Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
087941
Nº Convencional: JSTJ00027740
Relator: FERNANDO FABIÃO
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
PODERES DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
CONFLITO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO AO REPOUSO
DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
Nº do Documento: SJ199601090879411
Data do Acordão: 01/09/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N453 ANO1996 PAG417
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 797/94
Data: 04/27/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR RESP CIV.
DIR CONST - DIR FUND. DIR PROC CIV - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 712 N2 ARTIGO 721 N2 ARTIGO 722 N2 ARTIGO 729 N1 N2.
CONST89 ARTIGO 16 ARTIGO 17 ARTIGO 19 N6 ARTIGO 25 N1 ARTIGO 64 N1 ARTIGO 66 N1.
L 65/78 DE 1978/10/13 ARTIGO 2 N1.
CCIV66 ARTIGO 335 ARTIGO 483 ARTIGO 70 N1.
L 11/87 DE 1987/04/07 ARTIGO 2 N1 ARTIGO 22 N1 F ARTIGO 41 N1.
DL 251/87 DE 1987/06/24 ARTIGO 143 N1 A.
Referências Internacionais: DECUDH ART3 ART25 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1988/01/26 IN BMJ N373 PAG483.
ACÓRDÃO STJ DE 1990/03/06 IN BMJ N395 PAG542.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/11/14 IN BMJ N411 PAG549.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/05/26 IN BMJ N417 PAG734.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/11/03 IN BMJ N421 PAG400.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/02/21 IN CJ TI ANOIII PAG96.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/04/26 IN CJ TI ANOIII PAG155.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/09/21 IN CJ TIII PAG96.
Sumário : I - A fixação da matéria de facto é, em princípio, da exclusiva competência das instâncias, conhecendo o Supremo só de matéria de direito.
II - Só a Relação tem o poder de anular a decisão do colectivo no caso de considerar deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos.
III - O Supremo não pode censurar a decisão da Relação que anulou as respostas do colectivo, mesmo que estas sejam deficientes, obscuras ou contraditórias, ou que as anulou com tal fundamento embora elas não sofressem desse defeito.
IV - O Supremo não pode censurar as decisões da Relação que não façam uso do poder de anulação das decisões do colectivo em matéria de facto, mas já pode censurar o uso que a Relação haja feito de tal poder com violação da lei.
V - Embora não exista um modelo de solução da colisão ou conflito de direitos, um critério de solução válido em termos gerais e abstractos, é preciso decidir os casos concretos e a via indicada parece ser a que harmonize os direitos em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, de acordo com as circunstâncias concretas e à luz de uma hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais, ou de aplicação de critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de ponderação e/ou harmonização concretas, tais como "o princípio da concordância prática", "a ideia de melhor equilíbrio entre os direitos colidentes".
VI - Os direitos à integridade física, à saúde, ao repouso, ao sono, prevalecem sobre o direito ao exercício de uma actividade comercial.
VII - O dono do estabelecimento de talho, instalado no r/c de um prédio, onde se fazem barulhos no desmanche de animais que
é incómodo e perturbador para os ocupantes do piso imediatamente superior, os quais, mesmo nos dias santos e feriados, vêm prejudicado o seu repouso e não têm hipótese de conciliar o sono por causa das vibrações provenientes das máquinas de refrigeração, sofrendo incómodos com todos os aludidos ruídos, é obrigado a indemnizar os lesados ocupantes do piso superior, ainda que os ruídos sejam inferiores a 10 decibeis e que a actividade de que os ruídos resultam haja sido autorizada administrativamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na Comarca do Porto,
A e mulher B propuseram contra C, a presente acção com processo ordinário, na qual pediram que o réu fosse condenado a: a) assumir de imediato as providências determinadas pelas autoridades administrativas e sanitárias competentes para eliminação radical dos efeitos da actividade exercida no seu estabelecimento denominado
"Talho Central" lesivos dos legítimos direitos dos autores e do seu agregado familiar, designadamente
1. - proceder à insonorização do estabelecimento, de acordo com o estipulado no artigo 1 n. 1 do Decreto-Lei 271/84,
2. - isolar a sala de desmancha do restante estabelecimento e proceder ao correspondente isolamento acústico desse compartimento,
3. - regular o motor da câmara frigorifica de modo a dar cumprimento ao estipulado no n. 1;
4. - retirar os animais existentes na parte de escritório;
5. - retirar as carnes existentes na parte de escritório e correspondente colocação no Talho, b) indemnizar os autores pelos danos morais já sofridos em quantia não inferior a 2100000 escudos, c) a suportar os custos da assistência médica, clínica e psiquiátrica de que os autores e suas filhas menores necessitam e vierem a carecer até possível recuperação, a liquidar em execução de sentença, d) a entregar aos autores uma chave do portão de acesso ao logradouro, facilitando-lhes a respectiva utilização, nos termos do título da propriedade horizontal, tendo para tanto alegado os pertinentes factos.
