Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL) | ||
Relator: | RAUL BORGES | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS HOMICÍDIO LEGÍTIMA DEFESA ERRO DE JULGAMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/03/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | INDEFERIDO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I – A providência de habeas corpus constitui uma garantia do direito à liberdade com assento na Lei Fundamental que nos rege, estando prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, inserto no Capítulo I – «Direitos, liberdades e garantias pessoais» –, do Título II – “Direitos, liberdades e garantias” –, da Parte I – “Direitos e deveres fundamentais”.
II – Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a págs. 509, o n.º 2 do artigo 31.º reconhece uma espécie de acção popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º - 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer a providência em favor do detido ou preso. Além de corporizar o objectivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa acção popular sublinha o valor constitucional objectivo do direito à liberdade. III – A figura do habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo - saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional americano. IV – A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 35.043, de 20 de Outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de Dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de Maio de 1976. V – A Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro - lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a cujo abrigo foi elaborado o Código de Processo Penal vigente - estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39 – “ (…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias”. VI – Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade. VII – Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal. Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do STJ de 30 de Outubro de 2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder». VIII – A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º, e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º, como aquele do CPP. IX – Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão): a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. X – A providência do habeas corpus tem lugar quando alguém se encontra ilegalmente preso, quer por virtude de prisão preventiva, quer em razão de prisão resultante de pena constante da sentença condenatória, tratando-se de meio expedito, célere, destinado a pôr cobro a essa situação o mais depressa possível. XI – Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 27-10-2010, proferido no processo n.º 108/06.9SHLSB-AH.S1-3.ª Secção, o processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional, e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 222.º, n.º 2, do CPP. Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos. XII – Como referiu o acórdão de 8 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 115/13.5YFLSB.S1-3.ª Secção, o fundamento da alínea b) abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente: a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a inadmissibilidade legal de prisão preventiva. XIII – O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso. XIV – A definição dos limites de intervenção ao abrigo da providência de habeas corpus foi abordada de forma muito clara em 1990, no acórdão de 10 de Outubro, proferido no processo n.º 29/90, in Colectânea de Jurisprudência 1990, tomo 4, pág. 28 e BMJ n.º 400, pág. 546, onde se ponderou: «A providência de habeas corpus tem a natureza de medida com a finalidade de resolver de imediato situações de prisão ilegal, e não de meio de reapreciação dos motivos da decisão proferida pela entidade competente. Essa função, de meio de obter a reforma da decisão injusta, de decisão inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento, compete aos recursos. O STJ não pode substituir-se ao tribunal ou ao juiz que detém a jurisdição sobre o processo e não pode intrometer-se numa função reservada aos mesmos, consistindo as suas funções em controlar se a prisão se situa e se está a ser cumprida dentro dos limites da decisão judicial que a aplicou. Existindo uma decisão judicial, ela permanece válida até ser revogada em recurso. Por isso, a providência de habeas corpus apenas pode ser utilizada em situações diferentes. De contrário, estava a criar-se um novo grau de jurisdição, não contemplada. Daí que, quando o despacho de um juiz decreta a prisão baseado em fundamentos que a lei permite, o único meio de impugnação, por se pretender entender que tal fundamento se não encontra preenchido face aos elementos constantes do processo, é o recurso. Pode ao mesmo tempo requerer-se a providência, mas com base em outras razões que não as que foram objecto do recurso». XV – Como este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a decidir, a providência não pode ser utilizada para a sindicação de outros motivos ou fundamentos susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão, para além dos taxativamente previstos na lei, designadamente para apreciar a correcção das decisões judiciais em que aquela é ordenada. XVI – Como se pode ler no acórdão do STJ, de 16 de Julho de 2003, proferido no processo n.º 2860/03-3.ª Secção, de que houve recurso para o Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 423/2003, de 24 de Setembro de 2003-3.ª Secção, proferido no processo n.º 571/2003, publicado no Diário da República, II Série, n.º 89, de 15 de Abril de 2004, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 57.º, págs. 343 e ss. - «Os fundamentos da providência revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)». XVII – A providência de habeas corpus não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente; a medida em causa não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada. XVIII – Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. XIX – Não é, pois, o habeas corpus o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, ou para apreciar a correção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário. XX – O habeas corpus, insiste-se, não pode revogar ou modificar decisões, ou suprir deficiências ou omissões do processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade motivada por algum dos fundamentos legalmente previstos para a concessão de habeas corpus, e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso. XXI – O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso, como vimos. XXII – O facto invocado não cabe, não se enquadra, no fundamento da alínea b), como facilmente se deduz de tudo quanto foi exposto. Todo o extenso articulado anda à volta da invocação de legítima defesa, não atendida em sede de julgamento, sendo invocado erro grosseiro e notório de julgamento no ponto 63 e erro notório na apreciação da prova, como no ponto 88, entendendo o requerente ser a providência uma espécie de instância de recurso, que não é. Decididamente, não é. Chega o requerente a pretender a visualização de um vídeo, meio de prova dos conflitos daquela noite. XXIII – A presente providência não se destina a sindicar a bondade do acórdão condenatório na apreciação da prova e na conformação da matéria de facto. E como é bem de ver, a intenção de matar ou a legítima defesa são matéria de facto, domínio em princípio vedado ao Supremo Tribunal de Justiça. XXIV – A determinação da intenção do agente consubstancia pronúncia sobre matéria de facto, encontrando-se, por isso, subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça – assim tem entendido este Supremo Tribunal desde o acórdão de 11-12-1968, proferido no processo n.º 32.796, in BMJ n.º 182, pág. 336, até ao acórdão de 25-09-2019, por nós relatado no processo n.º 60/17.5JAFAR.E1.S1. XXV – A pretensão do requerente constitui assim um impossível processual. XXVI – Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o fundamento previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, invocado pelo requerente, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP. XXVII – O artigo 222.º, n.º 2, do CPP, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa. XXVIII – Sendo assim, é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | AA, arguido nos autos designados em epígrafe, foi condenado em primeira instância e está em prisão preventiva por ter supostamente cometido o crime de homicídio, entretanto, sua prisão é ilegal, pois ele agiu em legítima defesa e vem, portanto, ao abrigo do art. 31°, da CRP e dos arts. 222° e 223° do CPP, requerer providência de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL nos termos e com os seguintes fundamentos: 1. O Requerente encontra-se sujeito, desde o dia 16/05/2019, à medida de coação de prisão preventiva, aplicada no âmbito do 1o interrogatório judicial do Requerente detido, a fls. 89 e segs. dos autos, por se indiciar a prática de um crime de homicídio simples pelo Artigo 131°, do CP. 2. No dia 17/04/2020 o Requerente foi julgado e condenado a pena de prisão efetiva de 12 anos. 3. Do acórdão de primeira instância foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora que está em tramitação e requerimento de substituição da medida de coação de prisão preventiva por obrigação de permanecer na habitação com vigilância eletrónica para o próprio Tribunal a quo, este, entretanto, foi desde já negado no dia 27.05.2020, conforme comprova decisão anexa. 