Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRANJA DA FONSECA | ||
Descritores: | BALDIOS ÁREA FLORESTAL POSSE BEM IMÓVEL AQUISIÇÃO DE BENS PELO ESTADO ESTADO PRESCRIÇÃO AQUISITIVA USUCAPIÃO DIREITO DE PROPRIEDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/15/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS - POSSE - USUCAPIÃO - DIREITO DE PROPRIEDADE | ||
Doutrina: | - Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Volume III, página 145. - Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, Volume I, páginas 136-137. - Parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999. - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 271. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO ADMINISTRATIVO DE 1940: - ARTIGO 388º, § ÚNICO. CÓDIGO CIVIL: - ARTIGOS 297.º, 1251.º, 1253.º, 1252.º, N.º2, 1257.º, N.º2, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1268, N.º1, 1296.º. CÓDIGO CIVIL DE 1867 (CÓDIGO DE SEABRA): - ARTIGOS 476.º, 520.º, 521.º, 523.º, 529.º CÓDIGO CIVIL DE 1966: - ARTIGO 202º. DL N.º39/76, DE 19 DE JANEIRO: - ARTIGOS 2.º, 3.º LEI N.º 1971, DE 15 DE JUNHO DE 1938 – LEI DO POVOAMENTO FLORESTAL : - BASES VI E VII. REGIME FLORESTAL (PERÍMETRO FLORESTAL ENTRE LIMA E NEIVA), DIÁRIO DO GOVERNO, II SÉRIE, DE 10 DE MAIO DE 1945. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 24/05/1996, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, DE 24/06/96; -DE 17/04/1997, PROCESSO 619/96; -DE 12/10/1999, PROCESSO 77/99; -DE 16/06/2009, PROCESSO 47/2000.S1; -DE 10/12/2009, PROCESSO 313/04.2TBMIR.C1.S1; -DE 25/02/2010, PROCESSO 782/2001.S1. | ||
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Sumário : | I - Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril ou proveitos análogos. II - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15-06-1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito. III - As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal. IV - As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do art. 3.º do DL n.º 39/76, de 19-01. VI - O legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores., não carecendo, consequentemente, os compartes das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro. VII - Aliás, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter, como manteve, as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundem com as áreas dos baldios. VIII - Encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, em conformidade com o art. 3.º do DL n.º 39/76, de 19-01. IX - Na vigência sucessiva do Código Civil de 1867, do Código Administrativo de 1940 e do Código Civil de 1966, até à entrada em vigor do mencionado DL n.º 39/76, os baldios eram considerados prescritíveis (prescrição aquisitiva), sendo possível a sua aquisição, por usucapião, por particulares ou por entidades diversas dos respectivos compartes, em conformidade com o disposto no art. 388.º, § único, do Código Administrativo, que procedeu a uma interpretação autêntica do direito anterior. X - A jurisprudência tem decidido uniformemente pela prescritibilidade dos baldios, desde o Código Civil de Seabra até ao início da vigência do citado DL n.º 39/76, de 19-01 e pela sua imprescritibilidade a partir da entrada em vigor desse diploma, não estando vedada ao Estado a aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva (usucapião), se praticar actos de posse susceptíveis de a ela conduzir. XI - Porque se não provou que, à data da entrada em vigor do DL n.º 39/76, de 19-01, já havia decorrido tempo bastante para a aquisição da propriedade por usucapião, improcederia o recurso, caso a causa de pedir assentasse unicamente, e não assentou, na aquisição da propriedade por usucapião. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. O Estado Português, representado pelo Ministério Público, propôs a presente acção declarativa de simples apreciação, com processo comum, na forma ordinária contra o Conselho Directivo dos Baldios da Facha, representado pela Junta de Freguesia da Facha, com sede em Outeiro do Rio, da mesma freguesia, pedindo que: a) - Se declare que é o proprietário do prédio sito no lugar de ........, freguesia de Facha, Ponte de Lima, denominado “casa florestal A-162”, composto por casa de rés - do - chão, cozinha, casa de banho, três divisões assoalhadas, duas arrecadações, escritório, com a superfície coberta de 106 m 2, anexo com a superfície de 15 m 2 e logradouro com cerca de 179 m 2; b) - A condenação do réu a reconhecer tal direito. Em reconvenção, o réu peticionou que: a) - Se declare que o universo dos compartes dos baldios da freguesia da Facha são proprietários comunitários do baldio onde se situa a identificada casa, incluindo as parcelas em que a mesma foi edificada; b) - Se condene o autor a reconhecer tal direito e a restituir aos compartes essas parcelas, sem prejuízo do regime decorrente da submissão do baldio ao regime florestal e da sua integração no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o réu do pedido. Por seu turno, a reconvenção foi julgada procedente e, em consequência: 1) - Declarou-se que os compartes dos baldios da freguesia da Facha são proprietários comunitários do baldio da mesma freguesia, incluindo a parcela onde foi edificada a casa florestal A-162, no lugar de ........; 2) - Condenou-se o autor a reconhecer tal direito e a restituir aos compartes essa parcela, sem prejuízo do regime decorrente da submissão do baldio ao regime florestal e da sua integração no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva. Inconformado, apelou o autor para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 11/01/2011, decidiu julgar a apelação procedente e, em consequência: 1) - Revogou a sentença recorrida; 2) - Declarou que o autor é proprietário do prédio sito no lugar de ........, freguesia de Facha, Ponte de Lima, denominado “casa florestal A-162”, composto por casa de rés - do - chão, cozinha, casa de banho, três assoalhadas, duas arrecadações, escritório, com a superfície coberta de 106 m.2, anexo com a superfície de 15 m.2 e logradouro com cerca de 179 m.2; 3) - Condenou o réu a reconhecer tal direito; 4) - Julgou o pedido reconvencional improcedente.
