Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ISABEL PAIS MARTINS | ||
| Descritores: | RECURSO PENAL DUPLA CONFORME ADMISSIBILIDADE DE RECURSO HOMICÍDIO AGRAVANTE ARMA MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA PARCELAR PENA ÚNICA REFORMATIO IN PEJUS | ||
| Data do Acordão: | 11/30/2016 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
| Área Temática: | DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / MEDIDA DA PENA. DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º1, AL. F), 409.º, 420.º, N.º 1, AL. B). RJAM: - ARTIGO 86.º, N.º 3. | ||
| Sumário : | I - De acordo com o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. São, assim, dois os pressupostos de irrecorribilidade estabelecidos na norma: o acórdão da relação confirmar a decisão de 1.ª instância e a pena aplicada na relação não superior a 8 anos de prisão. II - Havendo recurso para a relação e conformação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme, ainda que in mellius), só é admissível recurso para o STJ quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão. Assim, nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, não é admissível o recurso no segmento da impugnação da medida da pena, pelo crime de homicídio tentado, a implicar a respectiva rejeição, nessa parte, nos termos do art. 420.º, n.º 1, al. b), do CPP. III - O acórdão recorrido omitiu qualquer consideração quanto à agravação do homicídio imposta pelo n.º 3 do art. 86.º do RJAM. Nem sequer convoca a problemática da, por vzes, invocada violação do princípio ne bis in idem consubstanciada na circunstância da valoração do uso da arma para efeitos da agravação do homicídio e para o preenchimento do crime de detenção de arma proibida. IV - Sendo de referir que, no caso, não se verifica uma relação de concurso aparente entre o crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, e o crime de detenção de arma proibida, em que aquele, aparecendo como ilícito principal, consumiria o crime de detenção de arma, impedindo o princípio ne bis in idem a valoração autónoma e integral do crime de detenção de arma proibida sob pena, justamente, de violação da proibição da dupla valoração. IV - No comportamento global do recorrente revela-se uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude os quais devem ser integralmente valorados para efeito de punição. Verifica-se, pois, um concurso efectivo, puro ou próprio, heterogéneo, entre o crime de homicídio, agravado por ter sido cometido com arma, e o crime de detenção de arma proibida. Os bens jurídicos tutelados são diferentes; a agravação resultante do n.º 3 do art. 86.º do RJAM, tutela a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática; enquanto que pelo crime de detenção de arma proibida se protege a segurança da comunidade. V - Por outro lado, no caso, a detenção da arma não se esgotou na prática do homicídio mas, pelo contrário, precedeu o momento do seu uso como instrumento do crime, e excedeu-o, mantendo-se a detenção de arma após a prática daquele crime. A apreciação da questão da medida da pena pelo homicídio terá, por conseguinte, em conta a medida abstracta da pena do homicídio agravado – moldura abstracta de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão -, sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus (art. 409.º, do CPP), isto é, não pode este tribunal agravar a medida da pena em prejuízo do recorrente. VI - As circunstâncias do caso, em que o homicídio foi cometido no contexto um projectado “assalto” nocturno de um estabelecimento, vitimando uma pessoa que assomou à janela de sua casa alertada pelo barulho da tentativa de arrombamento, são adequadas a causar fortes sentimentos de insegurança na comunidade. No plano da culpa do recorrente releva atender a que o recorrente e os seus co-arguidos planearam a execução do assalto levando com eles uma espingarda caçadeira de canos serrados, tendo o recorrente, que ficara de vigia, efectuado os disparos, na direcção das vítimas, quando elas assomaram à janela, alertadas pelo barulho da tentativa de arrombamento. Pelo que, tudo ponderado, se afigura como adequada a pela de 14 anos de prisão aplicada pelas instâncias ao arguido, pela prática do crime de homicídio. VII - A prática de todos os crimes – homicídio, detenção de arma proibida e furto qualificado tentado (à excepção do crime de falsificação de documento) – ocorreu no mesmo lugar e ocasião, havendo uma estreita conexão entre todos eles, na medida em que a detenção da arma se destinou a facilitar a prática do assalto e é a descoberta deste que leva ao homicídio. Pelo que, a estreita ligação que se verifica entre os referidos crimes, constitui razão fundamentadora de uma redução da pena única, que se considera adequada fixar em 18 anos de prisão, em lugar da pena de 20 anos de prisão fixada pelas instâncias. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, n.º 103/14.4JAPRT, da Instância central de ... [....ª secção criminal – Juiz ...], por acórdão de 30/10/2015, foi decidido, no que respeita ao arguido AA [..., ..., nascido em ..., actualmente preso no ...] – e no que, agora, interessa considerar –, condená-lo: i) pela prática, em concurso efectivo, e em co-autoria material, de: – um crime homicídio simples, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º do Código Penal[1], na pena de 14 anos de prisão; – um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 22.º e 23.º, do CP, na pena de 6 anos de prisão; – um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no artigo 86.º, n.º 1, alínea c), com referência ao artigo 2.º, n.º 1, alínea v), e artigo 3.º, n.º 2, alínea l), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, republicada pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril, alterada pela Lei n.º 50/2013, de 27 de Julho, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; – um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 204.