4. Na decisão que indeferiu o pedido de modificação do regime coativo o Tribunal a quo entendeu: In casu, a aplicação da prisão preventiva fundou-se, em primeiro plano, da gravidade do crime imputado e no pressuposto de alarme social criado, não sendo ainda desconsiderada a nacionalidade estrangeira do arguido, podendo aventar o receio do mesmo se colocar em fuga. Tais perigos mostram-se atuais e prementes, sendo, no tangente ao segundo, o mesmo reforçado ante a condenação sofrida pelo arguido em prisão efetiva (conforme, de resto, se reforçou em sede de acórdão, no último reexame operado nos autos). Dito isto, e para que se possa proceder à alteração da medida aplicada, necessário se torna que se verifique, em concreto, uma alteração ou atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, o que não resulta dos autos. i 5. Diante destes factos não resta alternativa que não seja o presente remédio excecional de Habeas Corpus, que tem como fundamento a alínea b) do art. 222°, do CPP: "ser motivada por facto pelo qual a lei não permite". 6. No caso em tela, o Requerente praticou o facto de que é acusado, entretanto, em legítima defesa, sua, de sua esposa, de sua filha bebé com 17 meses a data dos factos e também de seu património. 7. A presente excludente de ilicitude não depende de prova testemunhal, nem tampouco da palavra do Requerente, ela pode ser vista e comprovada, por V. Exas., pois os factos foram filmados com excelente qualidade de imagem, imagem esta que se anexa a presente petição. 8. Além da possibilidade de V. Exas. assistirem ao vídeo e julgarem por si mesmos se é caso de legitima defesa, cumpre destacar o que foi dado como provado nos autos, para evidenciar a ilegalidade da prisão: 1. O arguido, em 14 de maio de 2019, explorava comercialmente um estabelecimento de restauração designado ..., sito na …, n° 00, Loja …, em … . 2. Na referida data, cerca das 19h, o arguido encontrava-se sentado numa das cadeiras da esplanada do mencionado estabelecimento, na companhia da filha de dezassete 17 meses, tomando uma cerveja. 3. Nesse momento passou no local BB que, vendo o Arguido sentado e embora não o conhecesse, cumprimentou-o. 4. Constatando através do referido cumprimento que ambos tinham nacionalidade brasileira, BB, depois de pedir no interior do estabelecimento que lhe servissem uma imperial, deslocou-se para a parte exterior do mesmo (esplanada), sentando-se num primeiro momento na mesa ao lado daquela em que se encontrava sentado o Arguido. 5. Nessa altura o Arguido encontrava-se já acompanhado por um outro indivíduo, de nome CC. 6. A dada Altura, BB perguntou ao Arguido e ao indicado CC se podia juntar àqueles, na mesma mesa, tendo aqueles respondido afirmativamente. 7. Durante alguns minutos aqueles indivíduos conversaram e beberam juntos. 8. BB e DD eram colegas de trabalho, exercendo ambos a atividade de motorista de pesados por conta da mesma empresa de transporte, e tinham combinado encontrar-se para beber uma cerveja no final do dia. 9. Uma vez que BB tinha combinado encontra-se com DD noutro lugar, contactou-o telefonicamente para que viesse ter consigo ao local onde se encontrava, para ali beberem umas cervejas. 10. Nesta sequência e pouco tempo depois, DD chegou ao restaurante "…" e juntando-se ao Arguido, a BB e ao indivíduo identificado como CC. 11. Permaneceram os quatro durante algumas horas na esplanada do restaurante, onde beberam cerveja e conversaram sobre diversos assuntos. 12. Pelas 22h, o grupo decidiu continuar a conversar dentro do estabelecimento, acedendo assim ao interior daquele espaço, vindo a sentar-se numa mesa ali existente, onde continuaram a conversar. 13. Após entrarem no interior de tal espaço, BB e DD perguntaram ao Arguido se ali poderiam jantar, tendo este respondido afirmativamente. 14. O Arguido confecionou então a refeição aqueles, que após lhes serviu. 15. Após pedido daqueles para que com eles jantasse, o Arguido acedeu, sentou-se à mesa e com eles jantou. 16. O indivíduo que se identificou como CC abandonou o local em momento não concretamente apurado, porém cerca das 1 h já do dia/madrugada de 15 de maio. 17. Ali permaneceram BB e DD, perdurando o consumo de cervejas, ficando o Arguido a acompanhá-los na mesma mesa. 18. A dado momento, a mulher do Arguido anunciou a tais indivíduos que já estava na hora de fechar o restaurante. 19. No âmbito da conversação mantida por DD e o Arguido, cerca das 1h30m, por iniciativa que não se logrou apurar, o tema da conversação passou a relacionar-se com o anel que o primeiro estava a usar, referindo este que o mesmo era relativo à maçonaria. 20. Nessa sequência o arguido desentendeu-se com DD e gerou-se entre ambos uma discussão de contornos e teor não plenamente apurados, mas que terá estado relacionada com a maçonaria e o facto de DD fazer parte desta organização. PRIMEIRO CONFLITO 21. No decurso da discussão, o arguido levantou-se com a filha de dezassete meses ao colo, e deslocou-se à cozinha, não sem antes pedir à companheira que segurasse na filha menor, ao que esta não anuiu. 22. EE, companheira do arguido, ficou junto à mesa se encontravam DD e BB pedindo-lhes que se fossem embora de forma a pôr termo à discussão. 23. Entretanto, o arguido passou para detrás do balcão, onde deixou a filha, dirigindo-se nesse momento para a cozinha, onde pegou em 5 facas que estavam num íman colocado na parede. 24. Enquanto falava com BB e DD, alertada pelos ruídos que ouvia proveniente da cozinha, EE dirigiu-se à mesma para ver o que se passava e deparou-se com o arguido, segurando facas em ambas as mãos, caminhando na direção daqueles. 25. EE tentou impedir o arguido de alcançar DD empurrando-o para dentro da cozinha, mas não teve força para o fazer. 26. BB tentou também demover o arguido dos seus intentos, sem sucesso. 27. Dirigindo-se o arguido a DD munido de três facas, porquanto duas haviam caído ao chão, mas sem delas fazer uso, o arguido conseguiu aproximar-se de DD tendo-lhe desferido com os punhos dois empurrões e fazendo-o com o último daqueles cair no chão. 28. DD levantou-se e, em resposta, voltou a envolver-se em confronto físico com o arguido que mantinha as facas na mão, desferindo-lhe um murro que o atingiu na cara, e que dito que o mesmo caísse sobre uma mesa. 29. EE procurava entretanto pôr termo ao conflito, ora colocando-se à frente do arguido, agarrando-o e empurrando-o de forma a afastá-lo, ora agarrando-o pela roupa de modo a impedi-lo de alcançar DD. 30. Além do mais, pedia que DD abandonasse o local, o que este não fez, segurando ao invés uma cadeira na mão. 31. Entretanto, a bebé de 17 meses, que o arguido havia deixado sozinha na cozinha avançou em direção da contenda e, quando estava ao alcance das facas que o arguido brandia, foi agarrada por BB que se manteve com ela ao colo e afastado do conflito. 32. EE conseguiu então convencer DD a abandonar o local empurrando-o até à porta e deixando-o no respetivo limiar, após o que regressou para junto do arguido. 33. BB entregou a bebé aos pais e juntou-se a DD, que se encontrava no limiar da porta e conduziu-o à rua. 34. Após a interacão supra, DD dirigiu-se ao arguido, apelidando-o de cobarde e convidando-o para resolverem a contenda no exterior do estabelecimento. 35. Neste momento, o arguido encontrava-se no espaço da cozinha, sendo acalmado pela companheira. SEGUNDO CONFLITO 36. DD, posicionando-se no limiar interno da porta de acesso ao estabelecimento, dali arremessou uma cadeira para o interior do estabelecimento atingindo a montra do balcão frigorífico e partindo-a. 37. Em seguida, retirou o equipamento extintor do suporte de parede, que arremessou para dentro do espaço, atingindo com o mesmo uma cadeira. 38. Após, DD. iá no interior do estabelecimento, pegou numa cadeira de ferro e madeira maciça, e dirigiu-se à entrada da cozinha onde ainda se encontrava o Arguido, o qual se mostrava munido de duas facas (uma em cada mão). 39. Aproximando-se da porta da cozinha com tal objeto, e ali encontrando-se, a par do Arguido, a sua mulher com a filha menor ao colo, DD preparou-se para desferir um golpe com tal objeto. 40. Nesse momento, o Arguido procurou proteger com os braços a mulher e a filha menor, tendo logrado agarrar a cadeira, à qual também DD se mantinha agarrado. 9. Até aqui os factos foram dados como provados e as ações descritas podem ser visualizadas pelo vídeo retirado do sistema de videovigilância existente no estabelecimento comercial, não sendo possível, entretanto, saber exatamente o teor das conservas, pois o vídeo não possui áudio. 10. Do referido vídeo, destaca-se o seguinte: 11. Houve dois confrontos, um primeiro iniciado às 01h, 30min, 30seg, cuja motivação é controvertida, 12. A motivação apresentada pela defesa é a de que a vítima teria se dirigido ao restaurante do Requerente para, a mando de um membro de uma organização criminosa do Brasil, ameaçá-lo de morte e também teria mencionado a maçonaria com intuito de intimidá-lo, por perceber que o Requerente desconhecia completamente esta nobre organização. 