Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO NACIONALIDADE RESIDÊNCIA NULIDADE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 06/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | EXTRADIÇÃO/ M.D.E. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I - O Tribunal da Relação de Coimbra não fundamenta em parte alguma porque não considera aplicável ao presente caso — de um cidadão português, residente em Portugal, e aqui detido, e cujo MDE tem em vista apenas o cumprimento de pena de prisão de 2 anos, pela qual já foi condenado (com trânsito em julgado segundo o ponto 2 da motivação do recurso) em território francês — a possibilidade de recusa facultativa de execução do MDE com base no art. 12.º, n.º 1, al. g), da LMDE. II - Nos termos determinados pelo Código de Processo Penal, esta fundamentação, ainda que concisa, deve especificar os motivos de direito que fundamentam a decisão (em cumprimento do disposto no art. 205.º da CRP), de modo a permitir aos destinatários da decisão — em primeira linha os seus intervenientes, maxime, os arguidos, mas também a toda a comunidade — perceber os motivos que levaram o Tribunal a executar este MDE sem que avaliasse da importância (ou não) de o requerido ser português, e se encontrar em Estado português, e sem que verificasse da possibilidade (ou não), atentos os problemas de saúde, de cumprimento da pena de prisão em Portugal. III - Não tendo averiguado sobre tais pressupostos, e tendo em conta o disposto no artigo 21.º, n.º 4, da LMDE, a análise dos documentos juntos pelo requerente, o tribunal a quo omitiu a prática de actos necessários para a decisão e o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja, a existência de causa de recusa facultativa de execução. IV - Cabendo ao Tribunal a quo pronunciar-se, expondo as razões de facto e de direito, sobre a possibilidade ou não de recusa facultativa de execução do MDE ao abrigo do disposto no art. 12.º, n.º 1, al. g), da LMDE, uma vez que tal foi expressamente requerido pelo recorrente logo aquando da oposição (e em atenção ao princípio da igualdade de armas), a decisão é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a e c) do CPP, ex vi art. 34.º, da LMDE. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 58/21.9YRCBR.S1
I Relatório 1. Por acórdão do Tribunal da Relação ……., de 12.05.2021, no processo de execução de mandado de detenção europeu contra AA, nascido a ….06.1966, de nacionalidade portuguesa (cf. documento fls. 20) e residente em ……, ….., em ……., foi decidido “julgar improcedente a oposição apresentada [a execução de Mandado de Detenção Europeu]” e foi deferida a execução do MDE “emitido pelas Autoridades Judiciárias de França contra o cidadão português AA e, nesta conformidade, ordena-se a sua entrega às autoridades francesas para os efeitos expressos naqueles”. 2.1. Nos termos do art. 18.º, da Lei n.º 65/2003, de 25.08 (alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, adiante designada LMDE), foi o interessado (sob detenção) ouvido a 16.04.2021, onde não deu o seu consentimento para ser entregue às autoridades judiciárias de França e não renunciou ao princípio da especialidade. Foi validada a detenção e determinou-se que se aguardasse o cumprimento do MDE em prisão preventiva («Relativamente à medida de coacção a aplicar ao Requerido, e importando que se dê cumprimento ao MDE, por haver receio de que sem medida de prisão preventiva o mesmo não seja efectivado por se poder ausentar do local, determino que aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.»). O recorrente encontra‑se preso desde 16.04.2021 (cf. mandado de condução junto aos autos). Foi requerido um prazo para a dedução de oposição. 2.2. Foi deduzida oposição nos seguintes termos (segundo a transcrição que consta do acórdão agora recorrido): «“1º - De acordo com o disposto no n.° 1 do art.° 1.° da Decisão-Quadro do Conse-lho, de 13 de Janeiro de 2002 (2002/584/JAI), e do mesmo artigo da Lei n.