º, n.º 2, alíneas e) e f), 22.º e 23.º do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, e ii) pela prática, em concurso efectivo, e em autoria material singular, de – um crime de falsificação de documento autêntico, na forma consumada, p. e p. no artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e), e n.º 3, por referência ao artigo 255.º, alínea a), do CP, na pena de 3 anos de prisão. iii) em cúmulo jurídico dessas penas, de harmonia com o disposto no artigo 77.º do CP, na pena única de 20 anos de prisão. 2. Foram interpostos vários recursos para o Tribunal da Relação do Porto, incluindo pelo arguido AA, mas, por acórdão de 07/04/2016, o Tribunal da Relação do Porto a todos negou provimento. 3. Inconformado, o arguido AA veio interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando a seguintes conclusões: «1. Os critérios de escolha e determinação das medidas das penas parcelares e consequente pena resultante do cúmulo jurídico não foram, uma vez mais, devidamente ponderados pelo Tribunal recorrido. «2. O recorrente é primário, «3. Não tem outros processos pendentes, «4. Está integrado do ponto de vista familiar e socialmente; «5. Demonstra capacidade para retomar atividade profissional. «6. Não olvidando ainda as demais condições especiais do recorrente e toda a factualidade dada como assente no acórdão, mas com mais vigor a que ora supra se deixa transcrita e a que resulta expressa nos factos provados - percurso de vida do arguido - cremos que as penas parcelares justas adequadas e proporcionais são: «a) 11 (onze) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131°. do CPenal; «b) 4 (quatro) anos de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p, e p. pelas disposições conjugadas dos artgº. 131°., 22°. e 23°, do CPenal; «7. Em cúmulo jurídico das penas referidas nas als. a) e b) e nas demais que foram aplicadas e que, necessariamente, caiem fora do âmbito do presente recurso, na pena única de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão, «8. E estas são as penas parcelares e aquela que resulta do cúmulo jurídico que se nos afiguram justas, sendo estas penas as que obedecem ao disposto nos artgs.º 40,° e 71.° do C.P. «9. Houve pois inadequada interpretação e aplicação do disposto nos artgsº. 22°., 23°., 131°. e 132°., nsº. 1 e 2 al. h), 40°, e 71°. , todos do Código Penal; e, ainda, artgº. 32°, nº. 2 da CRP.» 3. Foi proferido despacho a admitir, sem qualquer limitação, o recurso. 4. Na resposta que apresentou, o Ministério Público pronunciou-se pela improcedência do recurso. 5. Recebidos os autos nesta instância, na oportunidade a que se refere o artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[2], a Exm.ª Procuradora-geral-adjunta suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso no que respeita à impugnação da pena de 6 anos de prisão aplicada pelo crime de homicídio simples, na forma tentada, e, quanto ao mais – impugnação das penas pelo homicídio consumado e única, pelo concurso de crimes – foi de parecer de que o recurso não merece provimento. 6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou aos autos. 7. Não tendo sido requerida a realização da audiência (artigo 411.º, n.º 5, do CPP) e não sendo caso de rejeição total do recurso, a implicar o respectivo julgamento por decisão sumária, foi o julgamento do recurso remetido para a conferência (artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP). Colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência, da mesma procedendo o presente acórdão.
II
1. O objecto do recurso Como emerge das conclusões formuladas pelo recorrente – pelas quais se define e delimita o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) –, o recurso restringe-se à impugnação das medidas das penas singulares, pelos crimes de homicídio consumado e tentado, e à medida da pena conjunta, pelo concurso de crimes, as quais o recorrente tem por excessivas. 2. A rejeição parcial do recurso Por razões de precedência lógica há que começar por apreciar a questão relativamente à qual o recurso não é admissível. Como vimos, o recorrente impugna as medidas das penas singulares pelo homicídio, na forma tentada, e pelo homicídio consumado. Porém, pelo crime de homicídio, na forma tentada foi condenado na pena de 6 anos de prisão, pena essa em que havia sido condenado na 1.ª instância e que foi confirmada pela relação, sem que, nesse ponto, tivesse ocorrido, na relação, qualquer alteração, no plano dos factos ou da qualificação jurídica. Verifica-se, pois, no que respeita ao crime de homicídio, na forma tentada (e ao demais que, agora, não interessa referir), “dupla conforme”. Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da relação são admissíveis, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, segundo o qual [recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça], “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações em recurso, nos termos do artigo 400.º”. De acordo com o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, mantida inalterada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. São, assim, dois os pressupostos de irrecorribilidade estabelecidos na norma: o acórdão da relação confirmar a decisão de 1.ª instância e a pena aplicada na relação não ser superior a 8 anos de prisão. A constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na actual redacção, na medida em que limita a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão superior a 8 anos, já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional. Aliás, nesta matéria, o Tribunal Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme segundo a qual o legislador ordinário goza da máxima liberdade de conformação concreta do direito ao recurso, desde que salvaguarde o direito a um grau de recurso. Havendo recurso para a relação e confirmação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme), só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão. No caso de concurso de crimes e verificada a “dupla conforme”, sendo aplicadas vá-rias penas pelos crimes em concurso, penas que, seguidamente, por força do disposto no artigo 77.