13. O Tribunal a quo não deu credibilidade a primeira alegação da defesa, ou seja, a de que houve a ameaça de morte e que esta terá sido a causa do primeiro confronto. 14. Na sequência do vídeo, vemos que o primeiro conflito cessa às 1h, 32min, 15seg quando o Requerente adentra na cozinha do seu restaurante com sua esposa e filha. 15. Tendo, inclusive, a vítima, saído para o exterior do estabelecimento do Requerente (01h, 32min, 32seg) depois de ser dissuadida por seu companheiro BB. 16. Ocorre que enquanto o Requerente estava na cozinha a ser acalmado pela mulher, a vítima DD volta a entrar no estabelecimento comercial, proferindo, aos gritos, ameaças de morte para o Requerente e sua família (01h, 32min, 46seg). 17. Não se contendo com as ameaças e estando o Requerente refugiado dentro da sua cozinha junto da sua família, DD atira uma cadeira para dentro do estabelecimento comercial, em direção á vitrine, partindo-a (01h, 32min, 52seg), o que representa uma agressão também ao património do Requerente. 18. De seguida, DD continuou a proferir ameaças aos gritos (01h, 32min, 58seg). 19. Enquanto o Requerente continuava refugiado, na cozinha, a zelar pela sua família. 20. A vítima DD continuou as provocações, tendo retirado o extintor da parede e atirado o mesmo para dentro do estabelecimento comercial (01 h, 33min, 00seg), 21. Continuou o DD a proferir as ameaças de morte ao Requerente e família (01 h, 33min, 04seg) com o braço em riste por várias vezes, 22. Durante este tempo, estava o Requerente na cozinha, abraçado a mulher, que tinha a filha menor ao seu colo. 23. O Requerente entrou na cozinha exatamente (01h32m15seg) e lá permaneceu até (1h33m29seg) ou seja, permanece lá dentro por 1 minuto e 09 segundos, tempo este que a vítima poderia ter utilizado para ir embora. 24. Mas a vítima não o fez, pelo contrário, durante este tempo ela permanece no estabelecimento gritando ameaças de morte e arremessando objetos em direção a cozinha, DD arremessa uma cadeira que destrói a monstra do balcão e um extintor de incêndio. 25. A testemunha/cúmplice da vítima, BB, afirmou em seu depoimento em juízo que a vítima nesse momento estava na porta do estabelecimento gritando que o Requerente era cobarde e que deveria sair para lutar fora do estabelecimento, mas o Requerente não saiu. 26. Como o Requerente estava refugiado na cozinha e de lá não saiu, o agressor DD entra, de forma abrupta, no estabelecimento comercial, em passo apressado e a gritar "vou matar você e a sua família seu filho da puta", tendo agarrado numa cadeira de ferro e de madeira maciça, dirigiu-se para a entrada da cozinha (01h, 33min, 21seg). 27. O DD aproxima-se da porta da cozinha com uma cadeira nas mãos (01 h, 33min, 27seg) e prepara-se para desferir um golpe com aquele objeto. 28. Nesse momento, a mulher do Requerente, com a filha menor ao colo, estava entre a vítima DD e o Requerente. 29. Quando o Requerente viu o DD com a cadeira na mão a preparar-se para desferir um golpe com aquele objeto que, inevitavelmente, iria atingir a mulher e a filha menor, se sentiu encurralado, pois estava em um espaço confinado conforme imagem que se vê às fls. 367 verso e não tendo alternativa tentou repelir aquela ameaça. 30. Nesse momento, o Requerente tem uma atitude reflexa de levantar os braços sobre a mulher e a filha menor para fazer de escudo sobre as mesmas, fazendo assim que a cadeira embata em seus braços em vez de bater na sua esposa e filha bebé. (01 h, 33min e 29seg). 31. Se a referida cadeira atingisse a cabeça da mulher ou da filha menor, poderia tê-las ferido gravemente e até matado, notadamente a uma bebé de 17 meses. 32. Tendo em seguida conseguido agarrar na cadeira, o Requerente consegue passar ao lado da mulher e da filha menor e fica de frente para DD, estando ambos agarrados à cadeira (01 h, 33min, 32seg). 33. Visualizando o vídeo, vemos que o agressor quando percebe que o Requerente não vai largar a cadeira, a abandona e corre para o salão onde há várias outras, ocorre que o estado de adrenalina junto ao medo daquela situação que o Requerente estava e o instituo de proteção de sua família o ajudou a prevalecer sobre o agressor. 34. Frisa-se, DD se dirige a cozinha onde encurrala o Requerente, que está com sua esposa e filha bebé (1h33m29seg), toma uma cadeira de ferro e madeira maciça e adentra a cozinha, um recinto pequeno e fechado, sem qualquer possibilidade de fuga para o Requerente e sua família. 35. A única hipótese do Requerente era lutar contra a vítima para tentar tomar a cadeira e assim permitir a saída de sua esposa e bebé daquela situação de grave perigo e é exatamente o que acontece entre (1h33m29seg) e (1h33m45seg). 36. Mas visualizando o vídeo, consegue-se perceber que a cadeira cai, mas a vítima corre em direção as outras cadeiras, o Requerente o alcança, mas ele permanece em luta corporal com o Requerente de modo que se faz necessário que o Requerente continue a golpear a vítima para abrir caminho para sua esposa e filha fugirem. 37. Durante a luta, o agressor consegue desarmar o Requerente de uma das facas que vem a cair ao chão, sendo que seria possível que o próprio agressor tivesse agarrado esta faca ou até mesmo a outra faça que havia caído no chão no primeiro momento, faca esta que estava bem na frente do balcão frigorífico o tempo todo, o agressor passou por cima dela quatro vezes e por sorte do Requerente e sua família ele não a viu. 38. O agressor ao ver o Requerente cair ao chão, com um golpe de jiu-jitsu designado "chave de braço" tenta tomar a faca que restou na mão do Requerente, se ele tivesse conseguido, o Requerente estaria morto e não o agressor (1 h,33m,37seg). 39. Os dois aparecem lutando em disputa pela faca que o Requerente tem consigo e (1h33m41seg) 40. Vê-se que a intenção do Requerente é permitir que sua família consiga escapar da situação de perigo, notadamente quando ele dá um "toque" nas costas de sua esposa para que ela saia rapidamente daquela situação de perigo (1h,33m,42seg). 41. Em seguida, o agressor, mesmo depois dos sete golpes, ainda continua em luta e agarra uma cadeira e acerta com ela a cabeça e as mãos do Recorrente (1 h,33m, 54seg), mas ainda sim contínua com chutes/ponta pés e novamente agarra em outra cadeira e acerta com ela a cabeça do Requerente (1h,34m, 03seg visto isto, fica claro que todos os sete golpes foram necessários para repelir o perigo que o agressor representava ao Requerente e sua família. 42. Vistas e revistas as imagens do segundo conflito, nunca se vê o Requerente a espetar, de forma desnecessária ou exagerada, a faca, no agressor: tudo acontece numa luta corpo a corpo, numa luta de vida ou morte. 43. Interessante notar que o Tribunal a quo reconheceu a existência dos dois conflitos em perspetiva de análise crítica, às fls. 36 do acórdão: Cessado tal primeiro conflito, gerar-se-ia um segundo conflito: Seria este sim iniciado ativamente por DD, acessando uma vez mais ao interior do estabelecimento "….", para o qual arremessou uma cadeira, com o qual quebrou o vidro do balcão de atendimento e, após, atirando um extintor; Dirigir-se este, após, à zona de acesso à cozinha, no interior da qual se encontrava o Arguido, sua esposa e filha (revelando-se ainda o primeiro possuidor de duas facas); Ter nesse trajeto agarrado numa cadeira com a qual procurou agredir o Arguido; 44. Apesar de reconhecer a existência de dois conflitos e que o segundo foi iniciado ativamente pela vítima a conclusão do Tribunal não poderia ser mais equivocada. 45. Sobre a legitima defesa o Tribunal a quo entendeu (fls. 59) que: O que não se crê demonstrado, por tudo o que atrás se deixou dito (em redor da postura alargada dos envolvidos, entre os quais o próprio arguido), é a adoção verbal, no plano ou em quadro sequencial face a tal disputa verbal, por banda de DD, de um comportamento ameaçatório, tendo por visado o arguido ou a sua família e as vidas daqueles De idêntica forma, não se permite descortinar na sua ação qualquer comportamento físico apto a evidenciar tal designo ou princípio de atuação, isto, não obstante se assumir este em plano inequivocamente provocador e censurável. Efetivamente, o que se permite inferir da atuação anterior da vítima é, do ponto de vista incriminatório penal, uma ação de danificação do património explorado pelo arguido, isto a par de uma ação de intimidação física e porventura verbal da integridade pessoal do arguido, face a quem procura desferir, no momento relevante de ação, um golpe com recurso ao uso de uma cadeira. No entanto, tal ação é facilmente ripostada pelo arguido, o qual consegue agarrar tal objeto, desapossando, pois, DD de qualquer instrumento apto a fazer perigar aquele ou seus familiares (isto face à ausência de disponibilidade, pelo mesmo, de qualquer arma ou objeto passível de ser utilizado como tal). 