Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
619/21.6T8VCT.G1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: DESPACHO DO RELATOR
RECLAMAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
FORMALIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I - Numa reclamação do art. 643.º do CPC, antes da prolação do acórdão da conferência, que decida a impugnação da decisão singular (da reclamação), não tem que ser cumprido o art. 655.º, n.º 1, do CPC.
II - A omissão de pronúncia não se confunde com as razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas): só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante duma sentença/despacho, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 619/21.T8VCT.G1-A.S1

6.ª Secção

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

VIANADECON CONSTRUÇÃO NAVAL, S.A., com os sinais dos autos, veio reclamar do despacho proferido no dia 28/02/2023 que, com fundamento em o processo ter o valor processual de 5.000,01 (não superior, por isso, à alçada do Tribunal da Relação), não admitiu a revista que pretendia interpor do acórdão de Relação de Guimarães proferido nos autos em 19/01/2023.

Foi apresentada resposta, pedindo-se o indeferimento da reclamação.

Distribuídos os autos neste STJ, foi proferida decisão a indeferir tal reclamação e a manter o despacho reclamado.

Após o que veio a requerente/reclamante pedir que sobre a matéria de tal despacho recaísse Acórdão, de acordo com o disposto nos arts. 643.º/4 e 652.º/3 e 4 do CPC, tendo-se, por Acórdão da Conferência de 02/11/2023, indeferida a reclamação (do art. 652.º/3 e 4 do CPC) apresentada contra a decisão proferida neste STJ

Vindo agora a mesma requerente/reclamante suscitar as seguintes nulidades de tal Acórdão da Conferência:

a) Nulidade por preterição de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve – cfr. artigo 195º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil;

b) Nulidade por falta de fundamentação – cfr. artigo 615º, n.º 1, alínea b), do Cód. Proc. Civil;

c) Nulidade por omissão de pronúncia – cfr. artigo 615º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do Cód. Proc. Civil.

Notificados os recorridos, opuseram-se à verificação de tais nulidades.

*

II – Fundamentação

Quanto à nulidade por preterição de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve:

Diz a requerente/reclamante que o Acórdão da Conferência foi emitido “sem antes conceder às partes (na presente demanda), mormente à Reclamante, a possibilidade de se pronunciarem, querendo, relativamente à sua intenção de manter o despacho que, indeferindo a reclamação, não admitiu o recurso de revista interposto pela Reclamante”, isto é, segundo a requerente/reclamante, foi omitido o cumprimento do art. 655.º/1 do CPC, representando tal omissão uma “nulidade por preterição de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve”.

Configura, como é evidente, o invocado um claro equívoco da requerente/reclamante.

O art. 655.º/1 do CPC não é ao caso aplicável, como resulta de uma leitura medianamente atenta do mesmo: diz-se em tal preceito que as partes são ouvidas caso foi deentender-se que não pode conhecer-se do objeto do recurso”, ou seja, aplica-se à hipótese de um recurso que já foi admitido no tribunal a quo (aliás, o art. 655.º do CPC está já sistematicamente inserido na fase de julgamento do recurso, fase que se inicia no art. 652.º do CPC).

No caso, o recurso não foi admitido no tribunal a quo e por isso houve e estamos na reclamação do art. 643.º do CPC, sendo que o Acórdão da Conferência (de que agora se invocam nulidades) foi proferido nos termos do art. 643.º/4, in fine, que remete para o art. 652.º/2, remissão que tão só significa que a impugnação da decisão singular (da reclamação) é de imediato decidida em Acórdão da Conferência.

Sem que o art. 655.º/1 do CPC seja convocável e sem que a não audição das partes represente uma qualquer violação do princípio do contraditório inscrito no art. 3.º/3 do CPC: as partes – no caso, a requerente/reclamante – tiveram, antes da prolação do Acórdão da Conferência, a oportunidade de expor por duas vezes (aquando da reclamação propriamente dita e do pedido de Conferência) as suas razões a favor ou contra a admissibilidade do recurso de revista interposto1.

Quanto às nulidades por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia:

Segundo a alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, constitui causa de nulidade da sentença a falta de fundamentação, porém, quando se fala, a tal propósito, em “falta de fundamentação”, está-se a aludir à falta absoluta e não às situações em que a fundamentação é deficiente, incompleta ou não convincente.

Segundo a alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, constitui causa de nulidade da sentença o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, porém, quando se fala, a tal propósito, em “omissão de conhecimento” ou de “conhecimento indevido”, está-se a aludir e remeter para as questões a resolver a que alude o art. 608.º do CPC.