Inconformado, o réu recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões: 1ª - A decisão recorrida defende que o autor Estado agiu sempre com «animus domini», mas sem se apoiar em factos concretos que tenham sido dados como provados na presente acção. 2ª - Bem pelo contrário, o acórdão recorrido arrima-se à presunção de “animus” firmada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/1996, segundo o qual, “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”. 3ª - Para além disso, o acórdão recorrido, na esteira do Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 6/99, de 24/06/1999, e também do que foi sustentado no acórdão da Relação do Porto de 22/02/2005, conclui que “as casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, em baldios, são propriedade deste e que as parcelas de terrenos baldios onde as mesmas foram implantadas, na estrita medida correspondente a assento de cada casa e ao respectivo logradouro, se tornam participantes da destinação pública (daquela), não podendo ser incluídas da devolução do uso, fruição e administração dos baldios aos compartes; ou seja, não podem ser englobadas na afectação dada aos baldios pelo DL n.º 39/76 e legislação posterior”. 4ª - Acontece, porém, que o autor Estado não invocou nos autos a aquisição originária por usucapião do prédio sub judice. 5ª - Não o fez, desde logo, porque bem sabia que não teve nunca “animus domini” sobre o mesmo. 6ª - Mas também não o invoca, porque é consciente, que não decorreu o necessário prazo desde 1952 até à entrada em vigor do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro, que no seu artigo 2º declarou fora do comércio jurídico e insusceptíveis de apropriação privada por qualquer forma ou título, considerados os prazos de 30 e 20 anos prescritos, respectivamente, no artigo 529° do Código Civil de 1867 e no artigo 1296° do Código Civil de 1966. 7ª - Desse modo, considerar que o autor Estado adquiriu por usucapião as casas de guardas florestais e as parcelas de terreno baldio onde as mesmas foram implantadas, constitui uma condenação “ultra petitum”, em frontal violação do dispositivo contido no artigo 661°, nº 1, do Código de Processo Civil. 8ª - Por outro lado, não podia a decisão recorrida amparar-se na presunção de posse sancionada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/1996. 9ª - É que nos autos ficou provada a posse dos moradores da freguesia da Facha sobre as parcelas em causa. 10ª - Assim, tem-se por ilidida qualquer eventual presunção de posse do autor Estado. 11ª - A tese defendida pelo Parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24/06/1999, não é a que melhor subsume os factos ao direito. 12ª - A doutrina mais correcta é aquela que o mesmo Tribunal da Relação de Guimarães expendeu em Acórdão de 14/01/2008, de acordo com o qual “as parcelas de terreno baldio destacadas deste para efeitos de edificação das denominadas casas florestais e respectivo logradouro, não passam a propriedade do Estado. Tais terrenos (parcelas) estão abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes a que alude o n.º 3 do DL 39/76 de 19/1”. 13ª - Doutrina essa que havia sido também sustentada pelo Acórdão de 23/03/2006 do Tribunal da Relação do Porto. 14ª - É que, de resto, o instituto que mais se enquadra na situação em análise é a do direito de superfície, como se refere no voto de vencido constante do dito Parecer n.º 6/99 do Conselho Consultivo da PGR. 15ª – O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 661°, n.º 1, do CPC, os artigos 1287° e 1296° CC e o artigo 4° da Lei n.º 68/93, de 04/09. O autor contra – alegou, formulando as seguintes conclusões: 1ª - Em causa no presente recurso a questão da propriedade das casas de guardas florestais edificadas pelo Estado em terrenos baldios e das parcelas de terreno onde as mesmas foram implantadas. 2ª - Como se escreve na decisão recorrida, o regime das Leis 39/76, 40/76 e 68/93 (com a redacção da Lei 89/97) visou regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais, sendo inaplicável às casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, parcelas em que foram edificadas e respectivos logradouros. 3ª - O recurso deve ser julgado improcedente. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: II. As instâncias consideraram provados os seguintes factos: 1º - No lugar de ........, freguesia de Facha, Ponte de Lima, existe um prédio, denominado “casa florestal A-162”, composto por casa de rés-do-chão, cozinha, casa de banho, três divisões assoalhadas, duas arrecadações, escritório, com a superfície coberta de 106 m.2, anexo com a superfície de 15 m.2 e logradouro com cerca de 179 m.2 (alínea A). 2º - Esse prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Facha, sob o artigo 863, sendo titular de tal inscrição o Estado Português (alíneas B e C). 