46. Os erros no entendimento acima podem ser verificados ao consideramos o que foi dado como provado pelo próprio Tribunal: a) Que no primeiro conflito, apesar de o requerente estar munido de três facas, não fez uso delas, tendo desferido golpes apenas com os punhos b) Que DD voltou a envolver-se em confronto físico com o arguido que mantinha as facas na mão, desferindo-lhe um murro que o atingiu na cara, e que dito que o mesmo caísse sobre uma mesa e mesmo assim o Requerente não utilizou as facas. c) Que a esposa do Requerente, pedia que DD abandonasse o local, o que este não fez, segurando ao invés uma cadeira na mão. d) Que foi preciso muita insistência da esposa do requerente para convencer DD a abandonar o local empurrando-o até à porta e deixando-o no respetivo limiar, de onde foi conduzido para fora por BB. e) Que após o fim desse primeiro conflito, DD dirigiu-se ao arguido, apelidando-o de cobarde e convidando-o para resolverem a contenda no exterior do estabelecimento. f) Que neste momento, o arguido encontrava-se no espaço da cozinha, sendo acalmado pela companheira. g) Que DD, iniciou o segundo conflito, quando se posicionando no limiar interno da porta de acesso ao estabelecimento, começou a danificar o património do Requerente, arremessando uma cadeira para o interior do estabelecimento atingindo a montra do balcão frigorífico e partindo-a e depois um extintor de incêndio e atingindo uma cadeira. h) Que após a agressão ao património, DD, já no interior do estabelecimento, partiu para a agressão física, pegou numa cadeira de ferro e madeira maciça, e dirigiu-se à entrada da cozinha onde ainda se encontrava o Arguido, o qual se mostrava munido de duas facas (uma em cada mão). i) Aproximando-se da porta da cozinha com tal objeto, e ali encontrando-se, a par do Arguido, a sua mulher com a filha menor ao colo, DD preparou-se para desferir um golpe com tal objeto. j) Nesse momento, o Arguido procurou proteger com os braços a mulher e a filha menor, tendo logrado agarrar a cadeira, à qual também DD se mantinha agarrado. 47. Como se vê acima na narrativa acima, o Requerente foi encurralado em um espaço do imóvel que não oferecia uma rota de fuga e não possuía uma porta que pudesse ser fechada para impedir o ataque de DD, conforme imagem que se vê no processo às fls. 367 verso: 48. Essa foto acima mostra o espaço da cozinha onde o Requerente estava confinado com sua esposa e filha bebé e onde ele sofreu o ataque do agressor. 49. Foi dado por provado no acórdão, em 23, que na cozinha havia pelo menos cinco facas, como o Requerente na hora do ataque estava com duas facas nas mãos, uma havia caído no primeiro momento em frente ao balcão frigorífico, ainda havia duas que poderiam ser utilizadas pelo agressor nesse pequeno espaço que aparece na imagem. 50. É necessário imaginar o desespero de estar fechado em um espaço tão pequeno com esposa e filha no colo e ser atacado por um desconhecido, de porte físico forte, que afirmava ser lutador de jiu-jitsu, uma arte marcial brasileira (considerada arma branca pelas federações e confederações de jiu-jitsu). 51. Esse agressor havia permanecido por algum tempo fora do estabelecimento gritando ameaças, entre elas ameaças de morte ao Requerente e sua família, destruindo o seu património e poderia também ter se munido de (arma de fogo / faca ou outras) eventualmente obtida no seu carro que estava estacionado em frente ou ainda se munido da faca que caiu na frente do balcão frigorífico no primeiro momento e que estava exatamente debaixo da cadeira que o agressor agarrou para atacar o Requerente e sua família na cozinha. 52. Foi nesse cenário desesperador que o Requerente reagiu quando o agressor chegou a porta da cozinha, uma área vedada ao público. 53. Ademais, em 36 se dá por provado o dano ao património do Requerente, o que por si só já justificaria a legítima defesa, pois essa excludente pode ser invocada para defesa tanto do património como da vida. 54. Em 38 a 40 se dá por provado que o agressor atacou o Requerente com uma cadeira de ferro e madeira maciça o que o obrigou a proteger com os braços sua esposa e filha bebé. 55. Não é preciso imaginar o que poderia ter acontecido se uma cadeira de ferro e madeira maciça tivesse atingido a bebezinha que aparece nas imagens, certamente, considerando-se a fúria demonstrada pelo agressor e o seu porte físico, a bebé teria vindo a falecer. 56. Não é possível se compreender como o Tribunal a quo pôde considerar que a atitude de um agressor que invade o local de trabalho de um pai de família, no qual este está em uma repartição que impede sua fuga ou defesa de modo que ele se encontre encurralado e em ato continuo ataque com um objeto apto a matar uma bebé não seja considerado como legítima defesa, independentemente de qual os factos antecedentes que levaram ao conflito. 57. Pouco importa se o que motivou o início do primeiro conflito foi o facto de DD ter ameaçado de morte o Requerente e sua família ou se foi alguma questão relacionada a divergência de opiniões sobre a maçonaria. 58. Pois a morte aconteceu em um segundo confronto iniciado pela vítima DD e não se deu na sequência do primeiro confronto que o Requerente iniciou. 59. Este facto é de extrema relevância, pois mostra que foi a vítima que causou a própria morte. 60. Destaca-se nesta esteira, que é incorreto o entendimento do Tribunal a quo de que o facto de o agressor não estar armado descaracteriza a legítima defesa, pois uma cadeira de ferro e madeira maciça poderia certamente causar danos graves ou até mesmo matar, principalmente a bebé, mas não apenas ela. 61. Além disso, o ataque ocorreu na cozinha e pelo que restou provado nos autos, havia pelo menos duas facas ali no chão próxima a entrada da cozinha que caíram quando a esposa do Requerente o empurrou para dentro da cozinha, e não é difícil imaginar que o agressor poderia se aproveitar do desespero do Requerente em defender sua família e se empossar de uma das facas acessíveis para consumar a ameaça de morte. 62. Havia ainda a faca que caiu no chão na frente do balcão frigorífico que ele poderia ter agarrado esta faca também. 63. Destaca-se ainda que o Tribunal a quo com todo respeito comete um erro grosseiro e notório ao interpretar na página 40 do acórdão que diz: O falecido DD apresenta-se no reduto do arguido despojado de qualquer arma (pistola, faca ou outro), isto é, desacompanhado de qualquer objeto de que pudesse fazer uso para a consumação da ameaça (morte) o que também não sucederia quanto ao pretenso coadjuvante BB. Ao invés, apenas se refere ter DD verbalizado saber lutar jiu-jitsu, arte marcial que não se conhece como à provocação do dano morte. Ora, aventando-se o desígnio pré-criado de ocasionar a morte do arguido e dos seus familiares, invocando-se mesmo, a dado momento, a ligação de DD e BB a uma entidade de crime organizado e violento, algum crédito nos merecerá tal afirmação?) 64. Ora vejamos: segundo as mensagens via WhatsApp apresentadas pelo Requerente como prova nos autos, podemos confirmar que é exatamente assim que esses criminosos fazem, vão sempre em 2 para ameaçar 1, se dizem pertencer a organizações criminosas para coagir ainda mais suas vítimas e ameaçam suas famílias para que esses se submetam, o Requerente e sua esposa sempre alegaram ter sido ameaçados de morte, o Requerente afirmou que DD, após sua esposa ter se afastado por breve segundos, aproveitou para fazer a ameaça afirmando que o haviam encontrado e que eram de uma organização criminosa e que se ele abrisse a boca seria morto 65. O Requerente não teria como saber se a intenção do agressor era concluir a ameaça naquela hora ou não, ninguém poderia nessas circunstâncias saber isso com certeza. 66. O Requerente não tinha meios para saber se a intenção do agressor era só intimidar ou se este possuía uma arma com ele ou em sua viatura que estava a porta. 67. De qualquer forma, no contexto psicológico em que ele se encontrava, considerando-se as ameaças que vinha recebendo nos últimos dias para não denunciar a polícia os documentos falsos que tinham sido enviados a seu amigo na ... verifica-se que a ameaça era credível e deveria ser levada a sério. 68. Sem a emoção do momento é possível concluir que o que DD pretendia provavelmente era apenas intimidar o Requerente naquela noite, o forçando a não fazer a denuncia às autoridades brasileiras no dia seguinte conforme o Requerente havia prometido fazer se eles não restituíssem o dinheiro do seu amigo FF. 69. Convém lembrar que o dia 14/05/2019 era o último dia do prazo dado pelo Requerente para resolver a situação. 70. Ocorre que as coisas não correram como o agressor havia imaginado e o Requerente reagiu de forma contrária as espectativas dele. 71. DD pretendia ter dissuadido o Requerente de denunciar seus cúmplices no Brasil, entretanto como não logrou êxito no primeiro confronto, resolveu partir para um segundo, ou seja, persistiu no seu intento criminoso, mas desta vez de forma mais contundente. 72. Como as palavras não bastaram, o agressor parte para o ataque físico, desta vez com intenção clara de matar o Requerente e sua família que estavam encurralados dentro da cozinha. 73. A intenção do DD era sim matar o Requerente e provavelmente em sua família e se este não tivesse agido da forma como agiu no segundo confronto, teria morrido e tido sua esposa e filha bebe mortas por esse homem (DD) extremamente agressivo e violento como podemos ver nas imagens do sistema de vigilância. 74. Pelas imagens resta evidente que o Requerente agiu em legítima defesa sua, de sua esposa e de sua bebé, isso sem falar no seu património que estava sendo destruído pelo agressor. 