Na sua contestação, o réu confessou alguns factos e negou outros e terminou pedindo a improcedência da acção e a condenação dos autores como litigantes de má fé.
Replicaram os autores, onde concluíram como na petição inicial.
Foi proferido o despacho saneador e organizados a especificação e o questionário, de que os autores reclamaram mas sem êxito.
Prosseguiu o processo a tramitação legal, até que, feito o julgamento, foi julgada a acção parcialmente procedente.
Desta sentença apelou o réu e a Relação anulou o processado posterior ao julgamento e ordenou a formulação de um novo quesito.
Cumprido o ordenado pela Relação e feito de novo o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu:
- a proceder à insonorização do seu estabelecimento comercial de harmonia com o legalmente disposto,
- a isolar a sala de desmancha e proceder ao correspondente isolamento acústico deste compartimento,
- a regular o motor da câmara frigorifica de molde a ficar devidamente insonorizado e de harmonia com o limite legal já definido,
- a pagar aos autores, a título de indemnização pelos danos por estes sofridos em consequência da sua conduta, a quantia de 1500000 escudos, e absolveu-o do mais que foi pedido.
Desta sentença voltou a apelar o réu, mas a Relação julgou a apelação improcedente.
Deste acórdão interpôs o réu recurso de revista e, na sua alegação, concluiu, fundamental e sumariamente, assim:
I - os direitos de personalidade não são absolutos, pelo que, havendo, como há, dois direitos de igual valia em confronto, tutelados pelo artigo 70 do Código Civil, deveria o julgado ter-se valido de critérios objectivos, a fim de aferir se eram compatíveis ou incompatíveis e, neste último caso, dizer o que prevalecia;
II - face aos factos provados, os direitos são compatíveis, pois que nunca estiveram em confronto, uma vez que, a haver ruído, este se produziu de dia, na ausência dos autores, para além de que o som e o descanso são nocturnos e, a haver ruído, este ultrapassou em pouco o máximo legal e produziu-se só de dia;
III - a responsabilidade extracontratual pressupõe a verificação da ilicitude, da culpa, do nexo de causalidade e dos danos e, na hipótese, nenhum destes pressupostos se verificou;
IV - o acórdão recorrido não deu relevo ao documento n. 2 da contestação, não impugnado pelos autores, nem ao despacho de folha 128;
V - o acórdão recorrido baseou-se em factos provados entre si contraditórios, justificando-se a aplicação do artigo 712 ns. 1 alínea a) e 2 do Código de Processo Civil;
VI - o relatório dos peritos assenta em meras hipóteses académicas, pelo que é difícil concluir se foi violado o normativo aplicável ao ruído, e, assentando a decisão na existência dos ruídos assinalados neste relatório, é de concluir que há contradição nos factos dados como provados, nomeadamente com os quesitos 5., 7., 12. e 21.;
VII - como já se disse, os autores não provocam os danos e os incómodos, sendo contraditória a matéria de facto dada como provada a este respeito nas respostas aos quesitos 8. e 9., estes já de si incompreensíveis e contraditórios, defeito que se agravou com as respostas aos quesitos 5., 6. e 12.;
VIII - o acórdão recorrido baseou-se em meras probabilidades em vez de se basear em factos concretos, cuja prova cabia aos autores;
IX - a admitir-se que foi violado o direito de personalidade dos autores, deviam os tribunais ter condenado o réu segundo um juízo de equidade, tendo sido violados os artigos 483 e seguintes do Código Civil;
X - o acórdão recorrido errou na aplicação do
Decreto-Lei 251/87, de 24 de Junho, pois este refere que "a diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente... deve ser inferior a 10 dB", e, no relatório dos peritos, o ruído produzido não era contínuo;
XI - deve revogar-se o acórdão recorrido, com as legais consequências.