º do CP, são unificadas numa pena conjunta, haverá que verificar quais as penas superiores a 8 anos e só quanto aos crimes punidos com tais penas e/ou quanto à pena única superior a 8 anos é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. A interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º segundo o entendimento de que a circunstância de o recorrente ser condenado numa pena (parcelar ou única) superior a 8 anos de prisão não assegura a recorribilidade de toda a decisão, compreendendo-se, portanto, todas as condenações ainda que inferiores a 8 anos de prisão, que tem sido seguida por este Tribunal, também já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que não julgou inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretado no sentido de que «no caso de concurso de infracções tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão da 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ (…), sem prejuízo de ser recorrível qualquer outra parte da decisão, relativa a pena parcelar ou mesmo só à operação de formação da pena única que tenha excedido aqueles limites». Esse julgamento de não inconstitucionalidade fundou-se no entendimento de que não é constitucionalmente desconforme a inadmissibilidade de um terceiro grau de jurisdição quanto à aplicação de pena parcelar não superior a 8 anos de prisão. Embora noutra perspectiva de análise, o Tribunal Constitucional, em acórdão, tirado por maioria, decidiu «julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigo 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP)». Em nossa opinião, porém, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão contém-se, ainda, no sentido possível das palavras da lei, sem comportar, por isso, analogia proibida, e observa uma das declaradas finalidades do regime de recursos em processo penal, vigente a partir da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, de restrição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Na linha deste entendimento, releva atender, neste ponto, ao acórdão n.º 186/2013, de 4 de Abril de 2013, pelo qual o Plenário do Tribunal Constitucional decidiu «não julgar in-constitucional a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão». Havendo recurso para a relação e confirmação da decisão de 1.ª instância (a chamada dupla conforme, ainda que in mellius), só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão. Assim, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, não é admissível o recurso no segmento da impugnação da medida da pena, pelo crime de homicídio tentado, a implicar a respectiva rejeição, nessa parte, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP. Sendo de referir que o despacho que admitiu o recurso, irrestritamente, não vincula este Tribunal (artigo 414.º, n.º 3, do CPP). 3. Os factos que se devem ter por definitivamente assentes Os factos que foram dados por provados na 1.ª instância e mantidos pela relação, que interessam à apreciação e decisão do recurso, neles não se detectando vício de que cumpra oficiosamente conhecer, são os seguintes[3]: «1. No dia 20 de Janeiro de 2014, BB, conhecido por “...”, falecido em 7 de Abril de 2014, reuniu na sua casa, sita na ..., vários amigos, familiares e vizinhos, por no dia seguinte celebrar o seu aniversário. «2. Estiveram presentes, para além do aniversariante, os aqui arguidos, CC, DD, EE e AA, bem como FF, GG e HH. «3. Ainda no dia 20 de Janeiro de 2014, BB, DD, EE, CC e AA, acordaram entre si deslocarem-se ao estabelecimento de bebidas e restauração, designado por “...”, sito na Rua ..., para retirarem todo o tabaco que encontrassem na máquina de tabaco que aí se encontrava. «4. Em cumprimento do plano delineado entre todos, por volta das 23h30, fazendo-se transportar num veículo automóvel de cor vermelha, com a matrícula ...-DP, da marca SEAT, modelo Ibiza, cor vermelha, propriedade de BB, dirigiram-se ao referido café, levando com os mesmos uma espingarda-caçadeira de canos serrados, que não foi possível apreender e examinar, que BB e em cumprimento do plano acordado entre todos, havia previamente retirado de uma zona de mato junto às imediações da .... «5. BB, entretanto falecido, ocupou o lugar do condutor, enquanto o arguido AA ocupou o lugar de passageiro frontal e os demais ocuparam os restantes lugares como passageiros. «6. Quando chegaram ao local, pararam o veículo junto ao portão de acesso do referido estabelecimento comercial, tendo o arguido EE permanecido no interior da viatura automóvel, e os restantes arguidos apearam-se do mesmo, assumindo o arguido AA a posição de vigia, munido com a espingarda-caçadeira, carregada com dois cartuchos de caça de calibre 12, em plástico, de tipo semi-concentrador, com quatro pétalas unidas inferior, intermédia e su-periormente, colocando-se em posição de frente para a janela sita no primeiro andar. «7. BB dirigiu-se à mala da viatura automóvel de onde retirou uma chave de fendas que entregou ao arguido DD e, de seguida, este último dirigiu-se, juntamente com o arguido CC, ao interior do logradouro da moradia, onde se situa o referido estabelecimento comercial. «8. Quando os arguidos DD e CC começaram a forçar a fechadura do estabelecimento comercial e a empurrar a porta para aceder ao interior do estabelecimento comercial, foram surpreendidos por II e JJ, que habitavam o 1º andar, situado por cima do estabelecimento comercial referido, que se aproximaram da janela alertados pelo barulho. «9. Altura em que o arguido AA, que ficou na posição de vigia, efectuou um disparo com a espingarda-caçadeira, na direcção de II e de JJ, atingindo II na cabeça, na face e no