75. Destaca-se ainda que a interpretação do Tribunal a quo é contraditória com a sua própria argumentação, pois assim se manifesta sobre os requisitos da legitima defesa: São seus requisitos (cfr Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 5a edição, 1990, a página 131): A existência de uma agressão a quaisquer interesses. sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro, agressão essa que deve ser atual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de o fazer; 76. Como se vê na transcrição feita acima, a legitima defesa seria possível inclusive para a defesa do património, que no caso em tela estava sob ataque, basta ver as imagens da montra, o que dizer da vida do próprio Requerente e de sua bebé? 77. Mas o Tribunal a quo prossegue em sua argumentação sobre os requisitos da legitima defesa: c) "Animus deffendendi" ou seja o intuito de defesa por parte do defendente. Por outro lado não se assumirá como requisito da legítima defesa a existência de desproporcionaldiade entre o bem agredido e o defendido, devendo aqui entender-se não ser exigível do defendente uma rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo. O mesmo se diga quanto a necessidade racional do meio empregado, requisito este que, não devendo ser afastado, deve antes ser visto sob a perspetiva do excesso de legítima defesa, de que trata o artigo 33° do mesmo Código. 78. Ora pois, se o Tribunal a quo entende que para a configuração do animus deffendendi não é exigível do defendente uma rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo e que o mesmo se aplica quanto a necessidade racional do meio empregado e que este deve ser considerado para efeitos de verificação de excesso de legítima defesa, por que não aplicou tal entendimento em favor do autor? 79. Pois bem, no caso em tela, estamos diante de uma típica situação de inexigibilidade de conduta diversa. 80. Não era suposto, que o Requerente fizesse uma reflexão capaz de lhe acalmar os ânimos e que o fizesse se sentir seguro a ponto de não reagir imediatamente depois de ter sofrido uma agressão que colocou a vida de sua filhinha e esposa em risco. Ninguém teria esse controle emocional. 81. Como poderia ele em um momento de medo/pânico ter a frieza de se refrear quando ele estava sozinho para proteger a si e a sua família enquanto o agressor estava acompanhado com um outro homem e poderia ter se apossado de uma das facas que estavam no chão da entrada da cozinha ou até mesmo da faca que o Requerente deixou cair no chão em frente ao balcão frigorífico durante o primeiro momento? 82. Ressalta-se que o Requerente estava encurralado na cozinha e não tinha visão do que acontecia no salão, como poderia ele saber que o BB não tinha se juntado novamente ao DD? 83. Como saberia o Requerente se naquele tempo que ele estava refugiado na cozinha, DD não teria pegado uma arma na sua viatura e voltado armado para consumar a ameaça de morte? Nós sabemos por que temos as imagens para ver, mas o Requerente não as tinha no momento, pois estava na cozinha. 84. O Tribunal a quo com o devido respeito, interpretou mal outro facto: No entanto, tal ação é facilmente ripostada pelo Arguido, o qual consegue agarrar tal objeto, desapossando, pois, DD de qualquer instrumento apto a fazer perigar aquele ou seus familiares (isto face à ausência de disponibilidade, pelo mesmo, de qualquer arma ou objeto passível de ser utilizado como tal). 85. Não é verdade que o agressor ficou desapossado de qualquer arma. Ele poderia ter agarrado em qualquer uma das várias outras cadeiras de ferro e madeira maciça que se encontravam presentes e disponíveis a sua frente, ou da faca que havia caído da mão do Requerente durante o primeiro momento, ou ainda, ter pego uma das duas facas que sabemos que ainda estavam no chão da entrada da cozinha. 86. O Requerente agiu em legítima defesa e, por essa razão, não deveria estar preso. 87. Repete-se que a presente alegação de legítima defesa não vem amparada apenas em palavras, e no depoimento do Requerente ou de testemunhas, mas num registo de vídeo com excelente qualidade de imagem (apesar de infelizmente sem áudio), mas que teria tido partes da falta de áudio resolvida se o Tribunal a quo tivesse deferido a diligência requerida pelo aqui Requerente, para se fazer a leitura labial das imagens do registro de vídeo. 88. O vídeo permite a perfeita noção dos factos, mas apesar disso, o douto Tribunal a quo, cometeu um erro notório na apreciação da prova. 89. Esses factos demonstram de forma cabal que está caracterizada a legítima defesa e que deste modo, estamos diante de um caso em que se faz necessária a decretação de exclusão de ilicitude. 90. Atendendo às circunstâncias referenciadas, verifica-se que o Requerente agiu em legítima defesa, nos termos do artigo 32.° do CP. 91. De acordo com o referido preceito legal, os pressupostos da legítima defesa são: i) existência de uma agressão actual e ilícita de interesses do agente ou de terceiros protegidos juridicamente; ii) que o comportamento do agente se revela necessário para repelir a agressão; iii) o conhecimento desta e a vontade de se defender da primeira. 92. In casu, entende-se que estão previstos todo os referidos pressupostos, ou seja, 93. Existe uma agressão atual e ilícita no momento em que a vitima DD começa por destruir o património do Requerente e na sequência, encurrala num espaço fechado e diminuto, o Arguido e sua mulher e filha bebé, a proferir ameaças de morte ("agora é que vou matar você seu filho da puta e a sua família"), pega numa cadeira de ferro e de madeira maciça, levanta-a sobre a cabeça e dá balanço para atingir os que estão na sua frente. 94. O comportamento do Requerente se revelou necessário para repelir o perigo, e para que ele salvasse sua vida e de sua família e lograsse abrir caminho para a fuga de sua esposa e da filha bebé e para preservar seu património, considerando-se que eles estavam encurralados, conforme imagem que se vê às fls. 367 verso. O agressor poderia ter se apossado de uma das facas existentes no chão da entrada da cozinha e provocado a morte do Requerente e sua família. 95. Por medida de extrema cautela, ainda que se entenda que os sete golpes de faca caracterizam excesso apesar de terem sido aparentemente necessários para repelir o perigo e possibilitar a fuga de sua esposa e filha bebé e de o agressor continuar em luta corporal durante todo o tempo até mesmo após os sete golpes, o Requerente teria direito a benesse prevista no artigo 33, n.° 2 do Código Penal: o agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis. 96. Se for considerado que houve excesso, não é possível deixar de reconhecer que o Requerente agiu por perturbação provocada pela vítima e por medo de que esta matasse sua esposa e filha bebé. 97. É da maior importância realçar que o Requerente atuou imbuído de emoções fortes e de grande perturbação e medo de perder a sua vida e da sua família, que estavam presentes, àquela hora da madrugada, perante dois indivíduos desconhecidos, situação que deve ser levada em conta, e, por isso, não deve este ser punido, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 33.° do CP. 98. É absolutamente incompreensível a conclusão do Tribunal a quo: E reconhece-se, em termos mais expansivos face aos relatados por tal testemunha, poder ter dado repetição a tal "convite"/provocação, considerando a repetição corporal a que deu azo, colocando-se por mais do que uma vez de braço em riste, na direção do espaço onde se refugiava o Arguido. O que não cremos demonstrar-se, também neste seguimento factual - e no seguimento do que supra se vem deixado dito, - de forma clara e inequívoca, é que haja no mesmo, o falecido DD dirigido ao Arguido uma qualquer expressão passível de enquadrar-se na verbalização de uma ameaça de morte, dirigida ao Arguido, quer aos seus familiares. 99. Esta conclusão não faz qualquer sentido, o Tribunal a quo reconhece que o agressor por diversas vezes esteve com o braço em riste em direção ao espaço no qual o Arguido se refugiava. 100. Se vermos as imagens, além dos gritos, o agressor arremessa uma cadeira e um extintor, é obvio que o agressor estava furioso. Como é possível, com todos esses factos, o Tribunal a quo entender que não há indícios de que o agressor não ameaçou o Requerente e sua família de morte? 101. O que significa a linguagem corporal do agressor? O que ele gritava enquanto por dez vezes exibiu o braço em riste e arremessou objetos em direção a cozinha? 102. O que o agressor estaria gritando daquela maneira? É evidente que ele estava ameaçando o Requerente. Não é possível imaginar que a postura adotada pelo agressor poderia vir acompanhada de qualquer outra fala que não incluísse ameaças de morte. 103. Ademais, o Tribunal a quo reconheceu às fls. 66 do acórdão que "o comportamento da vítima, o qual se enquadrou em plano de desafio e provocação prévios, nessa medida contribuindo também ele, de forma decisiva, para o desfecho que o tomou por vítima". 