Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL RESPONSABILIDADE CONTRATUAL FACTO NOTÓRIO CULPA IN CONTRAHENDO DEVER DE INFORMAR INDEMNIZAÇÃO EQUIDADE DANOS MORAIS CONCURSO CONDUÇÃO AUTOMÓVEL | ||
Nº do Documento: | SJ200202280001827 | ||
Data do Acordão: | 02/28/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 5395/01 | ||
Data: | 07/12/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Área Temática: | DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG / DIR RESP CIV. DIR PROC CIV. | ||
Legislação Nacional: | DL 175/91 DE 1991/05/11 ARTIGO 11. DL 21/99 DE 1999/04/21. CPC67 ARTIGO 514 N1. CCIV66 ARTIGO 227 N1 ARTIGO 485 N2 ARTIGO 494 ARTIGO 496 ARTIGO 499 ARTIGO 562 ARTIGO 564 N1 ARTIGO 566 N1 ARTIGO 568. | ||
Sumário : | I - Na definição de «factos notórios» como aqueles que são do conhecimento geral, elegeu o legislador o conhecimento (e não os interesses) como critério de notoriedade, fazendo apelo a uma ideia de publicidade, que implica a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos. II - Não são conhecidos da maioria dos cidadãos o tipo de pessoas que podem aceder à profissão de examinador, nem as condições de acesso ao exame que como tal os qualifique, ainda que os requisitos de admissão a esse exame estejam normativamente fixados pelo DL 175/91, de 11/5, posteriormente alterado pelo DL 21/99, de 21/4. III - O dever de informação, imposto pela boa fé contratual, significa que as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa do outro contraente - art. 227º, nº 1, do C. Civil. IV - Esse preceito recebeu a fórmula "in contrahaendo" na sua aplicação mais lata, nela abrangendo os deveres de protecção, os dos deveres de informação e a dos deveres de lealdade. V - Tal dever de informação encontra-se também presente no nosso sistema jurídico, de modo autónomo e desinserido de qualquer iter negocial, como fundamento de responsabilidade civil extracontratual, quando o seu agente tenha o dever jurídico de informar e a tenha agido com negligência, causando danos a outrem. VI - A possibilidade de graduação equitativa da indemnização, quando haja mera culpa do lesante, está apenas consagrada na lei para a responsabilidade extracontratual (art. 494º do C. Civil), mesmo que fundada no risco (art. 499º), não devendo considerar-se extensiva à responsabilidade contratual, por desarmónica com as legítimas expectativas do contraente lesado. VII - Não há que atender, na fixação da indemnização adveniente de responsabilidade contratual, a qualquer das circunstâncias do art. 494º do C. Civil, devendo o montante atribuído corresponder ao valor dos danos efectivamente sofridos pelo lesado. VIII - A indemnização por danos não patrimoniais deve ter-se por extensiva à responsabilidade contratual/obrigacional. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A", B, C, D, E, F, G e H intentaram, em 14 de Junho de 1996, acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária contra "I - Associação Portuguesa de Escolas de Condução", pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de 3.875.422$00, distribuída pelos vários autores, acrescida dos juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento. Alegaram, para o efeito, essencialmente, que na sequência do conhecimento da existência de um curso de preparação para examinadores de condução através de um jornal, ministrado pela ré, em que esta informava dos requisitos mínimos legalmente exigidos para admissão ao exame, frequentaram na ré o respectivo curso que se iniciou em 21/10/95 e terminou em 29/12/95; que, no decorrer do curso, ao consultarem o diploma que regula os requisitos mínimos para o exercício da função, verificaram que estes não correspondiam aos anunciados pela ré; tendo confrontado a ré para esta divergência, foi-lhes reafirmado que não se preocupassem, pois a Direcção-Geral de Viação sempre tinha admitido aos exames candidatos sem possuírem os requisitos legais; verdade é que, após sucessivos adiamentos, a realização do exame nunca chegou a realizar-se, tendo a DGV reiterado que só seriam admitidos examinandos que preenchessem os requisitos legais; que, na expectativa do curso e admissão ao respectivo exame, que a final veio a gorar-se, sofreram diversos danos patrimoniais e não patrimoniais. Contestou a ré defendendo-se por excepção (invocando a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir) e por impugnação, sustentando que sempre informou os autores, desde o início, das exigências decorrentes do diploma legal que definia os requisitos de admissão ao exame de examinadores, mas que era prática da DGV, desde 1991, admitir ao exame final candidatos nas mesmas condições