3º - O prédio em causa confronta de todos os lados com terreno baldio, que pertence a todos os compartes dos baldios da freguesia da Facha, embora se encontre sob a administração do Conselho Directivo de Baldios da Facha (alíneas D e E). 4º - O prédio em causa foi construído pelo Estado Português, tendo a sua construção terminado em 1952 (alínea F). 5º - Na altura, o terreno onde foi construído encontrava-se submetido ao Regime Florestal e integrado no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva, por força de acto legislativo publicado no Diário do Governo, II série, de 10 de Maio de 1945 (alínea G). 6º - O Estado construiu tal casa à vista de toda a gente, tendo-lhe dado a destinação de casa de morada de guardas florestais, o que sempre foi feito à vista de toda a gente (alíneas H, I e J). 7º - O Estado procurou obter título para registo do imóvel em causa através do processo de justificação administrativa regulado pelo DL nº 34565, de 2 de Maio de 1945 (alínea L). 8º - No âmbito do processo de justificação administrativa, foi publicado anúncio para citação edital de incertos, a quem pertencesse o direito de propriedade do imóvel, no jornal “Alto Minho”, e afixaram-se editais no lugar de estilo (alínea M). 9º - Veio o Conselho Directivo dos Baldios da Facha deduzir reclamação na Repartição de Finanças de Ponte de Lima, alegando que o prédio objecto de justificação está localizado numa área de baldios, denominada “Baldios da Facha”, e que os moradores da Facha retiraram deles todas as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, tendo-o feito com conhecimento e aceitação de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição e na convicção de exercerem um direito comum de vizinhos (alíneas N e O). 10º - Afirmou, ainda, que os factos alegados têm sido objecto de apreciação em processos judiciais, nos quais a reclamante sempre foi reconhecida como legítima proprietária desses terrenos (alínea P). 11º - A construção referida na alínea H) foi feita sem oposição de quem quer que fosse (resposta ao quesito 1º). 12º - Após a sua construção, o prédio serviu de habitação permanente dos guardas florestais que aí prestavam serviço ao Estado, bem como das respectivas famílias (resposta aos quesitos 3º e 4º). 13º - Os guardas florestais e suas famílias cultivavam o terreno de logradouro referido em A) (resposta ao quesito 6º). 14º - O descrito nas respostas aos quesitos 3º, 4º e 6º ocorreu desde 1952 até há cerca de 15 anos, com referência a 17/02/2009, data da decisão sobre a matéria de facto (resposta ao quesito 7º). 15º - O prédio descrito na alínea A) está implantado numa área de baldios, denominada “Baldios da Facha”, que corresponde a uma área com dezenas de hectares de terreno baldio que, desde há mais de 100 e 200 anos, vem sendo detida, gerida e fruída pelos moradores da freguesia da Facha, sem qualquer interrupção temporal (resposta ao quesito 9º). 16º - Sempre foram esses moradores da freguesia da Facha, designados por compartes, quem, desde então até ao presente, ali apascentou os animais, procedeu ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de pruma e folhas das árvores e, de um modo geral, dali retirou todas as vantagens destinadas à satisfação das necessidades concretas e diárias de cada um dos compartes e da comunidade, com conhecimento e aceitação de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição e na convicção de que os terrenos estavam afectos a logradouro comum dos moradores da freguesia da Facha (resposta aos quesitos 10º, 11º, 12º, 13º). III. O âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, importando apreciar as questões que delas fluem, a não ser que outras se perfilem de conhecimento oficioso – artigos 684º, n.os 2 e 3, 684º-A, n.os 1 e 2, 685º-A, n.os 1 e 2, e 660º, 2, parte final, do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo DL 303/2007. Assim, «in casu», a única questão a equacionar consiste em saber se o Estado é ou não proprietário da casa florestal em referência, bem como da parcela onde a mesma foi edificada e do respectivo logradouro. IV. O douto acórdão recorrido considerou que a casa do guarda-florestal, a parcela onde a mesma se encontrava implantada e o respectivo logradouro eram propriedade do Estado, em essência, com dois fundamentos: A - Tomou em consideração os fundamentos do Parecer 6/99 do Conselho Consultivo da Procuradoria da República, onde se formularam, entre outras, as seguintes conclusões: 1ª - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito. 2ª – As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal. 3ª – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro. B – Aquisição por usucapião. Vejamos: A – Se a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro ficaram ou não abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da Facha, em conformidade com o artigo 3º do DL 39/76, de 19 de Janeiro.
Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril, proveitos análogos[1]. Ao longo dos tempos, o regime jurídico dos baldios sofreu consideráveis mudanças, sendo tais terrenos considerados como bens colectivos (propriedade comunal ou comunitária) desde a Idade Média, mas variando a sua consideração como sendo de domínio público ou privado, não obstante, sempre de direito colectivo[2]. O Código de Seabra recolheu esta tradição, qualificando as coisas, relativamente à titularidade do respectivo direito de propriedade, como públicas, comuns ou particulares (artigo 379º), distinguindo, claramente, o domínio público, o domínio privado e o domínio comum, compreendendo este último, além de certas águas, os terrenos baldios (artigos 379º e 381º). “Não obstante esta classificação tripartida, na vigência desse Código, muitos autores sustentaram que os baldios eram propriedade (pública ou privada) das autarquias locais, enquanto outros defenderam que constituíam propriedade comunal dos vizinhos de certa circunscrição ou parte dela[3]”. Entretanto o Código Administrativo veio consagrar expressamente, no parágrafo único do seu artigo 388º, a prescritibilidade dos baldios, com a consequente admissibilidade de aquisição do respectivo domínio por usucapião, em termos que configuram uma verdadeira interpretação autêntica do direito anterior, considerando-se, por isso, de aplicação retroactiva, nos termos do artigo 8º do Código Civil de Seabra[4]. Ainda antes disso, no domínio do Código de Seabra, cada vez, um maior número de vozes autorizadas, nomeadamente o insigne Dr. Cunha Gonçalves[5], se inclinavam, no sentido de considerar que os baldios também podiam ser adquiridos, mediante a prescrição aquisitiva ou positiva que era regulada nos artigos 517º e seguintes desse diploma legal, «para favorecer o incremento da produção agrícola». Neste quadro é publicada a Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938 – Lei do povoamento florestal – que sujeitou especificamente determinados baldios ao regime florestal. A Base VII dessa Lei alude às casas de guarda, ao estipular que dos projectos definitivos, além da «área a arborizar e a reservar para pastagens, viveiros e culturas», conste, entre outros aspectos, a «construção de caminhos, sedes de administração, casas de guarda, postos de vigia, montagem de rede telefónica», podendo as construções «que tenham de preceder os trabalhos de urbanização constar de projectos especiais. Por sua vez, considerava a Base VI que os terrenos baldios, depois de submetidos ao regime florestal, entram na posse dos serviços à medida que forem arborizadas ou a contar da respectiva notificação. Depois de uma exaustiva análise desta Lei n.º 1971, conclui o citado parecer da PGR que “o regime esboçado aponta, pois, no sentido de um direito real do Estado sobre os baldios sujeitos ao regime florestal funcionalmente dotado de grande estabilidade e de vincadas características de exclusividade e oponibilidade a terceiros, cujo conteúdo se aproxima, quando não se identifica, em certos dos seus vectores, com o complexo de poderes e de direitos próprios do titular da propriedade”. “Determinadas coisas, inclusive, aí existentes, encontram-se inequivocamente no domínio (privado) do Estado; a floresta, plantada pelos serviços florestais; as construções de várias espécies aí edificadas e custeadas pelos serviços estaduais, com relevo para as casas de guarda”. “Sucede, ademais, neste caso, que o direito real do Estado sobre o baldio, considerado estritamente como objectivado na parcela de terreno em que a casa está implantada, se revela particularmente intenso nos apontados caracteres da exclusividade e da oponibilidade, fruto da afectação ou destinação da casa aos fins de utilidade e interesse público implicados no regime florestal, de que a parcela se tornara, por sua natureza, indissociavelmente participe”. No domínio do actual Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que os baldios devem ser concebidos como coisas particulares, pertencentes ao património das autarquias, pelo que tais bens eram susceptíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva). Isto até à entrada em vigor do DL n.º 39/76, que se propôs proceder à entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas, em cujo artigo 2º se declarou que os terrenos baldios se encontram fora do comércio jurídico[6], não podendo, no todo, ou, em parte, ser objecto de apropriação privada, incluída a usucapião. Salientava-se, porém, neste diploma que ficavam, no entanto, por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares. Mas nada disse o citado DL 39/76 quanto às casas dos guardas florestais, postos de vigia e outras instalações, apesar dos guardas florestais continuarem no exercício das suas funções, usando a casa de função que o Estado mandara construir, muito para além da entrada em vigor desse diploma, como sucedeu com a casa aqui em causa que assim permaneceu até 1994. Porém, competindo aos guardas florestais fazer o serviço de polícia das matas e vigiando, de dia e de noite, a área florestal a seu cargo, o Estado proporcionava-lhes as denominadas casas florestais, pelo que, como todas elas estavam adstritas ao fim público de vigilância e preservação das florestas, poder-se-á concluir que o legislador pretendeu que continuassem afectas a essas finalidades, mantendo-se na posse e propriedade do Estado. Como se considerou no acórdão recorrido, a prossecução das finalidades intencionadas com a devolução dos baldios não exigia a entrega de tais casas ou instalações. Com efeito, a tão vastas áreas de terrenos baldios não adiantam, nem atrasam superfícies da ordem dos 300 m.2. Mais, não se vislumbra que uso iriam os compartes dar a essas instalações, designadamente aos postos de vigia. Como se referiu, porque com o DL 39/76, ficavam por resolver as numerosas questões decorrentes da apropriação de terrenos baldios por parte dos particulares, assistiu-se, nesta intencionalidade, à publicação do DL n.