104. Evidencia-se ainda mais a ocorrência da legitima defesa se verificarmos o entendimento do Tribunal a quo em relação a atuação da vítima no que concerne ao pedido de indemnização civil às fls. 71 da sentença, para depois confrontarmos com o tratamento antagónico aplicado na esfera penal. Para reduzir o valor da indemnização civil pretendida pela viúva do agressor, o Tribunal a quo assim fundamentou: No entanto, na fixação do valor indemnizatório a firmar, não poderá o Tribunal deixar de também atender ao circunstancialismo em que vem a ocorrer a sua morte, o qual se mostra marcado por um contributo decisivo e em plano provocatório da própria vítima, a qual se vem a colocar ativa e provocativamente no plano conflitual que, num segmento final, vem a dita, tal desfecho, revelando, pois, ele próprio, uma posição algo temerária e desafiadora da própria morte. 105. No excerto acima, o Tribunal reconhece que o agressor foi responsável por provocar a própria morte e por isso reduz a pretensão de indemnização da esposa do agressor, mas na esfera penal, adotou entendimento completamente oposto. 106. Em suma: 107. O Tribunal a quo reconheceu a existência de dois conflitos em perspetiva de análise crítica, às fls. 36 do acórdão e, que a morte do agressor ocorreu no segundo conflito, que foi iniciado ativamente pelo próprio agressor. 108. O Tribunal a quo entende que para a configuração do animus deffendendi não é exigível do defendente uma rápida e minuciosa valoração dos bens em jogo e que o mesmo se aplica quanto a necessidade racional do meio empregado e que este deve ser considerado para efeitos de verificação de excesso de legítima defesa. 109. Também entende que a legitima defesa pode ser exercida para a defesa do património, 110. Além do mais, deu por provado que, 111. no primeiro conflito i) o requerente não desferiu nenhum golpe de faca na vítima/agressor, mesmo tendo levado um murro na cara, 112. no segundo conflito, ii) este foi iniciado pela vítima/agressor, que ameaçou de morte o requerente com braço em riste por várias vezes, iii), depois destruiu o património do requerente e depois, iv) fazendo uso de uma cadeira de ferro e madeira maciça se dirigiu a um local no qual o requerente estava encurralado com sua família partiu para o ataque, desferindo um golpe que se não tivesse sido intercetado pelo braço do requerente poderia ter acertado a cabeça da bebé de 17 meses e a matado e que, v) só depois desse momento o requerente passou a desferir golpes de faca, o fazendo com a intenção de repelir o perigo e de permitir a saída de sua família daquela situação de encurralamento sob o ataque do agressor. 113. Apesar de tudo isso, o requerente foi ilegalmente condenado a uma pena de 12 anos de prisão mesmo que a lei não permita que uma pessoa que cometa um fato típico em legítima defesa seja punido. 114. A bem da verdade, esta ação sequer deveria ter sido iniciada. 115. O correto seria que anterior defensor tivesse requerido a abertura de instrução e demonstrado já naquela seara a configuração da legítima defesa, entretanto, tal providência não foi adotada, o processo seguiu seus tramites e teve este desfecho terrivelmente injusto. CONCLUSÕES I. Pelo exposto, resta evidente que o Requerente se encontra ilegalmente preso há mais de um ano pois, nos termos da alínea b) do art. 222°, do CPP sua prisão é "motivada por facto pelo qual a lei não permite", em clara violação do artigo 27°, da CRP. II. Assim, ante a configuração da legitima defesa, deve ser declarada ilegal a prisão preventiva e ordenada a sua imediata libertação, nos termos do art. 31, n° 3, da CRP e dos arts. 222° e 223°, n° 4, al. d), do CPP. III. Houve erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito, ao se determinar a prisão e inclusive condenar alguém que agiu em legítima defesa. O Requerente não deveria ter sequer sido processado, muito menos condenado, não há justa causa para a prisão. IV. Requer que o vídeo dos factos seja assistido em audiência. Nestes termos e nos melhores de direito deve ser declarada a ilegalidade da prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do Requerente. Fazendo-se assim, a habitual e necessária justiça. ***** O Exmo. Juiz no Juízo Central Criminal de Setúbal-Juiz 2, Comarca de Setúbal, exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nestes termos (em transcrição integral): “Registe e autue como habeas corpus. Vem o arguido AA apresentar nos autos pedido de habeas corpus, que endereça ao Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, invocando para tanto: - que o arguido se encontra ilegalmente sujeito à medida coativa de prisão preventiva na medida em que os factos que ditaram a sua condenação ocorreram, segundo argumenta, no quadro de atuação em legítima defesa, o que o Tribunal entendeu dar por não demonstrado, condenando-o na pena de 12 (doze) anos de prisão efetiva; - que o arguido interpôs dois recursos do acórdão condenatório, um dos quais visou sindicar o mérito da decisão condenatória, e outro procurando incidir quanto ao reexame legal da medida coativa de prisão preventiva ali firmado (renovando a aplicação da prisão preventiva já vigente); - que o presente Tribunal, pese embora admitindo os dois recursos interpostos, determinou uma subida única dos autos ao Tribunal de recurso (o Tribunal da Relação de Évora), invalidando uma apreciação mais célere do recurso que visava fazer cessar a prisão preventiva do arguido; - que, por outro lado, tendo o arguido, em plano complementar à interposição dos ditos recursos, já admitidos, requerido o desagravamento do estatuto coativo a que se mostra sujeito, com sujeição do arguido a obrigação de permanência na habitação sob monitorização eletrónica, viu tal pretensão indeferida pelo presente Tribunal. Posto isto: Estatui o artigo 222.° do CPP, sob a epígrafe "Habeas corpus em virtude de prisão ilegal", que "I - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus. 2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial". Por outro lado, define o artigo 223.° do mesmo normativo que "1 - A petição é enviada imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efetuada ou se mantém a prisão. 2 - Se da informação constar que a prisão se mantém, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça convoca a secção criminal, que delibera nos oito dias subsequentes, notificando o Ministério Público e o defensor e nomeando este, se não estiver já constituído. São correspondentemente aplicáveis os artigos 424. ° e 435. °. 3 - O relator faz uma exposição da petição e da resposta, após o que ê concedida a palavra, por quinze minutos, ao Ministério Público e ao defensor; seguidamente, a secção reúne para deliberação, a qual é imediatamente tornada pública. 4 - A deliberação pode ser tomada no sentido de: a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante; b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão; c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata. 5 - Tendo sido ordenadas averiguações, nos termos da alínea b) do número anterior, é o relatório apresentado à secção criminal, afim de ser tomada a decisão que ao caso couber dentro do prazo de oito dias. 6 - Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6UC e 30 UC". Importando o juízo final de aferição da (in)existência de uma situação de prisão ilegal ao Supremo Tribunal de Justiça, importa a esta 1a instância remeter estes autos àquele Tribunal, acompanhado de informação quanto às condições de prisão do arguido, e a acompanhar dos elementos informativos relevantes para a decisão. Para o efeito, deverá considerar-se que: - o arguido encontra-se sujeito a medida coativa de prisão preventiva desde 16/05/2019 (cfr. auto de interrogatório de fls. 89 a 100); - foi promovido o reexame legal obrigatório de tal medida, mantendo-se vigente a referida medida coativa; - após julgamento, foi o arguido condenado, em 17/04/2020, pelo cometimento, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131° do Código Penal, numa pena de prisão efetiva de 12 (doze) anos (cfr. acórdão de fls. 498 a 577, ata de leitura de fls. 578 a 580 e termo de depósito de fls. 581); - naquela decisão, que entendeu afastar a verificação de uma qualquer causa de exclusão de culpa ou ilicitude (designadamente o cenário de legítima defesa aventada pelo arguido em contestação), manteve-se a medida coativa de prisão preventiva, defínindo-se o limite máximo desta última (com prolação de acórdão mas sem certificação do trânsito), à data de 16/05/2021 (2 anos); - o arguido apresentou, em tempo, os dois recursos atrás referenciados (constantes de fls.590 a 618 e 619 a 629; - simultaneamente, e de forma algo contraditória (face à apresentação e teor de um dos recursos subscritos) formulou nos autos pedido de alteração/desagravamento do estatuto coativo do arguido (fls. 630 a 633); - quanto a tais recursos e requerimento pronunciou-se o Tribunal na promoção de fls. 634 e no despacho de 636 a 639, decidindo quanto à admissão dos recursos, porém sujeitando-os a tramitação unitária, e indeferindo a alteração do estatuto coativo requerida; - mostra-se, face à data de admissão do recurso, a correr termos prazo para a apresentação de resposta, devendo os autos, em devido tempo, ser remetidos para apreciação junto de Tribunal superior; - sem prejuízo, veio o arguido, na sequência da notificação de tal despacho, a apresentar, em plano de imediatismo, o presente habeas corpus. * Em face do evidenciado, julga-se não estar verificada qualquer circunstância anómala ou ilegal da prisão a que o arguido se mostra sujeito, na medida em que o arguido se encontra sujeito a prisão