Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B923
Nº Convencional: JSTJ00040133
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
TÍTULO CONSTITUTIVO
REGISTO
EFICÁCIA
NULIDADE
PARTE COMUM
FRACÇÃO AUTÓNOMA
ESTACIONAMENTO
PARQUE PRIVATIVO
Nº do Documento: SJ200001130009232
Data do Acordão: 01/13/2000
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 344/99
Data: 04/27/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR REAIS. DIR REGIS NOT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 294 ARTIGO 295 ARTIGO 344 N1 ARTIGO 1415 ARTIGO 1416 N1 ARTIGO 1418 N1 N2 A ARTIGO 1419 N1 ARTIGO 1421 N2 D N3.
RGEU51 ARTIGO 6 ARTIGO 7 ARTIGO 8.
CNOT67 ARTIGO 74-B N1.
CNOT95 ARTIGO 59 N2.
DL 445/91 DE 1991/11/20.
DL 448/91 DE 1991/11/29.
CONST89 ARTIGO 212 N3.
ETAF84 ARTIGO 3 ARTIGO 6.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1991/04/09 IN AJ N18 PAG13.
ACÓRDÃO STJ DE 1986/05/27 IN BMJ N357 PAG435.
ACÓRDÃO STJ DE 1998/02/19 IN BMJ N474 PAG467.
ACÓRDÃO STJ DE 1996/05/21 IN BMJ N457 PAG356.
ACÓRDÃO STJ PROC870/97 DE 1998/02/10 2SEC.
ASSENTO STJ DE 1989/05/10 IN DR DE 1989/07/15.
Sumário : I - Para a individualização das fracções autónomas de um prédio em regime de propriedade horizontal, bem como para a determinação do seu destino ou afectação, há que atender ao respectivo título constitutivo, sendo que no plano substantivo a propriedade horizontal se rege pelo título e pela lei civil a qual modela o "se" e o "an" da horizontalidade.
II - O Título constitutivo da propriedade horizontal goza de eficácia "erga omnes", dada a sua natureza real, desde que conste do registo.
III - A presunção estabelecida no artigo 1421º nº 2 alínea d) do C.Civil - de que são comuns as garagens de prédio em regime de propriedade horizontal - traduz um critério meramente supletivo a funcionar na ausência de uma vontade expressamente manifestada, a qual terá, todavia, sempre de ceder perante a presunção derivada do registo.
IV - Definindo a licença camarária (e respectivo projecto) que a cave se destina a "estacionamento privativo", na transposição para o regime da propriedade horizontal a constituir não pode deixar de ter o destino "estacionamento", mas não tem este de ser privativo dos condóminos.
V - Assim, definida a natureza jurídica desse espaço como fracção autónoma, e encontrando-se inscrita a favor do instituidor a constituição da propriedade horizontal do prédio - de cujas fracções são condóminos outros diferentes titulares - há que reconhecer àquele instituidor o direito exclusivo de propriedade sobre tal espaço.
VI - O título constitutivo pode mesmo afectar ao uso exclusivo certas zonas das partes comuns - artigo 1421º nº 3 do C. Civil - o que não retira ao dono do edifício (instituidor unilateral desse título) a qualidade de seu proprietário pleno, sendo que o título de constituição de propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública havendo acordo de todos os condóminos - artigo 1419º nº 1 do C. Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A, Cooperativa de Construção e Habitação CRL", propôs acção ordinária contra B e mulher C, e OUTROS, pedindo a condenação dos réus a:
a) reconhecerem que a A. é dona e legítima senhora das fracções autónomas designadas pelas letras P, Q, R, S, T, U, V e Z, correspondentes a outros tantos lugares de garagem na cave do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo predial sob o nº 479, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1622º; e
b) absterem-se, no futuro, da prática de actos que perturbem ou impeçam o exercício do direito de propriedade da autora sobre aquelas fracções, nomeadamente, impedindo por qualquer forma o acesso da A., ou das pessoas que posteriormente vierem a adquiri-las, aos lugares de garagem que constituem as fracções autónomas designadas na alínea anterior.
Alegou, em suma, que construiu aquele edifício, depois constituído em regime de propriedade horizontal, composto por 12 habitações e 11 lugares de garagem, e que os RR, depois de terem adquirido fracções autónomas para habitação no Bloco A do prédio, pretendem agora adquirir os lugares de garagem por preço que a autora não aceita, e por isso fecharam a porta da cave, impedindo o acesso ao local pela parte exterior.