º 40/76, mediante o qual se declararam “anuláveis a todo o tempo” os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, nos termos de direito (artigo 1º, n.º 1), pelo que o regime por ele instituído não é aplicável às casas dos guardas florestais, respectivos assentos e logradouros. Também a disposição transitória do artigo 39º da Lei 68/93, de 4 de Setembro, (Lei dos Baldios), com a redacção introduzida pela Lei 89/97, de 30 de Junho, teve em vista regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais, em face dos DL n.os 39/76 e 40/76, sendo, portanto, igualmente inaplicável às casas de guardas florestais, às parcelas de terrenos em que foram edificadas e aos respectivos logradouros. Pelo que se deixa exposto, o legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores. Para tanto, os compartes não carecem das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro. Acresce que, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundiam com as áreas dos baldios. Tal como se sustenta, no citado Parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24/06/1999, publicado no DR, II Série, n.º 274, de 24/11/1999, poder-se-á concluir: O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos ao regime florestal. E as casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, nesses baldios, são de sua propriedade, ficando afectas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal. Por sua vez, as parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas tais casas ficaram indissociavelmente ligadas à destinação pública a que estas ficaram adstritas. E, por isso, devem considerar-se exceptuadas da devolução dos baldios ao uso, fruição e administração dos compartes, determinada pelo artigo 3º do DL nº 39/76, de 19 de Janeiro. Reportando-nos ao caso sub judice, o prédio em causa foi construído pelo Estado Português, tendo a sua construção terminado em 1952. Na altura, o terreno, onde foi construído, encontrava-se submetido ao Regime Florestal e integrado no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva, por força de acto legislativo publicado no Diário do Governo, II Série, de 10 de Maio de 1945. Esta casa foi construída, nomeadamente, para albergar os guardas florestais que ali prestavam serviço, bem como as respectivas famílias. Assim, tendo esta casa sido construída pelo Estado a expensas suas, visando alojar os guardas florestais e a suas famílias, com o desiderato de manter uma permanente vigilância da respectiva área florestada, a mesma é propriedade do Estado, ficando a parcela em que a mesma foi implantada indissociavelmente ligada à destinação pública a que a casa ficou adstrita. Por isso mesmo, encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a aludida casa do guarda-florestal, a parcela em que se encontra implantada e respectivo logradouro abrangidos na devolução, ao uso, fruição e administração dos compartes do baldio da Facha. Tanto basta para que se tenha de considerar a procedência do douto acórdão recorrido, ainda que o 2º dos fundamentos em que se escudou o acórdão recorrido possa improceder.
Este fundamento reporta-se à aquisição da parcela do terreno e do respectivo logradouro por usucapião. Como se salientou, o acórdão recorrido julgou também procedente o recurso com fundamento na usucapião. Sintetizando o acima exposto, “ao Estado não está vedada a aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva (usucapião), praticando actos de posse susceptíveis de a ela conduzir”[7]. Trata-se de um modo incontroverso de constituição do domínio privado do Estado. Ora, como vimos, na vigência sucessiva do Código Civil de 1867, do Código Administrativo de 1940 e do Código Civil de 1966, até à entrada em vigor do mencionado DL nº 39/76, os baldios eram considerados prescritíveis (prescrição aquisitiva), sendo possível a sua aquisição, por usucapião, por particulares ou por entidades diversas dos respectivos compartes, em conformidade com o disposto no artigo 388º, § único, do Código Administrativo, que procedeu a uma interpretação autêntica do direito anterior, tendo a jurisprudência decidido uniformemente pela prescritibilidade dos baldios, desde o Código Civil de Seabra até ao início da vigência do citado DL 39/76, de 19 de Janeiro e pela sua imprescritibilidade a partir da entrada em vigor desse diploma[8]. Assim, tendo em conta que, após a entrada em vigor do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro, “os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação por qualquer forma ou título, incluída a usucapião” (artigo 2º), fácil é compreender que, no caso dos autos, se configura como essencial e decisivo apurar se, à data da entrada em vigor deste diploma, (24/01/1976), já