Os recorridos não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
Têm provados os factos seguintes:
1 - os autores são donos da fracção D do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no gaveto das ruas ... Ilha de S. Miguel , em
Ermezinde, onde eles e o restante agregado familiar habitam, lá dormindo, desde Julho de 1982, sendo que o casal dos autores tem duas filhas, as quais bem como seus pais saem para os seus trabalhos e infantário por volta das 8 horas, passando elas o dia no infantário,
Centro Social de Ermezinde;
2 - os quartos dos autores e suas filhas situam-se na parte da frente do prédio, por cima da secção do Talho destinado à venda ao público;
3 - o réu é, desde Janeiro de 1986, inquilino da fracção C do prédio identificado no n. 1, que corresponde ao rés-do-chão destinado a comércio, localizado por baixo da habitação dos autores, onde tem instalado o estabelecimento de talho designado por
Talho Central;
4 - a actividade exercida pelo réu compreende a venda ao público de vários tipos e qualidades de carnes e esta actividade compreende ainda o desmanche de animais de grande porte, tarefa que é levada a cabo na parte traseira do estabelecimento, certo sendo que, dado o posicionamento deste estabelecimento, a sua cubicagem
(500 metros cúbitos) e o tipo de materiais usados na sua construção, a execução dos aludidos serviços provoca ruídos e vibrações, agravados pela total falta de insonorização dos aposentos onde são levados a cabo;
5 - quando o réu procede ao desmanche de animais é incómodo e perturbador para os ocupantes do piso imediatamente superior o barulho causado pelo batimento de machados, cutelos e instrumentos análogos ali utilizados;
6 - mesmo em dias santos e feriados vêm os autores e sua família prejudicados o repouso, já que o ruído e vibrações provenientes das máquinas de refrigeração do estabelecimento são sentidos na sua fracção, não lhe dando hipóteses de conciliar o sono;
7 - a manutenção de um tal "statu quo" tem acarretado sérios incómodos para os autores e seus familiares;
8 - o talho está aberto ao público das 8 horas às 13 horas e das 15 horas às 20 horas;
9 - a sala de desmanche de animais de pequeno porte situa-se nas traseiras e por cima dela situa-se a cozinha, a casa de banho e a sala de jantar dos autores;
10 - a diferença entre o valor do nível sonoro contínuo equivalente, corrigido dos ruídos referidos nas respostas aos quesitos 3., 6. e 7. (supra indicados nos ns. 4., 5. e 6.) e o valor do nível sonoro do ruído de fundo, que é excedido, num período de referência, em 95 porcento de duração deste (h 85) ultrapassa 10 dB;
11 - foram já dirigidas 3 participações à P.S.P. de
Ermezinde, que aí correram termos sob os ns. 1007, 1686 e 1843;
12 - a Administração Regional de Saúde do Porto oficiou
à Câmara Municipal de Valongo a fim de o réu proceder à insonorização da sala de desmanche e regular o motor da câmara frigorífica;
13 - a área descoberta do imóvel situada na parte dianteira do estabelecimento do réu é logradouro comum das fracções A, B, C e D.
Segundo a jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça, apoiada pela doutrina, a fixação da matéria de facto é, em princípio, da competência das instâncias, conhecendo o Supremo Tribunal de Justiça só da matéria de direito (artigos 721 n. 2, 722 n. 2, 729 ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil), pelo que só a
Relação tem o poder de anular a decisão do Colectivo no caso de considerar deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos (artigo 712 n. 2 do Código de Processo Civil) e o Supremo Tribunal de Justiça não pode censurar a decisão da Relação que não anulou as respostas do Colectivo, mesmo que estas sejam deficientes, obscuras ou contraditórias, ou que as anulou com tal fundamento, embora elas não sofressem desse defeito, certo sendo ainda que o Supremo Tribunal de Justiça não pode censurar as decisões da Relação que não façam uso do dito poder de anulação das decisões do
Colectivo em matéria de facto mas já pode censurar o uso que a Relação haja feito de tal poder com violação da lei (v., entre muitos outros, os acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 1988, 6 de
Março de 1990, 14 de Novembro de 1991, 26 de Maio de
1992, 3 de Novembro de 1992, 21 de Fevereiro de 1995, in, respectivamente, B.M.J. 373, 483, 395, 542, 411,
549, 417, 734, 421, 400, C.J. do Supremo 1995, II, 96;
Antunes Varela, R.L.J. 125, 308 e 309; Dr. Ribeiro
Mendes, Direito Processual Civil III Recurso 346; .
