Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
Descritores: | FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA USUCAPIÃO AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA PROPRIEDADE | ||
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Data do Acordão: | 05/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. — A aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo — ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fraccionamento, dos prédios. II. — O possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes tenha sido autonomizado a despeito das normas de direito do urbanismo. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. — RELATÓRIO 1. O Ministério Público instaurou a presente ação de processo comum contra AA, BB e marido, CC, DD, EE e FF pedindo que se declare a nulidade do contrato de partilha identificado, por violação das regras do fracionamento e loteamento urbano, bem como se declare o cancelamento de todas as inscrições registrais posteriores, inerentes àquele. 2. As Rés AA e BB contestaram e deduziram reconvenção, pedindo que seja reconhecida a aquisição originária do direito de propriedade sobre os prédios descritos, por usucapião. 3. O Autor respondeu à reconvenção, pugnando pela sua improcedência. 4. O Tribunal de 1.ª instância julgou improcedente a acção e procedente a reconvenção. 5. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é o seguinte: Por tudo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e a reconvenção procedente, e, em consequência, decide-se: a) não declarar verificada a nulidade do contrato de partilha identificado, por violação das regras do fracionamento e loteamento urbano; b) reconhecer o direito de propriedade da ré AA, adquirido por usucapião, do prédio urbano pertencente à freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo 1492, do concelho ..., com a superfície coberta de 41,47 m2, logradouro com 118 m2, totalizando a área total de 160,26 m2; e do prédio rústico com a área total de 6.200 m2 que veio a dar origem a dois prédios na medida em que este prédio se acha separado fisicamente por uma estrada – o prédio inscrito na matriz sob o artigo 90 com a área de 5.920 m2 , e o prédio inscrito na matriz sob o artigo 89, com a área de 280 m2; c) reconhecer o direito de propriedade da ré BB, adquirido por usucapião, do prédio rústico pertencente à freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 88.º da secção I, com a área de 5.080 m2 (cinco mil e oitenta metros quadrados). 6. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação. 7. O Tribunal da Relação confirmou, por unanimidade, o acórdão recorrido. 8. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de revista. 9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões: C. CONCLUSÕES. A 1 - (Fundamentos da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Évora) 1.ª- O presente recurso é admissível e deve ser admitido como recurso de revista excecional nos termos do disposto nos artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3, 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil. 2.ª- Tendo o A e ora recorrente (Ministério Público) legitimidade, interesse em agir e estando em tempo, não se conforma com o acórdão recorrido, que decidiu confirmar a sentença da 1.ª instância e manteve a improcedência da ação intentada pelo Ministério Público (dupla conforme) – estando verificados os demais requisitos da recorribilidade, quer quanto à alçada, quer quanto à natureza da decisão recorrida, que conheceu do mérito da causa –, a qual, ainda, resolveu a questão fundamental de direito, consistente em saber se a usucapião prevalece sobre normas de carácter imperativo, designadamente as que proíbem o fracionamento ilegal de prédios rústicos ou proíbem loteamentos ilegais, sancionados com a nulidade dos atos jurídicos que lhe subjazem, tendo decidido no sentido afirmativo, ou seja, que “O incumprimento das regras de natureza urbanística no que diz respeito ao fracionamento, mormente por falta do devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em que se decompõe o imóvel, desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a usucapião”. 3.ª- Estão também verificados os requisitos da revista excecional exigidos pelas normas citadas, pois estamos perante "interesses de particular relevância social", atenta a natureza da usucapião como forma de aquisição originária da propriedade e os valores comprimidos pela sua sobreposição à proibição do fracionamento ilegal em violação das regras atinentes ao fracionamento de prédios rústicos e às relativas aos loteamentos urbanos, por respeitarem a direitos ou interesses comunitários, coletivos ou difusos (em sentido amplo) em relação ao ambiente, à qualidade de vida e ao ordenamento do território. 4.ª- Trata-se, assim, de questão com relevância jurídica manifesta, que necessita de ser apreciada "para uma melhor aplicação do direito", como nas alegações se demonstrou e se vai refletir nas presentes conclusões, a que se adita a recente jurisprudência das Relações, designadamente do Tribunal da Relação de Guimarães que, nos acórdãos de 22–10–2020, no Processo n.º 4165/18.7T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado e de 5–12–2019, no processo n.º 1167/18.7T8PTL.G1, disponível em www.dgsi.pt, também já transitado em julgado, se acolheu posição contrária ao do acórdão recorrido, e deu nova visão à resolução da questão em apreço, por via da alteração do artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27–8, operada pela Lei n.º 89/2019, de 3–9; que considerou lei interpretativa e, por via dessa natureza, pôs termo à patente diversidade de decisões sobre a questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no artigo 1376.º, n.º 1 do Código Civil. 5.ª- Na verdade, a jurisprudência, quer das Relações, quer do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se dividida quanto à apreciação de situações idênticas às dos autos, tendo vindo a ser proferidos acórdãos contraditórios, ainda não sanados por acórdão uniformizador, não sendo legítimo considerar que exista uma corrente jurisprudencial consolidada num ou noutro sentido, impondo–se assim atalhar as constantes decisões contraditórias que nas instâncias têm surgido e que desatendem a valores fundamentais na aplicação do Direito: o tratamento igualitário de casos análogos e o respeito mínimo da correspondência entre as soluções da questão em confronto com os textos legais pertinentes e os valores subjacentes aos regimes legais que proíbem o fracionamento de prédios rústicos em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país, ou que, por via do mesmo fracionamento, violam regras urbanísticas (cf. artigos 8.º e 9.º do Código Civil). 6.ª- Entre muitos outros, pelo Tribunal da Relação de Évora foi proferido acórdão em 27–5– 2021, no processo n.º 980/19.2T8TNV.E1, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado, em que se acolheu posição contrária à do acórdão ora recorrido, que, apreciando um loteamento clandestino e correspondente fracionamento de prédio rústico, ditou o seguinte: “Nos termos do artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil, os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país.”. 7.ª- É esse o acórdão único que, relativamente à questão que motiva a apresentação desta revista excecional, se apresenta, para se sustentar nele os requisitos exigidos pelo artigo 672.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil, pois enquanto acórdão– fundamento, (i) incide sobre a mesma questão fundamental de Direito apreciada pelo acórdão recorrido, (ii) há contradição entre as respostas dadas a essa questão e o acórdão–fundamento está transitado em julgado, (iii) a oposição entre os acórdãos é frontal na parte decisória, (iv) a questão de Direito em destaque é essencial num e noutro acórdão, (v) o quadro normativo dessa resposta contraditória é o mesmo, (vi) inexiste acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão essencial em debate, (vi) e a junção de cópia do acórdão–fundamento e respetiva nota de trânsito em julgado preenche, por fim, o requisito específico de ordem formal à admissão do presente recurso de revista excecional quanto à alínea c) do n.º 1, do artigo 672.º do Código de Processo Civil. 8.ª- Tendo em conta que a questão debatida nos presentes autos tem tido diferenciadas e opostas soluções jurídicas pelas diversas instâncias jurisdicionais nacionais, geradoras da consequente insegurança jurídica e instabilidade na interpretação normativa, a questão que se submete à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça é suscetível de voltar a colocar-se em muitos outros processos semelhantes, que se revestem de grande repercussão social e económica, criando incerteza quanto à aplicação das regras da usucapião em confronto com as relativas ao ordenamento territorial, entendido este como abrangendo quer a área urbanística do fracionamento, quer a área do fracionamento rural, justificando até o julgamento ampliado da revista, nos termos do artigo 686.º do Código de Processo Civil, que a final se vai requerer. A 2– (Introdução) 9.ª- Na presente ação o A requereu a declaração de nulidade do contrato de partilha celebrado pelos RR e através do qual, como ato prévio à partilha, dividiram o prédio misto, a que os autos respeitam, em 3 novos prédios, tendo adjudicado duas partes a uma das R e a terceira parte a dois dos demais RR, sem que o ato de autonomização da parcela urbana do prédio rústico tivesse sido objeto de prévio pedido de licenciamento ou de operação de destaque junto da Câmara Municipal ..., tendo os RR, na contestação, invocado a usucapião por via da posse individualizada e autónoma das parcelas que dividiram e adjudicaram, peticionando reconvencionalmente o reconhecimento do direito de propriedade por usucapião dos prédios resultantes da divisão, direito esse que a 1.ª instância lhes reconheceu, fazendo improceder o pedido de declaração de nulidade do referido contrato. 10.ª- Tendo o A apelado dessa decisão para o Tribunal da Relação de Évora, veio este douto tribunal – respondendo à questão discutida na decisão da 1.ª instância «Será que a proibição de fracionamento da propriedade constitui restrição legal impeditiva da usucapião, nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, não obstante a posse exercida pelo corpus e animus dos possuidores se manter para lá 20 anos?» –, a concluir que o incumprimento das regras de natureza urbanística, no que diz respeito ao fracionamento, mormente por falta do devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em que se decompõe o imóvel, desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a usucapião, optando por uma das soluções debatidas na jurisprudência, e acabando por decidir julgar improcedente a apelação, confirmando assim a sentença recorrida. B 1– (Fundamentação do recurso) (Enquadramento geral e identificação da questão fundamental de Direito a apreciar) 11.ª- A tese do acórdão – que acolheu a tese defendida pelos RR –, é a de que a violação das normas urbanísticas relativas à proibição ou limitação dos “loteamentos” clandestinos ou ilegais e a violação das normas, v.g., os artigos 1379.º, 1376.º e 1378.