2. Os RR contestaram, dizendo, no essencial, que as fracções reivindicadas não formam unidades autónomas, distintas e isoladas por modo a poderem ser objecto de propriedade horizontal; e deduziram reconvenção, pedindo, com fundamento na falta daqueles requisitos, a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e dos actos celebrados em relação às fracções N a Z, e que o prédio fique sujeito ao regime de compropriedade.

3. A A., na réplica, opôs-se à admissão da reconvenção, e subsidiariamente, excepcionou a incompetência do tribunal em razão da matéria e impugnou os fundamentos do pedido reconvencional.

4. No saneador, o tribunal de 1ª instância, embora sem apreciar as questões suscitadas na réplica, considerou-se competente em razão da matéria, julgou improcedentes as excepções e questões prévias e admitiu a reconvenção.

5. Por sentença de 15 de Julho de 1998, foi a acção julgada procedente, e a reconvenção improcedente, sendo os réus condenados no pedido da autora e esta absolvida do pedido reconvencional.

6. Inconformados com tal decisão, dela vieram apelar os RR reconvintes, apelação que foi julgada improcedente por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 27 de Abril de 1999.

7. Ainda inconformados, desta feita com tal aresto, dele vieram os mesmos RR, reconvintes recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:
1 - Na sua reconvenção, pugnam os apelantes pela nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, alegando que
a) Nos termos do artigo 1415º do C. Civil "só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes sejam isoladas entre si";
b) Jamais a cave comportou essas fracções independentes, distintas e isoladas entre si;
c) Tão pouco comportou quaisquer marcas de designação de lugares de garagem;
d) É manifesta a falta de requisitos legalmente exigidos para que as fracções "N" a "Z" possam ser consideradas fracções autónomas;
e) É nulo, consequentemente, o título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos do artigo 1416º, nº 1 do Código Civil;
f) A nulidade implica "a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada, nos termos do artigo 1418º do C. Civil ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção.
2 - A resposta ao quesito, formulado pela negativa, apenas afirma que a cave do prédio se destina a estacionamento de veículos automóveis, sem que se pronuncie sobre a questão crucial: que se compõe de onze fracções.
3 - A resposta ao quesito 2º, formulado pela negativa, dando como não provado que o piso da cave não contenha marcas a individualizar lugares de estacionamento, não dá como provado que as contenha.
4 - Competia à apelada fazer a prova inequívoca dos factos constitutivos do seu direito, em obediência ao disposto no artigo 342º do C.Civil.
5 - Não há factos apurados - e não há dúvida de que não foram apurados - através dos quais se possa concluir pela existência objectiva das fracções na cave, nem por demarcações no piso, nem por se constatar existirem fracções autónomas, independentes, distintas e isoladas entre si.
6 - A sentença recorrida viola o disposto no artigo 342º do C. Civil.
7 - A sentença recorrida viola o disposto no artigo 668º nº 1 alínea b) do CPC, pelo que é nula.
8 - Nulo é também o título constitutivo da propriedade horizontal por falta dos requisitos legalmente exigidos para o efeito, pois não corresponde à realidade apurada na cave do prédio, assim violando o disposto nos artigos 1415º e 1416º do C. civil.
9 - A presunção do artigo 7º do C.R.Predial é uma presunção juris tantum.
10 - O que se trata de saber é se as fracções existem na cave e a conclusão é não.
11 - Nesta presunção de existência das fracções, a sua prova incumbe à parte que as presunção favorece, isto é, à recorrida.
12 - O acórdão recorrido violou as mesmas normas da decisão proferida na 1ª Instância, nomeadamente o disposto no artigo 342º do C. Civil, e não usou da faculdade contida no nº 1, alínea b) do artigo 712º do C.P.Civil.