Rodrigues Bastos, Notas do Código de Processo Civil,
III, 352).
Nesta perspectiva legal, não sofre dúvida que o recorrente carece de razão quanto às questões suscitadas nos ns. IV, V, VI, VII, VIII relativos às conclusões da sua alegação, uma vez que versam sobre a fixação da matéria de facto e a eventual anulação das respostas aos quesitos por contradição, que a Relação não teria feito.
Em todo o caso, sempre se dirá que as respostas do colectivo aos quesitos não sofrem dos vícios apontados, designadamente não são contraditórias nem contrariados por qualquer meio de prova com força determinada.
Não há muito, tivemos de abordar questão parecida à que ora nos é posta no processo n. 87187, da 1. secção, pelo que iremos repetir muito do que ali se escreveu.
Segundo a declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, "Todo o indivíduo tem direito à vida... (artigo 3) e "toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem estar, principalmente quanto... ao alojamento... (artigo 25 n. 1), e, como resulta do disposto no artigo 16 da Constituição da República Portuguesa, estes textos estão integrados no ordenamento jurídico português, o mesmo acontecendo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei 65/78, de 13 de Outubro, cujo artigo 2 n. 1 dispõe que "O direito de qualquer pessoa à vida é protegida por lei...".
Mas também a nossa Constituição preceitua que a integridade moral e física das pessoas é inviolável
(artigo 215 n. 1), que todos têm direito à protecção da saúde (artigo 64 n. 1) e que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66 n. 1).
Estamos perante direitos fundamentais, porque figuram entre os direitos, liberdades e garantias (Cap. I,
Título II da Parte I) ou porque são direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17 da Constituição), de natureza social (Cap. II do Título
III): E é indiscutível que o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono se insere no direito à integridade física e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, enfim ao direito à saúde e à qualidade de vida.
Por sua vez, no artigo 70 n. 1 do Código Civil, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
E também a Lei 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do
Ambiente) estabelece que todos os cidadãos têm direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado
(artigo 2 n. 1), que a luta contra o ruído visa a salvaguarda da saúde e bem estar das populações e se faz, além de outras medidas, através da adopção de medidas preventivas para a eliminação da propagação do ruído exterior e interior, bem como das trepidações
(artigo 22 n. 1 alínea f)) e ainda que existe obrigação de indemnização, independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos no ambiente, em virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável (artigo 41 n. 1).
E não pode, finalmente, esquecer-se o artigo 483 do
Código Civil, segundo o qual aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm convergido nesta orientação (v., quanto aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, Castro Mendes, Estudos
Sobre a Constituição, 1. volume, 103 e seguintes; Jorge
Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, páginas 55, 56, 136 e seguintes, 471 e seguintes; J.J.
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, edição de
1991, páginas 532 e seguintes e 565 e seguintes; quanto aos direitos de personalidade e sua ofensa através do ruído, v. Vaz Serra, R.L.J. 103, páginas 374 e seguintes; Henirich Eward Horster, Teoria Geral de
Direito Civil, 257 e seguintes; Pires de Lima e Antunes
Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4. edição, 104; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, 17 de Março de 1994, 21 de Setembro de 1993,
16 de Abril de 1991, 13 de Março de 1986, 4 de Julho de
1978, 28 de Abril de 1977, in, respectivamente, C.J. do
Supremo de 1995, Tomo I, página 155, Novos Estilos,
Março de 1994, 61, C.J. do Supremo de 1993, Tomo III,
26, B.M.J. 406, página 623, 355, página 356, 279, página 124, 266 página 124).
Há, frequentemente, colisão ou conflito de direitos fundamentais que importa solucionar.
