Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ALEXANDRE REIS | ||
| Descritores: | ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS REQUISITOS MORA DO CREDOR RECUSA PRESTAÇÃO INDEMNIZAÇÃO NEXO DE CAUSALIDADE TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
| Data do Acordão: | 04/06/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I. O exercício do direito potestativo de resolver ou de modificar equitativamente um contrato, ao abrigo do regime previsto no art. 437º do CC, depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) uma drástica alteração das circunstâncias que constituem a base bilateral do negócio (que levou os contraentes, comummente, a contratar nos termos em que o fizeram); (ii) que configure um obstáculo anómalo (grave e extraordinário) ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto; (iii) que afecte supervenientemente o equilíbrio patrimonial e a funcionalidade própria do negócio, de modo que a exigência da prestação por um contraente comporte uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício, ou seja, uma prestação excessivamente onerosa para um contraente face à da contraparte. II. O credor que não aceita a prestação que lhe é oferecida incorre em mora, nos termos do art. 813º do CC, se não provar circunstâncias que configurem um motivo justificado para essa recusa. III. Conforme a norma do art. 563º do CC, para que um facto seja causa de um dano, é necessário que, no plano naturalístico, ele seja uma condição sem a qual o dano não se teria verificado e, além disso, que, no plano geral e abstracto, ele seja causa adequada desse mesmo dano. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Monini SPA intentou esta acção contra Sociedade Agrícola do Vale de Umbria SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 153.946,54, acrescida de juros de mora à taxa comercial, para a indemnizar do prejuízo resultante do incumprimento do contrato de compra e venda de azeite que celebrou com a R, mediante o qual esta se obrigou a fornecer-lhe 270 toneladas de azeite virgem extra, de que apenas lhe entregou 54 toneladas, o que a obrigou a adquirir azeite a outros produtores por um preço superior. A R contestou, alegando: na campanha de 2014/2015, devido às alterações climatéricas, a produção de azeite sofreu um decréscimo de mais de 50% em relação ao ano anterior, pelo que a entrega das 216 toneladas prejudicaria o equilíbrio contratual entre as partes e implicaria que a R incumprisse completamente com todos os seus clientes, pelo que a estabilidade do contrato envolvia uma lesão demasiado onerosa para ela, por a colocar numa situação de ruína económica, afectando gravemente os princípios da boa-fé negocial; disso deu conhecimento à A, à qual propôs entregar metade (108 toneladas) da quantidade em falta, o que ela não aceitou; a R propôs às demais empresas a quem vende azeite fornecer apenas parte das quantidades por elas pretendidas, tendo em consideração a diminuição da produção, sendo que todas aceitaram essa proposta. Concluiu pedindo que fosse julgada improcedente a pretensão da A.
Foi proferida sentença, absolvendo a R do pedido, por se considerar que as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tinham sofrido uma alteração anormal e idónea a reputar-se como afectada pelo princípio da boa-fé a exigência, por parte da A, do cumprimento integral do contrato nos precisos termos em que fora celebrado.
No âmbito do recurso interposto pela A, a Relação manteve inalterada a decisão sobre a matéria de facto e, revogando parcialmente a sentença recorrida, condenou a R a pagar à A apenas a quantia de € 75.600 (acrescida de juros de mora à taxa comercial desde a data da citação), com a fundamentação assim sumariada: «(…) De acordo com o regime prescrito no art.º 437.º/1 do C. Civil, a sua aplicação depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: a) uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar ( a denominada “base do negócio”); b) o carácter anormal dessa alteração; c) que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes; d) que essa lesão seja de tal ordem que se apresente como contrária à boa fé e exigência do cumprimento das obrigações assumidas; e) não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato. 2. Na venda de bens futuros, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato – art.º 880.º/1 do C. Civil. 3. Competia à Ré, enquanto devedora, alegar e demonstrar os pressupostos de aplicação do art.º 437.º/1 do C. Civil, assim como que a prestação se haja tornado impossível, por causa não lhe imputável (art.ºs 790.º/1 e 793.º/1, do C. Civil). 4. E competia-lhe, também, provar que a falta de cumprimento da obrigação ou o seu cumprimento defeituoso (no caso, incumprimento parcial) não procede de culpa sua (art.º 799.º/1 do C. Civil). 5. Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e verificado o respetivo nexo de causalidade entre o dano e o facto danoso – art.º 562.º e 563.º do C. Civil. 6. Apenas se deverão qualificar como danos ressarcíveis aqueles que, segundo um critério objetivo, e inexistindo circunstâncias anómalas ou excecionais, são consequência direta e necessária daquele indicado evento lesivo.»
