Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P3383
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: DOLO ESPECÍFICO
BOA-FÉ
CRIME CONTINUADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200612200033833
Data do Acordão: 12/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Nos termos da lei, o crime de burla apresenta-se como um crime material ou de resultado, de dano contra o património alheio, que nem sequer exige efectivo benefício do burlão, bastando que ao nível do tipo objectivo se observe o empobrecimento, e que tem como pressupostos:
- a intenção de obter para si ou terceiro enriquecimento ilegítimo;
- por meio de erro ou engano sobre factos que, astuciosamente, provocou; - determinar outrem à prática de factos que lhe causem ou possam causar prejuízos.
II - Na doutrina, o crime de burla - cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, pág. 293, de Almeida Costa - é configurado como um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento, sob a forma de meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leve a praticar actos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
III - Passa o delito em apreço por um duplo nexo de imputação objectiva entre a conduta do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e, depois, entre os últimos e a própria lesão.
IV - No essencial, em qualquer destes momentos está presente a teoria da adequação, que se prende com o valor ou conteúdo comunicacional entre os sujeitos, em ordem à definição do domínio do erro jurídico-penalmente relevante.
V - A pedra de toque para aferir e inferir tal adequação assenta no princípio da boa fé, cujo uso permite distinguir e autonomizar situações: se no caso concreto a sucumbência ao erro viola ou não as regras daquele princípio, seja por palavras ou declarações expressas descrevendo uma falsa representação da realidade, seja por actos concludentes, seja por omissão.
VI - Na burla assiste-se a um dispositivo de estratagemas, à organização de enganos, a um certo cenário (mise-en-scène) que tem por fim dar crédito à mentira e enganar terceiros.
VII - O que verdadeiramente distingue o dolo civil do dolo criminal, na esteira de Chauveau e Hélie - citados por Beleza dos Santos, RLJ, Ano 76, n.º 2760, 1943, pág. 275 - é que no dolo civil se compreendem as manhas e artifícios que, embora, de per si, censuráveis, são no entanto empregados, menos com o intuito de prejudicar outrem, do que no interesse de quem faz uso deles. É nessa categoria que se vêm a integrar os actos mentirosos nos
contratos, o exagero do preço ou das qualidades do objecto da venda.
VIII - A lei penal não atingiu essa imoralidade; o dolo criminal não se manifesta somente pela simulação, pela manha, pois na burla procura-se enganar, enredar, prejudicar terceiros.
IX - A astúcia é algo que acresce à mentira, à dissimulação, ao silêncio, com carácter artificioso, reforçado habilmente com factos, atitudes e aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente credível.
X - A astúcia é um meio de enganar, com especial habilidade, direccionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade.
XI - O embuste não tem que ser sofisticado, rebuscado, altamente engenhoso, só apreensível por pessoas superiormente dotadas, deixando sem protecção o cidadão medianamente inteligente, pois o que se pretende é que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, seja idóneo a enganar a boa fé da vítima, de modo a convencê-la a praticar actos em seu prejuízo, limitando-se ao que se torna necessário ao seu objectivo.
XII - Resultando provado que:
- o arguido, pessoa astuta e inteligente, frequentador da Mercauto, representante da Mercedes, em Sete Rios, Lisboa, onde se empregava o ofendido ML, surgia ali como cliente assíduo;
Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais Número 108 - Dezembro de 2006 23
- aí travou conhecimento com o ML, identificando-se, falsamente, como JF, advogado, membro da comissão permanente do Partido…, insinuando-se como pessoa influente, bem relacionada e de grande carácter; - e, deste modo, logrou atingir a confiança do próprio ML, que chegou a consultar na sua própria casa; - no início de Abril de 2002, fez convencer, falsamente, que havia adquirido diversos
apartamentos tipo T3 em Lagos, penhorados pelo fisco, a preço bastante barato, carecendo de os vender para os pagar;
- propôs, então, ao ML, bem como a pessoas que ele conhecesse, a compra de apartamentos, sendo o preço de cerca de € 44 891,81, muito abaixo do valor real, este de € 149 639,36, do mesmo passo que exigia o depósito de 30%, como sinal;
- o ML acreditou na veracidade do negócio e contactou pessoas, familiares entre si, também com vista à sua aquisição, os ofendidos LC, M, JF, AA, AC, JA, MB, AR, SS, JG e MA, que se mostraram interessados na compra;
- o preço seria depositado numa conta da CGD em nome de HL, na filial de Vizela, ou numa conta de EL, da CGD, filial do Cacém, sendo depois o produto transferido para a conta do arguido;
- entre Abril e Agosto de 2002 o ML, como os demais ofendidos, procedeu ao depósito, segundo as instruções transmitidas primeiro pelo arguido àquele e, depois, pelo ML aos demais, agindo sempre segundo as directivas do arguido, dominando o negócio, transferindo as quantias depositadas, atingindo o total recebido € 223 799,33, sendo que € 8450 foram pagos em dinheiro, entregue ao arguido por ML, € 13 000 e € 13 967 foram entregues ao arguido por cheques de LC e JG, respectivamente;
- o arguido jamais adquiriu esses apartamentos, foi representante de vendedor de apartamentos, advogado ou membro da comissão permanente do Partido…;
- teve, no entanto, conhecimento da venda de apartamentos e arquitectou um plano para, utilizando o estratagema delineado, fazer suas as importâncias entregues, a que não tinha direito, agindo livre e conscientemente, em prejuízo dos ofendidos; é evidente que o arguido, iludindo a boa fé das vítimas, a partir da insinuação de pessoa de bem, influente no Partido…, advogado, portador de estatuto insuspeito, criador de engano, de um processo que oferecia credibilidade a um cidadão médio, por isso astucioso, exerceu directamente o engano sobre o ML e indirectamente sobre os demais ofendidos, poucos dos quais conheceu, servindo-se daquele, a quem rogou que transmitisse - o que fez - o processo criminoso, criando-lhes representações falsas, explorando-os patrimonialmente, na base de uma relação de que abusou.
XIII - Por isso, cometeu um crime de burla por acção, através da astúcia, da habilidade, da manha, do abuso de confiança nos termos descritos, não vingando a perspectiva [por si] invocada de que sobre os burlados impendia o dever jurídico de evitarem o resultado típico, antijurídico, não celebrando o pseudonegócio, de acordo com o art. 10.º, n.º 1, do CP.
XIV - O crime continuado, em que se assiste a uma unificação de várias condutas criminosas para além de pressupor uma plúrima realização do mesmo tipo ou de vários tipos que protegem o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente - art. 30.º, n.º 2, do CP -, por razões pragmáticas, não dispensa uma certa conexão temporal entre os actos criminosos [executados de forma substancialmente homogénea, visando a protecção do mesmo bem jurídico, a coberto de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente].
XV - No caso dos autos, embora os pagamentos por conta das aquisições dos apartamentos tenham tido lugar em curto prazo - Abril a Agosto de 2002 -, não se vê como as burlas tenham sido cometidas a coberto de uma situação exterior que diminua de forma
considerável a culpa do arguido.
XVI - A atenuação da culpa resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta, devendo estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter concorrido para o agente renovar a prática do crime, não se descortinando como a necessidade de
pagamento do preço, efectuado em curto prazo, pelos ofendidos no cumprimento de ordens Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Criminais Número 108 - Dezembro de 2006 24 e instruções suas directamente ao ofendido ML e por este retransmitidas aos demais, constitua uma circunstância exterior ao arguido, reduzindo-lhe culpa, antes provindo de si, a menos que se queira ver neles conculpa, apesar do seu empobrecimento real e efectivo e enriquecimento incontestável do lado do arguido. Nenhuma “fatalidade” gerada de fora, que degradasse a sua culpa, ocorreu, antes foi o arguido, pessoa arguta, que, abusando da confiança dos ofendidos, urdiu uma trama, estudando as circunstâncias exteriores, para os desapossar de quantias vultuosas, sem nada a justificar a deslocação patrimonial.
XVII - Não merece reparo a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido nas penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão [em 3 dos 10 crimes de burla em causa] e de 2 anos e 6 meses de prisão [nos restantes 7], e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos
de prisão.
Decisão Texto Integral:


Acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça .
Em Processo Comum Colectivo sob o n.º ......../02.6 TBLSB , da 9.ª Vara Criminal de Lisboa , 3.ª Sec. foram submetidos a julgamento :
AA e BB , vindo , a final , a condenar-se , apenas , o AA :
1.- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 2 a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
2- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 2 a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
3- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 2 a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) de prisão;-----
4- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
5- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
6- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
7- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
8- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
9- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;-----
10- pela prática, em autoria, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; em cúmulo jurídico na pena única de 7 (sete) anos de prisão;-----
11 -a julgar-se o pedido de indemnização civil intentado nos autos por CC contra os também demandados AA e BB, parcialmente procedente e, consequentemente, condenado o demandado AA no pagamento àquele demandante de 28.520,00 (vinte e oito mil quinhentos e vinte) euros, absolvendo o demandado AA do restante pedido e o demandado BB da totalidade do pedido e por DD contra os também demandados AA e BB, parcialmente procedente e, consequentemente, condenado o demandado AA no pagamento àquele demandante de 7.500,00 (sete mil e quinhentos) euros, absolvendo o demandado BB da totalidade do pedido .

I . Inconformado com o teor da decisão que assim o condenou , veio o arguido interpõr recurso para este STJ apresentando na motivação as seguintes conclusões :
A astúcia usada não tinha apetência para produzir o efeito pretendido , movendo-se o DD pelo interesse no lucro , logo , por falta de idoneidade para produzir o resultado danoso , os actos praticados pelo arguido não integram o crime de burla .
A conduta do arguido integra , sendo crime , um crime continuado por ter subjacente a ideia de realizar dinheiro para pagar depressa apartamentos adquiridos muito baratos , de que seriam beneficiários o DD e seus amigos , ideia vendida (?) em pouco tempo .
É aplicável o art.º 30.º , do CP .
Sendo crime continuado deve ser o arguido punível por um único crime de burla qualificada . É intensa a participação no “ iter criminis “ dos ofendidos.
A pena a aplicar deverá ser a de 3 anos de prisão .
Mostram-se violados os art.ºs 10.º n.º 1 , 30.º n.º 2 , 71 .º e 79.º , do CP .
II .O Exm.º Magistrado do M.ºP.º contramotivou , em 1 .ª instância , rebatendo , com proficiência , a tese do arguido .

