Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4202/17.2T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONCURSO PÚBLICO
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
PERDA DE CHANCE
ILICITUDE
PLANO DE INSOLVÊNCIA
DEVER DE COMUNICAÇÃO
BANCO DE PORTUGAL
CRÉDITO
NEXO DE CAUSALIDADE
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
JUÍZO DE PROBABILIDADE
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. Apesar de a álea dos concursos públicos poder interferir no apuramento da existência de uma oportunidade perdida “consistente e séria”, essa contingência não é absolutamente proibitiva que se atribua uma indemnização por este tipo de prejuízo, sendo apenas necessário que essa oportunidade tenha um grau de previsibilidade de concretização suficiente para que a sua perda justifique uma compensação.

II. A seriedade da oportunidade perdida, sendo uma ideia conclusiva, deve resultar da prova de factos que a revelem.

III. Sendo possível que o julgador da matéria de facto apure a prova da percentagem de hipóteses que o lesado tinha de concretização da oportunidade que perdeu por ação de outrem, resultando do valor dessa percentagem o grau de consistência e a seriedade dessa chance, tais caraterísticas também podem resultar do apuramento das condições fácticas que o lesado reunia para que essa oportunidade se concretizasse, competindo ao aplicador do direito efetuar um juízo sobre a robustez da probabilidade, sem que tenha necessariamente que a quantificar.

IV. Nesta última hipótese o montante indemnizatório pela perda de chance deve ser arbitrado, com recurso a um juízo de equidade, que pondere todas as circunstâncias do caso.

Decisão Texto Integral:

Autora: Duque & Duque - Terraplanagens, Lda.

Ré: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL.


*


I - Relatório

A Autora propôs ação declarativa, com processo comum, contra a Ré, alegando, em síntese, o seguinte:

- A Autora mantinha uma relação comercial com a Ré sob a forma de conta corrente e que sempre foi por si cumprida até ao momento em que apresentou um PER (Plano Especial Revitalização).

- No decurso da não aprovação desse PER, a Autora foi declarada insolvente e foi aprovado um Plano de Insolvência que previa o pagamento do crédito da Ré em determinadas condições.

- A Autora começou a cumprir o plano, mas a Ré recusou-se a receber os respetivos pagamentos, tendo, simultaneamente, comunicado à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal que a Autora estava em incumprimento.

- Por força dessa comunicação, a Autora esteve impedida de aceder a garantias bancárias.

- Sem essas garantias bancárias a Autora não pôde concorrer a diversas empreitadas de obras públicas que tinha a possibilidade de ganhar, o que lhe causou prejuízos em montante não inferior a € 1.371.367,04.

- A Autora viu-se ainda obrigada, para garantir a sua sobrevivência comercial, a proceder a depósitos cauções no valor global de € 39.644,64.

- Para que a Ré acedesse a comunicar ao Banco de Portugal que se havia alterado a situação do crédito sobre a Autora, esta foi obrigada a celebrar um acordo com a Ré em que se obrigou a pagar mais € 53.629,90 do que resultava do plano de pagamentos homologado no processo de insolvência.

Concluiu, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor global de € 1.464.641,58 (€ 1.371.367,04 + € 39.644,64 + € 53.629,90), acrescida do valor que se viesse a liquidar posteriormente, relativo a futuros prejuízos.

A Ré contestou, impugnando a factualidade alegada pela Autora, tendo considerado que a ação deve ser julgada totalmente improcedente, na medida em que não existe qualquer comportamento ilícito da sua parte

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:

1. Condenou a ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Noroeste, CRL., a pagar à autora Duque & Duque – Terraplanagens, Lda., o montante de € 1.371.367,04 (um milhão trezentos e setenta e um mil, trezentos e sessenta e sete euros e 4 cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento.

2. Absolveu a Ré dos restantes pedidos contra si formulados pela Autora.

Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso para o Tribunal de Relação que, por acórdão proferido em 30.11.2022, julgou improcedente o recurso, tendo confirmado a sentença recorrida.