pescoço e JJ nas mãos e, de seguida, efectuou novo disparo na direcção dos ofendidos, cuja mu-nição atingiu a parede da moradia. «10. Em consequência do disparo com que foi atingido, II sofreu as lesões craniomeningoencefálicas, da face e do pescoço que de forma directa e necessária lhe determinaram de imediato a morte, ficando a dever-se a morte a traumatismo de natureza perfuro contundente ou como tal actuando, devido a acção de projéctil de arma de fogo de cano comprido. «11. Em consequência do disparo efectuado, JJ sofreu escoriações múltiplas em ambas as mãos, sem que tais lesões estejam ainda consolidadas que, de forma directa e necessária, lhe provocaram dores, pelas quais recebeu tratamento hospitalar, que só não teve consequências mais graves nomeadamente a morte, por motivos alheios à vontade dos arguidos. «12. De seguida, os arguidos, à excepção do arguido CC que fugiu a pé, entraram para a viatura automóvel que os tinha transportado e colocaram-se em fuga, pela Rua ... em direcção à Igreja de ..., de volta à ..., onde posteriormente cada um dos arguidos recolheu à respectiva casa. «13. O arguido AA, no dia 25 de Janeiro de 2000, dirigiu-se à Conservatória do Registo Civil de ..., onde declarou que o seu nascimento não havia sido, até à data, registado, afirmando chamar-se LL e requerendo o seu registo. «14. Na mesma data foi emitido Assento de Nascimento nº. ..., em nome de LL. «15. O arguido AA solicitou, em 27 de Janeiro de 2001, na Conservatória do Registo Civil de ..., a emissão de bilhete de identidade em nome de LL, nascido na freguesia de ..., no ano de ..., filho de pais desconhecidos, pelo que foi emitido o BI com o nº. .... «16. Pedido que renovou em 3 de Novembro de 2003, em 12 de Setembro de 2006 e em 15 de Novembro de 2012, sendo que ao longo deste período de quase 15 anos tem vindo a usar a identidade de LL, nomeadamente, para obtenção do número de identificação fiscal, carta de condução que ocorreu em 20 de Setembro de 2006 e ainda cartão da segurança social. «17. Utilizando a identidade de LL, registou os três filhos, ..., ... e .... «18. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o dia 20 de Janeiro de 2014 e o dia 6 de Abril de 2014, BB desfez-se da espingarda-caçadeira, por forma não apurada. «19. No dia 3 de Março de 2014, o mesmo BB entregou a viatura automóvel que, todos os arguidos utilizaram com a matrícula ...-DP, marca Seat, modelo Ibiza, de cor vermelha, para abate na empresa “..., SA”, sita em .... «20. Os arguidos agindo da forma inicialmente descrita, ao quererem apoderar-se do tabaco existente no interior do estabelecimento de restauração e bebidas “...”, ao actuarem da forma descrita, fizeram-no em execução de um plano entre todos previamente acordado e com o objectivo último de engrandecerem os respectivos patrimónios à custa alheia, o que só não lograram conseguir porque, contra as suas vontades, foram surpreendidos por II e JJ. «21. Relativamente à morte de II e às lesões físicas causadas a JJ, ao participarem na elaboração e ao aderirem ao plano para se apoderarem do tabaco, os arguidos admitiram que pudessem surgir dificuldades na sua execução e que, para remover as mesmas, fosse tirada a vida a qualquer pessoa, designadamente utilizando a arma de canos serrados que levaram com os mesmos, tendo-se conformado com tal possibilidade. «22. Agindo da forma descrita, tinham os arguidos a vontade livre e a perfeita consciência de, sem qualquer justificação ou razão que não fosse a sua insatisfação e irritação com os ofendidos pelo facto de os mesmos se terem dirigido à janela e os terem surpreendido. «23. Ao terem consigo e ao utilizarem a arma caçadeira de canos serrados que para o efeito expressamente foi levada com os mesmos e previamente municiada quiseram, os arguidos, efectuar os aludidos disparos contra os ofendidos, a curta distância e visando atingi-los em qualquer parte do corpo, o que conseguiram. «24. Apesar de bem saberem que a agressão que naqueles termos concretizavam era especialmente susceptível de, atingindo, como logrou, a zona corporal visada, causar aos mesmos graves lesões e atingir órgãos vitais, como de lhes provocar a morte, actuando efectivamente com a intenção de tirar a vida àqueles. «25. O que só não veio a ocorrer relativamente à ofendida MM contra as suas vontades, não tendo sucedido o mesmo com o ofendido II, que morreu de imediato. «26. Os arguidos DD, EE, CC e AA quiseram deter, como detinham a arma e as munições, com perfeito conhecimento das suas características. «27. Tinham, então, os arguidos também a vontade livre e a perfeita consciência de deter e utilizar a referida arma espingarda-caçadeira, cujos canos foram previamente cortados, apesar de bem saberem ser proibido o uso e porte de armas com tais características. «28. Os arguidos bem sabiam que não podiam deter a caçadeira apreendida nos autos e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tinham capacidade para se determinarem de acordo com esse conhecimento, sendo a detenção da caçadeira por todos aceite. «29. Os arguidos só não conseguiram aceder ao referido estabelecimento comercial, porque foram surpreendidos, acabando por não lograr os seus intentos, em retirar o tabaco que encontrassem na máquina de tabaco instalada no “...”