º, do Código Civil, que impedem o fracionamento de prédios rústicos, é inatacável quando for invocada a usucapião; ou seja, o que é ilegal torna–se em legal, o interesse particular passa a prevalecer sobre o interesse público subjacente às normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos ou que correspondam a loteamentos ilegais, obtendo–se um resultado proibido por lei que redunda num abuso de direito que impede a salvaguarda do interesse público; resultado para o qual têm contribuído decisões jurisdicionais como a de que agora se recorre e que sufragou igual entendimento da 1.ª instância. 12.ª- Para a apreciação da questão submetida à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça partimos da constatação de que, no caso concreto e nos que, em geral, são com ele similares, congruentes ou análogos, são convocáveis não só as regras urbanísticas sobre as quais prepondera a usucapião invocada pelos RR – e sufragada pelas instâncias –, usucapião essa que prevalece também sobre a ilegalidade do ato jurídico através do qual se procedeu ao parcelamento do prédio dos autos, contrário às regras urbanísticas, designadamente sobre loteamentos urbanos, como são convocáveis as regras que proíbem o fracionamento de prédios rústicos. 13.ª- Quer com isso dizer–se que, para enquadrar o que se vai discutir e defender, ao celebrarem a dita escritura, os RR, por mera declaração reconhecida notarialmente, fracionaram o prédio dos autos, na sua maioria rústico, integrando uma das parcelas desanexadas num prédio urbano preexistente, pelo que o resultado não pode deixar de ser o seguinte: a. o fracionamento do prédio rústico, integrando um dos seus terços no prédio urbano, resultando um prédio autónomo; b. a redução da área do prédio rústico por via dessa operação; e c. a divisão ou fracionamento dos demais dois terços em dois prédios rústicos autónomos. 14.ª- Do que fica dito resulta não só que o fracionamento em causa, e assim descrito, contrariou as regras urbanísticas ou de loteamento, como redundou no fracionamento rústico ilegal do mesmo prédio (ver facto n.º 5 dos factos provados; ver a superfície de cada um dos prédios fracionados e ver a unidade de cultura definida para a NUT III do Médio Tejo, definida no anexo II da Portaria n.º 2019/2016, de 9–8 ou a Portaria 202/70, de 21–4, por aquela revogada e, antes desta, o artigo 107.º do Decreto n.º 16.731, de 13–4–1929), cuja sanção é, nos termos do artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil, a nulidade, a qual é de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil); o que para os legais efeitos aqui se invoca, ainda que ignorada pelo acórdão recorrido. 15.ª- Para a apreciação da questão fundamental de Direito que se apreciou no acórdão recorrido, e que é objeto de controvérsia jurisprudencial, importa ter na devida conta o que é disposto no quadro legal aplicável, o qual é constituído pelos seguintes normativos e diplomas: a. Os artigos 9.º, alínea c), 65.º e 66.º, da Constituição da República Portuguesa. b. O artigo 1287.º do Código Civil. c. O artigo 1376.º do Código Civil. d. O artigo 48.º, n.º 2 e n.º 3 da Lei 111/2015 de 27/8, na redação da alteração introduzida Lei n.º 89/2019 de 3/9, que resolve por via legislativa a controversa questão na doutrina e jurisprudência de saber se uma eventual aquisição originária por usucapião prevalece sobre as regras de fracionamento dos prédios rústicos. e. O artigo 1379.º do Código Civil, na redação da Lei n.º 111/2015, de 27/8, e a Portaria n.º 219/2016, de 9–8 e, antes dela, a Portaria 202/70, de 21–4 ou, antes desta, o artigo 107.º do Decreto n.º 16.731. f. O artigo 54.º da Lei 91/95, de 2/9 (Reconversão das Áreas Urbanas de Génese Ilegal) e o artigo 4.º, n.º 1 (enquanto norma interpretativa) da Lei 64/2003, de 23/8. g. Os artigos 2.º, alíneas a), i) e j), 49.º, n.º 1, do DL n.º 555/99, de 16/12 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação). h. A Carta Europeia do Ordenamento do Território (documento que define a noção de ordenamento do território na sua dimensão europeia e cujos fins são enunciados da seguinte forma: (i) O desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões; (ii). A melhoria da qualidade de vida; (iii). A gestão responsável dos recursos naturais e a proteção do ambiente; (iv). A utilização racional do território.). i. Os artigos 2.º e 19.º da Lei n.º 31/2014, de 30/5 (Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo). j. O artigo 162.º do DL n.º 80/2015, de 14 de maio (aprova a revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, dando cumprimento ao artigo 81.º da Lei 31/2004). 16.ª- Em consonância com o quadro legislativo citado, encontramos na jurisprudência e na doutrina mais recentes, não só uma harmonização de entendimentos sobre proibição da aquisição por usucapião de parcelas de terreno de um prédio rústico com violação das normas legais imperativas (por tutelarem interesses públicos) de natureza urbanística que o limitam, condicionam ou proíbem; como encontramos concordância na proibição de se poder sobrepor a aquisição da propriedade por invocação da usucapião em casos de infração às normas legais imperativas (também por tutelarem interesses públicos) que limitam o fracionamento de prédios rústicos, ainda que a usucapião retroaja ao início da posse, pois, com a alteração operada pela redação dada ao n.º 1 do artigo 1379.º do Código Civil pela Lei n.º 111/2015, de 27/08, passando o fracionamento ilegal de prédios rústicos a consubstanciar a invalidade–nulidade em vez da invalidade–anulabilidade, implicitamente ocorreu também uma alteração nos prazos do exercício do direito de ação com vista à inutilização dos atos de fracionamento, sendo de aplicar o disposto nos artigos 286.º e 297.º do Código Civil, pelo que a nulidade pode ser invocada a todo o tempo. 17.ª- De facto, o quadro legal citado e a proibição ou limitação que dele resulta para o fracionamento de prédios rústicos inferiores à unidade de cultura ou para o fracionamento predial rústico em violação das normas urbanísticas – e a correta leitura que dele fazem alguma jurisprudência e doutrina mais recentes (sendo nulo e de nenhum efeito o ato jurídico de aquisição da propriedade que a titula) –, visa garantir a criação de melhores condições para o desenvolvimento das atividades agrícolas e florestais, a sua sustentabilidade nos domínios económico, social e ambiental, através da intervenção na configuração, dimensão, qualificação e utilização produtiva das parcelas e prédios rústicos, evitando–se a sua pulverização; como pretendem impedir a alteração da situação fundiária existente à margem dos instrumentos de execução e implementação de planos territoriais de natureza urbana relativa à edificação e/ou loteamento. 18.ª- É toda uma realidade que se conjuga e está embrincada, pois o fracionamento ilegal da propriedade é evidentemente o primeiro passo para a construção clandestina. 19.ª- Porém, as normas que proíbem um (o rústico) e outro (com fins urbanos) são normas imperativas, de ordem pública, não sendo lícito, legítimo ou tolerável que a usucapião sirva como instrumento contra legem ou, sequer, que possa ser reconhecido como direito quando é exercido com abuso de direito, ao arrepio da unidade do ordenamento jurídico, enquanto sistema coerente e consistente, o qual, na defesa do correto ordenamento do território e da legalidade urbanística, faz prevalecer estes interesses de ordem pública aos interesses dos particulares “interessados” na sua violação. 20.ª-É também por respeito ao disposto no artigo 335.º do Código Civil que assim é, pois nem todos os bens jurídicos estão situados ao mesmo nível, sendo os de interesse público referidos superiores aos de interesse particular. 21.ª-Ou seja, a propriedade, enquanto direito subjetivo de afetação de um bem, envolve poderes e deveres e as limitações a que está sujeito (não as exclusões, por imporem dever de indemnização do Estado) são constitutivas da situação jurídica que traduz. 22.ª-Sendo essas limitações de interesse e ordem pública, são elas que devem prevalecer por justificarem os desvios na situação jurídica correspondente ao direito subjetivo em questão. 23.ª- A evolução histórica decorrente de todo o quadro legislativo citado (o seu contexto histórico), com particular menção para a sua adaptação à Constituição da República Portuguesa, mas nem sempre respeitado consonantemente pela doutrina e jurisprudência, desvelam um propósito que, antes e depois da entrada em vigor do Código Civil de 1966, e após as alterações introduzidas pela Lei n.º 111/2015, de 27–8 ao artigo 1379.º do Código Civil, sempre foi o de disciplinar o fracionamento ilegal de prédios rústicos ou o loteamento ilegal daí resultante como contrário ao interesse público subjacente, nas dimensões económica, social, urbanística e ambiental, acentuando uma visão dinâmica e global da estruturação do território, fazendo sobrelevar uma função ambiental, de racionalização do território e da sua sustentabilidade, não só económica, mas principalmente ecológica. 24.ª- Temos, assim, um regime jurídico cujo intuito foi – e é – o da criação e manutenção de unidades prediais economicamente viáveis e aptas para cultura e que, associado ao regime previsto nos artigos 1376.º a 1382.º do Código Civil, pretende, por um lado, impedir a divisão da propriedade agrícola e, por outro lado, favorecer a criação de áreas de dimensão igual (ou superior) à área de cultura legalmente estabelecida. 25.ª- Em paralelo, o fracionamento com vista ao loteamento urbano em violação das regras urbanísticas, ainda que originado na invocação e reconhecimento da usucapião, é inadmissível perante o quadro jurídico acima citado, já que também, à semelhança do que acontece com a proibição do fracionamento ilegal de prédios rústicos, também está presente a salvaguarda do interesse público ou dos interesses gerais da comunidade no que se refere ao adequado ordenamento do território, o que vale por dizer que o fracionamento de prédios rústicos, ainda que parcial, como no caso dos presentes autos, para loteamento urbano, não é livre, mesmo que seja invocada a usucapião subjacente a esse fracionamento para loteamento, pois tanto a Lei n.º 91/95, de 2–9, sucessivamente alterada e com a sua atual redação dada pela Lei n.º 71/2021, de 04/11, condicionam essa possibilidade no respetivo artigo 54.º, fulminando os atos jurídicos respetivos com a nulidade. 26.ª- À semelhança dos interesses subjacentes à proibição de fracionamento de prédios rústicos, também o regime instituído pela Lei n.º 91/95 visa tutelar o interesse público e coletivo na planificação urbanística e obviar aos loteamentos ilegais ou clandestinos, o mesmo tendo ocorrido com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo DL n.º 555/99, já citado, que impõe no seu artigo 49.º condições legais para as operações de loteamento, resulte ele de fracionamento ilegal de prédios ou não. 27.ª- Vale por dizer que a usucapião não pode, nem deve legitimar um loteamento urbano sem correspondência com os requisitos exigidos por lei, que nunca seria viável não fosse a usucapião entendida com o alcance despropositado e abusivo admitido pelo acórdão recorrido. 28.ª- Se nem os loteamentos originalmente clandestinos submetidos à Lei n.º 91/95 estão isentos de condições para serem viabilizados e legalizados, como pode a usucapião fazer tábua rasa de tudo isso e impor–se à ordem jurídica como soberana intocável e privilegiada? 