III . Neste STJ a Exm.ª Procuradora Geral –Adjunta apõs o seu visto .

IV. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que o Colectivo teve por assente o seguinte acervo factual :

1. O arguido AA, durante o ano de 2002, foi cliente assíduo da firma “..........”, concessionária da Mercedes, com sede em Sete Rios, em Lisboa.------

2. Aí estabeleceu conhecimento com o ofendido DD, funcionário daquela firma, a quem se identificou como sendo EE, advogado, membro da comissão permanente do Partido Socialista, dando a entender ser pessoa influente, bem relacionada e dotada de grande carácter.-----

3. O arguido logrou, assim, obter a confiança do ofendido, chegando a ser por ele consultado na sua própria casa, sita, à data, em Miraflores.-----

4. No decurso deste relacionamento, no início de Abril de 2002, o arguido AA comunicou ao ofendido que adquirira diversos apartamentos T3 em Lagos, que, por se encontrarem penhorados pelas Finanças, tinham sido muito baratos, mas que precisava de os vender depressa para realizar o dinheiro para os pagar.-----

5. Disse-lhe, então, que se quisesse e conhecesse pessoas interessadas, os vendia por cerca de 44.891,81 euros – preço muito abaixo do valor real de cada apartamento, visto que o preço de mercado rondava os 149.639,36 euros –, e quem quisesse precisava apenas de dar de sinal 30% do valor total.

6. O ofendido DD logo se mostrou interessado no negócio, entregando ao arguido, por conta da compra, no dia 11 de Abril de 2002, o cheque nº ............., sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, no montante de 6.550,00 euros, e o cheque nº..........., sacado sobre o Montepio Geral, no valor de 19.000,00 euros, no dia 17 de Abril de 2002 o cheque nº ............, sacado sobre o Montepio geral, no valor de 12.470,00 euros, todos visados, e ainda a quantia de 8.450,00 euros em numerário, num total de 46.450,00 euros, o preço total do apartamento.-----

7. O ofendido, acreditando na veracidade do negócio, contactou ainda familiares seus para que também estes aproveitassem a oportunidade de efectuar tão “aliciante” investimento.-----

8. Foi, deste forma, e através do ofendido DD que os ofendidos CC, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN e OO, todos familiares entre si, tiveram conhecimento dos apartamentos e se dispuseram também a adquirir cada um o seu.-----

9. Segundo o acordo estabelecido entre o arguido e o ofendido DD, os interessados depositavam o sinal na conta nº ..............., da Caixa Geral de Depósitos, agência de Vizela, titulada por PP, ou na conta nº ........., da Caixa Geral de Depósitos, agência do Cacém, titulada por QQ, esposa do DD, sendo as quantias aqui depositadas posteriormente transferidas para o arguido AA.-----

10. Foi, assim, que o ofendido CC, no dia 30 de Julho de 2002, depositou na conta nº ............, titulada por QQ, o cheque nº ..........., sacado sobre o BPI, no montante de 14.000,00 euros, e no dia 23 de Agosto de 2002, entregou em mão ao arguido AA o cheque nº .........., sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ......, no montante de 13.000,00 euros, perfazendo a quantia de 27.000,00 euros.-----

11. Da mesma forma, o ofendido FF, no dia 29 de Maio de 2002, depositou na conta nº ................, titulada por QQ, um cheque no montante de 13.966,35 euros, e no dia 22 de Julho de 2002 efectuou uma transferência bancária para a mesma conta, no montante de 13.033,65 euros, o que perfaz a quantia de 27.000,00 euros.-----

12. Por sua vez, o ofendido FF, no dia 19 de Abril de 2002, depositou na mesma conta da QQ a quantia de 9.980,00 euros.-----

13. O ofendido HH, no dia 29 de Abril de 2002, transferiu para a mesma conta e com o mesmo fim a quantia de 13.967,00 euros.-----

14. Por seu turno, a ofendida II transferiu, a 15 de Abril de 2002, para a referida conta da Caixa Geral de Depósitos nº ........., titulada por QQ a quantia de 13.966,35 euros.--

15. Também o ofendido JJ, no dia 22 de Julho de 2002, transferiu para a conta nº .............., titulada por QQ, a quantia de 14.966,35 euros, e no dia 30 de Julho de 2004 transferiu para a mesma conta a quantia de 3.500,00 euros.-----

16. Por sua vez, o ofendido KK transferiu para a conta nº ............., da Caixa Geral de Depósitos de Vizela, titulada por PP, a quantia de 13.966,35 euros.-----

17. Com o mesmo fim, o ofendido LL, no dia 22 de Julho de 2002, por indicação do arguido AA, transferiu para a conta nº ......... do Montepio Geral de Famalicão, da titularidade de SS, a quantia de 10.000,00 euros, e a 2 de Agosto de 2002, transferiu para a conta nº ..........., titulada por QQ, a quantia de 10.000,00 euros.-----

18. Por seu turno, a ofendida MM, no dia 1 de Agosto de 2002, transferiu para a conta nº........., titulada por QQ, a quantia de 5.000,00 euros.-----