havia decorrido tempo bastante para a aquisição da propriedade por usucapião, caso se verifiquem os demais requisitos para tanto indispensáveis. A noção de posse é dada, no nosso sistema jurídico, pelo artigo 1251º do Código Civil, que a define como “…o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. São conhecidas as concepções objectivista e subjectivista, em relação aos elementos integradores da posse. Para a primeira, a posse conforma-se com um elemento material “o corpus” que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes sobre a coisa. Para a segunda, exige-se, além do “corpus”, um elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. A nossa lei acolheu a concepção subjectivista, como claramente resulta dos artigos 1251º e 1253º. Para haver posse, é necessário, além da situação material de exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos que se praticam. Se falta o “animus” estamos perante uma mera detenção ou posse precária. Donde, por força do disposto no artigo 1253º, deve qualificar-se como simples detenção (e não como posse) todo o poder de facto que se exerça sobre as coisas sem o “animus possidendi”. O facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos para poder, por exemplo, adquirir por usucapião, ou seja, é necessário que, por um lado, se verifiquem actos materiais que permitam concluir por uma actuação de facto sobre o objecto em questão (o “corpus”) e, por outro, que o agente actue com uma intenção idêntica à de um titular do direito em questão, «in casu», que actue como querendo ser o proprietário das parcelas em causa (aquela em que assenta a casa e a que constitui o respectivo logradouro), nisso consistindo o “animus”. Porém, sendo necessário o “corpus” e “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste (artigo 1252º, n.º 2 Código Civil), ou seja, estabelece-se que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (sem prejuízo do disposto no artigo 1257º, n.º 2), tendo o Supremo Tribunal de Justiça fixado jurisprudência uniformizadora no sentido de que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa[9]”, o que significa que o “animus” se presume. A posse pode apresentar características diversas, relevantes para vários efeitos. Assim, tanto no Código actual, como no Código de Seabra, pode, em primeiro lugar, ser titulada ou não titulada, destrinça que tem importância para efeitos de usucapião. Na verdade a usucapião obedece a prazos diversos, consoante a posse que a fundamenta é titulada ou não titulada. Infere-se do artigo 1259º Código Civil actual que a posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir, ou seja, funda-se num modo que segundo o seu tipo geral é idóneo para provocar uma aquisição, independentemente de, no caso concreto, o transmitente ter ou não o direito a transmitir e independentemente da validade substancial do negócio jurídico. Quer dizer, um negócio, que, por seu tipo geral, é idóneo para transmitir um direito, titula a posse, mesmo que haja um motivo substancial de invalidade. Mas se faltar no título, no negócio realizado, um requisito formal de validade, a posse é não titulada. No mesmo sentido, o artigo 518º do Código de Seabra considerava como titulada a posse que se funda em justo título; e diz-se justo título qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente do direito do transmitente. O artigo 1261º do Código Civil (actual) e o artigo 521º do Código de Seabra falam de posse pacífica, ou seja, aquela que foi adquirida sem violência, a que se contrapõe a posse violenta. Também o artigo 1262º do Código Civil (actual) e artigo 523º do Código de Seabra falam de uma posse pública, ou seja, aquela que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados, contrapondo-se a esta posse pública uma posse clandestina ou oculta. Outra distinção é a que se faz entre posse de boa fé e posse de má fé. “A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”, donde se infere, a contrario sensu, “a noção de má fé” (artigo 520º do Código de Seabra e 1260 do CC actual). Atendendo ao disposto no artigo 1268º, n.º 1, do Código Civil, o possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem presunção fundada no registo anterior ao início da posse. A regra é, pois, a de que a posse implica presunção legal da titularidade do direito e a excepção ocorre no caso de colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última presunção. O douto acórdão recorrido considerou que se verificavam todos os requisitos para a aquisição da propriedade das aludidas parcelas pelo Estado. A recorrente discorda deste segmento do acórdão, alegando que o autor não invocou nos autos a aquisição originária por usucapião do prédio sub judice, porque bem sabia que não teve nunca “animus domini” sobre o mesmo e porque não decorreu o necessário prazo desde 1952 até à entrada em vigor do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro, que no seu artigo 2º declarou os baldios fora do comércio jurídico e insusceptíveis de apropriação privada por qualquer forma ou título, considerados os prazos de 30 e 20 anos prescritos, respectivamente, no artigo 529° do Código Civil de 1867 e no artigo 1296° do Código Civil de 1966. Como ficou provado, o prédio em causa, denominado “casa florestal A-162”, é composto por casa de rés-do-chão, cozinha, casa de banho, três divisões