A R interpôs revista, cujo objecto delimitou com conclusões em que suscitou a questão de saber se a mesma provou todos os pressupostos dos quais depende a aplicação do regime da alteração das circunstâncias nos termos do art. 437º do CC e se a pretensão (compensação) exercida pela A seria geradora de um desequilíbrio contratual entre as partes, violadora do princípio da boa fé e um abuso de direito. A A também interpôs revista, cujo objecto delimitou com conclusões em que suscitou a questão de saber se a mesma tinha motivo justificado para não aceitar apenas parte da prestação devida pela R, pelo que esta deve ser responsabilizada pelos custos suportados pela A com a aquisição dessas 108 toneladas que a R pretendia entregar (€ 75.600) e com os intermediários (€ 2.746,54), adequadamente causados pelo incumprimento da R, à luz das regras da experiência comum e de um raciocínio lógico dedutivo. * Importa apreciar as enunciadas questões, para o que releva a seguinte matéria de facto fixada pelas instâncias (sic) ([1]): «1 - A Autora é uma sociedade comercial, com sede em Itália, que tem como atividade a produção e venda de azeite. 2 - A Ré é uma sociedade comercial, com sede em Portugal, que tem por objeto a exploração agrícola de prédios próprios ou alheios, produção, transformação e comercialização de azeite, bem como quaisquer outras atividades com estas relacionadas ou conexas. 3 - No âmbito das respetivas atividades comerciais, a Autora celebrou com a Ré um acordo nos termos do qual esta se obrigou a vender-lhe 270 toneladas de azeite-extra “Arbequino” da campanha de 2014/2015, que seria fornecido em 10 cisternas de 27.000kgs cada. 4 – Nos termos desse acordo a Autora comprometeu-se a efetuar o pagamento nos seguintes termos: - € 2.800,00 por tonelada para um primeiro fornecimento de 54 toneladas de azeite produzido em Portugal (2 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de outubro de 2014; - € 2.600,00 por tonelada para um segundo fornecimento de 216 toneladas de azeite produzido em Espanha e/ou em Portugal (8 cisternas de 27 toneladas) com entrega acordada para o mês de novembro de 2014. 5 – (eliminado). 6 – A celebração do negócio referido foi promovido pela sociedade Meditasoil S.L.. por conta e em nome da Autora. 7 - O acordo entre as partes ficou contemplado no documento junto aos autos como documento nº.1 com a petição inicial, o qual se dá por integralmente reproduzido. 8 - Em execução do referido acordo a Ré procedeu, no mês de outubro, à entrega à Autora de 54 toneladas de azeite. 9 - Em 14 de Novembro de 2014, a Ré enviou a Autora a carta cuja cópia se mostra junta de fls.14/114, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual informou que face à ocorrência de alterações meteorológicas e, em consequência de pragas que assolaram a cultura da azeitona sofreu um decréscimo da produção de cerca de 50% da colheita de azeite esperada e, assim, comunicava que “a nossa empresa coloca à sua disposição metade da quantidade que nos propôs comprar na altura, a qual poderá retirar do nosso lagar nas próximas semanas” . 10 - A Autora respondeu a esta missiva, por carta de 17 de novembro de 2014 através da sociedade de advogados “Studio Legale Sinibaldi”, cuja cópia se mostra junta de fls.116v, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual consta, além do mais, que “Apenas hoje é que o mediador profissional Meditasoil S.L. informou-nos que estão dispostos a fornecer-nos metade da quantidade contratualmente concordada, ou seja, 108 toneladas. Uma vez que a empresa Monini pretende obter o cumprimento integral do contrato de fornecimento (…) ficamos à espera de instruções em relação à entrega imediata da primeira metade, bem como garantias relativas à entrega da outra metade (…) até ao corrente mês de novembro”. 