29.ª- Ou seja, o quadro legislativo citado e o respetivo contexto histórico–político limitou intencionalmente a iniciativa privada no que se refere ao fracionamento de prédios rústicos aptos para cultura e as operações de urbanização sem cumprimento das regras atinentes. 30.ª- Apesar disso, a proibição legal foi sistematicamente contornada, invertendo a proibição numa “legalização” de atos proibidos, para o que tem contribuído parte da própria jurisprudência nacional até à atualidade (a que sufraga a tese que o acórdão recorrido veio mais uma vez a acolher), subvertendo–se a confiança jurídica, não nas normas que proíbem o fracionamento rústico ou os loteamentos urbanísticos ilegais, mas na sua violação, assim traduzindo um incentivo a essa violação e cujo resultado prático coincide justamente com o que o artigo 1376.º do Código Civil pretende proibir. 31.ª- É um resultado que derrota essa e outras normas proibitivas, cuja observância é promotora da equidade, da confiança, da eficiência e da estabilidade das decisões públicas e privadas e que seria suposto por elas serem promovidas, mas que, ao invés, são subvertidas, além de se subverter também o poder subjacente à edição normativa, que cabe ao legislador, o qual tem a responsabilidade pública para o efeito, constitucionalmente legítima, e não aos tribunais, aos quais cabe aplicar e não sancionar a sua violação, além de que não são instituições que tenham legitimidade democrática comparável à do legislador para o fazer. 32.ª- Por via deste estado de coisas, assiste–se a decisões e aproveitamentos recalcitrantes pelos particulares, que recorrem aos mais diversos expedientes, sejam eles escrituras de justificação, de partilha, vendas em avos, criação de “quintinhas”, que visam apenas contornar a proibição legal e que mais não são do que uma fraude à lei, também ela sancionada com a nulidade (artigo 292.º do Código Civil), mas que a jurisprudência acolhida no acórdão recorrido entende ignorar, concedendo ratificação à obtenção de um título formal de aquisição e registo do direito de propriedade sobre partes de prédios rústicos parcelados ou a loteamentos ilegais, apesar da proibição legal que resulta de todo o quadro legal citado. 33.ª- Porém, a proibição legal é toda ela consonante com os propósitos do legislador: proibir o fracionamento de terrenos aptos para a cultura e proibir atos jurídicos que deem origem a prédios com área inferior à estabelecida como unidade mínima de cultura (artigo 1376.º do Código Civil); impedir o fracionamento de prédios integrados na Reserva Agrícola Nacional (artigo 27.º do DL n.º 73/2009, alterado e republicado pelo DL n.º 199/2015, de 16–9); impedir o desrespeito pelas normas relativas ao ordenamento do território e ao urbanismo e as inerentes ao regime jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (artigo 162.º do DL n.º 80/2015, de 14–5) e impedir a violação do regime jurídico da urbanização e edificação (DL n.º 555/99, de 16–12, republicado pelo DL n.º 136/2014, de 9–9 e alterado por diversos diplomas, mais recentemente pela Lei n.º 118/2019, de 17–9). 34.ª- A par disso, não pode deixar de se ver em todo esse quadro legislativo a correspondência exata na semântica do próprio artigo 1287.º do Código Civil, pois é todo este quadro legislativo, atual e legitimamente vigente, o que impõe que, quanto ao fracionamento de prédios rústicos, ao ordenamento do território e ao urbanismo, sejam as respetivas normas, que acima citámos, a “disposição em contrário” que impede que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, possa facultar ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, i.e., que possa equivaler a usucapião do direito de propriedade de prédios em violação das regras de fracionamento de prédios rústicos ou em violação das normas urbanísticas, como no caso presente as instâncias deram por provado terem sido violadas (factos provados n.º 7, 8, 9, 10 e 11). 35.ª- Conclui-se, por via disso, que a decisão recorrida é, acima de tudo, inconsistente com as fontes de direito aplicáveis, além de assentar numa falácia naturalística e violadora da “Lei de Hume”, que Kelsen também censura, pois se as normas proibitivas são válidas, devem ser obedecidas, mesmo em contrário da pretensa eficácia de atos ou factos naturalísticos, que não têm qualquer normatividade atendível. 36.ª- A decisão sob recurso assenta em argumentos que são meros entimemas, razões incompletas e logicamente mutiladas, por serem omissas e contrárias às premissas impostas pelo contexto legislativo atinente que, esse sim, constitui a “norma geral” que deveria ter servido de premissa fundamental à decisão recorrida e através da qual os factos se deveriam ter filtrado e subsumido. 37.ª- Estando proibidos o fracionamento ou loteamento ilegais, não podem os atos de fracionamento ou loteamento ilegais estar permitidos, pois de contrário o sistema jurídico seria inconsistente por consentir antinomias normativas como a que o acórdão recorrido admite, sem validez lógica, ao concluir que a proibição do fracionamento ilegal ou do loteamento ilícito é afinal uma permissão possível quando se invoca a usucapião sobre as parcelas fracionadas. 38.ª- A par da inconsistência lógica da decisão, ela valoriza desproporcionalmente atos jurídicos (sejam eles contratos, escrituras, justificações ou sentenças judiciais) que têm um resultado inabalável (a aquisição da propriedade), mas que assentam essencialmente em elementos declarativos ou em prova testemunhal, sem qualquer dever especial ou adicional de prova, a não ser o conteúdo das declarações e dos testemunhos; e estes sem grande escrutínio da razão de ciência dos seus emissores, pois assentam predominantemente em declarações dos próprios beneficiários, sem cautelas documentais relativos à geografia ou cadastro, de que muitas vezes é o Estado o primeiro prejudicado, pois muitos dos prédios assim adquiridos seriam porventura de declarar bens integrantes de herança vaga, além de que muitos dos litígios que passam ao lado do Estado–Ministério Público não serem mais do que litígios fingidos para ver reconhecido um direito (de usucapir propriedade), não contestado na mise en scène do processo. 39.ª- É com esta “legalidade informal” que se basta a decisão recorrida para julgar improcedente a ação proposta pelo Ministério Público; e é também nela que se basta a jurisprudência que a decisão recorrida invoca para nela basear o julgamento de mérito da ação. 40.ª- É também com esta facilidade de recurso ao instituto da usucapião, que tem baixos custos, que se incentiva a violação da lei que proíbe o fracionamento e loteamento ilegais, mesmo que se não cumpram uma bateria de requisitos legais que a legislação aqui citada reclama, para garantir um adequado ordenamento territorial e a realização dos fins que ele promove. 41.ª- O resultado nefasto deste caminho, que a jurisprudência representada pela decisão recorrida sanciona, é depois suportado pelo resto do país, que se depara com o facto consumado de ter que sustentar os custos do desordenamento territorial traduzido no agravamento da vulnerabilidade para pessoas e bens (veja–se o que tem sucedido com os incêndios e as cheias), na inviabilidade económica de potenciais explorações, na sobrecarga na infraestruturação, etc. B 2– (Continuação: Fundamentação do recurso – A questão fundamental de Direito a apreciar) (i ) – Razões: Particular relevância social dos interesses envolvidos. 42.ª- O acórdão recorrido navega num certo apriorismo na abordagem que faz à questão essencial de Direito, que é a de saber se a aquisição da propriedade por usucapião se sobrepõe às regras urbanísticas relativas ao loteamento ou às regras que proíbem o fracionamento ilegal de prédios rústicos, fulminada com a nulidade por via do disposto no artigo 1379.º do Código Civil. 43.ª- Apriorismo que está evidenciado quando, depois de enunciar as teses jurisprudenciais que resolvem a questão em sentido contraditório, rejeita a tese jurisprudencial que dita a nulidade do ato jurídico em que se invoca a usucapião, por violação das normas legais imperativas relativas ao ordenamento do território que proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, como rejeita as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fracionamento de prédios, e segue a tese jurisprudencial que faz sobrelevar a natureza da usucapião e a realidade social que a suporta para concluir que ”o incumprimento das regras de natureza urbanística no que diz respeito ao fracionamento, mormente por falta do devido licenciamento ou loteamento, não obsta à aquisição originária, com base na usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas em que se decompõe o imóvel, desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a usucapião.”. 44.ª- Porém, na discussão dos interesses sociais subjacentes à aquisição da propriedade por usucapião o cerne da questão encontra–se precisamente na completa valorização dos interesses em presença e não somente nas normas que cobrem a usucapião e os seus efeitos jurídicos, tendo a decisão recorrida ignorado toda a ponderação dos interesses sociais envolvidos, a ponto de tornar irrelevantes as regras que regem a urbanização ou proíbem o fracionamento de prédios rústicos, sendo por isso uma ponderação incompleta e insuficiente, já que quer à proibição de fracionamento de prédios rústicos, quer às regras que invalidam operações de loteamento urbanístico por ilegalidade também subjazem interesses e valores, que são de ordem coletiva, comunitária e constitucional e que não podem ficar de fora da equação da ponderação jurisdicional dos interesses envolvidos. 45.ª- Ao recorrer a uma interpretação e aplicação especificadora de valores jurídicos, a decisão recorrida tinha o encargo de demonstrar a existência de valores jurídicos coerentes com o sentido de mérito que escolheu, mas também tinha que demonstrar a inexistência de valores jurídicos que permitissem justificar, com menor, igual ou maior força a solução contrária, o que não fez. 46.ª- Trata–se assim de uma ponderação incompleta e deficitária de todos os interesses e valores em conflito, sem atenção à observância da não contradição, e que não pode reivindicar para si a pretensão de correção, como a que Alexy exige para que uma decisão jurídica não seja injusta e desconforme ao Direito. 47.ª- É sabido que há uma tendência histórica nacional para a atomização da propriedade rústica e para loteamentos ilegais “ao gosto do freguês”, transferindo para a coletividade todos os custos inerentes à insalubridade, desordenamento territorial, urbanização selvagem, muitas vezes para satisfação de pequenos interesses patrimoniais sucessórios, ainda que fique contínua e irremediavelmente posta em causa a viabilidade económica das propriedades e o desenvolvimento rural e urbanístico do país. 48.