19. Sempre para pagar os ditos apartamentos, o ofendido NN entregou no dia 29 de Maio de 2002, ao ofendido DD, o cheque nº .........., sacado sobre a sua conta no TA, no montante de 13.966,35 euros, que este de imediato deu ao arguido AA.-----

20. Por último, o ofendido OO, no dia 26 de Abril de 2002, transferiu para a conta nº ........, titulada por QQ, a quantia de 13.967,00 euros.-----

21. Por seu turno, o ofendido DD, como intermediário no negócio, transmitiu ao arguido AA, segundo as suas directivas, todas as quantias que recebeu dos ofendidos, bem como os apartamentos que os mesmos estavam interessados em adquirir, sendo que o ofendido LL manifestou interesse em adquirir três apartamentos.-----

22. Assim, no dia 19 de Abril de 2002, transferiu para a conta de PP a quantia de 9.980,00 euros, recebida de GG.------

23. No dia 26 de Abril de 2002 transferiu para a mesma conta a quantia de 13.967,00 euros, recebida de OO.-----

24. No mesmo dia 26 de Abril de 2002 transferiu para a mesma conta a quantia de 13.967,00 euros, recebida de HH.------

25. No dia 15 de Maio de 2002 e no dia 17 de Maio de 2002 transferiu para a mesma conta as quantias, respectivamente, de 5.486,34 euros e 8.480,00 euros, recebidas de II.-----

26. No dia 29 de Maio de 2002 transferiu para a mesma conta a quantia de 13.966,35 euros, recebida de FF.-----

27. No dia 30 de Julho de 2002 entregou ao arguido AA, em numerário e a seu pedido, a quantia de 17.500,00 euros, recebida de JJ.-----

28. No dia 30 de Julho de 2002 transferiu para a referida conta titulada por PP a quantia de 28.000,00 euros, recebida de CC.-----

29. No dia 1 de Agosto de 2002 transferiu para a mesma conta a quantia de 5.000,00 euros, recebida de MM.-----

30. No dia 2 de Agosto de 2002 transferiu para a mesma conta a quantia de 7.500,00 euros e entregou ao arguido AA, em numerário, a quantia de 2.500,00 euros, perfazendo, assim, o total da quantia recebida de LL.-----

31. O arguido AA nem nunca foi advogado, nem membro da Comissão Permanente do Partido Socialista e só referiu tais títulos para granjear a confiança dos ofendidos.-----

32. O arguido AA nunca foi proprietário ou representante dos apartamentos sitos em Lagos.-----

33. Efectivamente, o arguido AA, em data que não foi possível apurar, soube da existência para venda dos referidos apartamentos em Lagos, tendo arquitectado um plano para conseguir proventos económicos que sabia ilegítimos.-----

34. No dia 23 de Agosto de 2002 o arguido AA conseguiu que ao ofendido CC fosse mostrado um apartamento, já que aquele se encontrava desconfiado, tendo ainda recebido dele a quantia de 13.000,00 euros.-----

35. Na altura, o arguido AA, com o mesmo fim de tornar sério o negócio, preencheu e assinou, enquanto Advogado EE, os contratos-promessa de fls. 14 e 17 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, com os ofendidos CC e FF, intitulando-se representante da firma “......” e promitente vendedor.-----

36. O arguido AA sabia não ser o dono dos apartamentos, nem estava em condições de via a ser e nada fez nesse sentido.------

37. Utilizou os referidos artifícios para conseguir com que os ofendidos lhe entregassem as quantias supra referidas.-----

38. Efectivamente estes, sem esses estratagemas, nunca lhe teriam entregue as referidas quantias.-----

39. O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente.----

40. Com a sua conduta apropriou-se da quantia total de 223.729,33 euros e causou os seguintes prejuízos:-----
- a DD 46.450,00 euros;-----
- a CC 27.000,00 euros;-----
- a FF 27.000,00 euros;-----
- a GG 9.980,00 euros;-----
- a HH 13.967,00 euros;-----
- a II 13.966,35 euros;-----
- a JJ 18.466,35 euros;-----
- a KK 13.966,35 euros;-----
- a LL 20.000,00 euros;-----
- a MM 5.000,00 euros;-----
- a NN 13.966,35 euros;-----
- a OO 13.967,00 euros.-----

41. O arguido AA sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.-----

42. O demandante CC sofreu preocupações, perdas de tempo e frustração pelo ludíbrio de que foi vítima.-----

43. O demandante DD sofreu preocupações e perdas de tempo na sequência dos factos supra descritos.-----

44. O arguido AA é o mais novo de oito irmãos, tendo a sua progenitora falecido aquando do seu nascimento.-----

45. Nessa altura o arguido foi entregue aos cuidados de uma enfermeira religiosa que prestou assistência ao parto, tendo ficado com a mesma até perto dos 9/10 anos de idade, a partir dos quais entrou num Seminário, onde se manteve internado até aos 21 anos de idade.-----

46. A partir desse momento desistiu da vida monástica, ficando entregue a si próprio.-----

47. O arguido refere que apenas terá tido dois contactos com o pai (entretanto falecido) e com os irmãos, desconhecendo o paradeiro destes últimos até hoje.-----