A Ré interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual foi admitido por acórdão proferido pela Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Lê-se nas conclusões das alegações de recurso:

1.ª - O recurso que se interpõe deverá ser admitido a título excecional porque em causa está uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito já que é uma questão nova e complexa, que não conhece ainda doutrina sólida e unânime, resultando a sua regulamentação sobretudo das normas de Direito Europeu e da jurisprudência europeia e administrativa, as quais foram desconsideradas pelo Tribunal a quo que, ao decidir como decidiu, contrariou tais desenvolvimentos e criou uma incoerência na aplicação do Direito que justifica uma intervenção deste Tribunal Superior para uma melhor definição do direito aplicável

- vd. art. 672.º, n.º 1, al. a) do CPC

- art. 2.º, n.º 7 da Diretiva 92/13/CEE

- vd. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, do Pleno da 1.ª Secção, n.º 1/2010, proc. n.º 557/08

2.ª - O presente recurso de revista excecional também se justifica porque a decisão impugnada contraria de forma manifesta a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de facto e direito.

Diferentemente da linha jurisprudencial deste Tribunal ad quem, que já decidiu que em situações como aquela que aqui se encontra em apreciação não tem lugar a aplicação do instituto da perda de chance, o Tribunal a quo aplicou o instituto da perda de chance à situação em apreço e condenou a recorrente no pagamento de uma indemnização nela fundada

- vd. Acórdão do STJ, já transitado em julgado, de 16.06.2009, proc. n.º 1623/03.1TCLRS.S1

3.ª - Para além disso, a decisão contraria ainda a jurisprudência que tem vindo a decidir, de forma unânime, que na perda de chance não se busca, efetivamente, a indemnização pela perda do resultado querido, mas antes pela oportunidade perdida, como um direito em si mesmo, e que por isso não é possível a correspondência entre a indemnização e o dano alegado

A decisão proferida desconsiderou esta tendência jurisprudencial pois que, ao condenar a recorrente nos termos em que o fez, não condenou a recorrente pela perda de chance, mas pela perda de lucro que seria obtido caso a recorrida ganhasse os concursos públicos

Mas a decisão contrariou ainda a jurisprudência uniformizada pelo STA de acordo com a qual os lucros cessantes em situações semelhantes só podem ser indemnizáveis se tiver existido a prévia celebração de um contrato válido e o seu incumprimento (o que não sucedeu no caso)

- art. 672.º, n.º 1, al. c) do CPC

- vd. Ac. de uniformização de jurisprudência do STA, de 14.01.2016, proc. n.º 01403/12

- vd. Acórdão do TRP, já transitado em julgado, de 14.06.2016, proc. n.º 540/13.1T2AVR.P1.

4.ª - Não obstante o que se disse, a recorrente está em crer que sempre seria admissível a revista nos termos gerais porque a decisão ofendeu o caso julgado quando referiu ter sido ilegítimo e ilícito o acordo alcançado entre recorrida e recorrente na ação executiva n.º 3824/15.0..., quando tal acordo foi homologado por sentença por ser considerado válido e lítico pelo Tribunal onde correu termos tal ação

Com efeito, a validade de tal acordo estava já decidida nessa ação, na qual tal acordo foi alcançado, e não competia ao Tribunal a quo pronunciar-se sobre a mesma (e menos ainda contrariando o entendimento jurisprudencial anterior), assim ofendendo o caso julgado, na vertente de autoridade de caso julgado

Por efeito, a atuação da recorrente deveria ter sido julgada lícita pelo Tribunal a quo.

- vd. art. 629.º, n.º 2, al. a) do CPC

5.ª - Com todo o devido respeito, a recorrente discorda da análise desenvolvida pelo Tribunal a quo, considerando não se encontrarem preenchidos os requisitos para aplicação do instituto da responsabilidade civil em que se funda a ação, a saber: facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano

É que muito embora a indemnização a que foi condenada a recorrente seja fundada em perda de chance, esta figura não pode dispensar os pressupostos da responsabilidade civil e a sua prova, ficando afastada a sua aplicação se não se provar o facto ilícito; e se não se provar que entre a ação da recorrente houve nexo de causalidade, muito probabilístico, de se ter impedido a perda de chance, real e séria

- vd. Acórdão TRC, de 09.12.2014, proc. n.º 37/09.4TBSRT-I.C1

6.ª - Assim, a recorrente crê que outra decisão se impunha desde logo porque, como decorre da 4.ª conclusão, a sua atuação foi lítica

Depois, porque crê que também não seria possível concluir pela ilicitude nem ilegitimidade da comunicação realizada e mantida ao Banco de Portugal: é que não só essa comunicação resultou de um dever legal que sobre si impedia, como se mostrou, por via da transação lograda entre recorrente e recorrida na ação executiva n.º 3824/15.0..., perfeitamente legítima

Nesta sede o Tribunal a quo desvalorizou infundadamente o teor dessa transação, tecendo um juízo crítico e pejorativo e desconsiderando que sobre a mesma se formou caso julgado e que o juízo sobre a justeza e adequação dessa transação, para além de não estar em discussão nos presentes autos, já foi objeto da devida ponderação pelo Tribunal onde correu a execução

Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo ofendeu a autoridade de caso julgado porque reapreciou a validade desse acordo, pronunciando-se sobre a ilicitude de uma transação que foi julgada legítima, válida e lícita e por isso homologada por sentença transitada em julgado, proferida no mesmo quadro insolvencial.