ª- Como o demonstra um estudo recente citado nas presentes alegações, “O elevado fracionamento da propriedade, e a sua frequente concretização espacial em formas geométricas que não atendem à morfologia ou à ocupação do território, estão a gerar uma estrutura espacial da propriedade rústica constituída por inúmeros prédios de pequena dimensão, com a configuração de faixas lineares descontextualizadas. Esta elevadíssima fragmentação espacial origina uma situação de grande dificuldade de gestão do território português (…) A nível individual ou seja do proprietário, a diminuta dimensão da propriedade e a sua forma não permitem uma gestão da propriedade com racionalidade económica, situação agravada quando são vários os titulares. A nível coletivo, a aplicação dos vários instrumentos de gestão territorial (como por exemplo, as Áreas Integradas de Gestão da Paisagem (AIGP) ou o arrendamento forçado) é particularmente complexa, face à quantidade de proprietários (nas suas mais diversas formas) que têm que ser envolvidos em qualquer contrato ou ação coletiva que se queira implementar.”. 49.ª- Remata o mesmo estudo: “(…) não menos importante é de referir que se tem verificado o recurso excessivo ao instituto da usucapião para aquisição do direito de propriedade sobre partes de prédios, para contornar a necessidade de cumprimento dos regimes legais que impedem o fracionamento, seja os que impedem o fracionamento de terrenos aptos para a cultura em área inferior à da unidade de cultura aplicável, seja para contornar a aplicação das regras urbanísticas aplicáveis às operações urbanísticas de loteamento ou de destaque que se destinam imediata ou subsequentemente à construção ou à divisão para criação de prédios urbanos pela pré-existência de construções que fazem parte integrante de prédios rústicos, o que merece uma reflexão sobre o que pode ser melhorado para evitar esta prática crescente”. 50.ª- Por outro lado, além do prejuízo para a tutela do ambiente nos segmentos do respeito pelo ordenamento do território, da promoção da qualidade de vida coletiva, imaterial ou da paisagem, o fracionamento tem evidentes e nefastas consequências jurídicas, pelo aumento do encravamento de prédios (também proibida e desincentivada pelo artigo 1376.º, n.º 2 do Código Civil); bem como tem perniciosas consequências económicas e sociais para a rentabilidade da agricultura, que pela atomização dos prédios requer mais mão de obra e uso de meios sem grande racionalidade económica, propicia obstáculos à utilização de maquinaria e à produtividade, reduz a eficiência no acesso físico às parcelas de terreno e dificulta o acesso a subsídios e financiamento com algum relevo produtivo, além de propiciar a sempre indesejável conflitualidade entre vizinhos. 51.ª- Em suma, o mau ordenamento do território, a sua incompletude ou mesmo a impossibilidade prática de ordenar o território, para a qual contribui, por via direta, a excessiva atomização do território, em muito devida ao fracionamento ilegal ou à urbanização ilícita – com os contributos “contra legem” da jurisprudência, como aquela que é objeto do presente recurso, e que vem concedendo carta de alforria aos “direitos adquiridos” por usucapião –, além das consequências nefastas de natureza económica, social e ambiental apontadas, constitui hoje um notório fator de agudização dos efeitos das alterações climáticas, de que todos já somos ou seremos vítimas, mas de cuja responsabilidade dificilmente poderemos ser absolvidos. 52.ª- Como exemplo dos efeitos nefastos da excessiva atomização do território agro– florestal, para os quais contribui em muito a tese sufragada pelo acórdão recorrido, constata–se que, por via dessa atomização, a limpeza dos terrenos agro–florestais é assimétrica, o que dificulta o combate aos incêndios; um flagelo a que se assiste repetidamente no nosso país, com duros custos para a economia rural, a que se tem associado a trágica destruição de habitações e mesmo de vidas humanas. O nosso país tem sido um pesaroso exemplo desse estado de coisas. 53.ª- Por via desse contexto ou, exatamente, por via dele, o legislador, através do acima citado quadro jurídico, optou legítima, devida e decisivamente pela proibição do fracionamento rústico sob determinadas condições e pela limitação dos loteamentos que não cumprem as leis urbanísticas, tendo em vista solucionar o desordenamento urbanístico e territorial e promover a viabilidade económica da agricultura, o ordenamento urbano, modernizando o país, arrancando–o do atavismo económico– rural e urbano de que não tem saído e para o qual decisões jurisprudenciais como a que está sob recurso não ajudam. 54.ª- Daí a consequente consagração de um regime de nulidade ou de invalidade dos atos de fracionamento contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º do Código Civil ou de operações urbanísticas ilegais, impondo também ao poder judicial a tutela de bens jurídicos com ressonância constitucional, que incumbe aos tribunais defender, designadamente a preservação do ambiente, do ordenamento do território e da qualidade de vida, que são exemplos de interesses difusos e coletivos (em sentido amplo), constitucional ou positivamente ressonantes (cf. por exemplo, o artigo 52.º, n.º 3, al. a) da Constituição da República Portuguesa), contexto que, coerentemente, justifica que a sua defesa incumba ao Ministério Público, enquanto defensor do interesse público e também enquanto defensor da legalidade. 55.ª- Na verdade, a defesa do território através do seu ordenamento, ao ter que ser defendido, como é imposto e promovido pelo legislador segundo o quadro legislativo que vigora, traduz, mais do que uma tutela de interesses coletivos e difusos, em sentido amplo (o desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões, a melhoria da qualidade de vida, a gestão responsável dos recursos naturais e a proteção do ambiente e a utilização racional do território), uma tutela de bens comuns. 56.ª- Enquanto bem comum partilha dos atributos do uso dos bens coletivos, sejam eles as finalidades não lucrativas, sejam a dimensão coletiva do seu uso e proveito, que comprime os interesses egoístas de cada proprietário à valorização do ambiente, da paisagem, da propriedade sustentável e responsável; bases de uma nova produção social de riqueza, a partir de uma gestão social dinâmica, mais antropológica e cooperativa que jurídica, que liga a sociedade humana ao ambiente natural. É isso o território como bem comum a passar às gerações futuras. 57.ª- A propriedade, enquanto conjunto de direitos positivos e absolutos que conexionam pessoas e coisas, já não serve, enquanto conceito, para perceber e tratar toda a complexidade vital do território como bem comum que pertence a todos. 58.ª- É toda uma diferença que vai entre o ter e o ser, a qualidade e a quantidade, a mercadoria e o valor social, a propriedade e os recursos naturais ou públicos, o egoísmo e a inteligência colaborativa, o fim social e ecológico do território e a especulação sobre ele; diferenças que fazem que “outro mundo” seja possível. 59.ª- É também aqui, no quadro jurídico através do qual se estrutura o território e se orienta a respetiva gestão, que aparecem as normas que proíbem o fracionamento ilegal de prédios rústicos ou os loteamentos urbanos ilícitos, normas instrumentais que desempenham um papel decisivo na proteção do território enquanto bem comum, impedindo ou limitando os atos abusivos que prejudicam essa pertença comum e a sua preservação, mas que a tese jurisprudencial acolhida no acórdão recorrido insiste em ignorar. 60.ª- Essa é uma tese que “expropria” os viventes e vindouros de um bem comum e, contrariando o quadro jurídico que o protege, expropria o povo soberano do Direito que ele próprio escolhe através das leis. 61.ª- Não pode, pois, ser o próprio Estado, a coberto das vestes do poder judicial, o verdadeiro inimigo do território e do seu ordenamento, enquanto bem comum. 62.ª- É por tudo isto que se julga estar demonstrada a importância vital dos particulares interesses e valores fundamentais envolvidos na questão fundamental de Direito em debate, que extravasa os interesses das partes e o caso concreto, pelo que ela deve merecer uma resolução abstrata, que entendemos dever ser oposta à que foi sufragada pela decisão recorrida, assim se dando a devida tutela ao que é bem comum, tanto fazendo frente ao poder privado, como fazendo frente ao poder do Estado, aqui representado pelo poder jurisdicionalmente exercido com a prolação do acórdão recorrido. B 2– (Continuação: Fundamentação do recurso – A questão fundamental de Direito a apreciar (ii ) – Razões: A relevância jurídica da apreciação da questão para uma melhor aplicação do Direito. 63.ª- O modelo político–constitucional que nos rege assenta nos princípios da soberania popular, na representação política, na divisão entre o poder legislativo e judicial e no princípio da legalidade, razões suficientes para subtrair ao intérprete e aplicador do Direito a discricionariedade na sua interpretação e aplicação. 64.ª- Daí que, na tarefa de interpretação das leis, lege lata, os juízes estejam sujeitos a diretivas de interpretação que se impõem à atividade jurisdicional, contando–se entre elas a de dar plena eficácia à intenção do legislador, tendo como ponto de partida e de chegada a letra da lei, além da diretiva de interpretar a lei civil de modo coerente com os princípios e valores jurídicos, etc., modelo político–constitucional que parece impor, assim, uma interpretação e aplicação da lei de tipo objetivo. 65.ª- Só desse modo se respeita a vontade popular expressa na lei através dos seus representantes eleitos e se resolve a tensão entre a interpretação e aplicação da lei e as diretivas impostas pelo legislador; resolução que deve ser efetuada a favor da vontade do legislador e não da vontade e opção jurisdicional, pois também só assim se respeita a certeza do direito, a previsibilidade das decisões judiciais, realizando–se a segurança jurídica geral e o respeito devido ao princípio da legalidade. 66.ª- Interpretações e aplicações de lei corretoras do sentido e vontade legitimamente manifestadas pelo legislador causam surpresa e insegurança e não são produzidas por quem tem o poder de legislar, enquanto expressão direta da soberania popular. 67.ª- Ora, quer a oposição de julgados sobre a questão fundamental de Direito que aqui se submete à apreciação decisória do Supremo Tribunal de Justiça, quer a decisão sob recurso, que adere a uma das teses em confronto sobre a questão, ignoraram a diretiva imposta pelo quadro legislativo acima citado que proíbe o fracionamento ilegal de prédios rústicos e o loteamento ilícito sem as devidas autorizações e cumprimento dos procedimentos administrativos legalmente previstos, desatendendo à intenção legislativa e aos valores que democraticamente são protegidos e promovidos por esse quadro legislativo. 68.ª- Apesar disso, a decisão recorrida, acolhendo uma das teses jurisprudenciais em confronto sobre a questão em apreço, ignorou esses valores, ignorou a intenção do legislador e olhou para a jurisprudência sobre a questão como se fosse lei. 69.ª- É por isso uma decisão contrária ao Direito aplicável e que substituiu as diretivas normativas por razões e opções jurisprudenciais não objetivas, à revelia do disposto nos artigos 8.º e 9.º do Código Civil. 70.ª- Ora, o artigo 1287.º do Código Civil dispõe que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. 71.ª- Por sua vez, o artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 111/2015, dispõe que são nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, sendo para nós certo que a usucapião é causalmente relevante para consumar um fracionamento rústico ou loteamento urbano ilegais, estes quando contrários ao disposto nos artigos 2.º e 49.º do DL n.º 555/99. 72.