preventiva, aplicada e mantida por decisões judiciais devidamente fundamentadas (última das quais em sede de acórdão final), sem que se mostrem esgotados os prazos máximos legais. Por outro lado, a apreciação que o arguido procurar ver concretizada em sede do presente habeas corpus, em redor da (não) verificação de situação de legítima defesa, integra matéria sujeita a apreciação (necessariamente factual) em sede de acórdão proferido por esta Ia instância, e que o arguido visa sindicar no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, já admitido nos autos, porém pendente de decisão. Assim, e salvo melhor opinião, não integra o presente incidente nenhum dos fundamentos legais para o decretamento do habeas corpus. * Remeta, de imediato, o presente incidente ao Supremo Tribunal de Justiça, acompanhado do presente despacho/informação e dos elementos documentais a que atrás se faz referência”. *** Os autos foram instruídos com os elementos documentais indicados na douta informação. *** Convocada a Secção Criminal e notificado o Ministério Público e o Defensor, teve lugar a audiência. *** Cumpre apreciar e decidir. *** Constam dos autos – documentos juntos e teor da informação prestada – os seguintes elementos fácticos que interessam para a decisão da providência requerida: I – Por acórdão do Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Setúbal - Juiz 2 - da Comarca de Setúbal, proferido no processo comum colectivo n.º 528/19.9PCSTB, foi o arguido condenado, em 17-04-2020, pelo cometimento, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.° do Código Penal, na pena de prisão de 12 anos. II – Naquela decisão, que entendeu afastar a verificação de uma qualquer causa de exclusão de culpa ou ilicitude (designadamente a invocada legítima defesa pelo arguido em contestação), manteve-se a medida coactiva de prisão preventiva, defínindo-se o limite máximo desta última (com prolação de acórdão mas sem certificação do trânsito), à data de 16-05-2021 (2 anos); III – O arguido apresentou, em tempo, dois recursos, sendo nos termos do artigo 219.º do CPP e outro impugnando o acórdão condenatório. IV – O arguido está preso preventivamente desde 16 de Maio de 2019, tendo sido efectuados os reexames obrigatórios. Apreciando. A providência de habeas corpus constitui uma garantia do direito à liberdade com assento na Lei Fundamental que nos rege. Incluída no Capítulo I «Direitos, liberdades e garantias pessoais», do Título II “Direitos, liberdades e garantias”, da Parte I “Direitos e deveres fundamentais”, a providência de habeas corpus está prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece: 1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente. 2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos. 3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória. O texto do n.º 1 foi alterado/revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (Diário da República, I-A Série, n.º 218/97, de 20 de Setembro de 1997) e que pelo artigo 14.º alterou a redacção do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares. Mas como assinala Faria Costa em Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume 75, Coimbra, 1999, pág. 549, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma. Por isso, o habeas corpus vale também e em toda a linha perante a jurisdição militar. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a págs. 509, o n.º 2 do artigo 31.º reconhece uma espécie de acção popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º - 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer a providência em favor do detido ou preso. Além de corporizar o objectivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa acção popular sublinha o valor constitucional objectivo do direito à liberdade. A providência em causa é uma garantia fundamental privilegiada (no sentido de que se trata de um direito subjectivo «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal – neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 296) e citando este e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, a figura do habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo - saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional americano. A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 35.043, de 20 de Outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de Dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de Maio de 1976. A Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro - lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, a cujo abrigo foi elaborado o Código de Processo Penal vigente - estabeleceu a garantia no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39 – “ (…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias”. Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade. Sendo o direito à liberdade um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal. Ou, para utilizar a expressão de Faria Costa, apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, in CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 202, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder». A providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do artigo 220.º do CPP e quanto ao habeas corpus em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. Sendo a prisão efectiva e actual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, pág. 297) há-de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão proveniente de (únicas hipóteses de causas de ilegalidade da prisão): a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. Analisando. No essencial, no caso concreto, o que está em discussão é a questão de saber se a privação da liberdade do peticionante é ilegal. O requerente invoca o disposto no artigo 222.º, n.º 2, alínea b), do CPP, ou seja, ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite. A providência do habeas corpus tem lugar quando alguém se encontra ilegalmente preso, quer por virtude de prisão preventiva, quer em razão de prisão resultante de pena constante da sentença condenatória, tratando-se de meio expedito, célere, destinado a pôr cobro a essa situação o mais depressa possível. A providência do habeas corpus tem lugar quando alguém se encontra ilegalmente preso, tratando-se de meio expedito, célere, destinado a pôr cobro a essa situação o mais depressa possível. Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 27-10-2010, proferido no processo n.º 108/06.9SHLSB-AH.S1-3.ª Secção, o processo de habeas corpus assume-se como de natureza residual, excepcional, e de via reduzida: o seu âmbito restringe-se à apreciação da ilegalidade da prisão, por constatação e só dos fundamentos taxativamente enunciados no artigo 222.º, n.º 2, do CPP. Reserva-se-lhe a teleologia de reacção contra a prisão ilegal, ordenada ou mantida de forma grosseira, abusiva, por chocante erro de declaração enunciativa dos seus pressupostos. Como referiu o acórdão de 8 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 115/13.5YFLSB.S1-3.ª Secção “Este fundamento abrange uma multiplicidade de situações, nomeadamente: a não punibilidade dos factos imputados ao preso, a prescrição da pena, a amnistia da infracção imputada ou o perdão da respectiva pena, a inimputabilidade do preso, a falta de trânsito da decisão condenatória, a inadmissibilidade legal de prisão preventiva. O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso”. (Sublinhados nossos). A definição dos limites de intervenção ao abrigo da providência de habeas corpus foi abordada de forma muito clara em 1990, no acórdão de 10 de Outubro, proferido no processo n.º 29/90, in Colectânea de Jurisprudência 1990, tomo 4, pág. 28 e BMJ n.º 400, pág. 546, onde se ponderou: «A providência de habeas corpus tem a natureza de medida com a finalidade de resolver de imediato situações de prisão ilegal, e não de meio de reapreciação dos motivos da decisão proferida pela entidade competente. Essa função, de meio de obter a reforma da decisão injusta, de decisão inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento, compete aos recursos. O STJ não pode substituir-se ao tribunal ou ao juiz que detém a jurisdição sobre o processo e não pode intrometer-se numa função reservada aos mesmos, consistindo as suas funções em controlar se a prisão se situa e se está a ser cumprida dentro dos limites da decisão judicial que a aplicou. Existindo uma decisão judicial, ela permanece válida até ser revogada em recurso. Por isso, a providência de habeas corpus apenas pode ser utilizada em situações diferentes. De contrário, estava a criar-se um novo grau de jurisdição, não contemplada. Daí que, quando o despacho de um juiz decreta a prisão baseado em fundamentos que a lei permite, o único meio de impugnação, por se pretender entender que tal fundamento se não encontra preenchido face aos elementos constantes do processo, é o recurso. Pode ao mesmo tempo requerer-se a providência, mas com base em outras razões que não as que foram objecto do recurso». (Sublinhados nossos). E como se assinala no acórdão de 26 de Agosto de 2008, proferido no processo n.º 2555/08-3.