8. Contra-alegou a A. sustentando a correcção do decidido pelas instâncias, concluindo pela improcedência do recurso.

9. Colhidos os vistos dos Exmos. Adjuntos, e nada obstando, cumpre decidir.

10. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1 - A autora construiu um edifício composto por cave, rés-do-chão e três andares no lote de terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 0039, registado a favor da autora sob a inscrição G-1, e inscrito na respectiva matriz sob o nº 1574, e a que se refere o alvará de loteamento nº 8 de 1994, passado pela Câmara Municipal;
2 - Por escritura de 26 de Abril de 1994, a autora constituiu o prédio em propriedade horizontal, compreendendo 12 fracções autónomas - A a M - destinadas a habitação, com entrada pelo arruamento a nascente, e onze lugares de garagem - N a Z - na cave do edifício, com entrada pelo arruamento a poente, tendo o acto sido registado na Conservatória - Ap. 41/270494;
3 - No acto da escritura, foi arquivada uma certidão camarária comprovativa de que o prédio satisfaz os requisitos legais para se constituir em regime de propriedade horizontal;
4 - A autora, por si e antepossuidores, sempre ali erigiu construções, vendeu fracções, pagou as contribuições legais, desde há mais de 40 anos, á luz do dia e à vista de toda a gente, sem hábitos ou soluções de continuidade, nunca alguém tendo ousado contestar a autora para o fazer, actuando esta, por si e antepossuidores, na convicção de o fazer no exercício de um direito correspondente ao de propriedade;
5 - As fracções A, D, E, I e M foram registadas por inscrição provisória por natureza a favor dos réus, respectivamente, por compra à autora;
6 - pelas escrituras de 22 de Maio e 6, 12 e 13 de Junho de 1995, a autora vendeu as fracções N, O, X, e V (lugares de garagem) a X e mulher, J e W e Z, respectivamente, a favor dos quais foram registadas por inscrição provisória por natureza;
7 - A cave do prédio destinava-se a permitir o estacionamento de veículos automóveis;
8 - A atitude dos réus, ao fecharem o portão de acesso à cave por parte da autora ou de pessoal a seu mando, depois de os réus terem trancado a porta, impedindo dessa forma a sua abertura, para o que mandaram substituir a fechadura, impede a autora de ter acesso á cave;
9 - E de a utilizar para guardar e dali retirar materiais de construção utilizados na conclusão dos trabalhos na obra, como até agora vinha fazendo.

Passemos agora ao direito aplicável.

11. Considerações preliminares.
Os ora recorrentes, reproduzem, praticamente ipsis verbis, as alegações já por si apresentadas em sede de recurso de apelação. Agem assim tal como se estejam a pôr novamente em crise a sentença de 1ª instância e como se não houvesse sido entretanto prolatado o acórdão do Tribunal de 2ª Instância, sem quase nada inovarem em termos de retórica argumentativa.
E só porque, no fundo, apresentaram formalmente umas "alegações" onde voltam a ressuscitar as questões já submetidas ao escrutínio do 1º grau de recurso se não decide desde já pela deserção pura e simples da presente revista.
Torna-se, por seu turno, patente a pretensão dos recorrentes de que este Supremo Tribunal sindique a matéria de facto já apurada pelas instâncias, o que se encontra expressamente vedado pelos artigos 721º nº 2, 722º nº 2 e 729º nº 2 do CPC95.
Por outro lado, pretendem os mesmos que o Supremo censure o não uso pelo Tribunal da Relação dos seus poderes para modificar a decisão de facto, o que é inviável, já que o uso de tais poderes pode ser merecedor de juízo crítico pelo tribunal de revista que não também o seu não uso, tal como, de resto, vem constituindo jurisprudência firme deste Supremo.
Por último - na conclusão 7ª - argúem os recorrentes uma suposta nulidade do acórdão com base na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC, causa essa que não substanciaram minimamente, como aliás lhes competia. Sempre se dirá todavia que não se descortina qualquer nulidade desse tipo: com efeito, o acórdão encontra-se fundamentado de facto e de direito, sem embargo, da evidente parcimónia fundamentadora do aspecto jurídico que exibe. Todavia, também na esteira da jurisprudência corrente deste Supremo, só integrará a causa de nulidade contemplada na citada alínea uma ausência total de fundamentação, que não também uma fundamentação escassa ou pouco densa, pelo que improcede pois tal arguição.

12. Nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.
Sintetizando a posição dos recorrentes quanto a este ponto, dir-se-á o seguinte: as fracções N a Z não têm as características de unidades independentes, distintas e isoladas exigidas pelo artigo 1415º do C.Civil, visto que não se apuraram factos que revelem a "existência objectiva das fracções na cave, nem por demarcações no piso, nem por se constatar existirem fracções autónomas, independentes, distintas e isoladas entre si" (conclusão"5."); e competia à autora fazer a prova desses factos "constitutivos do seu direito" (conclusão "4."); como assim, o desfecho da acção teria que ser-lhe (à A.) desfavorável.
Contudo, e para além de descabida, como já acima deixámos dito, qualquer controvérsia factual acerca de tal ponto, as coisas passam-se exactamente ao contrário em termos de repartição do ónus probatório.
Estatui, com efeito, o artigo 7º do CRP84, que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Na hipótese "sub judice", o registo define as unidades N a Z como "onze lugares de garagem", tendo como zonas comuns a entrada pelo arruamento a poente.
Se nada obstar em contrário, a autora - instituidora do regime de propriedade horizontal do prédio - goza, assim, da presunção da existência de um direito de propriedade exclusiva sobre cada uma das fracções em apreço.
É, na verdade, sabido, que para a individualização das fracções autónomas de um prédio em regime de propriedade horizontal, bem como para a determinação do seu destino ou afectação, se há que atender ao respectivo título constitutivo. "No plano substantivo, a propriedade horizontal rege-se pelo título e pela lei civil, assim se definindo o modo e o como (ou seja o "se" e o "an") da horizontabilidade - Ac do STJ de 9 de Abril de 1991, in Aj, nº 18º, página 13.
O título constitutivo é o acto modelador do respectivo estatuto e só a ele há que atender para esse fim, sendo irrelevantes as negociações anteriores, sem prejuízo de serem consideradas para a exigência de indemnização, se for o caso, a haver do instituidor da propriedade horizontal - conf. neste sentido, o Ac do STJ de 27 de Maio de 1986, in BMJ nº 357, pág. 435.
O título constitutivo da propriedade horizontal goza de eficácia erga omnes, dada sua natureza real, desde que conste do registo - conf., Ac do STJ 19 de Fevereiro de 1998, in BMJ nº 474, pág. 467.
Discute-se nos autos a existência real ou material, como verdadeiras fracções autónomas, das supra-identificadas, (no título) como "garagens".
A lei, face à presunção estabelecida no artigo 1421º nº 2 alínea d) do CCIV66 - de que são comuns as garagens de prédio em regime de propriedade horizontal - remeteu, em primeira linha para a vontade manifestada na constituição dessa propriedade a dilucidação da natureza daquele espaço (destinado a garagens). Trata-se porém de um critério puramente supletivo, a funcionar na ausência de vontade expressamente manifestada, a qual, todavia, sempre terá de ceder perante a presunção derivada do registo.
A propósito de uma hipótese algo similar, já este Supremo se manifestou em recente acórdão pela forma seguinte:
"Referindo a licença camarária (e respectivo projecto) que a cave se destina a estacionamento privativo, na transposição para o regime da propriedade horizontal a constituir não pode deixar de ter o destino "estacionamento" mas não tem este de ser privativo dos condóminos. Definida a natureza jurídica desse espaço como fracção autónoma e encontrando-se inscrita a favor do autor a constituição da propriedade horizontal do prédio de cujas fracções, à excepção da cave, são condóminos os réus, há que reconhecer àquele o direito de propriedade sobre ela - conf. Ac. do STJ de 21 de Maio de 1996, in BMJ, nº 457, pág. 356.
O título constitutivo pode mesmo afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns - artigo 1421º nº 3 do CCIV66, o que não tira ao dono do edifício instituidor unilateral desse título a qualidade de seu proprietário pleno. O título constitutivo gera a autonomização das fracções do imóvel e define o estatuto da projectada propriedade horizontal sempre que nele se estabeleçam regras que integrem ou complementem o regime legal ou dele se afastem. Regras estas que adquirem, desde que registadas, força vinculativa, mesmo para os futuros adquirentes das fracções autónomas, independentemente do respectivo assentimento.
No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às diversas fracções por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas e será fixado o valor de cada fracção expresso em percentagem ou permilagem do valor total do prédio - artigo 1418º nº 1 do CCIV66 - podendo ainda constar desse título, para além de outras especificações, a "menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum" - nº 2 alínea a) do mesmo preceito.
Certo é, por seu turno, que o título de constituição da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública havendo acordo de todos os condóminos - artigo 1419º nº 1 do CCIV66.
A inscrição no registo predial da aquisição derivada de uma fracção de edifício em propriedade horizontal estabelece a presunção de que existe um direito de propriedade sobre a fracção, de que o respectivo sujeito activo é seu titular e de que o é nos precisos termos definidos naquele registo.