ª- No que respeita ao fracionamento ilegal rústico, da conjugação do artigo 1287.º e 1379.º do Código Civil deduz–se que a usucapião não conduz ipso jure à aquisição do direito de propriedade ou outro direito real de gozo (e nem todos – vide artigo 1293.º Código Civil), pois, além de ter que ser invocada (artigo 303.º do Código Civil), não pode contrariar normas imperativas, ou seja, “a disposição em contrário”. 73.ª- Uma norma imperativa tem associada uma sanção, enquanto consequência normativamente prevista, para o caso da violação da norma, através da qual se reforça a imperatividade desta. 74.ª- Ora, a nulidade com que se sancionam os atos jurídicos de fracionamento ilegal de prédios rústicos é precisamente essa sanção e que dá imperatividade à norma do artigo 1379.º do Código Civil. 75.ª- Ou seja, a existência de sanções é natural consequência da imperatividade da norma e que a reforça. 76.ª- Apesar de ter sido ignorado pela decisão recorrida, a norma do artigo 1379.º do Código Civil não é nem uma “sugestão” normativa, nem um ponto de referência normativo, e muito menos uma norma supletiva. 77.ª- A haver supletividade normativa e ela identifica–se mais adequadamente no artigo 1287.º do Código Civil (não podem adquirir–se por usucapião bens do domínio público, coisas fora de comércio, bens culturais, etc.), mas nunca no artigo 1379.º do mesmo Código. 78.ª- O que vale por dizer que a usucapião não opera como forma de aquisição originária da propriedade ou de alguns direitos reais de gozo sempre que da sua invocação resulte infração de normas primordialmente destinadas a proteger interesses gerais da comunidade. 79.ª- O artigo 1379.º do Código Civil é uma norma imperativa porque não pode ser afastada pela vontade das partes. 80.ª- Não é uma norma supletiva porque o legislador não a concebeu para o justo equilíbrio dos interesses das partes, antes pelo contrário, concebeu–a para fazer sobrepor aos interesses das partes a proibição do fracionamento ilegal de prédios rústicos, ou seja, o interesse público subjacente à proibição do fracionamento rústico desregrado. 81.ª- É, pois, clara a declaração do legislador que, sem possíveis equívocos, deu ao artigo 1379.º do Código Civil o caráter de norma imperativa. 82.ª- O que vem de dizer–se em relação ao artigo 1379.º do Código Civil vale com igual intensidade e coerência para o quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais. 83.ª- Não sofre dúvidas que tanto as normas que proíbem o fracionamento ilegal de prédios rústicos, como as que, no quadro legislativo acima descrito, limitam, condicionam ou proíbem loteamentos urbanos ilegais (realidade objeto dos presentes autos, mas que não a esgota) prosseguem propósitos legislativos associados à opção político–legislativa de tutelar o desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões, a melhoria da qualidade de vida, a gestão responsável dos recursos naturais, a proteção do ambiente e a utilização racional do território. 84.ª- Por mais estas razões, no artigo 1379.º do Código Civil, como no quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais, estamos perante normas imperativas ou de ordem pública. 85.ª- A referência à natureza imperativa ou de ordem pública subjacente à norma do artigo 1379.º do Código Civil e ao quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais, decorre consistentemente dos fins político–legislativos apontados e das regras que instrumentalmente os traduzem, pois a nulidade é a sanção também estabelecida nos artigos 271.º, n.º 1, 280.º e 281.º do Código Civil, em efetiva e real coerência normativa, para todos os negócios jurídicos contrários à lei. 86.ª- Juridicamente, também o conceito de divisibilidade, previsto no artigo 209.º do Código Civil prevê situações em que as coisas não podem ser fracionadas, por alterarem a sua substância, diminuírem o seu valor ou prejudicarem o uso a que se destinam, limites que a intenção político–legislativa subjacente ao quadro legislativo enunciado acolheu. 87.ª- Independentemente deste critério, há casos de indivisibilidade determinados por lei e, por via disso, a indivisibilidade pode decorrer de imposição legal (por exemplo, o disposto no artigo 1376.º do CC ou os artigos 48.º e 49.º do Regime Jurídico da Estruturação Fundiária – Lei n.º 111/2015 – quanto ao fracionamento de terrenos aptos para a cultura em área inferior à unidade de cultura). 88.ª- Não obstante, decorrendo a indivisibilidade de imposição legal, as decisões judiciais em que a divisão é determinada em contradição com regras legais que limitam ou proíbem o fracionamento, permanece em afronta clara ao sistema jurídico e à sua intencionalidade político–legislativa. 89.ª- Na verdade, sendo a nulidade do fracionamento e do loteamento operados pelo ato jurídico que está em causa nos presentes autos – escritura de partilha e divisão de prédio rústico –, tal nulidade, ainda que de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil), foi ignorada pelo acórdão recorrido, que sobre ela não discorreu nenhuma linha apesar da sua alegação pelo A. 90.ª- Porém, a nulidade importa que o ato não tenha força, nem efeitos jurídicos (artigo 294.º do Código Civil). 91.ª- Ora, os negócios celebrados – a que os autos se reportam ou outros que lhe sejam análogos – são nulos e contendem com o interesse geral de toda a coletividade, em conformidade com as citadas normas proibitivas, de natureza imperativa, pois é ponto assente na doutrina que «O regime e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em motivos de interesse público predominante» (cf. Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Gestlegal, 5ª ed., 2020, pág. 620). 92.ª- A decisão sob recurso ignorou o que foi invocado pelo A e ignorou a coerência do sistema jurídico ao proibir atos de parcelamento de prédio rústico ilegais e/ou que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais. 93.ª- De facto, para falarmos de sistema jurídico não podemos admitir inconsistências lógicas, normativas e muito menos falácias por incompatibilidade entre as normas e a sua interpretação e aplicação aos factos, não podendo o artigo 1287.º do Código Civil sobrepor–se ao artigo 1379.º do mesmo Código. 94.ª- O critério da legalidade e objetividade, inclusivamente da interpretação e aplicação do Direito (artigos 8.º e 9.º do Código Civil) impõem o respeito pelo sistema normativo que temos vindo a invocar e deveria ter levado o tribunal a quo, a. primeiro, a respeitar as valorações político–legislativas legitimamente assumidas e expressamente traduzidas quer no artigo 1379.º do Código Civil, quer no quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais; b. segundo, a resposta à questão fundamental que o tribunal a quo deu deveria estar assente na base normativa constituída pelas normas referidas; c. terceiro, tanto o artigo 1379.º do Código Civil, como o quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais, por serem relevantes, deveriam ter levado a extrair consequências jurídicas dessas normas em confronto com o artigo 1287.º do Código Civil, cuja lógica não está satisfeita com o seguimento de uma corrente jurisprudencial em detrimento de outras, como se o método pudesse ser metajurídico e a lógica decisória pudesse bastar–se com preferências jurisprudenciais. 95.ª- Ora, o respeito por um sistema normativo depende do respeito pelas suas propriedades, ou seja, pela completude e consistência das normas que o traduzem e que se encontram entrelaçadas e embutidas por relações de validade que dão expressão sistemática ao conjunto normativo que forma. 96.ª- É disso que se fala quando se fala de sistema normativo. 97.ª- A decisão recorrida não correlacionou os valores subjacentes à proibição de fracionamento rústico ilegal e ao quadro legislativo que limita, condiciona ou proíbe loteamentos urbanos ilegais, por isso não respeitou a completude do sistema jurídico. 98.ª- Por outro lado, em contrário desses valores e das regras que os consagraram, solucionou o caso dos autos em contrário de outras soluções para casos idênticos, por isso não respeitou a consistência exigida ao sistema jurídico, que não pode assentar numa “lotaria” de escolhas entre teses jurisprudenciais contraditórias ou em razões de autoridade em vez da autoridade das razões. 99.ª- Acresce que a desconsideração dos interesses de ordem pública subjacentes às normas que proíbem o fracionamento ilegal de prédios rústicos e/ou que limitam, condicionam ou proíbem loteamentos ilegais (tutela de interesses coletivos e difusos, em sentido amplo, em especial, o desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões, a melhoria da qualidade de vida, a gestão responsável dos recursos naturais e a proteção do ambiente e a utilização racional do território, em suma, uma tutela de bens comuns) a. fere de morte a garantia de certeza, segurança e previsibilidade das normas imperativas que, instrumentalmente, consagram esses fins político– legislativos, além de que b. não promove a equidade que, pela generalidade, consistência e similitude dos casos a resolver se exige; c. não promove a confiança pela previsibilidade dos resultados práticos pretendidos pelas normas; d. não respeita a eficiência das normas jurídicas, a qual visa a melhor distribuição dos recursos para que os particulares e os poderes públicos tomem decisões; e. uns e outros sintetizáveis na estabilidade do Direito. 100.ª- Por fim, não menos importante, a decisão recorrida e a tese jurisprudencial em que se apoia subverte a distribuição do poder num modelo político–constitucional como o nosso, assente na soberania popular, na representação política, na divisão entre o poder legislativo e judicial e no princípio da legalidade, pois a resolução de questões político–legislativas como as que se referem à tutela do ordenamento do território, do desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões, da melhoria da qualidade de vida, da gestão responsável dos recursos naturais e da proteção do ambiente e da utilização racional do território (a tutela de bens comuns) cabe a instituições com responsabilidade pública e política, democraticamente eleitas. 101.ª- Sobre a ofensa à legalidade e ao interesse público por via do negócio nulo celebrado pelos RR e erradamente sancionado como juridicamente admissível e eficaz pelo tribunal a quo não nos parece restarem dúvidas, pelo que a questão fundamental de Direito que o Supremo Tribunal de Justiça deve apreciar tem indubitavelmente reflexos evidentes na correta, adequada e conforme aplicação do Direito e é suscetível de ser enunciada numa proposição jurídica a aplicar a todos os casos idênticos. B 2– (Continuação: Fundamentação do recurso – A questão fundamental de Direito a apreciar) (ii ) – Razões: A relevância jurídica da apreciação da questão para uma melhor aplicação do Direito – 1. A natureza de lei interpretativa resultante da nova redação do artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27–8. Consequências para a apreciação da questão 102.ª- Sobre toda a questão fundamental de Direito em apreciação houve recentes desenvolvimentos legislativos e jurisprudenciais que não podem ser ignorados pelo Supremo Tribunal de Justiça. 103.ª- A nova redação do artigo 48.º, n.º 2 e n.º 3 da Lei n.º 111/2015, de 27–8, operada pela Lei n.