11 - Em 27 de Novembro de 2014, a Ré enviou à Autora a missiva cuja cópia se mostra junta a fls. 118 a 119, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, na qual comunicava a disponibilidade de fornecer apenas metade da quantidade de azeite que fora acordada entre as partes. 12 - No mês de novembro a Ré não procedeu à entrega de 216 toneladas de azeite. 13 - Perante esta situação a Autora recorreu a outros operadores do sector do azeite com vista a que manifestassem disponibilidade de venda de azeite extra virgem, idêntico em qualidade e quantidade. 14 - O processo foi efetuado através de um intermediário profissional - a sociedade Cappelli s.n.c. com sede em Larciano (Itália) e o correspondente espanhol Origenia com sede em Córdoba (Espanha). 15 - Após receber as várias ofertas, a Origenia redigiu a confirmação da encomenda n.º 104 / 2015 de 12.1.2015, da qual resulta que o leilão privado de fornecimento foi concedido a favor da sociedade DCOOP S.C.A, Málaga (Espanha). 16 -O fornecimento foi de 218 toneladas, ao preço unitário de compra foi de € 3.300,00 por tonelada o que acabou por determinar custos acrescidos de € 700,00 por tonelada (ou seja: € 3.300,00 - € 2.600,00). 17 - Em 25 de Fevereiro de 2015 a Autora procedeu ao pagamento de um valor total de € 690.000,00 a favor da DCOOP, S.C.A. por conta do azeite adquirido. 18 -A Autora suportou um custo acrescido no valor de € 151.200,00 19 - A Autora suportou as seguintes despesas aos intermediários Cappelli s.n.c. e Origenia, no valor de € 1.441,77 e € 1.304,77, respetivamente. 20 - Devido a alterações climatéricas a produção de azeite na Europa, com especial incidência em Portugal, Espanha e Itália, na campanha 2014/2015 sofreu alterações tendo decrescido em relação às campanhas anteriores. 21 - No Outono de 2014 as temperaturas foram superiores à média, tendo sido o outubro mais quente desde 1931, o que potenciou o desenvolvimento de doenças criptogâmicas e o ataque de pragas. 22 - Na cultura do olival, variedade arbequino, que predomina nos olivais da Ré, registou-se, pela primeira vez, a doença da gafa. 23 - Tal praga ocorreu em fase de maturação do fruto que acabou por provocar a queda de praticamente a totalidade dos frutos atacados. 24 – A ré teve uma quebra de produção de cerca de 50% em relação aos anos anteriores. 25 - Em face das produções de azeite anteriores e segundo as previsões dos engenheiros agrónomos, a Ré antevia um acréscimo de produção para a campanha de 2014/2015. 26 - A campanha 2014/2015 caracterizou-se pela existência de condições meteorológicas e fitossanitárias desfavoráveis à produção de azeitona, o que determinou a diminuição significativa da produção. 27 - Estas condições determinaram também uma diminuição da qualidade do azeite, ou seja, uma alteração da sua acidez. 28 - Segundo dados oficiais na União Europeia e do International Olive Council, a produção total de azeite em Portugal foi de 91,6 mil toneladas na campanha 2013/2014 e apenas de 61 mil toneladas na campanha 2014/2015. 29 - Segundo os mesmos dados, em Espanha a produção de azeite foi de 1.782 mil toneladas na campanha 2013/2014 e de 842,2 mil toneladas na campanha 2014/2015. 30 - Também em Itália a produção de azeite foi de 464 mil toneladas na campanha 2013/2014 e de 222 mil toneladas na campanha 2014/2015. 31 - No que diz respeito ao grupo empresarial Olivos Naturales, S.L., grupo de sociedade da qual a Ré fazia parte nos anos 2013 e 2014, e que tem como objeto a exploração de olivais e produção de azeite, no exercício em 2013 verificaram-se lucros de €453.357,00 e no exercício de 2014 prejuízos de €6.694.408,00. 