ª Secção, a providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis. Como este Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a decidir, a providência não pode ser utilizada para a sindicação de outros motivos ou fundamentos susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão, para além dos taxativamente previstos na lei, designadamente para apreciar a correcção das decisões judiciais em que aquela é ordenada. Neste sentido, vejam-se o acórdão de 30 de Abril de 2008, processo n.º 1504/08-5.ª Secção e acórdãos desta 3.ª Secção, de 26 de Setembro de 2007, processo n.º 3473/07; de 24 de Outubro de 2007, processo n.º 3976/07; de 25 de Julho de 2008, nos processos n.ºs 2532/08 e 2526/08; de 10 de Setembro de 2008, por nós relatado no processo n.º 2912/08; de 7 de Janeiro de 2009, por nós relatado no processo n.º 4154/08; de 4 de Fevereiro de 2009, processo n.º 325/09; de 25 de Novembro de 2009, por nós relatado no processo n.º 694/09.1JDLSB-B.S1 e de 31 de Março de 2011, por nós relatado no processo n.º 38/11.2YFLSB.S1. Como se pode ler no acórdão do STJ, de 16 de Julho de 2003, proferido no processo n.º 2860/03-3.ª Secção, de que houve recurso para o Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 423/2003, de 24 de Setembro de 2003-3.ª Secção, proferido no processo n.º 571/2003, publicado no Diário da República, II Série, n.º 89, de 15 de Abril de 2004, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 57.º, págs. 343 e ss. - «Os fundamentos da providência revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)». Aditando ainda o seguinte: «Deste controlo estão afastadas todas as condicionantes, procedimentos, avaliação prudencial segundo juízos de facto sobre a verificação de pressupostos, condições, intensidade e disponibilidade de utilização in concreto dos meios de impugnação judicial». No acórdão de 5 de Maio de 2009, proferido no processo n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, desta Secção diz-se: “(…), no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas têm de se aceitar os efeitos que os diversos actos produzam num determinado momento – princípio da actualidade – retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”. Especifica que a providência “não pode decidir sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação” (...) “A medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação”. (Sublinhados nossos). A providência de habeas corpus não é o meio próprio para sindicar as decisões sobre medidas de coacção privativas de liberdade, ou que com elas se relacionem directamente; a medida em causa não se destina a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade, ou a sindicar eventuais nulidades, insanáveis, ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões, ou alegados erros de julgamento de matéria de facto. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou erro grosseiro) enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. Neste sentido que é dominante, cfr., para além dos já citados, os acórdãos de 21 de Setembro de 2011, processo n.º 96/11.0YFLSB; de 9 de Fevereiro de 2012, processo n.º 927/1999.0JDLSB-X.S1; de 6 de Fevereiro de 2013, processo n.º 109/11.5SVLSB.S1; de 13 de Fevereiro de 2013, processo n.º 311/10.7TAGRD-A.S1; de 10 de Abril de 2013, processo n.º 992/12.7GCALM-A.L1.S1; de 17 de Abril de 2013, processo n.º 308/10.7JELSB-F.S1; de 19 de Junho de 2013, processo n.º 69/13.8YFLSB.S1; de 2 de Agosto de 2013, processo n.º 82/13.5YFLSB.S1; de 25 de Setembro de 2013, processo n.º 964/07.3JAPRT-B.S1 e de 8 de Novembro de 2013, processo n.º 115/13.3JAPRT-B.S1, todos desta Secção, podendo ler-se no último: “Esta providência não constitui, assim, um meio de impugnação de decisões judiciais, uma espécie de sucedâneo “abreviado” dos recursos ordinários, ou mesmo um recurso “subsidiário”, antes um mecanismo expedito que visa pôr fim imediato às situações de privação da liberdade que se comprove serem manifestamente ilegais, por ser a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentalmente recolhidos no âmbito da providência. Não é, pois, o habeas corpus o meio próprio de impugnar as decisões processuais ou de arguir nulidades e irregularidades eventualmente cometidas no processo, ou para apreciar a correção da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, decisões essas cujo meio adequado de impugnação é o recurso ordinário. O habeas corpus, insiste-se, não pode revogar ou modificar decisões, ou suprir deficiências ou omissões do processo. Pode, sim, e exclusivamente, apreciar se existe, ou não, uma privação ilegal da liberdade motivada por algum dos fundamentos legalmente previstos para a concessão de habeas corpus, e, em consequência, determinar, ou não, a libertação imediata do recluso. O que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso, como vimos”. (Realces nossos). No mesmo sentido, os acórdãos desta Secção de 30 de Dezembro de 2013, processo n.º 379/13.4TXPRT-G.S1, de 25-06-2014, processo n.º 35/14.6YFLSB.S1, de 08-08-2014, processo n.º 1042/13.1SELSB-B.S1, de 20-11-2014, processo n.º 59/08.2PFBRR-A.S1, de 21-01-2015, processos n.º 9736/08.7TDPRT e n.º 9/15.0YFLSB.S1, de 6-05-2015, processo n.º 53/15.7YFLSB.S1, de 17-06-2015, processo n.º 122/13.8TELSB-P.S1, de 28-10-2015, processo n.º 95/14.0T9STS-E.A.S2, de 5-08-2016, processos n.º 51/16.3YFLSB.S1 e 52/16.1YFLSB.S1, de 4-01-2017, processo n.º 109/16.9GBMDR-B.S1, em caso de violência doméstica, de 15-02-2017, processo n.º 6/17.0YFLSB.S1-3.ª, de 1-08-2017, por nós relatados nos processos n.º 796/11.4PAVNG-B.S1 e processo n.º 837/09.5PHLRS-A.S1, de 3-01-2018, processos n.º 217/15.3GCSAT-A.S1 e 104/17.0YFLSB e de 21-02-2018, por nós relatado no processo n.º 418/11.3GCOVR-B.S1, de 19-07-2018, processo n.º 14/17.1GCFAR-K.S1, de 20-11-2019, por nós relatado no processo n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1 e de 6-01-2020, igualmente por nós relatado no processo n.º 48/09.0GEABT-B.S1 Revertendo ao caso concreto. Vejamos se a situação invocada cabe na previsão da referida alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, se a pretensão do requerente se enquadra em tal preceito. No caso presente, o que está em discussão é a questão de saber se a prisão do requerente é ilegal, certo sendo, como já referimos, que o peticionante indica o fundamento previsto no artigo 222.º, n.º 2, alínea b), do CPP - Ser a prisão motivada por facto pelo qual a lei a não permite. O facto invocado não cabe, não se enquadra, neste fundamento, como facilmente se deduz de tudo quanto foi exposto. Todo o extenso articulado anda à volta da invocação de legítima defesa, não atendida em sede de julgamento, sendo invocado erro grosseiro e notório de julgamento no ponto 63 e erro notório na apreciação da prova, como no ponto 88, entendendo o requerente ser a providência uma espécie de instância de recurso, que não é. Decididamente, não é. Chega o requerente a pretender a visualização de um vídeo, meio de prova dos conflitos daquela noite. A presente providência não se destina a sindicar a bondade do acórdão condenatório na apreciação da prova e na conformação da matéria de facto. E como é bem de ver, a intenção de matar ou a legítima defesa são matéria de facto, domínio em princípio vedado ao Supremo Tribunal de Justiça. A determinação da intenção do agente consubstancia pronúncia sobre matéria de facto, encontrando-se, por isso, subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça – assim tem entendido este Supremo Tribunal desde o acórdão de 11-12-1968, proferido no processo n.º 32.796, in BMJ n.º 182, pág. 336, até ao acórdão de 25-09-2019, por nós relatado no processo n.º 60/17.5JAFAR.E1.S1. A pretensão do requerente constitui assim um impossível processual. Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o fundamento previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, invocado pelo requerente, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP. O artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa. Sendo assim, é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal. Decisão Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por infundada, a providência de habeas corpus requerida pelo peticionante AA. Custas pelo requerente, com taxa de justiça de três unidades de conta, nos termos do n.º 9 do artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais - Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, rectificada com a Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, e pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro), o qual aprovou – artigo 18.º – o citado Regulamento, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, sendo a Tabela actualizada de acordo com o Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril, sem prejuízo da isenção subjectiva que venha a ser detectada, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea j), do mesmo diploma. Mantém-se em vigor o valor da UC (Unidade de conta) vigente em 2019, conforme estabelece o artigo 210.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março (Orçamento do Estado para 2020), publicada no Diário da República, 1.ª série, de 31-03-2020. Tal valor é de 102,00 €, que se tem mantido inalterado desde 20 de Abril de 2009. Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Manuel Augusto de Matos. Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 3 de Junho de 2020 Raul Borges (Relator) Pires da Graça (Presidente da Secção) |