48. O arguido não conseguiu organizar-se em termos vivenciais e aos 23 anos sofreu o primeiro confronto com o aparelho judicial, pela prática de vários crimes, tendo cumprido 11 anos de prisão e saído em liberdade condicional.-----

49. Por incumprimento das injunções da referida medida de flexibilização da pena, foi-lhe revogada a liberdade condicional.-----

50. No decorrer deste novo período de reclusão, e encontrando-se em regime aberto virado para o exterior, acabou por se evadir.-----

51. Contraiu matrimónio em 1978, com uma senhora que conheceu durante a reclusão.-----

52. Desta união, que terminou em 1993, resultaram duas filhas, de cujo processo educativo acabou por ser figura ausente, embora fosse contactando com as mesmas durante os 10 anos em que se manteve fugido.-----

53. As suas filhas viviam com a mãe, na cidade de Chaves.-----

54. Durante os últimos 10 anos da sua vida o percurso do arguido AA foi marcado por uma grande mobilidade geográfica.-----

55. No actual período de reclusão o arguido tem mantido comportamento sem registo disciplinar.-----

56. Em relação à sua actual situação processual evidencia uma atitude defensiva e desculpabilizante, denotando ausência de intimidação quanto ao desvalor de anteriores condutas ilícitas.-----

57. O arguido AA tem actualmente 51 anos de idade.-----

58. Do certificado de registo criminal do arguido AA constam, pelo menos, as seguintes condenações anteriores:-----
a) em 29 de Outubro de 1975, pela prática de crimes de burla e abuso de confiança, na pena única de 2 anos de prisão e 140 dias de multa;-----
b) em 5 de Setembro de 1975, pela prática de um crime de uso de trajos eclesiásticos, na pena de 15 dias de prisão, substituída por multa;-----
c) em 8 de Janeiro de 1980, pela prática de crimes de burla e furto, na pena de 5 anos e 10 dias de prisão maior;-----
d) em 16 de Novembro de 1983, pela prática de crime de burla, na pena de 6 anos e 8 meses de prisão;-----
e) em 12 de Março de 1985, pela prática de crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 7 meses de prisão;-----
f) em 28 de Outubro de 1985, pela prática de um crime de evasão, na pena de 6 meses de prisão;-----
g) em 21 de Outubro de 1986, pela prática de crimes de falsificação, burla e emissão de cheque sem provisão, na pena única de 16 anos de prisão;-----
h) em 19 de Abril de 1991, pela prática de crimes de burla, na pena única de 18 anos de prisão.-----

59. O arguido BB é descendente de uma família de condição sócio-económica humilde, havendo a registar que o progenitor abandonou o lar quando aquele tinha 5 anos de idade.-----

60. Neste contexto, foi a mãe quem assumiu o acompanhamento do arguido.-----

61. O agregado vivenciou algumas situações de carência económica, tendo o arguido sido educado no âmbito de uma dinâmica relacional, por vezes, condicionada pelo consumo de bebidas alcoólicas da figura materna.-----

62. Tinha o arguido 17 anos de idade quando a progenitora resolveu refazer a sua vida pessoal, contraindo matrimónio, surgindo então um novo elemento no agregado – o padrasto – com quem manteve sempre uma relação de proximidade.-----

63. O arguido concluiu o 7º ano de escolaridade aos 13 anos de idade, altura em que abandonou a escola, face à necessidade de se inserir profissionalmente de forma a poder contribuir para a economia familiar.---

64. Profissionalmente, iniciou-se aos 14/15 anos, como lavador de camiões na empresa de transportes “Nogueira”, em Vila Nova de Famalicão, enquadramento que manteve durante 3 anos.-----

65. Trabalhou, de seguida, cerca de um ano no sector da construção civil como trolha, por conta de outrem.-----

66. Posteriormente, passou, então, a trabalhar numa empresa de distribuição de bebidas, a “Costa e Oliveira”, em Vila Nova de Famalicão, onde se manteve durante cerca de 10 anos.-----

67. O arguido integrou durante alguns anos o Grupo de Escuteiros de Vila Nova de Famalicão, que terá abandonado por alegados desentendimentos com o Chefe do Grupo.-----

68. O arguido sempre residiu com o agregado de origem até contrair matrimónio, aos 27 anos de idade, altura em que passou a residir com a mulher num apartamento adquirido sob hipoteca bancária.-----

69. Há cerca de dois anos emigrou para França, objectivando refazer a sua vida sócio-económica.-----

70. Actualmente encontra-se a trabalhar na construção civil e a mulher efectua trabalhos de empregada de limpeza.-----

71. O arguido BB tem, presentemente, 30 anos de idade.-----

72. Do certificado de registo criminal do arguido BB nada consta.-----

V .A burla , em sentido corrente , surge como uma forma evoluída de apropriação do alheio , em que o agente se serve de engano para inacauteladamente a vítima se deixe lesar .

Nos termos legais o crime de burla , apresenta-se como um crime material ou de resultado , de dano contra o património alheio , que nem sequer exige efectivo benefício do burlão , bastando que ao nível do tipo objectivo se observe o empobrecimento , e que tem como pressupostos :
_ a intenção de obter para si ou terceiro enriquecimento ilegítimo ;
- por meio de erro ou engano sobre factos que , astuciosamente , provocou;
- determinar outrém `a prática de factos que lhe causem ou possam causar prejuízos , como resulta do art.º 217.º n.º 1 , do CP .