° 65/2013, de 23 de Agosto, que aprova o Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, em cumprimento daquela Decisão-Quadro, “o mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade”. 2º- Ora, AA, foi condenado, por sentença transitada em julgado, pelo Tribunal Judicial de Bobigny, em França, a dois anos de prisão efectiva, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e aquisição e posse ilegal de armas, puníveis à luz do Código Penal Francês, com uma pena máxima de dez anos, estando a ser reclamada a sua entrega pelo Estado Francês. 3º- Corresponde à verdade que o requerido foi julgado na ausência, circunstância justificável pelo facto de AA ter ficado internado, em coma, no hospital ……. durante vários meses, o que agudizou a sua insuficiência respiratória. 4º- Ao acordar do coma, desconhecendo a sua condenação em pleno, nomeadamente no que concerne à qualificação de crime continuado, AA regressou a Portugal em meados de 2018, onde reside com o senhor Seu Pai - octagenário -, no domicílio deste. 5º- Sucede que o requerido padece de insuficiência respiratória, tendo sido, por várias vezes, internado no CH.. - ……, mais propriamente no serviço de pneumologia, onde é regularmente observado em sede de consultas urgentes e não urgentes (cfr. Docs. 1 a 3, os quais se juntam e dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais). 6º- Face ao seu problema de foro pulmonar, António apenas pode dormir com o auxílio de botijas de oxigénio, sob pena de sofrer uma fatalidade antes do seu tempo, 7º- E durante o dia está habitualmente acompanhado de um concentrador de oxigénio portátil. 8º- Ora, face ao seu quadro clínico, e à incerteza de que será atempada e clinicamente acompanhado pela sua enfermidade, em França, sobretudo em meio prisional, o requerido opõe-se ao cumprimento do mandado de detenção europeu. 9º- É de salientar que AA não pretende eximir-se da sua responsabilidade criminal, mas apenas e tão-só cumprir a pena em que foi condenado em território nacional e de acordo com a lei portuguesa. 10º- AA considera que a fundamentação da sua oposição é bastante para uma recusa facultativa de cumprimento do MDE, aliada ao facto de ter sido encontrado na sua residência, em território nacional, ter nacionalidade portuguesa e residir habitualmente em Portugal, 11º- Subsumindo-se tal circunstancialismo aos termos conjugados dos arts. 12.°, n.° 1, al. g) (não obstante a norma legal referir a requerimento do MP, consideramos, ressalvado o devido respeito por opinião diferente, que tal requerimento pode igualmente ser apresentado pelo requerido, face ao princípio da igualdade e armas e das garantias de defesa, os termos do n.° 1 da CRP), e 21.°, n.° 2 da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto, 12º- Requerendo, assim, a compreensão deste Tribunal para cumprir a sua pena em Portugal. Pede e espera deferimento”» 3.1. O detido interpôs recurso, nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. b), e n.º 5, da LMDE, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído a motivação nos seguintes termos: «I - Existe fundamento legal para que ao ora recorrente se possa facultativamente recusar a execução do mandado de detenção europeu, sobretudo quanto ao disposto na al. g) do n.º 1 do art.º 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. II – A decisão recorrida enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos da al. c), do n.º 1 e n.º 2 do art.º 379.º do CPPenal, aqui aplicável por força do disposto no art.º 34.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. III. A decisão recorrida enferma de nulidades nos termos da al. c), do n.º 1 e n.º 2 do art.º 379.º do CPPenal, aqui aplicável por força do disposto no art.º 34.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto -, dado que nada é referido a respeito do facto de AA ser um cidadão português, que foi encontrado em território nacional e que aqui reside em jeito permanente. IV. A decisão recorrida deve ser declarada nula e substituída por outra que reponha a verdade material, sendo, subsequentemente, recusada a execução do MDE aplicado». 