º 89/2019, de 3–9, veio resolver por via legislativa a controvérsia existente na jurisprudência, de que o acórdão recorrido é exemplo, sobre a questão de saber se uma eventual aquisição originária por usucapião prevalece sobre as regras de fracionamento dos prédios rústicos. 104.ª- Nos autos não foi posto em causa que os RR, através do ato jurídico neles descrito, fracionaram efetivamente prédio rústico, pois integraram um dos seus terços no prédio urbano, resultando um prédio autónomo, em consequência do que houve redução da área do prédio rústico por via dessa operação, e a divisão ou fracionamento dos demais dois terços em dois prédios rústicos autónomos, todas essas frações inferiores à unidade de cultura vigente para a respetiva zona, além de que deram as instâncias por provado que esse parcelamento foi contrário às regras de loteamento urbanístico. 105.ª- Pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido acórdão em 22–10–2020, no Processo n.º 4165/18.7T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado, em que se acolheu posição contrária à do acórdão ora recorrido e que, dando a devida relevância à alteração do artigo 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27–8, operada pela Lei n.º 89/2019, de 3–9, ditou que “Perante as divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, torna-se manifesta a natureza interpretativa do art. 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art. 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática; – Da conjugação do disposto no art. 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09.2019 e arts.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, ambos do CC, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura. – A eficácia da retroatividade da lei interpretativa-aplicabilidade da lei interpretativa a factos e situações anteriores à data do seu início de vigência- encontra fundamento em várias razões, entre as quais, a certeza jurídica, pois que, de outro modo, os interessados não saberiam qual o tratamento que, em definitivo, viriam a dar aos factos regulados pela lei (interpretada). – Sem embargo, a retroatividade da lei interpretativa não é irrestrita, dado que não atinge todos os factos passados e todos os efeitos já produzidos: nos termos do art. 13º do CC não atinge os efeitos já produzidos pelo cumprimento das obrigações, pelo caso julgado, pela transação ou atos de natureza análoga.” . 106.ª- O sentido da decisão jurisprudencial acabada de referir (idêntica é a do acórdão da mesma Relação de Guimarães, datado de 5–12–2019, no processo n.º 1167/18.7T8PTL.G1) é, a nosso ver, relevante para a questão fundamental de Direito em apreciação, pois reconhece a natureza de lei interpretativa da nova redação do artigo 48.º, n.º 2 e n.º 3 da Lei n.º 111/2015, de 27–8, operada pela Lei n.º 89/2019, de 3–9, que, por via dessa natureza e por força do disposto no artigo 13.º, n.º 1 do Código Civil, resolve essa mesma questão no sentido de que aquisição originária por usucapião não prevalece sobre as regras imperativas de fracionamento dos prédios rústicos. 107.ª- Tendo a decisão recorrida ignorado a natureza de lei interpretativa das normas citadas, de tudo isto resulta a continuada incerteza jurídica que, perante a decisão recorrida e a tese jurisprudencial que segue, face às teses jurisprudenciais contrárias, a que se associa agora a jurisprudência do Tribunal a Relação de Guimarães nos arestos citados, evidencia a necessidade de uma decisiva solução jurídica na apreciação da questão fundamental de Direito em apreço, a qual, pela sua relevância, clara importância para uma melhor aplicação do Direito e face à particular e efetiva relevância social dos interesses envolvidos, impõe que o Supremo Tribunal de Justiça se pronuncie e decida, a nosso juízo, em sentido contrário ao assumido pelo acórdão recorrido, como procurámos demonstrar, se necessário através de julgamento ampliado da revista. B 2 – (Continuação: Fundamentação do recurso – A questão fundamental de Direito a apreciar) (iii ) – Razões: A contradição de julgados. 108.ª- No âmbito da presente revista excecional, além da invocação dos requisitos exigidos para a sua admissão, previstos no artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), também se julga preenchido o requisito exigido pela alínea c) do mesmo n.º e artigo, pois, entre outros que poderiam ser convocados, por este Tribunal da Relação de Évora – 2.ª secção cível, em 27–5–2021, no processo n.º 980/19.2T8TNV.E1, foi proferido acórdão, cuja cópia se junta, já transitado em julgado, em que se firmou posição contrária à do acórdão ora recorrido, considerando e decidindo que: a. Estando em causa ato jurídico (no caso era escritura de doação) que, em 2016, fracionou prédio misto, destacando a parte urbana, sem qualquer licenciamento requerido para a operação de loteamento representada por esse parcelamento do prédio originário, é aplicável a Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que alterou o artigo 1379.º do Código Civil, “passando a cominar com nulidade os atos de fracionamento contrários ao disposto no artigo 137.6º, quando na anterior redação estava prevista apenas a anulabilidade. Com tal alteração pretendeu o legislador a autonomizar e distinguir as consequências jurídicas previstas para os atos de fracionamento (ou troca) contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, relativamente aos atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, passando a violação das primeiras a padecer do vício de nulidade e mantendo a segunda a regra anterior da anulabilidade. b. Deste modo, não restam dúvidas que, com a Lei 111/2015, de 27 de Agosto, se previu expressamente serem nulos os atos de fracionamento ou troca que sejam contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, e que consistam no fracionamento do prédio rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, regime bem distinto do anterior, cuja consequência jurídica era a anulabilidade, a arguir no prazo de 3 anos, sob pena de sanação. c. Sendo de manter o quadro factual apurado como decidido supra teremos que concluir que na data em que foi realizado o fracionamento, é aplicável o regime decorrente do artigo 1379.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto (que revogou os Decretos-Lei n.º 384/88, de 25.10 e n.º 103/90, de 22.03), atualizada pela Lei 89/2019, de 03 de Setembro, que determina a nulidade do ato de fracionamento. 109.ª- Ou seja, assentando essencialmente em quadro factual e jurídico semelhantes, o acórdão–fundamento, que aqui se invoca, decidiu que atos de fracionamento de prédio misto em contrário às normas dos artigos 1376.º e 1378.º do Código Civil, que proíbem o fracionamento e com destaque de parte urbana em desrespeito das normas relativas ao loteamento urbano, são nulos. 110.ª- Estão verificados os requisitos legalmente exigidos à verificação da contradição de julgados entre o acórdão–recorrido e o acórdão–fundamento, ou seja: a. O acórdão–fundamento e o acórdão recorrido incide sobre a mesma questão fundamental de Direito; b. Há contradição entre eles por via da resposta diversa à mesma questão, estando o acórdão–fundamento transitado em julgado; c. Essa oposição é, perante o quadro factual e jurídico convocado em ambos os acórdãos, frontal; d. A questão de Direito debatida num e noutro dos acórdãos foi essencial para o sentido contrário das decisões respetivas; e. O quadro normativo considerado em ambos os acórdãos é substancialmente o mesmo; f. Inexiste acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão jurídica em debate, sendo claro que o acórdão recorrido descreveu as teses jurisprudenciais em confronto, aderindo à que defende ser a aquisição da propriedade por usucapião a prevalecente sobre o incumprimento das regras de natureza urbanística sobre o fracionamento ou que violem proibição de fracionamento de prédios rústicos; g. Com a junção de cópia do acórdão–fundamento e respetiva nota de trânsito em julgado, está observado o disposto nos artigos 637.º, n.º 2 e 641.º, do Código de Processo Civil. 111.ª- Em suma, tendo em conta o exposto, com o acrescento dado aqui pela invocação da alínea c), do n.º 1 do artigo 672.º, do Código de Processo Civil, deve ser resolvida a persistente contradição de julgados sobre a mesma questão fundamental de Direito que aqui foi abordada, decisão essa que, S.M.O., deve ser a de se reconhecer a prevalência das regras relativas à proibição do fracionamento rural e à proibição do loteamento urbano ilegal sobre o instituto da usucapião, com a consequente procedência da revista e da presente ação por via da necessária uniformização jurisprudencial que dê o sentido, a segurança e a previsibilidade do Direito e das decisões judiciais que o aplicam. B 2– (Continuação): Da inconstitucionalidade material do artigo 1287.º do Código Civil na interpretação dada pelo acórdão recorrido, por violação do direito ao ambiente, urbanismo e qualidade de vida. Sem prejuízo, 112.ª- O acórdão recorrido aplicou o artigo 1287.º do Código Civil com base numa interpretação que ofende os valores constitucionais e que, por isso, fere de inconstitucionalidade esse artigo 1287.º do Código Civil. 113.ª- Essa inconstitucionalidade assenta na interpretação e aplicação do artigo 1287.º do Código Civil pelo acórdão recorrido (conforme resulta evidenciado da sua fundamentação) com o sentido de que a proibição de fracionamento da propriedade imposto pelas normas imperativas dos artigos 1376.º, n.º 1 e 1379.º n.º 1 do Código Civil não constitui restrição legal impeditiva da usucapião, nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, sacrificando o interesse público subjacente ao quadro normativo que proíbe o fracionamento de prédios em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País e/ou que proíbem o loteamento urbano ilegal por desrespeito das normas legais e administrativas que condicionam as operações urbanísticas. 114.ª- A tese do acórdão e, diga–se, das instâncias, é a de que a usucapião não só legitima o que antes, em maior ou menor grau, era ilegítimo, ilícito, ilegal ou irregular, como legitima para o futuro a mesma ilegitimidade, ilicitude, ilegalidade ou irregularidade por consumar atos de fracionamento de prédios rústicos contrários à lei e/ou loteamentos urbanos igualmente contrários à lei, por desrespeito das normas legais e administrativas que condicionam as operações urbanísticas; umas e outras de natureza imperativa. 115.ª- Porém, a Constituição da República Portuguesa contém comandos positivos que obrigam o legislador a tutelar os bens jurídicos que a Constituição da República Portuguesa enuncia e protege, mas que também obrigam o poder judicial a cumprir esses mandatos constitucionais, designadamente os que resultam dos seus artigos 65.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4, e 66.º, nº 1 e n.º 2, alíneas b) a f). 116.ª- O desprezo pelos valores constitucionais consagrados nessas normas constitucionais, relativos ao ordenamento do território, ao urbanismo, qualidade de vida e ambiente, que são infraconstitucionalmente traduzidos e tutelados pelo quadro jurídico que citámos, através do qual se proíbe o fracionamento ilegal de prédios rústicos e o loteamento urbano ilegal por contrário às normas urbanísticas, foi a opção assumida implícita e explicitamente pelo acórdão recorrido, pela tese jurisprudencial que segue e sufraga e pela interpretação e aplicação que fez do artigo 1287.