dos autores, pelo que é alheia à mudança da prática por parte da DGV. Replicaram os autores, pugnando pela improcedência da excepção e concluindo como na petição inicial. Foi, depois, proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória deduzida, sendo elaborados especificação e questionário, sem qualquer reclamação das partes. Realizada a audiência de julgamento, com decisão acerca da matéria de facto, veio a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando a ré a pagar as seguintes quantias: a) - à autora A, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; b) - ao B, a quantia de Esc. 185.991$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; c) - ao C, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; d) - ao D, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; e) - ao E, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; f) - ao F, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; g) - ao G, a quantia de Esc. 186.490$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais; h) - ao H, a quantia de Esc. 170.491$00, acrescidos de juros de mora a 10% desde 02.07.1996 até ao dia 17 de Abril 1999 e a partir desta data acrescidos de juros à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, até integral pagamento, a título de danos patrimoniais, e ainda, no pagamento de Esc. 300.000$00, acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal geral, actualmente de 7%, desde a data da presente sentença até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais. Inconformada, apelou a ré, sem êxito embora, pois o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 12 de Julho de 2001, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida. Interpôs, então, a ré o presente recurso de revista, pugnando, nas alegações que apresentou, pela revogação do acórdão em crise, devendo ser a ré absolvida da indemnização por danos não patrimoniais, e devendo ser remetida para execução de sentença a eventual fixação da indemnização por danos patrimoniais, com expressa indicação da necessidade de considerar a lógica da compensatio lucri cum damno e o princípio do artigo 494º do Código Civil. Contra-alegando, defendem os autores a confirmação do acórdão recorrido. Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir. Nas alegações do presente recurso formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil): 1. O acórdão recorrido é clamorosamente injusto já que desconsidera os interesses em presença e as posições reais e substanciais das partes. 2. É facto público e notório, que como tal não carece de alegação ou prova (art. 514º, nº 1, do CPC) que só quem já está ligado ao mundo da instrução de condução automóvel é que se candidata a examinador, não sendo, pois, crível que os autores desconhecessem as regras básicas para acederem a examinadores, bem como a prática da DGV. 3. Uma vez que os autores eram pessoas de instrução média e familiarizadas com o mundo do ensino de condução automóvel, era menor a intensidade do dever de informar por parte da ré. 4. Os danos alegadamente imputados à ré são danos positivos, devendo, dentro do âmbito traçado na petição inicial, ser aplicada a lógica, que resulta do princípio da diferença compensatio lucri cum damno. 5. Mesmo admitindo que os danos em causa são negativos, ainda assim é aplicável a compensatio lucri cum damno. 6. A compensatio lucri cum damno decorre, no caso sub judice, do facto de se ter verificado um enriquecimento dos autores, beneficiados com o curso ministrado pela ré, com o qual podem nomeadamente aceder à desejada qualidade de examinadores, face à entretanto ocorrida alteração de redacção da alínea b) do nº 1 do art. 11º do DL nº 175/91, de 11 de Maio. 7. A consideração da compensatio lucri cum damno só pode ser efectuada em execução de sentença, nos termos do art. 661º, nº 2, do CPC. 8. A indemnização fixada é excessiva atenta a mera negligência da ré e considerando o disposto no art. 494º do Código Civil. 