Na doutrina , o crime de burla –cfr Comentário Conimbricense ao Código Penal , pág . 293 , de Almeida Costa –é configurado como um delito de execução vinculada em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento , sob a forma de meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que , por seu turno , a leve a praticar actos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios .
Passa o delito em apreço por um duplo nexo de imputação objectiva entre a conduta do agente e a prática , pelo burlado , de actos tendentes a uma diminuição do património próprio ou alheio e , depois , entre os últimos e a própria lesão .
No essencial , a qualquer destes momentos refere-se uma teoria da adequação , que se prende com o valor ou conteúdo comunicacional entre os sujeitos , em ordem à definição do domínio do erro jurídico-penalmente relevante.
A pedra de toque –cfr. op. cit . , pág. 300 – para aferir e inferir tal adequação , assenta no princípio da boa fé , cujo uso permite distinguir e autonomizar situações sobre se no caso concreto a sucumbência ao erro viola ou não as regras daquele princípio , seja por palavras ou declarações expressas descrevendo uma falsa representação da realidade , seja por actos concludentes , seja por omissão .

Na burla assiste-se a um dispositivo de estratagemas , à organização de enganos , a um certo cenário (mise- en - scène ) , que tem por fim dar crédito à mentira e enganar terceiros , segundo Garraud , citado pelo eminente penalista Prof. Beleza dos Santos , in estudo publicado na R L J , Ano 76 , n.º 2760 , 1943 , 278 .

O que verdadeiramente distingue o dolo civil do dolo criminal , na esteira de Chauveau e Hélie , ali citados , a págs. 275 , é que no dolo civil se compreendem as manhas e artifícios que , embora , de per si , censuráveis , são no entanto empregados , menos com o intuito de prejudicar outrém , do que no interesse de quem faz uso deles .
É nessa categoria que se vem a integrar os actos mentirosos nos contratos , o exagero do preço ou das qualidades do objecto da venda .
A lei penal não atingiu essa imoralidade , por ser mais fácil a defesa contra ele e toda a tentativa de representação prejudicar a segurança das convenções .
O dolo criminal não se manifesta somente pela simulação , pela manha , pois na burla se procura enganar , enredar , prejudicar terceiros .
A astúcia , pressuposto de resto já consagrado no art.º 148.º , do CP helvético , para configuração do crime de burla , com descritivo típico em tudo similar ao do nosso CP actual , é algo que acresce à mentira , à dissimulação , ao silêncio , com carácter artificioso , reforçado habilmente com factos , atitudes e aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente credível –nota 2 , pág. 307 .
A astúcia é um meio de enganar , com especial habilidade , direccionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade .
O embuste não tem que ser sofisticado , rebuscado , altamente engenhoso só apreensível por pessoas superiormente dotadas , deixando sem protecção , como intenta ver consagrado o arguido , o cidadão medianamente inteligente , pois o que se pretende é que , de acordo com as circunstâncias do caso concreto , seja idóneo a enganar a boa fé da vítima , de modo a convencê-la a praticar actos em seu prejuízo , limitando-se ao que se torna necessário ao seu objectivo . Esta a jurisprudência deste STJ , impressa , por , ex.º nos Acs .proferidos nos P.ºs n.ºs 3772/02 -5.ª Sec. , de 8.2.2001 , 2745 /01 -5.ª Sec. , CJ , STJ , Ano IX, I , 218 .

VI . O arguido , pessoa tida pelo Colectivo como astuto , inteligente , frequentador da ........ , representante da “ Mercedes “ , em Sete Rios , Lisboa , onde se empregava o ofendido DD , surgia ali , como cliente assíduo .
O arguido travou conhecimento com o DD , identificando-se , falsamente , como EE , advogado , membro da comissão permanente do Partido Socialista , insinuando-se como pessoa influente , bem relacionada e de grande carácter.
E , deste modo , logrou atingir a confiança do próprio DD , que chegou a consultar na sua própria casa .
No início de Abril de 2002 , faz convencer , falsamente , que havia adquirido diversos apartamentos tipo T3 em Lagos , penhorados pelo fisco , a preço bastante barato , carecendo de os vender para os pagar .
Propôs , então , ao DD a compra de apartamentos bem como a pessoas que ele conhecesse , sendo o preço de cerca de 44.891 , 81 € , preço muito abaixo do valor real , este de 149. 639, 36 € , do mesmo passo que exigia o depósito de 30% , como sinal .
O DD acreditou na veracidade do negócio e contactou pessoas , familiares entre si , também em vista da sua aquisição : os ofendidos CC , FF e GG , HH , II , JJ , KK , LL , MM , NN e OO, que se mostraram interessados na compra.

O preço seria depositado numa conta da CGD em nome de PP , na filial de Vizela ou numa conta de QQ, da CGD , filial de Cacém , sendo depois o produto transferido para a conta do arguido AA .