º do Código Civil, a qual é materialmente inconstitucional no âmbito dessa interpretação e aplicação. 117.ª- Na verdade, quer a proibição do fracionamento ilegal de prédios rústicos, quer o loteamento urbano ilegal por contrário às normas urbanísticas, conflituam com os interesses subjacentes à situação do possuidor que invoca a usucapião (v.g., propriedade , habitação, estabilização de situações jurídicas por causa do decurso do tempo). 118.ª- Porém, os interesses coletivos inerentes ao ordenamento do território, ao urbanismo, ao desenvolvimento socioeconómico equilibrado das regiões, à melhoria da qualidade de vida, à gestão responsável dos recursos naturais e a proteção do ambiente e à utilização racional do território sobrepõem–se aos direitos individuais e são–lhe superiores, devendo por isso prevalecer e ser respeitados e promovidos, por decorrência da imposição constitucional, que protege o ordenamento do território, condição para a proteção do ambiente, para a defesa da reserva agrícola nacional e natural e para o adequado planeamento urbanístico, servindo de apoio aos regimes infraconstitucionais que o quadro jurídico–normativo aqui citado traduz. 119.ª- Onde o artigo 1287.º do Código Civil ressalva disposição em contrário “…salvo disposição em contrário…” pode e deve incluir–se a lei constitucional, pelo que a norma do artigo 1287.º do Código Civil é materialmente inconstitucional na interpretação do acórdão recorrido segundo a qual, face aos valores constitucionalmente consagrados nos artigos 65.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4, e 66.º, nº 1 e n.º 2, alíneas b) a f), da Constituição da República Portuguesa, tais valores são de preterir – mesmo enquanto comandos infraconstitucionalmente positivados pelo legislador, que os tutelou através do quadro jurídico acima descrito, o qual proíbe o fracionamento ilegal de prédios rústicos e o loteamento urbano ilegal por contrário às normas urbanísticas, pois sobre esses valores, apesar de hierarquicamente superiores, por realizarem o interesse público e serem de ordem pública por consagrados em normas de natureza imperativa –, por prevalência da usucapião, como forma de aquisição originária da propriedade, ainda que violando tais valores constitucionais e as normas imperativas que os traduzem. 120.ª- Tal norma, bem como a sua interpretação e aplicação, por inconstitucional, tem prejudicado o interesse comum, pois, a. em ambiente urbano, esta regra civilística tem contribuído para a profusão de áreas urbanas de génese ilegal, com elevadas deficiências ao nível da acessibilidade, do saneamento, dos equipamentos públicos, dos espaços verdes e da arquitetura, com reflexos negativos não apenas na qualidade de vida dos cidadãos, mas também na atratividade turística do território nacional; e, b. em ambiente rural, as regras da usucapião têm colidido com a defesa da reserva agrícola nacional e da reserva natural e têm favorecido o minifúndio, com prejuízo para o desenvolvimento agrícola e florestal e para a prevenção dos incêndios e outras calamidades naturais, tudo em contramão aos imperativos constitucionais de ordenamento do território e de defesa do ambiente. 121.ª- Concluiu–se, assim, que a norma do artigo 1287.º do Código Civil, que resulta da interpretação e aplicação pelo tribunal a quo, do modo como o foi e que deixámos descrito, é inconstitucional, pelo que deve tal norma ser julgada inconstitucional, por violação dos artigos 65.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4, e 66.º, nº 1 e n.º 2, alíneas b) a f), da Constituição da República Portuguesa. 122.ª- Inconstitucionalidade essa que incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar, julgar e decidir, revogando em conformidade a decisão recorrida e dando–se procedência à presente ação, intentada pelo Ministério Público (artigos 204.º e 280.º da Constituição da República Portuguesa). Normas jurídicas violadas e sentido com que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas 123.ª- A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, designadamente, o disposto nos artigos 65.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4; 66.º, n.º 1, n.º 2, alíneas b), c), d), e) e f), da Constituição da República Portuguesa; os artigos 1287.º, 1376.º, 1379.º (na redação da Lei n.º 111/2015, de 27/8), 209.º, 280.º, 286.º, 294.º, 297.º, 8.º, 9.º, 12.º e 335.º, todos do Código Civil; o artigo 48.º, n.º 2 e n.º 3 da Lei 111/2015 de 27/8, na redação da alteração introduzida pela Lei n.º 89/2019 de 3/9; a Portaria n.º 219/2016, de 9–8 e, antes dela, a Portaria 202/70, de 21–4 (e antes desta o artigo 107.º do Decreto n.º 16.731); o artigo 54.º da Lei 91/95, de 2/9 (reconversão das áreas urbanas de génese ilegal) e o artigo 4.º, n.º 1 (enquanto norma interpretativa) da Lei 64/2003, de 23/8; os artigos 2.º, alíneas a), i) e j), 6.º, 9.º e 49.º, n.º 1, do DL n.º 555/99, de 16/12 (Regime Jurídico da Urbanização e Edificação); a Carta Europeia do Ordenamento do Território; os artigos 2.º e 19.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio (Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo); o artigo 162.º do DL n.º 80/2015, de 14 de maio (aprova a revisão do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, dando cumprimento ao artigo 81.º da Lei 31/2004). 124.ª- Normas que, constituindo o quadro jurídico pertinente à resolução da questão fundamental de Direito em apreciação, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de que são nulos os atos jurídicos que fracionam prédios rústicos e/ou mistos, por invocação da usucapião, a qual não prevalece sobre disposições em contrário, designadamente as que proíbem o fracionamento de prédios rústicos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil e/ou contrários às normas que disciplinam o loteamento urbano, por serem normas imperativas que tutelam interesses superiores de natureza e ordem pública, por decorrência da Constituição da República Portuguesa. D. PEDIDO. Pelo exposto, conforme o Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo–se que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça: a) Admita e julgue o presente recurso de revista excecional, por estarem preenchidos os requisitos para o efeito, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3, 672.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil. b) Aprecie a questão da inconstitucionalidade invocada, nos termos da Constituição da República Portuguesa e da Lei. c) Revogue a decisão recorrida, por violação das normas jurídicas acima referidas, resolvendo a questão fundamental de Direito em apreciação no sentido aqui preconizado, pois trata–se de questão cuja resolução, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito, além de envolver interesses de particular relevância social, constatando–se existir uma contradição de julgados sobre essa questão, que persiste. d) Na sequência, seja a ação intentada pelo Ministério Público julgada procedente. e) Tudo sem prejuízo de o Venerando Supremo Tribunal de Justiça entender ser de proceder ao julgamento ampliado da Revista – artigo 686.º do Código de Processo Civil no que se refere à matéria constante das conclusões 9.ª a 106.ª –, O QUE DESDE JÁ SE REQUER, pois estamos perante questão fundamental de Direito cuja resolução é suscetível de ser enunciada numa proposição jurídica a aplicar a todos os casos idênticos.
10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a única questão a decidir, in casu, é a seguinte: — se a aquisição por usucapião das AA e BB é impedida pela violação das disposições legais relativas ao fraccionamento ou ao loteamento urbano.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
11. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:
1. No dia .../.../1988, em ..., ..., GG faleceu, no estado de viúva. 2. Como únicos herdeiros sucederam-lhe os seus únicos filhos: AA, BB e HH. 3. No dia .../.../2007, faleceu a identificada HH, tendo deixado como seus herdeiros: o seu cônjuge sobrevivo DD e os seus filhos EE e II. 4. Por contrato de partilha celebrado no dia 29.01.2016, perante a solicitadora JJ, em ..., os Réus declararam, conjuntamente, além do mais, que o património da de cujus - GG - era constituído por: — um prédio misto, sito no lugar ... Antunes, freguesia ..., concelho ..., a confrontar do norte com rio, do sul com KK e LL, do nascente com KK e MM e do poente com LL, não descrito na Conservatória de Registo Predial ..., composto: — a parte urbana por prédio não licenciado em condições deficientes de habitabilidade, com a superfície coberta de 41,47m2 e logradouro com área de 118,53 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1492 que proveio do artigo 1508 da extinta freguesia de ..., que por sua vez proveio do artigo 1488 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial de €2630,00 e a que atribuem igual valor; — a parte rústica por eucaliptal, pinhal e mato, com área de 11.280 m2, inscrito sob a matriz sob o artigo 66 Secção I, anterior artigo 66 Secção I da freguesia de ..., com o valor patrimonial de €998,38, e a que atribuem o valor de €1.000. 5. E ali os réus declararam ainda que, como ato prévio à partilha, dividiam o aludido prédio misto, acima descrito em 4.º, em 3 novos prédios, a saber: a) um prédio urbano, composto pelo referido prédio em condições deficientes de habitabilidade, com a superfície coberta de 41,47m2 e logradouro com área de 118,53 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1492 que proveio do artigo 1508 da extinta freguesia de ..., que por sua vez proveio do artigo 1488 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial de €2630 e a que atribuem igual valor; b) um prédio rústico, com a área de 5080 m2, a confrontar a norte com o rio, do sul com estrada, do nascente com LL e do poente com NN, e a que atribuem o valor de €500; c) um prédio rústico com a área de 6.200 m2, a confrontar a norte com estrada, do sul com OO, do nascente com herança de PP e outros e do poente com LL e a que atribuem o valor de €500. 6. No referido ato, declararam adjudicar à primeira ré - AA- os prédios acima elencados em “5 a) e b)”, sendo que o prédio “5 c)” foi adjudicado aos segundos réus - BB e CC -, tendo os terceiros, quartos e quinto réus informado, ali, que receberam, dos restantes, as competente tornas. 7. Deste modo, através da referida partilha, os réus procederam à divisão do referido prédio inscrito sob o artigo 66-I em 3 parcelas: uma com 5080 m2; outra com 6020 m2 e outra com 160 m2, com construção (inscrita na matriz urbana sob o número 1492) - destinada a constituir um prédio urbano autónomo (havendo indicação de que esta construção estava anteriormente omissa na matriz, tendo sido inscrita apenas em 2015). 8. Donde, através daquele ato, os réus procederam à alteração/atualização do prédio rústico sob o artigo 66-I em três novos artigos: o 88.º da Secção I, o 89-da Secção I e o 90 da Secção I. 9. Assim, no artigo 88 da Secção I ficou a constar registado um prédio urbano com 160 m2, tal como acima elencado em “5 a)”. 10. Ou seja, desta forma, através da aludida partilha, os réus autonomizaram a parcela urbana do aludido prédio rústico. 11. Os réus nunca efetuaram qualquer pedido prévio de licenciamento ou formalizaram qualquer pedido de operação de destaque junto da Câmara Municipal ....