9. A indemnização por danos não patrimoniais fixada é excessiva e não considera a actuação do lesado, o grau de culpa do agente e as demais circunstâncias do caso. É a seguinte a matéria de facto definitivamente tida como provada pelas instâncias: a) - os autores frequentaram na Associação Portuguesa de Escolas de Condução (I), o 9º curso de examinadores de condução; b) - tiveram os autores conhecimento da existência do referido curso, por publicação, a 13 de Agosto de 1995, no Jornal Diário de Notícias; c) - nessa publicação a ré exigia como requisitos para a frequência do curso a carta de condução há pelo menos dois anos e o 11º ano de escolaridade completo; d) - para que pudessem frequentar tal curso bem como efectuar exame final, despenderam os autores determinadas quantias referentes à inscrição no curso, curso de examinador e requerimento para exame; e) - assim distribuídas: primeiro autor a quantia de Esc.186.490$00; segundo autor a quantia de Esc. 185.991$00; terceiro autor a quantia de Esc. 186.490$00; quarto autor a quantia de Esc. 186.490$00; quinto autor a quantia de Esc.186.490$00; sexto autor a quantia de Esc. 186.490$00; sétimo autor a quantia de Esc. 186.490$00; oitavo autor a quantia de Esc. 170.491$00; f) - o curso teve início em 02.10.1995 e terminou em 29.12.1995; g) - apenas quando estudaram o regime do DL 175/91 de 11 de Maio, estudo que decorreu no âmbito da disciplina de Direito Rodoviário II, é que os autores souberam que não possuíam os requisitos legais; h) - tendo então questionado todos os professores, bem como a ré sobre a sua admissibilidade; i) - ao que todos lhes responderam para não se preocuparem pois sempre assim foram feitos os exames, exigindo-se apenas os requisitos dos autores; j) - após o curso o exame foi marcado pela DGV para 23.02.1996; k) - os autores após o curso recolheram a suas casas para estudarem para o exame; l) - em meados de Janeiro de 1996 o presidente da ré recebeu a carta da DGV de fls. 46 dos autos; m) - os autores, a partir de então, deslocaram-se às instalações da ré no sentido de serem esclarecidos; n) - aí, ou não obtinham resposta ou lhes diziam para ir estudar e não se preocuparem; o) - entretanto receberam a informação da ré que o exame seria adiado para dia 06.03.1996; p) - os autores contactaram a ré no sentido de confirmarem a marcação do exame; q) - não obtendo qualquer confirmação; r) - continuando a estudar; s) - recebendo então nova marcação de exame para o dia 03.04.1996; t) - em 4 de Abril de 1996 os autores solicitaram ao Sr. J, em representação do presidente da ré, para lhes devolver as quantias pagas; u) - os autores inscreveram-se no curso, pagaram as suas despesas, estudaram e aplicaram-se na expectativa de que se obtivessem aproveitamento no exame final seriam examinadores de condução; v) - caso a ré não tivesse gerado expectativas nos autores estes teriam dado outro rumo à sua vida; w) - em 16.09.95, da reunião que teve lugar no Hotel Roma, a ré informou os autores que a DGV vinha aceitando candidatos sem os requisitos legais; x) - houve vários candidatos a examinadores que foram apresentados pela ré e aprovados em exames finais realizados pela DGV, sem possuírem os requisitos legais; y) - os autores receberam, antes de começar o curso, o documento de fls. 13, que aqui se dá por reproduzido; z) - os autores receberam os documentos constantes de fls. 52 e 53, que aqui se dão por reproduzidos. Sustenta a recorrente, aliás na sequência do que já fizera no recurso de apelação, essencialmente aí assentando a sua divergência relativamente ao acórdão impugnado, que: I. Constitui facto notório, e deve ser tido em consideração independentemente de alegação e de prova, que só quem está ligado ao mundo da instrução de condução automóvel se candidata a examinador, não sendo crível que os autores desconhecessem as regras básicas para acederem a examinadores, bem como a prática da DGV nessa matéria. II. Era menor o dever de informar por parte da ré, uma vez que os autores eram pessoas de instrução média e familiarizadas com aquele mundo do ensino de condução automóvel. III. Relativamente aos danos alegadamente imputados à ré, quer se entenda serem positivos quer negativos, há-de ser aplicado o princípio compensatio lucri cum damno, que influi na fixação do quantum indemnizatur patrimonial, apenas fixável em execução de sentença. IV. De qualquer modo, a indemnização fixada é excessiva atenta a mera negligência da ré. V. Como é excessiva, não considerando a actuação dos lesados, o grau de culpa do agente e as demais circunstâncias do caso, a indemnização atribuída por danos não patrimoniais. Dispõe o art. 514º, nº 1, do C.Proc.Civil que "não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral". O que significa que, em sede decisória, nos termos do art. 664º do mesmo diploma , o juiz deva tomá-los em consideração sem necessidade de terem sido alegados pelas partes, e sem necessidade de acerca deles ter sido produzida prova. Ora, "facto notório é, por definição, facto conhecido. Mas não basta qualquer conhecimento; é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão, que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza". (2) Carácter de certeza que se situará no conhecimento do facto "por parte da massa dos portugueses que possam considerar-se regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de