. «30. Os arguidos, em todas as suas condutas, agiram de comum acordo, em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, voluntária e consciente, mediante um plano previamente delineado entre todos, com o propósito de retirarem aos ofendidos, contra as suas vontades, todo o tabaco que estivesse no café e na máquina de tabaco lá existente e de o fazerem seu, em valor não con-cretamente apurado mas que seria sempre superior a € 102, o que não lograram por motivos alheios às suas vontades. «31. O arguido AA, ao dirigir-se à Conservatória do Registo Civil de ..., pretendeu e conseguiu, através das declarações que sabia serem falsas, induzir em erro Oficial Público, com o propósito de obter o bilhete de identidade e sucessivas renovações, com a indicação de elementos identificativos que não diziam respeito à sua pessoa, entregando uma fo-tografia sua e apondo as suas impressões digitais no referido Bilhete de Identidade, com o intuito de obter uma identidade falsa e fazer-se passar por LL. «32. Sabia, o arguido AA, que apresentava o Bilhete de Identidade, cuja identificação pessoal não lhe pertencia, e que o utilizava para conseguir obter os documentos como o número de identificação fiscal, carta de condução, pondo em causa a força pública dos documentos. «33. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. «34. Os arguidos procederem da forma supra descrita, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. «35. II, nascido em ..., filho de JJ, faleceu no dia 20 de Janeiro de 2014 sem deixar testamento, nem disposição de última vontade, no estado de solteiro e sem deixar descendentes. «36. II era uma pessoa de boa constituição física, vivia com a sua mãe, para quem era amigo e dedicado, acompanhando a mãe, até pelo seu estado de viúva. «37. Por causa da morte do seu filho, a demandante civil sofreu abalo e desgosto, de que ainda não recuperou, vendo-se subitamente privada da companhia e amparo deste filho, com quem vivia, que a acompanhava no seu dia-a-dia, ausência que a esta causou, causa presentemente, e que irá continuar a causar no futuro, sofrimento, desgosto, saudades e tristeza. «38. Com o funeral do filho II a demandante despendeu da quantia de € 961,00. «39. A demandante sofreu um grande abalo e desgosto e continua a sofrer com a perda e falta deste filho, vendo-se privada de com ele conviver e da sua companhia. «40. A demandante JJ nasceu a ..., beneficiava do apoio do seu filho e com o desaparecimento deste ficou privada do seu afecto, amor e apoio para o resto da sua vida. «41. Augusto trabalhava e residia com a sua mãe na habitação onde se encontrava na data dos factos, onde dormia e fazia as refeições diariamente. «42. A ausência do filho, a falta de afecto que este diariamente lhe transmitia, a confiança que depositava no mesmo, representa um desgosto, um vazio, uma dor para a demandante. «43. Durante mais de ano após a data dos factos a demandante civil não conseguiu regressar à sua habitação «44. O falecido II era uma pessoa respeitada e trabalhadora. «45. A actuação dos arguidos provocou à demandante civil JJ ferimentos, aos quais foi assistida no dia 21.01.2014 no Centro Hospitalar de ..., apresentando diversas escoriações em ambas as mãos, as quais implicaram acompanhamento médico, consultas e tratamentos de fisioterapia durante cerca de seis meses no Centro Hospitalar de ..., em .... «46. Durante os referidos cerca de 6 meses, a demandante deslocou-se da sua habitação sita em ..., até ao referido Hospital, sito em ..., acompanhada pelo seu neto ... para receber tratamento. «47. Tais deslocações implicaram incómodos, transtornos, perdas de tempo para a demandante. «48. A demandante civil tem o rendimento mensal de € 525,60, de reforma. «49. As lesões sofridas pela demandante civil obrigaram a internamento hospitalar durante dois dias com vista a intervenção cirúrgica, a qual, por motivos alheios à sua vontade, não se concretizou. «50. A demandante civil efectuou novo internamento, desta feita a 17.02.2015, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica da mão direita. «51. Tais escoriações, tratamentos, intervenções e consultas provocaram à demandante civil, e continuam a provocar, dores e incómodos. «52. Na data de hoje tais lesões continuam a ter implicações no seu dia, e nas tarefas mais básicas, vendo-se pois impedida de efectuar alguns movimentos da sua vida diária, com mobilidade limitada pela dor em ambas as mãos. «53. As lesões sofridas pela demandante civil não se encontram presentemente consolidadas. «54. Com a actuação dos arguidos resultaram também os seguintes danos na habitação da ofendida/demandante: danificação da porta de entrada, cuja reparação importou em € 184,00, bem como danificação do tolde existente na habitação entre o café e o 1° andar da habitação e destruição do estore, cuja reparação importa, respectivamente em € 1.94,70 e € 145,00. «55. Do percurso de vida do arguido AA: «O processo de crescimento e de socialização de AA decorreu num agregado de estrato socioeconómico desfavorecido, composto pelos sete irmãos e os pais, enformado por valores e tradições típicas do seu grupo de pertença de etnia cigana, sustentados pela actividade familiar de venda ambulante e recolha e venda de sucatas. «AA frequentou a escolaridade até ao limite da idade obrigatória dos catorze anos, habilitado com o 1º ciclo, e colaborou nas actividades de subsistência familiar. «Aos dezasseis anos de idade iniciou união de facto com ...., então com vinte anos, contexto em que vieram a nascer três filhos, fixando inicialmente o casal a residência em ..., num acampamento sem condições de habitabilidade. «Posteriormente mudaram para um espaço arrendado em imóvel na freguesia de ..., onde permaneceram cerca de oito anos, até 2011, quando mudaram para a zona de .... «Ao nível jurídico-penal AA regista aos vinte anos de idade a prática a 25.JUN.1998 de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, condenado em pena de multa substituída por prisão subsidiária que beneficiou do perdão da Lei nº. 29/99. «Indiciado por prática de crime de tráfico de estupefacientes foi então sujeito a prisão preven- tiva no EPR de Aveiro, de onde se evadiu a 27.JAN.1999, vindo a ser colocado na situação de contumaz. «No período em que esteve evadido diligenciou junto da Conservatória do Registo Civil de ... e obteve um documento de identidade emitido no nome de LL, identidade que assumiu desde então como contribuinte e utente da Segurança Social, para obtenção de carta de condução, bem como no registo