32 - Da certificação legal das contas da Ré referente ao ano de 2014, junta a fls. 67v a86, que aqui se dá por reproduzida, verifica-se que, na sequência da quebra de produção, a Ré teve um resultado líquido negativo de €1.096.253. 33 - A Autora atuando no mercado do azeite sabia da quebra de produção.» * 1. A alteração das circunstâncias. A R sustenta ter provado todos os pressupostos dos quais depende a aplicação do regime previsto no art. 437º do CC, sendo a pretensão (compensação) exercida pela A geradora de um desequilíbrio contratual entre as partes, violadora do princípio da boa fé e um abuso de direito. Vejamos. O exercício do direito potestativo de resolver ou de modificar equitativamente um contrato, ao abrigo do regime previsto no citado normativo, depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) uma drástica alteração das circunstâncias que constituem a base bilateral do negócio (que levou os contraentes, comummente, a contratar nos termos em que o fizeram) ([2]); (ii) que configure um obstáculo anómalo (grave e extraordinário) ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto ([3]); (iii) que afecte supervenientemente o equilíbrio patrimonial e a funcionalidade própria do negócio, de modo que a exigência da prestação por um contraente comporte uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício, ou seja, uma prestação excessivamente onerosa para um contraente face à da contraparte (um «gravame ao equilíbrio ou justiça do conteúdo» ([4])). «Ponderando o regime da alteração das circunstâncias, é ostensivo como estamos já longe do absolutismo do pacta sunt servanda. Facilmente se reconhece aqui um aspecto do movimento geral, que se manifesta em tantos institutos, no sentido de recolocar no centro das preocupações a justiça do conteúdo. No nosso domínio, tem como consequência levar à reabilitação do princípio tradicional rebus sic stantibus. A análise realizada permite reconhecê-lo como um princípio essencial, desde que também não pretendamos endeusá-lo como um absoluto. No seu verdadeiro âmbito, que é o da base do negócio, ele é um princípio que deve ser proclamado com generalidade e que implica a recuperação da justiça do conteúdo, ao menos neste âmbito, como fundamento da vinculatividade. Pode-se perguntar: mas onde fica então a autonomia privada? A autonomia privada é também um princípio fundamental. É exigência da auto-determinação da pessoa. Por isso, a pessoa tem de ser artífice em larga medida do seu ordenamento e os efeitos jurídicos que se produzam são primariamente de imputar a essa autonomia. (…) Perante uma proporção ou equilíbrio que as partes estabeleceram entre si, é essa equação que deve ser determinante. E que por isso é necessário antes de mais preservar.» ([5]). Costuma dizer-se que se trata aqui de encontrar solução para a tensão entre os princípios da autonomia da vontade e do rebus sic stantibus, mas o que o instituto visa, em última análise, é ainda o respeito daquele, com o “tempero” do princípio da boa fé, por isso, não o exercício arbitrário da autonomia, sim a garantia da real autodeterminação que conformou a originária equação económica e funcional do contrato e das exigências da justiça contratual: «(…) a distribuição de custos e benefícios entre as partes num contrato, por força do art. 437.