informação". (3) Sintetizando, parece possível afirmar que "ao definir no nº 1 do art. 514º do C.Proc.Civil factos notórios como aqueles que são do conhecimento geral, assim elegendo o conhecimento (e não os interesses) como critério de notoriedade, a lei faz apelo a uma ideia de publicidade, implicando a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos, de modo que o facto apareça revestido de um carácter de certeza". (4) Analisando o caso concreto, desde logo há que reconhecer que não é conhecido da maioria dos cidadãos - pelo contrário a maioria desconhece-o certamente - qual o tipo de pessoas que podem aceder à profissão de examinador (o cidadão comum pensa que todos são engenheiros, como vulgarmente são tratados...). Em consequência, se aquele facto não é conhecido da maioria das pessoas, muito menos o serão as condições de acesso ao exame que como tal os qualifique. E embora os requisitos de admissão ao referido exame estejam normativamente fixados (à altura pelo Dec.lei nº 175/91, de 11 de Maio, posteriormente alterado pelo Dec.lei nº 21/99, de 21 de Abril), tal não pode significar o conhecimento generalizado que lhe concederia notoriedade. Ademais, se dúvidas houvesse quanto à qualificação desse facto (notório ou não), bastaria, para se ter como líquido que se não trata de facto notório, a matéria resultante da resposta ao quesito 2º, da qual se infere que os próprios autores, não apenas cidadãos comuns, antes candidatos a examinadores, "apenas quando estudaram o regime do DL 175/91 de 11 de Maio, estudo que decorreu no âmbito da disciplina de Direito Rodoviário II (ministrada no curso) é que ... souberam que não possuíam os requisitos legais". Não assiste, pois, neste aspecto, qualquer razão à recorrente. Sustenta, depois, a recorrente, que, sendo os autores pessoas de média instrução e familiarizadas com o mundo do ensino da condução automóvel, era menor (menos intenso ?) o dever que sobre ela impendia de os informar. Posição que, no mínimo, traduz que aceita que tal dever de informação lhe era imposto pela boa fé que "como princípio (cláusula geral), significa que as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros". (5) Princípio esse especificamente referido no art. 227º, nº 1, do C.Civil, nos termos do qual "quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação deste, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte". Ora, "o art. 227º do Código Civil recebeu a fórmula da culpa in contrahaendo na sua aplicação mais lata que, obtida com o recurso á boa fé, foi experimentada e desenvolvida no domínio da terceira sistemática. A culpa in contrahendo portuguesa constitui, deste modo, um campo normativo muito vasto que permite aos tribunais a prossecução dos fins jurídicos, com uma latitude grande de movimentos. Ficam, designadamente, cobertas as três áreas por que, em termos históricos, se espraiou a figura, antes de recebida pelo legislador de 1966: a dos deveres de protecção, a dos deveres de informação e a dos deveres de lealdade. ... Os deveres de informação adstringem as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato. Tanto podem se violados por acção, portanto com indicações inexactas, como por omissão, ou seja, pelo silêncio face a elementos que a contraparte tinha interesse objectivo em conhecer". (6) E não deixam de estar associados à inicial ideia de protecção da contraparte que confia na correcção e completude das informações prestadas, consequência daquele dever de agir de boa fé prevenido (como afloramento do princípio geral) no art. 227º do C.Civil. Tal dever de informação encontra-se, aliás, também presente no nosso sistema jurídico, autónomo e desisnerido de qualquer iter negocial, como fundamento de responsabilidade civil extracontratual quando o seu agente tinha o dever jurídico de informar e agiu com negligência, causando danos ao informado (art. 485º, nº 2, do C.Civil). In casu, aos autores foi dado conhecimento do curso organizado pela ré, de preparação para o exame de examinadores de condução, através de um anúncio no Diário de Notícias em que se indicavam como requisitos exigidos para a respectiva frequência a titularidade de carta de condução há pelo menos 2 anos e o 11º ano de escolaridade completo. Foi-lhes, ainda, entregue pela ré, antes de começarem o curso, o documento de fls. 13, dos quais constam os requisitos que é importante os candidatos observarem e onde nada se refere quanto às condições exigidas pela lei para o acesso a tal exame. Sabia a ré, sem qualquer dúvida, quais os reais requisitos legalmente exigidos para a admissão dos candidatos ao exame final de examinadores