dos descendentes e que manteve até ser preso. «Com referência à data de 20.JAN.2014, da ocorrência que originou os autos, o arguido vivia com a companheira e os três filhos menores que frequentavam estabelecimento de ensino, com residência no rés-do-chão arrendado de uma casa que está inserida numa área habitacional onde a maior parte dos cidadãos são de etnia cigana. «A subsistência familiar dependia do rendimento social de inserção, no montante de € 400, acrescido dos abonos relativos aos filhos, pois AA não apresenta um percurso laboral regular além de recolha e comercialização de sucata. «A situação económica era prejudicada com as despesas do arguido no consumo tabágico e excessivo de bebidas alcoólicas, reiterando estar abstinente do consumo de estupefacientes há vários anos. «A mãe do arguido e outros familiares do agregado de origem residem na zona de .... «O quotidiano de AA decorria em ocupações não estruturadas circunscritas ao contexto familiar e ao convívio social regular e preferencial com elementos da etnia de pertença, designadamente no “...” que frequentava sem protagonizar desentendimentos ou conflitos. «Junto dos vizinhos o arguido beneficia da imagem de pessoa ordeira, pelo que a reclusão constituiu surpresa, e não era referenciado na GNR de .... «Após a prisão preventiva do arguido, em Maio a companheira foi com os filhos para junto dos seus familiares de origem, alojada em casa composta por dois quartos, uma pequena sala, cozinha e sanitário, arrendada na Rua ..., zona de construções antigas, localizada na periferia da cidade de ..., afigurando-se ser a pobreza a principal problemática social. «O agregado continua a beneficiar de RSI, no montante de € 300,00, e os filhos estão integrados no sistema de ensino, sendo esta uma condição para a manutenção da atribuição do subsídio, e conta com o apoio alimentar da sua mãe e uma irmã, residentes na proximidade. «O arguido não é conhecido no actual meio de residência de inserção do seu agregado constituído. «NN, a companheira, manifesta declarado apoio ao arguido. «No meio social onde o arguido residia até à reclusão, a ocorrência provocou um receio generalizado referido ao grupo de cidadãos de etnia cigana, que o arguido integra, não sendo este sinalizado, grupo globalmente conotado com práticas de furtos e desacatos. «Face a ocorrências da tipologia das que originaram os presentes autos o arguido reconhece-lhes a gravidade penal e a existência de vítimas. «AA vivência a sua constituição como arguido uma injustiça, sentimento extensivo aos familiares, pelo que refere ter a expectativa de que a sua situação seja esclarecida em Tribunal com resultado favorável para si. «No meio penitenciário onde está preso preventivamente à ordem dos presentes autos, está a apresentar um comportamento conforme ao regulamento interno e adaptado no relacionamento interpessoal com funcionários e outros reclusos. «AA regista desde 1998 práticas criminais de diversa tipologia, e um percurso de vida em que assumiu uma diferente identidade, contexto em que esteve inserido na sociedade e realizou actos de variada natureza sem cuidar de consequências civis e penais. «O arguido beneficia de receptividade e de enquadramento no agregado constituído, suportado com apoios assistenciais, em situação económica débil. «56. O arguido AA foi anteriormente condenado: «- no âmbito do Proc. Comum Colectivo nº. 491/99.0 TBALB da Instância Central Criminal, ... Secção Criminal da Comarca de ..., J3, por factos praticados em 29.06.1998, de Um Crime de Tráfico de Estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº. 1 do DL nº. 15/93 de 22.01, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por Acórdão datado de 18.03.2015. «57. Do percurso de vida do arguido CC: «(…) «58. «O arguido CC foi anteriormente condenado: «(…) «59. Do percurso de vida do arguido EE: «(…) «60. O arguido EE foi anteriormente condenado: «(…) «61. Do percurso de vida do arguido DD: «(…) «62. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido DD.» 4. Conhecendo-se do objecto do recurso, com a limitação antes apontada O conhecimento do recurso cinge-se, como ficou esclarecido, às medidas das penas, singular, pelo homicídio consumado, e conjunta, pelo concurso de crimes. 4.1. A qualificação jurídica do homicídio O recorrente havia sido acusado pela prática de um crime de homicídio qualificado, pelas circunstâncias das alíneas h) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, tendo a 1.ª instância afastado a qualificação. O Ministério Público interpôs recurso para a relação visando, justamente, a qualificação do homicídio mas a relação, com abundância de subsídios teoréticos e jurisprudenciais, afastou a especial censurabilidade ou perversidade do homicídio por não verificação das circunstâncias exemplificadoras de “praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas”, da “utilização de “meio particularmente perigoso” – segmentos da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º – e de “agir com frieza de ânimo” – segmento da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º. A decisão da relação de afastar a qualificação do homicídio não foi contestada e não suscita qualquer reparo. Surpreende, porém, a não consideração da agravação do homicídio, imposta pelo n.º 3 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, a qual tem por efeito a agravação da pena pelo homicídio simples de um terço nos seus limites mínimo e máximo. O acórdão recorrido omite qualquer consideração a respeito. Nem sequer convoca a problemática da, por vezes, invocada violação do princípio ne bis in idem consubstanciada na circunstância da valoração do uso da arma para efeitos da agravação do homicídio e para o preenchimento do crime de detenção de arma proibida. Sendo de referir, neste ponto, que, no caso, não se verifica uma relação de concurso aparente entre o crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, e o crime de detenção de arma proibida, em que aquele, aparecendo como ilícito principal, consumiria o crime de detenção de arma, impedindo o princípio ne bis in idem a valoração autónoma e integral do crime de detenção de arma proibida sob pena, justamente, de violação da proibição da dupla valoração. Não sendo caso das excepções previstas no segundo segmento do n.