3.2. Com o recurso o recorrente apresentou relatório médico emitido pelo Centro Hospitalar ….. — Serviço …. de onde consta a informação clínica do recorrente concluindo-se: “Insuficiência respiratória hipercápnica em OLD e O2 deambulação” (todavia a apresentação de meios de prova está limitada pelo disposto no art. 21.º, n.º 4, da LMDE) 4. O recurso foi admitido por despacho de 24.05.2021. 5. Nos termos do art. 24.º da LMDE, foi a interposição do recurso notificada ao Ministério Público, que respondeu nos seguintes termos: «(...) 2. – Dispõe o artigo 1º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto que “o mandato de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeito”, ou seja, o mandato de detenção europeu é um instrumento que visa reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros. Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade e proveniência do mandado de detenção europeu emitido pelas autoridades francesas, que se acha devidamente traduzido para português, mostrando-se observado o disposto no artigo 3.º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto. Os factos pelos quais foi emitido subsumem-se à prática pelo requerido de crimes de tráfico de estupefacientes e de aquisição e posse ilegal de armas, os quais são puníveis com pena máxima de 10 anos de prisão e que estão abrangidas pelo artigo 2º, nº 2, alíneas e) e f), dispensando-se, assim, o controlo da dupla incriminação dos factos. O fundamento invocado para a pretendida não execução facultativa do mandado de detenção europeu não se mostra, manifestamente, verificado. Na verdade, o Estado Português não se comprometeu, nem sequer alvitrou executar a pena aplicada ao requerido em França, de acordo com a lei portuguesa. De outro passo, cumpre dar por prestada a garantia a que alude o art.º 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23/8. Na verdade, com a junção da tradução do Mandado de Detenção Europeu tornou-se claro que o requerido foi notificado pessoalmente da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão – “(…) AA foi levado frente ao Procurador da República a 18 de novembro de 2017 quando lhe foi notificado por auto que deveria comparecer perante o 13° Juízo correccional do Tribunal judiciário ……. à audiência que teria lugar a 07 de maio de 2018. Por despacho do Juiz de Liberdades e Reclusão de 18 de novembro de 2017, ele foi colocado sob controlo judicial até a data da audiência”. Nestes termos, inexiste qualquer fundamento que obste à entrega do requerido às autoridades francesas em cumprimento do mandado de detenção europeu por aquele validamente emitido.» 6. Subido o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça foi, nos termos do art. 25.º, da LMDE e art. 379.º, n.º 3, do CPP ex vi art. 34.º, da LMDE, concluso à relatora, para acórdão. Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
II Fundamentação
A. Matéria de facto 1. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação ……, a matéria de facto relevante para a decisão é a seguinte: «A 15 de Novembro de 2017 em ………… (.. França), policiais notaram a presença de duas pessoas que se preparavam para a troca de produtos estupefacientes. Ao ver a polícia, o comprador fugiu, enquanto o vendedor (AA), ali permaneceu sendo encontrado em posse de resina de maconha (36 g). Durante a busca e apreensão em sua casa, a polícia descobriu muitos narcóticos: erva maconha (450 g.), Resina de maconha (34 g.), Crack (8 g) e cocaína (6 g). Além disso, também foi descoberta uma pistola calibre 6.35, retirada de seu carregador e descarregada. Dada a gravidade dos fatos e a natureza dos produtos descobertos - armas e estupefacientes - AA foi condenado por crime relativo à legislação sobre estupefacientes e sobre armas em estado de recidiva legal considerando a condenação anterior por fatos semelhantes ou equiparados em 30 de Maio de 2017, decretada pelo Tribunal correccional de …..»