Pois bem, muito embora não exista um modelo de solução, um critério de solução válido em termos gerais e abstractos (Com base, por exemplo, numa ordem de valores ou na distinção entre os direitos sujeitos a leis restritivas e direitos não sujeitos a leis limitadas (J.J. Gomes Canotilho, R.L.J. 125, páginas
293 e seguintes), claro está que é preciso decidir os casos concretos e a via indicada parece ser a que harmonize os direitos em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, de acordo com as circunstâncias concretas e à luz de uma hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais - na verdade, a Constituição concede maior protecção aos direitos, liberdades e garantias do que aos direitos económicos, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de protecção jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes - ou de aplicação de critérios metódicos abstractos que orientem a tarefa de ponderação e/ou harmonização concretas, tais como "o princípio da concordância prática", "a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes"
(Jorge Miranda, ob. cit., páginas 135, 145, 146, 301;
J.J. Gomes Canotilho, ob. cit., páginas 660, 661, 538).
De qualquer modo, no campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos, o artigo 335 do
Código Civil, que dispõe:
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os direitos ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos fossem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
Ora, no nosso caso, temos, de um lado, um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, ao sono, e, de outro lado, um direito de propriedade ou, se se quiser, um direito ao exercício de uma actividade comercial e não temos dúvida que aquele primeiro direito, gozando da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 19 n. 6 da Constituição) é de espécie e de valor superior aos segundos, os quais são direitos fundamentais que apenas beneficiam do regime material dos direitos, liberdades e garantias (Jorge Miranda, ob. cit., páginas 145 e 146; J.J. Gomes Canotilho, ob. cit., página 538).
Assim, há que dar prevalência ao direito à integridade física, ao repouso, à tranquilidade, ao sono, como, de resto, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo
(Vaz Serra, R.L.J. 103, páginas 374 e seguintes; Cunha de Sá, Abuso de Direito, páginas 528 e 529; Pessoa
Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade
Civil, página 201; os já citados acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1978, 13 de Março de 1986, 17 de Março de 1994 e 26 de Abril de 1995).
À luz do que se acaba de dizer e atentos os factos provados, nomeadamente os supra incluídos nos ns. 2, 4,
5, 6, 7, 9 e 10, afigura-se-nos indiscutível a obrigação de o réu indemnizar os autores, por se terem provado, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante sob a forma culposa, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em contrário, sobretudo no que toca ao dano e ao nexo de causalidade, pretende o recorrente esgrimir com os factos seguintes e como facto de os autores e seus familiares não estarem em casa durante as horas em que o talho está aberto ao público, com a circunstância de o sono e o descanso só poderem ser perturbados de noite e com o pormenor de o ruído em pouco ter ultrapassado o máximo legal e não ser contínuo (artigo 143 n. 1 alínea a) do Decreto-Lei 251/87).
Mas a isto responde-se como se segue.
Para além de não vir provado a que horas os autores regressam a casa dos trabalhos para que saem às 8 horas nem a que horas o réu procede às actividades produtoras de ruído - só vêm provadas as horas de abertura e do fecho do talho - a verdade é que se provou que o barulho feito no desmanche de animais é incómodo e perturbador para os ocupantes do piso imediatamente superior (supra n. 5) e que mesmo nos dias santos e feriados os autores e sua família vêem prejudicado o seu repouso e não têm hipóteses de conciliar o sono por causa das vibrações provenientes das máquinas de refrigeração (supra n. 6) e que a manutenção do statu quo tem causado sérios incómodos aos autores e sua família (supra n. 7) e ainda que o ruído em causa ultrapassada 10 dB (supra n. 10). E, quanto ao facto de o ruído em pouco ultrapassar o máximo legal e não ser contínuo, para além de se frisar que o artigo 14, com o termo "contínuo", não exige que o ruído atentário do descanso de terceiros seja contínuo, sem intermitência, e de se lembrar que o ruído das máquinas de refrigeração é contínuo, materialmente falando, salienta-se que, nos termos da lei constitucional e da lei ordinária, o direito ao repouso, ao descanso e ao sono pode ser ofendido mesmo que o nível sonoro do ruído seja inferior a 10 dB e que a actividade de onde resulta haja sido autorizada administrativamente
(acórdão da Relação do Porto, de 27 de Abril de 1995,
C.J. 1995, Tomo II, página 213).
Pelo exposto, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 9 de Janeiro de 1996.
Fernando Fabião,
César Marques,
Martins da Costa.