º 3 do referido artigo 86.º também os factos dados por provados não consentem a solução do concurso aparente. No comportamento global do recorrente revela-se uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude os quais devem ser integralmente valorados para efeito de punição. Verifica-se, pois, um concurso efectivo, puro ou próprio, heterogéneo, entre o crime de homicídio, agravado por ter sido cometido com arma, e o crime de detenção de arma proibida. Os bens jurídicos tutelados são diferentes; a agravação resultante do n.º 3 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, tutela a especial ilicitude do crime, em função do meio usado para a sua prática; enquanto que pelo crime de detenção de arma proibida se protege a segurança da comunidade. Por outro lado, no caso, a detenção da arma não se esgotou na prática do homicídio mas, pelo contrário, precedeu o momento do seu uso como instrumento do crime, e excedeu-o, mantendo-se a detenção de arma após a prática daquele crime. A correcta subsunção jurídica dos factos relativos ao homicídio impõe a consideração de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do CP, agravado nos termos do n.º 3 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro. 4.2. Procedeu-se, por isso, à comunicação dessa alteração da qualificação jurídica ao recorrente, concedendo-se-lhe o prazo de 10 dias para, sobre ela, se pronunciar, nos termos do n.º 3 do artigo 424.º do CPP. O recorrente nada fez chegar aos autos. 4.3. A medida da pena pelo homicídio A apreciação da questão da medida da pena pelo homicídio terá, por conseguinte, em conta a medida abstracta da pena do homicídio agravado – moldura abstracta de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses de prisão –, sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º do CPP), isto é, não pode este Tribunal agravar a medida da pena em prejuízo do recorrente. 4.3.1. Como, repetidamente, temos escrito, quando chamados a tratar a questão da “medida da pena”, as finalidades da punição, quer dizer, as finalidades das penas são, como paradigmaticamente declara o artigo 40.º, n.º 1, do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Com este texto, introduzido na revisão de 95 do CP, o legislador instituiu no orde-namento jurídico-penal português a natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.» Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos» . Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz – «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execu-ção, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.». Se são factores atinentes ao facto que relevarão as mais das vezes para a determi-nação da medida necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral, nas condutas subsumíveis a um mesmo tipo legal podem encontrar-se muitas variáveis, sem se sair do âmbito do desvalor típico, capazes de influir, para mais ou para menos, na medida necessária à tutela do bem jurídico. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exi-gências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial. Se a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso» , constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas. A aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. E o que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da per-sonalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam. Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção. 4.3.2. Nos crimes de homicídio, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. E, por isso, a estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito. As circunstâncias do caso concreto, em que o homicídio foi cometido no contexto de um projectado “assalto” nocturno de um estabelecimento, vitimando uma pessoa que assomou à janela de sua casa alertada pelo barulho da tentativa de arrombamento, são adequadas a causar fortes sentimentos de insegurança na comunidade e, por aí, a elevar a medida necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral, sempre intensas, em quaisquer circunstâncias, nos casos de homicídio. No plano da culpa do recorrente – e conformando um grau de culpa muito elevado – releva atender a que o recorrente e os seus co-arguidos planearam a execução do assalto levando com eles uma espingarda caçadeira de canos serrados (facto provado n.º 4), admitindo usá-la, no caso de surgirem dificuldades na execução do assalto, para as remover, ainda que isso passasse por tirar a vida a alguém (facto provado n.º 21), tendo o recorrente, que ficara de vigia, efectuado os disparos, na direcção das vítimas, quando elas assomaram à janela, alertadas pelo barulho da tentativa de arrombamento (factos provados n.os 8 e 9). Este circunstancialismo é revelador de uma atitude interna do recorrente especialmente desvaliosa por ser demonstrativa da indiferença do recorrente perante o valor da vida humana; ao ser descoberta a sua acção e na iminência de poder vir a ser identificado, a reacção do recorrente, imediata e “quase instintiva”, foi a de disparar em direcção às testemunhas que o poderiam vir a identificar (a si e aos seus co-autores). A instrumentalidade do homicídio infere-se, pois, do contexto em que os disparos foram efectuados com tal evidência que surpreende que a acusação não a tivesse caracterizado com mais rigor, por forma a preencher o exemplo-padrão da alínea g) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, conformando a especial censurabilidade do recorrente, em razão de na sua representação mental, o homicídio ser útil a facilitar a fuga e assegurar a impunidade. Mesmo não se considerando o especial tipo de culpa agravada do homicídio (artigo 132.