O que sinteticamente acabamos de referir sobre o recorte conceitual das “nulidades de sentença” é dito na doutrina jurídico-processual há muitas décadas, de forma pacífica e uniforme, desde os “clássicos” Alberto dos Reis2 e Antunes Varela3, aos autores mais recentes.

E para se ter a exata noção da enorme distância que vai entre o que se invoca e o rigoroso recorte conceitual das nulidades de sentença/Acórdão, passamos a transcrever o que o Juiz-Conselheiro Ferreira de Almeida diz sobre o assunto (sendo os sublinhados nossos)4:

“ (…)

b) Falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (falta de fundamentação – art. 615.º/1/b)).

Traduz-se este vício na falta de motivação da sentença, ou seja, na falta de externação dos fundamentos de facto e de direito que os n.º 3 e 4 do art. 607.º impõem ao julgador. Só integra este vício, nos termos da doutrina e da jurisprudência correntes, a falta absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação simplesmente escassa, deficiente, medíocre ou mesmo errada; esta última pode afectar a consistência doutrinal da sentença, sujeitando-a a ser revogada ou alterada pelo tribunal superior, não gerando contudo nulidade.

(…)

Quanto à fundamentação de direito, não tem também o juiz que analisar um por um todos os argumentos ou razões invocadas pelas partes, ainda que tenha de dar resposta (resolução) às questões por elas invocadas; não se lhe impõe, por outro lado, que indique, uma por uma, as disposições legais em que se baseia a decisão, bastando que faça alusão às regras e princípios gerais em que a ancora.

d) Omissão de pronúncia (art. 615.º/1/d) – 1.º segmento):

Em obediência ao comando do n.º 2 do art. 608.º, deve o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer.

Integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes).

Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes. (…)”

Explicado o sentido e alcance do que são “nulidades de sentença/acórdão”, é de todo evidente que só por lapso se pode imputar tais vícios ao Acórdão da Conferência proferido.

O que se passa, isso sim, é que a requerente/reclamante discorda do decidido, discordância que se lhe reconhece, como é evidente, mas que não constitui fundamento para sujeitar as questões, incluídas no âmbito e objeto do recurso, a nova decisão do mesmo tribunal.

A tal propósito – e para que não restem dúvidas sobre o que vimos de dizer – menciona-se que se transcreveu no Acórdão da Conferência a totalidade da fundamentação (três páginas) da anterior decisão singular, após o que se referiu que se mantinha a mesma integralmente, acrescentando-se/sintetizando-se a argumentação, no sentido do indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:

“ (…)

- Como se procurou explicar, no despacho singular acabado de transcrever, o art. 629.º/2/d) do CPC não tem aplicação ao caso: tendo a decisão/acórdão sob revista sido proferido no processo principal de insolvência (e não num dos seus apensos), tem aplicação o art. 14.º/1 do CIRE;

- A admissibilidade de revista, com fundamento em contradição jurisprudencial (seja com base em tal art. 14.º/1 do CIRE, seja com base quer no art. 672.º/2/d) do CPC, quer no art. 629.º/2/d) do CPC), não prescinde da verificação das condições gerais de admissibilidade dos recursos, isto é, no que aqui releva, não prescinde da causa ter valor superior à alçada do Tribunal da Relação (art. 629.º/1 do CPC);

- Pelo que – é o que torna ab initio inadmissível a revista interposta – tendo a causa o valor processual de 5.000,01, não há revista;

- Daí que não se haja entrado na questão de saber/apurar se se verifica ou não a invocada contradição jurisprudencial: seria inútil proceder a tal verificação, uma vez que, antes disso, há um obstáculo à admissibilidade da revista;

- E quanto ao valor processual da causa já foi dito e repete-se que, “como resulta do art. 306.º/2 do CPC, não cabe à Relação ou ao Supremo fixar ou corrigir o valor processual das causas: é à 1.ª Instância que cabe o uso das faculdades previstas no art. 306.º do CPC, pelo que, ainda que haja sido alegado pela devedora, no seu articulado de oposição, que o valor do seu ativo, segundo o último balanço aprovado, era de € 19.073.556,02, a questão da correção do valor processual, nos termos do art. 15° do C.I.R.E., devia ter sido suscitada na 1.ª Instância; e oportunamente aí suscitada, ou seja, por forma a que no momento da apreciação da admissibilidade da revista o “novo” valor processual, corrigido nos termos do art. 15.º do CIRE, estivesse já consolidado nos autos.”