º/1, (…) não precisa de ser, nem pode muitas vezes ser, “aritmética” (no sentido de matematicamente igual, ainda que esse constitua o critério subsidiário último). Como questão de justiça distributiva numa relação comutativa que é, tal distribuição implica, por exemplo, atenção à capacidade das partes de controlar ou mitigar o processo de desenvolvimento dos danos, e de absorver ou repercutir os prejuízos definitivos. Dois dos critérios fundamentais — o da dominabilidade ou direccionabilidade do risco, e da absorção (ou externalização) dos prejuízos — carecem de ser completados: por exemplo, pela exigência de tratamento igual dos clientes (…)» ([6]). «Se se entender que nos encontramos no âmbito de desequilíbrios tolerados pelo ordenamento jurídico, a parte assume a responsabilidade e responde pelas consequências, pelos prejuízos que assumiu no âmbito de determinado contrato, mas ultrapassando a barreira, ou seja quando se entende que o desequilíbrio de posições se mostra de tal maneira insuportável que não é exigível às partes, do ponto de vista da boa fé, o cumprimento do contrato com aquela base, então é evidente que o direito tem mecanismos e deve intervir. Os contraentes, no âmbito da autonomia privada, podem antecipar a intervenção judicial colocando ou fazendo constar do contrato cláusulas de hardship ou de distribuição de risco, em que, não obstante determinadas circunstâncias, as partes assumem expressamente um risco, um determinado risco (…). (…) Além de que, não podemos esquecer que a aplicação do instituto da alteração das circunstâncias é residual, de ultima ratio (…)» ([7]). Perante o exposto enquadramento do instituto, acompanhamos a decisão recorrida e a respectiva fundamentação, ao considerar que não se encontravam totalmente preenchidos os requisitos para o exercício do invocado direito potestativo de modificar o contrato, por não resultar da factualidade assente “uma alteração anormal das circunstâncias”, tal como vem configurada na citada norma, pois apenas se provou que, devido a temperaturas superiores à média e ao surgimento, a elas associado, duma praga (gafa), a R teve uma quebra de produção de azeite de cerca de 50% em relação aos anos anteriores. À míngua de outros factos relevantes, muito sinteticamente, ponderou-se, que: 1) não foram demonstradas as circunstâncias concretas e objectivas em que ambas as partes fundaram a sua decisão de contratar e que a demonstração da sua alteração “anormal” superveniente pressuporia; 2) a quebra de produção de azeite decorrente de condições climáticas adversas (como as mudanças de temperatura, cada vez mais habituais, ou a possibilidade de ocorrência de doenças nas culturas) – a que tal actividade está, por natureza, sujeita – também não poderia, sem mais e em rigor, configurar uma alteração “anormal” (e de todo imprevisível) das circunstâncias causais da celebração do negócio por ambas as partes; 3) ignoram-se a quantidade de azeite que a R produziu nesse ano, nomeadamente se foi inferior à que se obrigou a vender, bem como a razão por que só se prontificou a vender 162 toneladas das 270 a que se obrigou, a efectiva medida do gravame que a entrega das 216 toneladas de azeite comportaria e, por isso, se o cumprimento do contrato seria gravemente atentatório do princípio da boa fé. Com efeito, nada do que consta da factualidade assente permite sustentar a alegação contida na contestação de que a entrega à A das 108 toneladas de azeite determinaria que a R incumprisse completamente com todos os seus clientes e que, tendo proposto às demais empresas a quem vende azeite fornecer apenas parte das quantidades por estas pretendidas, todas aceitaram essa proposta, pelo que a estabilidade do contrato envolvia uma lesão para ela demasiado onerosa, uma situação de ruína económica, um risco excessivo, afectando gravemente os princípios da boa-fé negocial.