assoalhadas, duas arrecadações, escritório, com a superfície coberta de 106 m.2, anexo com a superfície de 15 m.2 e logradouro com cerca de 179 m.2 e confronta de todos os lados com terreno baldio, que pertence a todos os compartes dos baldios da freguesia da Facha, embora se encontre sob a administração do Conselho Directivo de Baldios da Facha. Este prédio está implantado numa área de baldios, denominada “Baldios da Facha”, que corresponde a uma área com dezenas de hectares de terreno baldio que, desde há mais de 100 e 200 anos, vem sendo detida, gerida e fruída pelos moradores da freguesia da Facha, sem qualquer interrupção temporal. Sempre foram esses moradores da freguesia da Facha, designados por compartes, quem, desde então até ao presente, ali apascentou os animais, procedeu ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de pruma ou caruma e folhas das árvores e, de um modo geral, dali retirou todas as vantagens destinadas à satisfação das necessidades concretas e diárias de cada um dos compartes e da comunidade, com conhecimento e aceitação de toda a gente, ininterruptamente e sem oposição e na convicção de que os terrenos estavam afectos a logradouro comum dos moradores da freguesia da Facha. O prédio em causa foi construído pelo Estado Português, tendo a sua construção terminado em 1952 e, na altura, o terreno, onde foi construído, encontrava-se submetido ao Regime Florestal e integrado no Perímetro Florestal de Entre Lima e Neiva, por força de acto legislativo publicado no Diário do Governo, II série, de 10 de Maio de 1945. O Estado construiu tal casa à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, tendo-lhe dado a destinação de casa de morada de guardas florestais, o que sempre foi feito à vista de toda a gente. Após a sua construção, o prédio serviu de habitação permanente dos guardas florestais que aí prestavam serviço ao Estado, bem como das respectivas famílias, sendo estes (os guardas florestais e suas famílias) que cultivavam o terreno de logradouro do referido imóvel). A construção da casa do guarda e respectivos anexos deu-se por concluída em 1952, passando a ser habitada, desde essa data até há 15 anos, com referência a 17/02/2009, data da decisão sobre a matéria de facto, ou seja até 1994. Assim, tendo em conta estes factos que as instâncias consideraram provados, poder-se-á concluir que o Estado praticou actos materiais típicos do direito de propriedade, numa época em que podia adquirir o direito de propriedade por prescrição aquisitiva (direito de propriedade), tendo ficado suficientemente demonstrado que a ré não ilidiu a presunção de posse naquele que exercia o poder de facto, o que significa que o “animus se presume”, restando indagar se à data da entrada em vigor do DL n.º 39/76 tinha decorrido o período de tempo bastante para a aquisição por usucapião. Atendendo aos aludidos factos, não se provou exactamente quando o Estado começou a construir a aludida casa Ficou, porém, assente que em 1952 a mesma se encontrava concluída, passando, desde então, a ser ocupada pelos guardas florestais e respectivas famílias. Poder-se-á, por isso, afirmar que, pelo menos, a partir de 1952, tiveram início os actos de posse do Estado sobre a casa do guarda e respectivo logradouro. Assim sendo, tal significa que, à data da entrada em vigor do DL 37/76, tinham decorrido, pelo menos, 24 anos. Período de tempo insuficiente para a usucapião. Na verdade, naquela data, (1952) vigorava o Código de Seabra, que estabelecia o prazo (normal) de 30 anos como decorre da conjugação do disposto nos seus artigos 476º e 529º. Portanto, quando a 1 de Junho de 1967, entrou em vigor o actual Código Civil, apenas tinham decorrido cerca de 15 anos e meio, insuficientes para, à luz do Código de Seabra, já ter decorrido a prescrição. Por isso, a necessidade de invocar a norma do artigo 297º do Código Civil, cujo sentido Mário de Brito resume assim[10]: “Se a nova lei alonga o prazo, vale o novo prazo, mas conta-se o tempo decorrido na vigência da lei antiga; se a nova lei abrevia o prazo, é também aplicável o novo prazo, mas imputa-se nele apenas o tempo decorrido na vigência da nova lei; se, porém, na segunda hipótese, se chegar a um prazo mais longo que o da lei antiga, o prazo continua a correr segundo esta lei”[11]. Mas, então, mesmo aceitando, ter sido ilidida a presunção de má fé consignada no artigo 1260º, n.º 2 (parte final) do actual Código, teremos o prazo (normal) de 15 anos (artigo 1296), a contar desde a entrada em vigor deste Código, ou seja, 1 de Junho de 1967. Prazo este que ainda não havia, seguramente, decorrido à data da entrada em vigor do DL n.