B. Matéria de direito 1. Tendo em conta o recurso interposto e as conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, o recorrente alega, em súmula, a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia nos termos do art. 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal (CPP) ex vi art. 34.º, da LMDE, porquanto nada foi referido na decisão quanto à possibilidade ou não de recusa facultativa de execução do MDE à luz do disposto no art. 12.º, n.º 1, da LMDE, quando o recorrente, na sua oposição, alegou expressamente ser português com residência permanente e exclusiva em Portugal, tendo sido encontrado no país. Na motivação de recurso, tal como na oposição apresentada, volta a referir que não pretende eximir-se à sua responsabilidade penal, porém pretende cumprir a pena em Portugal, invocando neste contexto a doença de que padece. Compulsado o acórdão recorrido, verifica-se que, tendo o recorrente sido julgado na ausência em França, todavia foi devidamente notificado, pelo que não se trata de uma situação enquadrável no âmbito do art. 12.º-A, da LMDE. O recorrente é objeto de um MDE por ter sido julgado (com trânsito em julgado segundo o ponto 2 da motivação do recurso) e condenado em território francês pela prática, nomeadamente, de um crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de prisão de 2 anos, pelo que, nos termos do art. 2.º, n.º 1, al. e), da LMDE, não se impõe o controlo da dupla incriminação do facto. O recorrente, na oposição que apresentou, todavia, alegou enquadrar-se dentro da previsão do art. 12.º, al. g), da LDME que permite a recusa facultativa de execução do MDE quando a “pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”. Ora, tal como se refere no acórdão recorrido, no “relatório”, foi promovida a execução de MDE “emitido em 1 de Março de 2021 pelo Cour D'Appel de Paris, Tribunal Judiciaire de ……, Parquet de Madame la Procureure de la Republique, BB, em que é requerido o cidadão português AA, filho de CC e de D, nascido em .. de Junho de 1966 na freguesia de …….., concelho de ……, residente em ……, ……, titular do Cartão de Cidadão n.° ........ o qual foi, por sentença de 07 de Maio de 2018, proferida no Tribunal Judicial de ….., França condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, fundada na autoria dos crimes de tráfico de estupefacientes e aquisição e posse ilegal de armas, previstos e punidos na Lei Francesa, pelos artigos, 121-6, 121-7, 222-7, 222-17, 222-36, 222-37, 222-41, 222-44, 222-45, 222-47, 222- 48, 222-49, 222-50, 222-51, 222-52, 222-62, 222-63, 222-64, 222-65, 222-66 todos do Código Penal Francês, crimes puníveis com pena máxima de 10 anos de prisão.”. Ora, perante a oposição apresentada, o acórdão recorrido apenas considerou que o MDE devia ser executado. Na verdade, depois de ter verificado que estavam preenchidos os requisitos do art. 2.º, n.º 2, al. e), e art. 3.º, da LMDE, e depois de ter considerado que a oposição apenas podia ter por fundamento o disposto no art. 21.º, da LMDE, considerou que, não tendo o requerido alegado erro de identificação, “há que verificar se a oposição deduzida assenta nalguma das causas de recusa obrigatória ou facultativa — artigos 11.º e 12.º)”. E concluiu: “E não assenta.” Para tanto justificou do seguinte modo: “Com efeito, argumentando o arguido que receia que a sua alegada doença (insuficiência respiratória) não possa ser devidamente acompanhada em meio prisional francês e não pretende eximir-se ao cumprimento da pena, mas que pretende que o mesmo decorra em Portugal, temos de concluir que não está preenchido qualquer um dos motivos de não execução obrigatória ou facultativa do mandado de detenção europeu. Cumpre ainda referir que tendo as autoridades francesas feito constar do mandado que “AA foi levado frente ao Procurador da República a 18 de Novembro de 2017 quando lhe foi notificado por auto que deveria comparecer perante o 13° Juízo correccional do Tribunal judiciário de ….. à audiência que teria lugar a 07 de Maio de 2018. Por despacho do Juiz de Liberdades e Reclusão de 18 de Novembro de 2017, ele foi colocado sob controlo judicial até a data da audiência”, se mostra dada a garantia a que se refere a alínea a., do artigo 12º-A.” Todavia, a oposição não se baseava apenas na alegada doença de que padecia o requerido. Na oposição foi ainda invocado que “não pretende eximir-se da sua responsabilidade criminal, mas apenas e tão-só cumprir a pena em que foi condenado em território nacional e de acordo com a lei portuguesa.” (art. 9.º da oposição transcrita no ac. recorrido e supra). E assim invocava o fundamento de recusa facultativa inscrito no art. 12.º, al. g), da LDME, acrescentando ainda que “não obstante a norma legal referir a requerimento do MP, consideramos, ressalvado o devido respeito por opinião diferente, que tal requerimento pode igualmente ser apresentado pelo requerido, face ao princípio da igualdade e armas e das garantias de defesa, os termos do n.° 1 da CRP), e 21. °, n.