Entre Abril e Agosto de 2002 o DD procedeu ao depósito como os demais ofendidos , segundo as instruções transmitidas primeiro pelo arguido àquele e , depois , pelo DD aos demais , agindo sempre segundo as directivas do arguido , dominando o “ negócio” , transferindo as quantias depositadas , atingindo o total recebido € 223.799, 33 , sendo que 8.450.0 € foram pagos em dinheiro , entregue ao arguido por DD , 13.000 € 13.967 € , entregues ao arguido , por cheques de CC e NN , respectivamente .


Ora o arguido jamais adquiriu esses apartamentos , foi representante de vendedor de apartamentos , advogado ou membro da comissão permanente do Partido Socialista .
Teve , no entanto , conhecimento da venda de apartamentos e arquitectou um plano para , utilizando o estratagema delineado , fazer suas as importâncias entregues , a que não tinha direito , agindo livre e conscientemente , em prejuízo dos ofendidos . Normalmente o burlão cria ou pode ter criado , com relações prolongadas , um ambiente de confiança , de que se aproveitará no momento próprio , muitas vezes conseguindo aparência de homem de bem , alcançando uma posição de que pode mais tarde abusar.
E o procedimento do arguido ajustou-se , de pleno , a este “ cliché” , iludindo a boa fé das suas vítimas , a partir da insinuação de pessoa de bem , influente no PS , advogado , portador de um estatuto insuspeito , criador de engano , de um processo que se oferecia de credibilidade , que lhes fazia crer , por isso astucioso , em que o cidadão médio incorre .
O arguido exerceu directamente o engano , como se escreve no douto acórdão recorrido , a fls . 985 , , sobre o DD e , indirectamente sobre os demais ofendidos , poucos dos quais conheceu , servindo-se daquele , a quem rogou que transmitisse –o que fez –o projecto criminoso , criando-lhes representações falsas , explorando-os patrimonialmente , na base de uma relação de que abusou.

O arguido intenta fazer impender sobre os burlados o dever de evitarem o resultado típico , antijurídico , não celebrando o pseudo- negócio , de acordo com o disposto no art.º 10.º n.º 1 , do CP , segundo o qual quando um tipo legal compreender um certo resultado o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo , salvo se outra for a intenção da lei .
O preceito consagra a equiparação da acção à omissão , consagrando a doutrina da causalidade adequada , que , nos crimes de execução vinculada , pressupondo a cooperação com a vítima , como o de burla , tem o sentido de “ reenviar o aplicador do direito para uma valoração autónoma , de carácter ético-social , através da qual ele determine se , segundo as concretas circunstâncias do caso , o desvalor da omissão corresponde ou é equiparável ao desvalor da acção , na perspectiva da própria ilicitude “ , esta doutrina expendida pelo insigne penalista Prof. Figueiredo Dias , in Pressupostos da Punição , Jornadas de Direito Criminal , CEJ , 50 .
Se , remata o Mestre coimbrão , atendendo ao modo de execução ou aos meios determinados que pressupõe , o julgador concluir pela não correspondência , então terá de concluir que era outra a intenção da lei , nos termos e para efeitos da cláusula geral de equiparação prevista no art.º 10.º , do CP .

Temos que convir que , provinda a proposta de venda de quem proveio , de alguém fazendo –se passar por advogado , figura de proa do PS , em que o ofendido DD depositava confiança , tanto assim que o chegou a “ consultar” em sua casa , aparentando razoável condição económica –surgia assiduamente e na “ ..... “ , concessionária da “ Mercedes “ , em Sete Rios , não passando aos ofendidos , como ao cidadão comum , despercebido que as arrematações judiciais propiciam preços de aquisição que , não de todo infrequente , são inferiores ao real , sopesadas as condutas , pese embora os ofendidos não consultarem documentos respeitantes à eventual compra no âmbito da jurisdição fiscal ou à sua identificação dos imóveis , mesmo assim o desvalor da acção é muitíssimo superior ao da sua omissão , em termos tais que a astúcia , a habilidade , a manha , o abuso de confiança , empregue pelo arguido integra o crime de burla , caindo sob a alçada penal , com dignidade desta natureza , mostrando-se idónea a enganar os lesados , imérita de tutela , como que castigo para a sua omissão .
É assim que procedem os burlões todos os dias e em todo o mundo , escreve Jakoby , in Revue Internacional de Droit Pénale , Ano XVI , pág . 188 .

E o caso , nem por ser entre nós , merece enquadramento jurídico-penal postergando-se os ensinamentos colhidos do direito comparado .

Improcede , assim , o argumento aduzido .

VII .E quanto à verificação do crime continuado por o arguido ter que realizar dinheiro para pagar depressa os preços dos apartamentos adquiridos , de que seriam beneficiários DD e seus amigos , ideia “ vendida “ (sic) num curto espaço de tempo , suscita ela a questão de saber se se registou a mesma situação exterior proporcionando a repetição do ilícito numa proximidade temporal –art.º 30.º n.º 2 , do CP .

O crime continuado para além de pressupõr uma plúrima realização do mesmo tipo ou de vários tipos que protegem o mesmo bem jurídico , executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente –art.º 30.º n.º 2 , do CP .
O crime continuado , em que se assiste a uma unificação de várias condutas criminosas , por razões pragmáticas , não dispensa , além daquela pluralidade , uma certa conexão temporal entre os actos criminosos , executados de forma substancialmente homogénea , visando a protecção do mesmo bem jurídico , a coberto de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente .

Embora os pagamentos por conta das aquisições dos apartamentos tenha tido lugar em curto prazo -Abril a Agosto de 2002- , não se vê como essas burlas tenham sido cometidas a coberto de uma situação exterior que diminua de forma considerável a culpa do arguido.
A conexão entre o crime e o “ ambiente “ pode traduzir-se em que este crie um disposição exterior para a prática do crime , uma oportunidade favorável .
É que a decisão de executar um crime pressupõe sempre uma certa situação ambiente constituída por todas aquelas circunstâncias e acontecimentos exteriores que arrastam a pessoa para ele , que se opõem às tendências que ele conduzem , facilitando-o ou dificultando –o , determinando a sua execução ou de algum modo interferindo no seu “ se “ , “ como “ ,” onde “ e “ quando “ .
Nas situações clássicas , exteriores , redutoras da culpa , catologam-se os casos em que se cria , através de uma primeira actividade criminosa , um acordo entre os sujeitos envolvidos ; o voltar-se a repetir a mesma oportunidade criminosa e as hipóteses em que a continuação se baseia na solicitação exercida sobre o agente pela circunstância da perduração do meio apto para realizar o delito-cfr. Unidade e Pluralidade de Infracções , Prof. Eduardo Correia , págs . 247 a 249 .
A atenuação da culpa resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta , devendo estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter concorrido para o agente renovar a prática do crime , não se descortinando como a necessidade de pagamento do preço , efectuada em curto prazo , pelos ofendidos no cumprimento de ordens e instruções suas directamente ao ofendido DD e por este retransmitidas aos demais , constitua uma circunstância exterior ao arguido , reduzindo-lhe culpa , antes provindo de si , a menos que se queira ver neles conculpa , apesar do seu empobrecimento real e efectivo e enriquecimento inconteste do lado do arguido .
Nenhuma “fatalidade “ gerada de fora , que degradasse a sua culpa , se vê , antes foi o arguido que , abusando da confiança dos ofendidos , urdiu uma trama , estudando as circunstâncias exteriores- ele que é pessoa arguta -para os desapossar de quantias vultuosas , sem nada a justificar a deslocação patrimonial .

E quanto à medida concreta da pena que o arguido entende dever situar-se em 3 anos de prisão :

O dolo de intenção é da maior intensidade , tanto sob a forma de volição dos actos , como sob a forma de conhecimento da proibição legal .

A ilicitude , sob a forma de contrariedade à lei , de desvalor do acto apresenta-se em grau elevado , visível a partir do modo de execução dos crimes , número de ofendidos e desfalque patrimonial causado , a sua personalidade dominada pela desconformação a regras de protecção do património alheio , configurada , do antecedente , em 4 crimes de burla , 1 de abuso de confiança , 1 de furto , para além de 2 de emissão de cheque sem provisão , e , ainda , de outros , incluindo o de abuso de traje eclesiástico , de evasão e de falsificação , valendo-lhe a prática dos de burla 18 anos de prisão.

Vale por dizer que em termos de prevenção especial , provando-se que o crime fica a dever-se a uma certa propensão para o crime ( mais do que a uma circunstância exterior –o que concorre para arredar a figura da continuação) , a uma qualidade desvaliosa do agente , a medida da pena é mais sentida pela maior adequação do facto à personalidade do agente e menor adequação da personalidade do agente à média social , agente esse para quem as condenações anteriores não serviram para estimular a sua fidelidade ao direito , justificando uma intervenção vigorosa do direito penal .
O arguido ainda não interiorizou os efeitos do seu acto denotando arrependimento , não se vendo em que medida se verifica uma “intensa participação das vítimas “ , atenuando a sua responsabilidade criminal .

De um ponto de prevenção geral , uma das vertentes do processo formador da pena que toma como ponto de partida o valor dos bens jurídicos a proteger , (art.º 40.º n.º 1 , do CP) , em ordem a tornar possível a convivência colectiva , dissuadindo potenciais delinquentes , também se fazem sentir aqui fortes necessidades da pena , pela frequência com que se praticam crimes de burla .

Dos crimes de burla 7 são punidos com prisão até 5 anos de prisão ( art.ºs 217 .º e 218.º n.º 1 , do CP ) ; 3 com prisão de 2 a 8 anos ( art.ºs 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 a) , do CP ) ; em cúmulo a pena tinha como limite máximo 25 anos de prisão e mínimo 3 anos e 6 meses -art.º 77 .º n.º2 , do CP , pelo que a de 7 anos de prisão se mostra equitativa , justa , exemplarmente suportada pela moldura da culpa e submolduras da prevenção geral e especial , que , actuando no interior daquela , a não podem exceder .

Improcede o recurso , negando –se-lhe provimento .
Confirma-se inteiramente o acórdão recorrido .

Taxa de justiça : 10 Uc,s . Procuradoria : 1/3 .
Lisboa, 20 de Dezembro de 2006

Armindo Monteiro (relator)
Sousa Fonte
Santos Cabral
Oliveira Mendes