de condução para que o curso por si organizado se propunha preparar. Acreditou, é certo, na possibilidade de manutenção de uma prática ilegal por parte da Direcção-Geral de Viação, que anteriormente tinha admitido a exame candidatos sem os requisitos exigidos por lei, embora em meados de Janeiro de 1996 tenha recebido daquela DGV o ofício de fls. 46 dando-lhe conta de que "a admissão de candidaturas para os exames de examinadores de condução automóvel só deverá realizar-se desde que os candidatos se enquadrem no disposto no art. 11º do Dec.lei nº 175/91, de 11 de Maio". Facto que, não obstante, não a levou a informar os frequentadores do curso, aqui autores, antes se remetendo a inaceitável silêncio, estimulando-os a que se mantivessem serenos e estudassem, sem que os esclarecesse devidamente, e continuando a dar-lhes a entender que seriam admitidos ao exame para examinadores. Existiu, desta feita, no comportamento da ré, manifesta leviandade, que se traduz em grave negligência na violação do dever de informação a que estava adstrita, tanto mais que os autores haviam confiado na sua actuação de associação profissional ligada ao mundo da condução, sem qualquer dúvida habilitada com o conhecimento de toda a matéria em causa. Tanto mais quanto "se um dos contraentes é profissional - como é o caso - são-lhe exigíveis maiores cânones de competência e probidade no decurso das negociações". (7) E nem o facto de os autores serem pessoas de instrução média e familiarizados com o mundo da condução permite estabelecer limites quantitativos ou de grau ao dever de informar, que deveria ter sido inteiramente cumprido, uma vez que os autores confiaram efectivamente nas informações que prestara (como vimos inexactamente). É que "quando uma das partes pode legitimamente confiar na outra, em virtude da natureza do contrato, da qualidade das partes ou de informações fornecidas pela outra, não há necessidade de estabelecer se não lhe era possível informar-se a si próprio, podendo esperar do co-contratante as informações necessárias. (8) Donde, também nesta parte, fenece razoabilidade ao entendimento propugnado pela recorrente, já que o dever de informação sobre ela impendia em toda a sua amplitude, ou seja, sem quaisquer limites derivados da qualidade dos autores. Entende, ainda, a recorrente que aos danos que lhe foram imputados há-de ser aplicado o princípio da compensatio lucri cum damno, deduzindo-se aos montantes indemnitários os valores (lucros) que os autores obtiveram com o curso que lhes foi proporcionado, tanto quanto é certo que, atenta a alteração do Dec.lei nº 175/91 pelo Dec.lei nº 21/99, de 21 de Abril, lhes permite fazer o exame para examinadores de condução, cálculo que deve ser efectuado, liquidando-se a quantia efectivamente devida, em execução de sentença. Vejamos. A regra geral no tocante à determinação da indemnização, etimologicamente interpretada com o sentido de tornar indemne o lesado, é a da sua equivalência ao montante do dano imputado. Certo que, com fundamento legal no art. 568º do C.Civil, se vem entendendo que o responsável terá, em determinados termos, o direito de exigir que ao montante dos danos causados pelo facto lesivo se deduza o valor das vantagens que este mesmo haja eventualmente proporcionado à pessoa lesada (compensatio lucri cum damno). Não há, aqui, no entanto, "uma regra autónoma que induza a determinações inferiores aos danos a ressarcir; na realidade, apenas se verifica que, mercê dos lucros derivados da lesão, o dano era, na realidade, inferior ao que pareceria à primeira vista". (9) Para que aquela dedução se possa fazer "torna-se mister, no entanto, que entre o facto danoso e a vantagem obtida pelo lesado haja um verdadeiro nexo de causalidade e não uma simples coincidência acidental, fortuita ou casual". (10) Ora, como bem se refere no acórdão recorrido, não existe na situação sub judice o nexo de causalidade necessário, uma vez que o simples facto de os autores (após a entrada em vigor do Dec.lei nº 21/99) poderem concorrer a futuros exames para examinadores de condução constitui circunstância fortuita e acidental, além do mais devida a terceiro que não à ré lesante. Assim, ainda aqui improcede a pretensão da recorrente. Cabe repetir, neste momento, que, por norma, o montante da indemnização deve corresponder ao valor dos danos causados ao lesado (arts. 562º, 564º, nº 1 e 566º, nº 1, do C.Civil). Sendo certo que a recorrente não põe em dúvida que os danos patrimoniais que os autores sofreram foram aqueles que na decisão recorrida se tiveram por fixados. É verdade que o art. 494º do C.Civil estabelece que "quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem". Todavia, esta "possibilidade de graduação equitativa da indemnização, quando haja mera culpa do lesante, está apenas consagrada na lei para a responsabilidade extracontratual (art. 494º), mesmo que fundada no risco (art. 499º), não devendo considerar-se extensiva à responsabilidade contratual, onde se afigura pouco de acordo com as legítimas expectativas do contraente lesado". (11) Ora, tal como vem sendo entendido por grande parte da doutrina e jurisprudência nacionais (12), também nós defendemos que a responsabilidade derivada da culpa in contrahendo reveste o carácter de responsabilidade contratual ou, se preferirmos, obrigacional, decorrente "da violação dos deveres específicos de comportamento baseados na boa fé". (13) Daí que não haja que atender, na fixação da indemnização, a qualquer das circunstâncias do art. 494º do C.Civil, devendo o montante atribuído corresponder ao valor dos danos efectivamente sofridos pelos autores (aliás tão somente relativos aos danos emergentes). Finalmente a questão da indemnização dos danos não patrimoniais que, como a recorrente não questiona, se deve ter por extensiva à responsabilidade obrigacional. A única condição que o art. 496º, nº 1, do C.Civil exige para que indemnização por danos não patrimoniais seja arbitrada é que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Já quanto ao montante de tal indemnização resulta do disposto nos arts. 496º, nº 3 e 494º que este será fixado equitativamente tendo em consideração o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Desde já se adianta que, perante os factos tidos como provados - o curso teve inicio cm 2 de Outubro de 1995 e terminou em 29 de Dezembro seguinte; caso a ré não tivesse gerado expectativas nos autores estes teriam dado outro rumo à sua vida; os autores frequentaram o curso e após este terminar recolheram-se para estudar; em meados de Janeiro foi recebida pela ré a carta constante de fls. 45 dos autos, onde era realçada a admissão apenas dos candidatos que possuíssem os requisitos legais; os exames foram sendo continuamente adiados até Abril de 1996, tendo os autores pedido a devolução do seu dinheiro nesse mesmo mês, devemos concluir que o tempo e a aplicação de energias naquele projecto profissional malogrado, hoje mais do que nunca, face à velocidade do quotidiano e da carência social da integração do indivíduo no mercado de trabalho, bens altamente valorados pelo homem médio, merecem indubitavelmente a tutela do direito. Sendo que se nos afigura justa, se atendermos a critérios de equidade, tendo em conta o tempo perdido pelos autores, o grau de negligência revelada pela ré (não só prestando a errada informação, mas persistindo na manutenção dos autores no erro e na expectativa de que os seus estudos não eram em vão apesar da carta recebida pela DGV, a fixação da indemnização de 300.000$00 a cada um dos autores, como aliás foi entendido pelas instâncias. Nestes termos decide-se: a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "I - Associação Portuguesa de Escolas de Condução"; b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido; c) - condenar a recorrente nas custas da revista. Lisboa, 28 de Fevereiro de 2002 Araújo Barros Oliveira Barros Miranda Gusmão ------------------------------- (1) É aqui aplicável, atenta a data em que a acção foi proposta, a redacção anterior ao Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro: "O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514º e 665º". (2) Alberto dos Reis, in "Código de Processo Civil Anotado", vol. III, 4ª edição, Reimpressão, Coimbra, 1985, pags. 259 e 260. (3) Alberto dos Reis, ob. e vol. cits., pag. 261. (4) Ac. STJ de 26/09/95, in BMJ nº 449, pag. 293 (relator Torres Paulo). (5) Coutinho de Abreu, in "Do Abuso de Direito", Coimbra, 1983, pag. 55. (6) Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. I, Coimbra, 1984, pags. 582 e 583. (7) Ac. STJ de 16/03/99, no Proc. 136/99 da 2ª secção (relator Nascimento Costa). (8) Jorge Sinde Monteiro, in "Responsabilidade por Conselhos, Recomendações e Informações", Coimbra, 1989, pag. 363. (9) Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 2º volume, Lisboa, 1990, pag. 408. (10) Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 586. (11) Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pag. 434. No mesmo sentido Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 885. (12) Vaz Vazra, "Culpa do Devedor ou do Agente", in BMJ nº 68, pag. 131; Ac. STJ de 10/05/2001, no Proc. 976/01 da 7ª secção (relator Quirino Sares). (13) Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. I, Coimbra, 1984, pag. 585. |