º 2 da Lei n.° 65/2003, de 23 de Agosto” (art. 11.º da oposição). Ora, o Tribunal da Relação …… não fundamenta em parte alguma porque não considera aplicável ao presente caso — de um cidadão português, residente em Portugal, e aqui detido, e cujo MDE tem em vista apenas o cumprimento de pena de prisão de 2 anos, pela qual já foi condenado (com trânsito em julgado segundo o ponto 2 da motivação do recurso) em território francês — a possibilidade de recusa facultativa de execução do MDE com base no normativo já citado. Nem sequer fundamenta a não aplicação deste dispositivo, por exemplo, no facto de o Estado Português não se comprometer a executar a pena de acordo com a lei portuguesa. Nada sabemos porque concluiu não se verificar qualquer um dos motivos de não execução facultativa do MDE. Ora, nos termos do art. 22.º, da LMDE, a decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser fundamentada. E, por força do disposto no art. 34.º, da LMDE, são aplicáveis as regras processuais penais. Nos termos do art. 97.º, n.º 5, do CPP, nos atos decisórios devem ser “especificados os motivos de facto e de direito de [uma] decisão”, e numa sentença esta fundamentação deve conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos (...) de direito, que fundamentam a decisão” (art. 374.º, n.º 2, do CPP), sob pena de nulidade da decisão recorrida [cf. art. 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP]. Na base da exigência constitucional de fundamentação das decisões (cf. art. 205.º, n.º 1, da CRP) reside “sob o ponto de vista da juridicidade estatal (princípio do Estado de Direito) necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos actos do Estado, da necessidade de avaliação dos actos estaduais, aqui se incluindo a contrabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos actos do Estado. A estes exige-se clareza, inteligibilidade e segurança jurídica. Sob o ponto de vista do princípio democrático (...) podem acrescentar-se as exigências de abertura e transparência da actividade judicial, da clarificação da responsabilidade jurídica (...) pelos resultados da aplicação das leis, a indispensabilidade de aceitação das sentenças judiciais e dos seus fundamentos por parte dos cidadãos. Finalmente, sob o prisma da teleologia dos princípios processuais, a fundamentação das sentenças serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efectuado por instâncias judiciais superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais”[1]. A fundamentação das decisões constitui, pois, um dever constitucional. Nos termos determinados pelo Código de Processo Penal, esta fundamentação, ainda que concisa, deve especificar os motivos de direito que fundamentam a decisão (em cumprimento do disposto no art. 205.º da CRP), de modo a permitir aos destinatários da decisão — em primeira linha os seus intervenientes, maxime, os arguidos, mas também a toda a comunidade — perceber os motivos que levaram o Tribunal a executar este MDE sem que avaliasse da importância (ou não) de o requerido ser português, e se encontrar em Estado português, e sem que verificasse da possibilidade (ou não), atentos os problemas de saúde, de cumprimento da pena de prisão em Portugal. Além disto, não tendo havido um requerimento expresso do Ministério Público a pedir que se declare exequível em Portugal a sentença, em que medida poderá o requerido requerer este procedimento em atenção ao princípio da igualdade de armas? Poderá o Tribunal, em violação do referido princípio, abster-se de decidir pese embora o requerido tenha invocado expressamente o fundamento de recusa facultativa referido? A estarem verificados os requisitos impostos pelo art. 12.º, al. g), da LMDE, poderá o requerido ver negada a possibilidade de execução da pena em território português apenas porque não houve um requerimento por parte do Ministério Público? Na verdade, o Ministério Público na promoção de 06.05.2021 entende que “o fundamento invocado para a pretendida não execução facultativa do mandado de detenção europeu não se mostra, manifestamente, verificado”, sem que, todavia, apresente qualquer fundamentação. Todavia, os casos que se integram no âmbito da al. g), do art, 12.º, da LMDE, constituem as únicas situações em que, sem mais formalidades, o Estado Português pode recusar a entrega — tal como afirmou este Supremo Tribunal de Justiça “Apenas no caso de o arguido condenado ser cidadão português, se encontrar em território nacional, onde reside, e o M D E ter sido emitido para cumprimento de pena, o mesmo poderá ser indeferido, de acordo com a al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto, se o Estado Português se comprometer a executar aquela pena em território nacional de acordo com a lei portuguesa. Quer dizer, a protecção do cidadão português, ou de pessoa residente ou que se encontre em Portugal seria caucionada pela al. g): - a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal - mas desde que mandado de emissão tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa. Somente nestas situações em que a pessoa procurada se encontre em território nacional, tenha nacionalidade portuguesa ou resida em Portugal, o Estado Português pode recusar sem mais formalidades que as previstas na lei (compromisso de executar em território nacional e de acordo com a lei portuguesa a pena ou medida de segurança a que a pessoa procurada tenha sido condenada) a entrega desta ao Estado emitente.” (ac. de 02.08.2019, proc. n.