º 39/76, uma vez que tinham decorrido apenas cerca de oito anos e meio. Confrontando a data da construção e a publicação do DL 39/76, haviam decorrido cerca de 24 anos. Donde a conclusão de que o Estado não adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade de que se arroga e de que pediu fosse declarado titular. Assim, ainda que houvesse fundamento para conceder a revista, se a aquisição da propriedade por usucapião tivesse sido o único fundamento da causa de pedir, impõe-se concluir que as casas de guardas florestais edificadas pelo Estado, em baldios, são propriedade deste e que as parcelas de terrenos baldios onde as mesmas foram implantadas, na estrita medida correspondente a assento de cada casa e ao respectivo logradouro, se tornam partícipes da destinação pública (daquela), não podendo ser incluídas da devolução do uso, fruição e administração dos baldios aos compartes; ou seja, não podem ser englobadas na afectação dada aos baldios pelo DL nº 39/76 e legislação posterior, pelo que, sendo este um dos fundamentos da causa de pedir no caso dos autos, se deve negar a revista. Concluindo: 1 - Os baldios são terrenos não individualmente apropriados, que, desde tempos imemoriais, servem de logradouro comum dos vizinhos de uma povoação, ou de um grupo de povoações, com vista à satisfação de certas necessidades individuais, por exemplo, apascentação do gado, a monte ou pastoreado, recolha de matos e lenhas, apanha de estrume, fabrico de carvão de sobro, extracção de barro ou outras fruições de natureza agrícola, silvícola, silvo – pastoril ou proveitos análogos. 2 - O Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos a regime florestal, com afloração na base VI da Lei n.º 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse de imóveis correspondentes a esse direito. 3 - As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios, e propriedade deste, ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal. 4 – As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente partícipes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público acima aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro. 6 - O legislador, com a devolução dos baldios, visou permitir às populações darem o uso que ancestralmente davam aos terrenos comunais, ou seja, retirarem deles as vantagens destinadas à satisfação das necessidades diárias da comunidade, designadamente ali apascentarem animais, procederem ao corte de lenha, ao roço de mato e à recolha de caruma e folhas das árvores., não carecendo, consequentemente, os compartes das casas florestais, nem dos seus logradouros, pois o uso e fruição dos baldios não passam pela utilização de tais casa e logradouro. 7 – Aliás, não tendo o Estado querido abandonar as áreas florestadas, não integradas nos baldios, pretendeu também manter, como manteve, as casas dos guardas florestais, dado que as áreas florestadas, sob vigilância desses guardas, não se confundem com as áreas dos baldios. 8 – Encontrando-se o baldio da Facha, submetido ao regime florestal, não ficaram a casa de guarda, o terreno onde a mesma se encontra implantada e o respectivo logradouro abrangidos na devolução ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, em conformidade com o artigo 3º do DL 39/76, de 19 de Janeiro. 9 - Na vigência sucessiva do Código Civil de 1867, do Código Administrativo de 1940 e do Código Civil de 1966, até à entrada em vigor do mencionado DL nº 39/76, os baldios eram considerados prescritíveis (prescrição aquisitiva), sendo possível a sua aquisição, por usucapião, por particulares ou por entidades diversas dos respectivos compartes, em conformidade com o disposto no artigo 388º, § único, do Código Administrativo, que procedeu a uma interpretação autêntica do direito anterior. 10 - A jurisprudência tem decidido uniformemente pela prescritibilidade dos baldios, desde o Código Civil de Seabra até ao início da vigência do citado DL 39/76, de 19 de Janeiro e pela sua imprescritibilidade a partir da entrada em vigor desse diploma, não estando vedada ao Estado a aquisição do direito de propriedade por prescrição aquisitiva (usucapião), se praticar actos de posse susceptíveis de a ela conduzir. 11 – Porque se não provou que, à data da entrada em vigor do DL n.º 39/76, de 19 de Janeiro, já havia decorrido tempo bastante para a aquisição da propriedade por usucapião, improcederia o recurso, caso a causa de pedir assentasse unicamente, e não assentou, na aquisição da propriedade por usucapião. V. Pelo exposto, negando a revista, confirma-se o acórdão recorrido, nos termos acima referidos, e em consequência: 1 – Declara-se que o autor é proprietário do prédio sito no lugar de ........, freguesia de Facha, Ponte de Lima, denominado “casa florestal A-162”, composto por casa de rés-do-chão, cozinha, casa de banho, três divisões assoalhadas, duas arrecadações, escritório, com a superfície coberta de 106 m.2, anexo com a superfície de 15 m.2 e logradouro com cerca de 179 m.2; 2 - Condena-se o réu a reconhecer tal direito; 3 – Julga-se o pedido reconvencional improcedente. Sem custas, porquanto o réu/reconvinte está delas isento.
Lisboa, 15 de Setembro de 2011
Granja da Fonseca (Relator) Silva Gonçalves Pires da Rosa
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[1] Entre outros, Acórdãos do STJ de 16/06/2009, Processo 47/2000.S1, de 10/12/2009, Processo 313/04.2TBMIR.C1.S1. e de 25/02/2010, Processo 782/2001.S1. [2] Vide Acórdão do STJ de 25/02/2010, atrás referido. [3] Parecer PGR, de 24/06/99, citado. [5] Tratado de Direito Civil, Volume III, página 145. [6] O Código Civil de 1966, referindo-se às coisas fora do comércio, caracteriza-as como aquelas que não podem ser objecto de direitos privados (artigo 202º). [7] Vide Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, Volume I, páginas 136-137. [8] Ac. STJ de 10/02/2009, Processo 313/04.2TBMIR.C1.S1. [9] Acórdão de 24/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, de 24/06/96 [10] Vide Acórdãos do STJ de 17/04/97, Processo 619/96 e de 12/10/99, Processo 77/99. |