º do CP), a culpa do recorrente pelo tipo base ou simples (artigo 131.º), com a agravação que decorre do uso de arma, é, no quadro descrito, de grau muito elevado, encontrando-se nos motivos subjacentes à sua actuação razões particulares de repúdio. O recorrente reage à medida da pena em função de ser primário, não ter processos pendentes, estar integrado familiar e socialmente, isto é, não evidenciar quaisquer especiais dificuldades de inserção social, tudo a apontar no sentido da redução das exigências de prevenção especial. Deve começar por dizer-se que as exigências de prevenção especial de socialização não constituem, por regra, nos casos de homicídio, um factor com relevo significativo na medida da pena porque, quando é posto em causa o bem jurídico vida, sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela. De qualquer modo, o recorrente não demonstra um percurso de vida que sustente a sua benévola alegação. Bastará atender a que o recorrente, para fugir à acção da justiça, depois de se evadir de um estabelecimento prisional, onde se encontrava preventivamente preso, conseguiu obter um documento de identidade falso e que há muitos anos assumiu essa falsa identidade, assim, “apagando”, em termos legais, a sua verdadeira existência. Nesta ponderação de todas as circunstâncias do caso, não há razões para reduzir a pena de 14 anos, pelo homicídio, em que o recorrente foi condenado, a qual se mostra ajustada à culpa do recorrente e observa uma adequada satisfação das exigências de prevenção geral. Não assiste, pois, razão ao recorrente quando invoca inadequada interpretação e aplicação dos artigos 40.º e 71,º do CP, sendo a mera referência ao artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, insusceptível de apreciação por, pura e simplesmente, se ignorar, por falta de concretização, o sentido ou dimensão em que o recorrente convoca tal norma. 4.5. A pena conjunta Estabelece o n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal, que a moldura penal abstracta do concurso de crimes é encontrada em função das penas concretamente aplicadas aos vários crimes em concurso, correspondendo o limite mínimo à pena mais elevada das penas concretamente aplicadas e o limite máximo à soma de todas as penas concretamente aplicadas (não podendo ultrapassar, porém, 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa). No caso, a moldura abstracta do concurso tem como limite mínimo 14 anos de prisão e como limite máximo 26 anos de prisão. A medida concreta da pena do concurso determinar-se-á, no quadro da moldura abs-tracta, segundo o critério do artigo 77.º, n.º 1, segundo parte – na determinação da pena do concurso são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente. No nosso sistema, a pena conjunta pretende ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes. Rejeita, pois, uma visão atomística da pluralidade dos crimes e obriga a ponderar o seu conjunto, a possível conexão dos factos entre si, e a relação da personalidade do agente com o conjunto de factos. Por conseguinte, no sistema da pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo – e para além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a detecção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade – o tribunal deverá especialmente ter em conta a concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos. Temos, no caso, a prática de todos os crimes – com excepção do crime de falsificação de documento autêntico –, na mesma ocasião e lugar, havendo uma estreita conexão entre todos eles, na medida em que a detenção da arma se destinou a facilitar a prática do “assalto” e é a descoberta deste que leva às acções de disparar a arma, em acto seguido, em direcção à janela onde as vítimas assomaram. De qualquer modo, na prática destes crimes, particularmente dos homicídios, consumado e tentado, pela “facilidade” com que o recorrente se decidiu pela eliminação das possíveis testemunhas, mostra ser detentor de uma personalidade agressiva e violenta, incapaz de auto-controlo perante situações que lhe podem ser adversas e sem demonstrar interiorização de valores essenciais à vida em sociedade. No mesmo sentido, de uma atitude perante a vida e a sociedade de desrespeito por valores essenciais a uma pacífica convivência, releva o facto de ter assumido uma “nova identidade” que lhe permitiu a fuga à justiça durante longos anos. De qualquer modo, a estreita interligação que se verifica entre os crimes de detenção de arma proibida, tentativa de furto qualificado, homicídios, consumado e tentado, constitui razão fundamentadora de uma pequena redução da pena conjunta, que consideramos ajustado fixar em 18 anos de prisão.
III
Nos termos expostos, decidimos: i) rejeitar o recurso, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do mesmo diploma, no segmento da impugnação da medida da pena, pelo crime de homicídio tentado; ii) que a correcta qualificação jurídica do crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, pelo qual o recorrente AA foi condenado implica a respectiva agravação, nos termos do n.º 3 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; iii) como tal, efectuada a notificação a que se refere o n.º 3 do artigo 424.º do CPP, apreciar a questão da medida concreta da pena no quadro dessa moldura penal, e manter a condenação do recorrente AA na pena de 14 (catorze) anos de prisão; iv) no parcial provimento do recurso, condenar o recorrente AA na pena conjunta, pelo concurso de crimes, de 18 (dezoito) anos de prisão. *** Por o recurso ter obtido parcial provimento, não são devidas custas (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Supremo Tribunal de Justiça, 30/11/2016
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