Da contestação
12. O prédio foi objeto de divisão verbal no ano de 1970, encontrando-se desde então, a Ré AA, na posse efetiva dos prédios que resultaram na divisão operada em virtude da escritura de partilhas descrita. 13. Cerca do ano de 1970, a falecida doou à filha mais velha, AA - à data com 20 anos - os prédios que lhe vieram a ser adjudicados no contrato de partilhas ora em causa. 14. Tendo destinado à outra filha BB, (à data ainda menor) o prédio que também lhe veio a ser adjudicado na supra citada escritura. 15. Assim: Doou à Ré AA, o prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo 1492, com a área total de 160 m2. 16. Bem como também lhe doou o prédio descrito na alínea c) da escritura de partilha, em concreto, o prédio rústico com a área de 6200 m2 , que por ser atravessado por uma estrada, originou mais tarde dois artigos matriciais, o artigo 90 e o artigo 89 da secção I, da freguesia ... , freguesia de F.... 17. Pelo menos desde 1970, que a Ré AA passou a comportar-se como única e exclusiva proprietária do prédio urbano objeto da partilha ora em crise. 18. O prédio em causa possui a área total de 160,26m2. 19. Sendo que cerca de 41,47m2 correspondem a parte urbana, e 118,53m2 correspondem a logradouro. 20. De construção anterior a 1951, pelo menos desde 1970 que a R. AA passou a exercer atos de posse sobre o mesmo. 21. O aludido prédio é composto por uma cozinha, sala, um wc e dois quartos. 22. Assim, desde que a R. AA, exerce a posse sobre o referido prédio que o mesmo teve sucessivos melhoramentos, com vista à sua habitabilidade. 23. A Ré AA, procedeu a melhoramentos ao longo destes anos, tais como a colocação de caixilharia para as janelas e procedeu a isolamentos necessários. 24. Tornou-a habitável com alguns elementos que conferem conforto e habitabilidade à mesma, tais como alguns móveis, instalação de fogão, etc. 25. Durante muitos anos este imóvel foi considerado um local de descanso, para onde se deslocava aos fins de semana, gozando momentos de lazer em família. 26. O prédio possui um pequeno logradouro, com a área aproximada de 118,53 m2, também zelado por esta, nas ocasiões em que se desloca a ..., ou por terceiro a quem solicita tais préstimos, QQ. 27. A Ré AA, também exerce a posse sobre os aludidos prédios desde a data supra identificada, em concreto 1970, também por doação verbal de sua mãe. 28. Diligenciando pela sua limpeza. 29. Pelo corte das árvores. 30. Pela recolha dos seus frutos. 31. Ambos os prédios se encontram devidamente demarcados por marcos. 32. Os atos de posse supra identificados nunca tiveram a oposição de ninguém. 33. Foram sempre públicos. 34. E pacíficos. 35. Assim, as Rés têm vindo, desde 1970, continuamente e sem oposição de quem quer que seja, à vista e com conhecimento de toda a gente, a agir com a convicção de proprietárias das parcelas individualizadas perfeitamente circunscritas. 36. Por sua vez, a ré BB também beneficiou de doação de sua mãe, e desde 1976 passou a usufruir de uma parcela rústica, com cerca de 5.080m2 (cinco mil e oitenta metros quadrados), a que corresponde o artigo 88 da secção I, da freguesia ..., concelho .... 37. O aludido prédio é composto por eucaliptos, e pinhal. 38. Acha-se delimitado com marcos, sendo que a Ré se ocupa da manutenção e zelo da sua área respetiva perfeitamente delimitada. 39. Contratando uma empresa, a “F...” para proceder à limpeza do prédio. 40. Cortando a madeira. 41. Limpando o terreno das silvas e mato. 42. Atos que praticam ininterruptamente. 43. À vista de toda a gente. 44. Sem oposição de ninguém. 45. De forma pública e pacífica. 46. A vizinhança reconhece a delimitação das parcelas ocupadas pelas Rés.
O DIREITO
12. Os factos dados como provados e, em especial, os factos dados como provados sob os n.ºs 17, 27 e 36 são claros no sentido de que a data do início da posse relevante para efeitos de usucapião se situa na década de 1970 — no caso da Ré AA, em 1970, e no caso da Ré BB, em 1976.
13. Enquanto o antigo texto do n.º 1 do art. 1379.º do Código Civil determinava que os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º eram anuláveis, o novo texto do n.º 1 do art. 1379.º, resultante da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, determina que os actos de fraccionamento relevante são nulos.
13. Em todo o caso, em consonância dos factos dados como provados e, em especial, em especial, com os factos dados como provados sob os n.ºs 17, 27 e 36, a aquisição da propriedade por usucapião apreciada no caso sub judice sempre seria anterior à alteração do n.º 1 do art. 1379.º do Código Civil pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto.
14. O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado no sentido de que o possuidor pode adquirir por usucapião, ainda que o prédio sobre a qual o possuidor exerça os seus poderes tenha sido autonomizado em violação das disposições legais relativas ao fraccionamento ou ao loteamento urbano — i.e., no sentido de que a aquisição da propriedade, designadamente por usucapião, precede a aplicação das normas de direito do urbanismo [1] ou, ainda que não preceda, prevalece sobre a aplicação das normas de direito do urbanismo relativas à divisão, ou ao fraccionamento, dos prédios [2]:
15. Como se diz, p. ex., nos acórdãos do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 — e de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3 —, I - A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC). II - A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa [3];
VI – A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse. VII – Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal. VIII – Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico [4].
16. Entre as razões da precedência ou, em todo o caso, da prevalência da aquisição de propriedade por usucapião sobressaem duas: a necessidade de protecção dos interesses subjacentes às normas de direito civil relativas à aquisição da propriedade por usucapião — designadamente, da confiança e da estabilidade de posições jurídicas consolidadas pelo tempo, pela posse e pela publicidade da posse [5] [6] — e a desnecessidade de protecção dos interesses subjacentes às normas de direito do urbanismo relativas à divisão ou ao fraccionamento da propriedade [7].
17. Os critérios aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça correspondem a uma harmonização entre princípios e valores com dignidade constitucional — entre o direito de propriedade privada, ainda que de um direito de propriedade adquirido por usucapião, e os interesses protegidos pelos arts. 65.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.
18. Explicando por que é que a harmonização conseguida é compatível com a ordem de valores constitucionais, o acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1 — diz, de forma paradigmática, que “… esgotado o decurso do tempo necessário à [usucapião], com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada” [8].
III. — DECISÃO
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido. Sem custas — art. 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 25 de Maio de 2023
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)
José Maria Ferreira Lopes
Manuel Pires Capelo _____ [1] Expressão do acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 518/14.8TJVNF.G1.S1 —, em cujo sumário se diz o seguinte: “VIII – Não é o loteamento que influencia e determina o domínio sobre os prédios, antes é este que influencia e condiciona o loteamento, sendo que, nos termos do art.1288º, do CC, ‘Invocada a usucapião, os seus efeitos retroagem à data do início da posse’. IX – Segundo cremos, não há que falar aqui em colisão de direitos, nos termos do disposto no art.335º, do CC, para o efeito de considerar que prevalece o regime jurídico do loteamento urbano em detrimento do regime jurídico da usucapião, antes se tratando, a nosso ver, de direitos que, no caso, não colidem porque, precisamente, estão numa relação de precedência”. [2] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1 —, de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 —, de 1 de Março de 2018 — processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2 —, de 3 de Maio de 2018 — processo n.º 7859/15.5T8STB.E1 —, de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1 —, de 8 de Novembro de 2018 — processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1 —, de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3 —, de 18 de Junho de 2019 — processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1 —, ou de 18 de Fevereiro de 2021 — processo n.º 20592/16.1 T8SNT.L1.S1. [3] Cf. acórdão do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1. [4] Cf. acórdão do STJ de 21 de Fevereiro de 2019 — processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3. [5] Expressão do acórdão do STJ de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1. [6] Em termos particularmente impressivos, vide o acórdão do STJ de 6 de Abril de 2017 — processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1: “V - Entender que a posse, baseada em acto ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque), é insusceptível de conduzir à aquisição da propriedade por usucapião abstrai da realidade económica e social do nosso país, onde especialmente no interior norte e centro, uma boa parte das partilhas entre maiores, nomeadamente de imóveis constitutivos dos acervos das heranças, ainda é ou era feita ‘de boca’ e posteriormente ‘legalizada’ com suporte na usucapião. VI - Por conseguinte, tendo a posse dos réus sobre a parcela de terreno em litígio nos autos se consolidado por usucapião e não resultando provado que a mesma tenha sido “destinada à construção” nem imediata nem subsequentemente à concretização da divisão física do prédio original, mas antes que se encontra há mais de 20 anos a ser utilizada como parque de estacionamento automóvel, não pode deixar de se reconhecer aos réus/reconvintes o direito de propriedade sobre tal parcela”. [7] Expressão do acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1. [8] Expressão do acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2014 — processo n.º 314/2000.P1.S1. |