- Não havendo em todo este entendimento/interpretação qualquer inconstitucionalidade, designadamente, por violação, como se invoca, dos artigo 13.° e 20.º da CRP: efetivamente, o atual regime da revista estabelece a ideia de que o triplo grau de jurisdição, em matéria cível, não constitui uma garantia generalizada, ou seja, “ainda que ao legislador ordinário esteja vedada a possibilidade de eliminar, em absoluto, a admissibilidade do recurso de revista para o Supremo (possibilidade que implicitamente decorre da previsão constitucional de uma hierarquia de tribunais judiciais, tendo como vértice o Supremo Tribunal de Justiça), ou de elevar o valor da alçada da Relação a um nível irrazoável e desproporcionado que tornasse o recurso de revista praticamente inatingível para a grande maioria de casos, o Trib. Const. vem considerando que não existem impedimentos absolutos à limitação ou condicionamento de acesso ao Supremo”5.

“(…)

Resulta pois evidente, tão só da leitura atenta da síntese argumentativa acabada de transcrever (isto é, sem necessidade de recorrer à leitura do que antes se transcreveu do anterior e inicial despacho singular), que não só não há uma qualquer nulidade por falta de fundamentação como esta é esgotante e completa, ou seja, não foi cometida uma qualquer nulidade por omissão de pronúncia.

E resulta também evidente, ao contrário do que a ora requerente/reclamante diz, que o Acórdão da Conferência não se limitou a remeter para os fundamentos constantes da decisão singular – transcreveu-os, fê-los seus e acrescentou/sintetizou o que aqui se acabou de transcrever – e, chama-se a atenção, também não constituiria falta de fundamentação se o Acórdão da Conferência se tivesse limitado a remeter para os fundamentos da decisão singular6; assim como também resulta evidente – não sendo o que a requerente/reclamante agora diz, na presente arguição de nulidades, a expressão da verdade7 – ter sido efetuada uma reapreciação concreta e especificada dos motivos que haviam sido invocados para a admissão do recurso de revista: quer a decisão singular transcrita, quer a síntese aqui transcrita, percorrem todo o percurso/raciocínio jurídico-processual que tem que ser feito para a admissibilidade ou não dum recurso de revista como o interposto (e isto é tudo – mais do que isto é impossível – para fundamentar uma decisão de admissibilidade ou não dum recurso de revista), não se deixando de abordar a questão decorrente do valor processual da causa e a questão da inconstitucionalidade suscitada

Como acima se transcreveu, a omissão de pronúncia não se confunde com as razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas): só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante duma sentença/despacho, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.

Em conclusão: a requerente não tem qualquer razão nas nulidades arguidas; aliás, verdadeiramente, faz apenas questão de frisar a sua discordância com o decidido, o que – divergência com o decidido – não consubstancia, manifestamente, nulidade e é por isso claramente anómalo.

*

III - Decisão

Pelo exposto, indefere-se a presente arguição de nulidades do Acórdão da Conferência.

E condena-se a requerente/reclamante nas custas do incidente anómalo a que deu causa, fixando a taxa de justiça em 3 UC.

*

Lisboa, 19/12/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Amélia Alves Ribeiro

Luís Espírito Santo

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1. Seria bastante incompreensível que as regras/princípios processuais, depois da parte reclamar da não admissão dum recurso, depois da parte conhecer a decisão que mantém tal não admissão e depois da parte requerer/reclamar de tal decisão para a Conferência (podendo aduzir o que bem entendesse), ainda pudessem impor/prescrever que fosse aberto um novo contraditório para a parte se pronunciar sobre o que em duas oportunidades anteriores já havia constituído o objeto da sua pronúncia.↩︎

2. CPC Anotado, Vol. V, pág. 136 e ss.↩︎

3. Manual, 1.ª ed., pág. 666 e ss.↩︎

4. Direito Processual Civil, 2015, pág. 369 a 371.↩︎

5. Abrantes Geraldes, local citado, pág. 395.↩︎

6. Veja-se, a propósito, o Ac. deste Supremo de 19/10/2017 (proferido no processo 1577/14.9T8STR.E1.S1), em que se considerou que “o acórdão proferido em conferência, no seguimento de reclamação contra um despacho do relator, não é nulo por falta de fundamentação se assume como suas as considerações que deste constam, secundando-as (…)”↩︎

7. A requerente diz diversas coisas – designadamente, que o “Acórdão ora colocado em crise recorreu a referências genéricas, afirmações e declarações gerais” – que certamente não dizem respeito aos presentes autos, como também será o caso da despropositada invocação/convocação do artigo 607º do C.P.C. (e de tudo o que nesse seguimento se invoca), quando estamos numa impugnação/reclamação (do art 643.º/4/parte do CPC) dum despacho que confirmou a não admissão duma revista.↩︎