2. A indemnização. A Relação entendeu que a R é responsável apenas pelo prejuízo que causou à A com o custo acrescido que esta teve de suportar para adquirir o azeite que aquela não se prontificou a entregar-lhe (€ 700 x 108 = € 75.600), mas não o relativo às demais 108 toneladas que a R pretendeu entregar e a A não quis receber. E considerou não indemnizável a quantia de € 2.746,54, que a A suportou em despesas com intermediários, por não resultar provado o nexo de causalidade adequado entre ela e o incumprimento. Por sua vez, a A defendeu que tinha motivo justificado para não aceitar apenas parte da prestação devida pela R, pelo que esta deve ser responsabilizada pelos custos que suportou com a aquisição das 108 toneladas que a R pretendia entregar-lhe (€ 75.600) e com os intermediários (€ 2.746,54), adequadamente causados pelo incumprimento da R, à luz das regras da experiência comum e de um raciocínio lógico dedutivo. Nos termos do art. 813º do CC, «o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação». Assim, face à recusa do fornecimento das 108 toneladas de azeite, a A tinha o ónus de alegar e de provar circunstâncias que configurassem um motivo justificado para essa recusa. O requisito “motivo justificado” para a recusa inspira-se na ideia de que, estando em causa, por definição, direitos subjectivos a prestações, que implicam relações intersubjectivas, as exigências da boa-fé são recíprocas e, ainda, no «princípio segundo o qual cada um responde pelas consequências que uma conduta voluntária e livre possa fazer repercutir sobre a implementação de um projecto obrigacional em que é parte”, parecendo ter em vista “uma conduta voluntária e livre do credor que, traduzindo-se na falta de cooperação que seria de esperar dele segundo o projecto obrigacional, possa no entanto eventualmente legitimar-se com base numa causa justificativa» ([8]). Consequentemente, a conduta da A/credora só preencheria o referido requisito se não fosse livre ou, ainda que livre, fosse legítima. Ora, contrariamente ao alegado pela A, não se vislumbra na factualidade o mais leve indício de um qualquer motivo para a mesma poder recusar a entrega das 108 toneladas de azeite, ademais, tratando-se de venda de coisa genérica (determinada apenas pelo género e quantidade) e, aliás, para vir a adquirir coisa dos mesmos género e quantidade junto de outros fornecedores, por preço superior ao convencionado com a R. No caso, a conduta da A foi livre e não foi legítima – uma vez que não se provou facto algum que explicasse ou justificasse a aludida recusa – e, como tal, aquela constituiu-se em mora, no sentido dos arts. 813º ss do CC, e a R não têm a obrigação de a indemnizar, nessa medida. No que concerne à quantia de € 2.746,54, como a jurisprudência deste Tribunal tem afirmado, à luz do art. 563º do CC, pode afirmar-se o requisito relativo ao questionado nexo de causalidade quando a conduta do faltoso tiver funcionado como conditio sine qua non do dano ocorrido e este seja adequadamente imputado à violação dos bens tutelados: o nosso sistema jurídico, com a citada norma, acolheu a doutrina segundo a qual, para que um facto seja causa de um dano, é necessário que, no plano naturalístico, ele seja uma condição sem a qual o dano não se teria verificado e, além disso, que, no plano geral e abstracto, ele seja causa adequada desse mesmo dano. É matéria de facto o nexo causal naturalístico e é matéria de direito o juízo sobre o segundo momento da causalidade, referente ao nexo de adequação, de harmonia com o qual o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais ou extraordinárias: «o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis» ([9]). Ora, ao STJ, organicamente um Tribunal de revista – que, em regra, apenas conhece de matéria de direito – apenas cabe a aferição global da adequação se estabelecido pelas instâncias o nexo naturalístico e a partir de um juízo de prognose posterior objectiva formulado em função das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de todo o processo factual que, em concreto, desencadeou a lesão e o dano, no âmbito da sua aptidão geral ou abstracta para produzir esse dano, pois que a causalidade adequada não se refere a um facto e ao dano isoladamente considerados ([10]). Donde, é descabido em sede de revista o apelo feito pela A, ao pugnar pela afirmação de tal nexo à luz das regras da experiência comum e do raciocínio lógico dedutivo, que apenas às instâncias competiria: esse nexo naturalístico, tal como emirja (ou não) estabelecido pelas instâncias, não é sindicável por este Tribunal, em cuja competência apenas está integrada a matéria referente ao nexo de adequação, por respeitar à interpretação e aplicação do citado art. 563º.
Por conseguinte, improcedem os recursos. * Decisão: Pelo exposto, acorda-se em negar as revistas.
Custas pelas recorrentes. Lisboa, 6/04/2021 Alexandre Reis (relator) Lima Gonçalves Fátima Gomes _________ [1] Quanto a factos não provados, consta da decisão de 1ª instância a seguinte nota: |