O artigo 1421º nº 2 do C. Civil estabelece uma presunção de que as garagens são comuns, mas há que entender que a presunção derivada do registo, face á eficácia real e erga omnes do acto registado, deve prevalecer sobre aquela.
E, destarte, a prova de que as mesmas não têm os requisitos exigidos por lei incumbia aos réus, e não à autora, como pretendem os recorrentes, isto por força do disposto no nº 1 do artigo 344º do CCIV66.
Claro é que a parte material ou técnica de construção e respectivos aprovação e licenciamentos se encontram reguladas nos preceitos regulamentadores das construções urbanas cuja observância e supervisão cumpre, prima facie, às câmaras municipais nos termos das leis em vigor. E diga-se desde já que o auto de vistoria de edifício destinado ao regime de propriedade horizontal deve conter, quer a identificação das diferentes fracções autónomas, quer o respectivo destino. E isto desde logo porque "nos projectos de novas construções e de reconstrução, ampliação e alteração de construções existentes serão sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos" - conf. artigo 6º do RGEU51.
Que dizer assim a respeito da reclamada (pelos RR reconvintes e ora recorrentes) nulidade do título constitutivo?
É sabido que a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal com a consequente sujeição ao regime de propriedade, designadamente por ofensa de disposições legais de carácter imperativo ou de interesse e ordem pública estruturantes do direito do urbanismo, como são algumas das contempladas por exemplo no RGEU51, no DL 445/91 de 20 de Novembro e no DL 448/91 de 29 de Novembro e subsequentes alterações - conf. artigo 1416º nº 1 do CCIV66. Nulidade que em princípio só atingirá as fracções integradas na parte afectada.
E diga-se de passagem que se encontra fora de causa - nesta sede e oportunidade - a eventual sindicância da legalidade da actuação da câmara municipal, quer na aprovação dos projectos de construção quer na emissão das respectivas licenças (de construção e/ou utilização), controlo esse apanágio exclusivo dos tribunais do contencioso administrativo - conf. artigos 212º nº 3 da CONST89 e 3º e 6º do ETAF84.
Pois bem.
O documento comprovativo da verificação dos requisitos para o acto constitutivo da propriedade horizontal estabelecidos pelo artigo 1415º do CCIV66 (v.g. fracções autónomas que, para além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si e com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública) só podia e tinha (ao tempo) que ser emitido pela câmara municipal respectiva, de harmonia com o disposto no artigo 74º-B nº 1 do CNOT67, sob precedência de vistoria municipal (artigos 6º a 8º do RGEU51), não bastando pois a mera confrontação com os simples projectos de construção.
Só agora, face ao nº 2 do artigo 59 do CNOT95 actualmente em vigor, "tratando-se de prédio construído para transmissão em fracções autónomas, o documento ... pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção...").
É certo que enfermará de nulidade - nos termos do preceituado nos artigos 294º e 295º do CCIV66 - o negócio jurídico celebrado ou a declaração negocial emitida contra disposição legal de carácter imperativo - o título constitutivo da propriedade horizontal se não conforme com o respectivo projecto aprovado pela câmara municipal - conf. Assento do STJ de 10 de Maio de 1989. A validade do título constitutivo da propriedade horizontal dependerá assim não só da verificação dos requisitos constantes dos artigos 1414º e 1415º do CCIV mas também dos fixados ou concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de harmonia com as normas que regem as construções urbanas - conf. mesmo Assento e ainda o Ac. do STJ de 10 de Fevereiro de 1998, in Proc 870/97 - 2ª Secção.
Mas não é menos verdade que nada nos autos comprova não só a violação directa de qualquer dos aludidos comandos normativos como, outrossim, qualquer desconformidade entre o título e o subjacente licenciamento camarário incidente sobre o concreto projecto de construção, em termos de surgir como ostensivamente violado qualquer preceito legal de carácter imperativo.
E, como já deixamos dito, impendia sobre os recorrentes a prova de tal discrepância ou desconformidade, sendo certo que os réus apenas puseram em crise a existência de "quaisquer marcas no seu piso através das quais se possam distinguir lugares individuais de estacionamento" (19º da contestação) - facto negativo este que, de resto, foi dado como não provado - e não a potencialidade abstracta de os lugares de garagem se constituírem em propriedade horizontal, viabilidade essa que havia, aliás, sido oportunamente verificada pela entidade administrativa licenciadora.
Nada pois a justificar a drástica sanção da nulidade pretendida pelos recorrentes.
Nenhuma censura a fazer, deste modo, ao pendor decisório do acórdão revidendo, pese embora a sua manifestamente parca densidade fundamentadora.

13. decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário oportunamente concedido.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2000.
Ferreira de Almeida,
Moura Cruz,
Abílio de Vasconcelos.