da pequena/média criminalidade. - A distância temporal entre todos os crimes em concurso (vários anos) e o tempo em que o arguido persistiu na atividade em dois deles, revelam um acentuado grau de ilicitude global. - Quer nos crimes de tráfico de pessoas, quer no crime de burla qualificada, o arguido aproveitou-se das fragilidades pessoais das suas vítimas, para as submeter à sua vontade, locupletando-se à custa delas. No caso do crime de burla qualificada, não se coibiu o arguido de explorando a situação de anomalia psíquica dos ofendidos, juntamente com a sua companheira, as ter despojado dos seus bens mobiliários e imobiliários em termos tais que as vítimas passaram a ter enormes dificuldades para fazer face às despesas de alimentação, medicação, lar e impostos. De notar o uso de arma de fogo, com dois disparos de tiro, na prática do crime de ameaça agravado. - O grau de violação dos heterogéneos bens jurídicos nos crimes em concurso, onde sobressai o agravo contra a liberdade pessoal, é elevado. A culpa global do arguido, que se retira da intensa e prolongada vontade de praticar os factos em concurso, é acentuada. Quanto à personalidade unitária do recorrente, também não merece censura a abordagem efetuada no acórdão recorrido: Do conjunto dos factos em concurso, do percurso de vida do arguido marcadamente desviante no que concerne ao cumprimento de normas e regras socialmente dominantes, que o levam a ser negativamente referenciado na comunidade e junto das entidades locais, do seu passado criminal que se retira do CRC, da revogação das condenações em pena de prisão suspensa, e das fracas condições socioeconómicas e laborais, resulta que o AA tem uma personalidade intensamente desconforme ao modo de ser suposto pela ordem jurídico-criminal, evidenciando fraca sensibilidade e suscetibilidade de ser influenciado pelas penas criminais. Pese embora, no que toca à prevenção especial, se entenda que o recorrente carece de forte socialização, cremos que poderá ainda considerar-se o ilícito global agora julgado como não sendo resultado de uma tendência criminosa, embora dela se aproxime já, assumindo ainda um carácter pluriocasional. Face à personalidade do arguido manifestada nos factos, entende-se, no acórdão recorrido, e bem, que as elevadas exigências de prevenção especial postulam a aplicação de uma pena que possa ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes e para que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigentes. A esta conclusão não obsta a alegada omissão de ponderação pelo Tribunal a quo do “bom comportamento intra muros do recorrente”, que este aponta a seu favor para redução da pena única fixada no concurso de crimes. A decisão recorrida não refere expressamente o comportamento do arguido intramuros quando procede à determinação da pena conjunta, mas tal não significa que não o tenha ponderado, na medida em que a propósito da personalidade do arguido refere ter em conta, ainda, a “sua situação vivencial”, que é, no caso, o cumprimento de pena de prisão em Estabelecimento Prisional. Os factos provados, mostram que o ora recorrente durante a reclusão, em abril de 2020, registou uma repreensão e que, desde então, mantém bom comportamento prisional e uma postura educada, ou seja, vem mantendo um comportamento institucional normal, exigível a quem cumpre pena num Estabelecimento Prisional, sob pena de aí ser sancionado. A circunstância do arguido em meio prisional trabalhar com empenho como ... desde 20-12-2019, ter concluído um curso que lhe conferiu o 2.º ciclo e a certificação profissional como ... da construção civil, e mostrar “alguma evolução gradual ao nível da reflexão crítica sobre a sua conduta criminosa”, não altera significativamente a personalidade global do mesmo que emerge dos factos praticados em concurso, nem afasta as fortes necessidades de ressocialização já atrás descritas. Importa ainda não esquecer “as necessidades de prevenção geral”, que no entender do acórdão recorrido, e bem, são consideradas como “particularmente elevadas, dado o alarme social que os crimes em causa, provocaram principalmente no meio social do agregado do arguido e continuam a provocar, especialmente, nos tempos que vivemos de maiores fragilidades sociais”. Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a personalidade do recorrente, entendemos que se mostra justa, por adequada às finalidades de prevenção, proporcional á culpa e à personalidade do arguido/recorrente, a pena conjunta fixada em 7 anos de prisão - bem mais perto do limite mínimo da moldura abstrata do concurso (4 anos de prisão) do que do seu limite máximo (quase 12 anos de prisão). Assim, mantém-se a pena conjunta fixada em cúmulo jurídico pelo Tribunal a quo, improcedendo, consequentemente, o recurso.
III- Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa). * Lisboa, 27 de janeiro de 2022
Orlando Gonçalves (Relator) Adelaide Sequeira (Adjunta)
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[6] Cf. Prof. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230. [15] Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2. [16] Cf. Figueiredo Dias, obra cit., pág. 292. [17] Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º 1, pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1. [18] Cf. neste sentido o acórdão do STJ, de 2-6-2004, in CJ, STJ , II , pág. 221. [22] Cf. “Comentário do Código Penal”, UCE, 2.ª ed., pág.283. |