º 1728/19.7YRLSB.S1, Relator: Cons. Pires da Graça). Na verdade, as causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12.º, n.º 1, da LMDE, têm, quase todas, um fundamento ligado à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada. E no que respeita, especificamente, à al. g), do n.º 1, do art. 12.º, da LMDE, habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa. A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução. No dispositivo citado concede-se ao Estado da execução a faculdade de recusar a execução no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que, perante a ligação da pessoa procurada, maxime sendo seu nacional, este Estado se comprometa a executar a pena. Inexistindo no regime do MDE critérios gerais ou específicos para predeterminar as condições de exercício da faculdade de recusa de execução, hão-de os mesmos ser definidos na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal aplicáveis às penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena. O que determina, no âmbito do sistema de reações criminais português, que as decisões sejam pautadas por critérios de prevenção especial. No caso, perante a questão que lhe foi apresentada para decisão, a autoridade judicial competente - o Tribunal da Relação - deveria ter verificado se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justificaria a recusa de execução da mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna. Não tendo averiguado sobre tais pressupostos, e tendo em conta o disposto no artigo 21.º, n.º 4, da LMDE, a análise dos documentos juntos pelo requerente, o tribunal a quo omitiu a prática de actos necessários para a decisão e o acórdão recorrido deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja, a existência de causa de recusa facultativa de execução. Este Supremo Tribunal de Justiça decidiu, em casos semelhantes, que a recusa facultativa não pode ser concebida como um ato gratuito ou arbitrário do tribunal. Há-de, decerto, assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente. Assim, cabendo ao Tribunal a quo pronunciar-se, expondo as razões de facto e de direito, sobre a possibilidade ou não de recusa facultativa de execução do MDE ao abrigo do disposto no art. 12.º, n.º 1, al. g), da LMDE[2], uma vez que tal foi expressamente requerido pelo recorrente logo aquando da oposição (e em atenção ao princípio da igualdade de armas), a decisão é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a e c) do CPP, ex vi art. 34.º, da LMDE. E, a concluir pela aplicação do disposto no art. 12.º, al. g), da LMDE, “O Tribunal da Relação, enquanto órgão de soberania, é o órgão do Estado Português a que a lei defere a competência para comprometer (ou não) o Estado na execução da sentença em Portugal.”[3]. Dada a falta de fundamentação verificada e a omissão de pronúncia sobre questão sobre a qual devia ter decidido, considera-se nulo o acórdão recorrido nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a) e c), 374.º, n.º 2, ambos do CPP ex vi art. 34.º, da LMDE.
III Conclusão Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão recorrido, devendo ser substituído por outro que supra as lacunas referidas.
Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 09 de junho de 2021 Margarida Blasco
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[1] Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 526-7. [2] “Mas a que “lei portuguesa” se refere a parte final da al. g) do nº 1 da Lei nº 65/2003? Obviamente à lei de execução das penas ou medidas de segurança! Ou seja, o Estado da execução deve aceitar a condenação nos seus precisos termos, mas tem o direito de executar a pena ou a medida de segurança de acordo com a lei nacional. É uma reserva de soberania quanto à execução. É isso e apenas isso que estabelece a parte final do preceito.” — ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.06.2017, Proc. n.º 695/17.6YRLSB.S1 Relator: Cons. Manuel Augusto Matos, in www.dgsi.pt [3] Idem. Porém, “o mecanismo do «reconhecimento e execução, em Portugal, de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão» não possa traduzir-se em acrescidas exigências formais no âmbito da adopção do compromisso, previsto no artigo 12.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 65/2003, de o Estado Português executar, de acordo com a lei portuguesa, a pena de prisão aplicada pelo Estado emissor do mandado de detenção europeu.” (idem).
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