Acresce ainda que, de acordo com o quadro legal vigente, e diferentemente daquela que foi a conclusão do Tribunal a quo, mesmo que o plano de insolvência pudesse ser oposto à recorrente, certo é que esse plano não teria a virtualidade de produzir efeitos para com a recorrente no respeitante à comunicação anteriormente realizada ao Banco de Portugal e por isso se não dá dúvidas que a comunicação ao Banco de Portugal feita no final de 2014 foi lícita, então também não poderão restar dúvidas que a manutenção dessa comunicação se manteve igualmente lícita e legítima

- vd. art. 3.º do Decreto-Lei n.º 29/96 e Instrução do Banco de Portugal n.º 17/2018 - vd. email remetido pelo Banco de Portugal em 06.04.2022

- vd. Acs. do STJ, de 26.02.2019, proc. n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1; de 29.05.2014, proc. n.º 1722/12.9TBBCL.G1.S1; de 07.03.2017, proc. n.º 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1 e de 26.02.2019, proc. n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1; e do TRP, de 11.10.2018, proc. n.º 23201/17.8T8PRT.P1

7.ª - A decisão que por esta via se impugna deve ser ainda revista porque contrariando aquela que é posição jurisprudência uniforme, aplicou a figura da perda de chance a uma situação em que não se revela adequada a aplicação de tal instituto por ser imprevisível o seu desfecho

Em situações em tudo semelhantes àquela que aqui se encontra em discussão, o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu:

«I - Para que se possa exigir o ressarcimento de certo dano, é necessário, mas não suficiente, que o facto constitutivo da responsabilidade seja condição dele, exigindo-se, de igual modo, que o mesmo, provavelmente, não teria acontecido se não fosse a lesão, o que não acontece quando, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, aquele não era apto para o produzir, mas que só aconteceu devido a uma circunstância extraordinária.

II - Não se encontrando a possibilidade de a autora ser vencedora do concurso público a que se pretendia submeter, apenas, dependente da sua vontade, mas, também, do entendimento e querer do júri do concurso de selecção, o que, de todo o modo, era um dado imprevisível, no sentido de coisa fortuita ou acidental, que ocorreria ou poderia deixar de acontecer, mas que não é susceptível de demonstração, não pode imputar-se à ré o facto de aquela não ter ganho o concurso, em virtude da sua exclusão preliminar, como consequência, necessária e direta, do incumprimento contratual da obrigação de entrega atempada da proposta que deveria fazer chegar à entidade destinatária da mesma.

III - O dano do não vencimento do concurso, mesmo superada que fosse a exclusão proveniente da apresentação intempestiva da proposta, não pode ser considerado como uma lesão que a autora, provavelmente, não teria sofrido, em virtude de a sua selecção e escolha, também, depender de um juízo de discricionariedade técnica e científica.

IV - Não existe nexo causal entre o acto danoso da entrega intempestiva da proposta pela ré e o facto de a autora ter sido excluída do concurso público a que se pretendia candidatar através da mesma.»

Ou, num outro acórdão em que se discutiam factos semelhantes: «[…]

4. No caso dos autos, como a possibilidade de a recorrente ganhar o concurso estava envolta em manifesta álea, por dependente da vontade de outrem, que não os contraentes, pelo que era imprevisível, (no sentido de coisa fortuita ou acidental que ocorreria ou deixaria de ocorrer), não poderá ser imputado esse facto - não ter ganho o concurso - à recorrida, como consequência ainda do incumprimento do contrato celebrado.

5. Só esta conclusão é compatível com o conceito de causalidade adequada, sendo que o lesante é responsável por todos os prejuízos que “necessariamente” resultem do não cumprimento do contrato.

6. A mesma teoria da causalidade adequada visa excluir da indemnização os danos que resultaram de “desvios fortuitos”, com o objectivo de libertar o lesante do risco de suportar, quase em termos de versari in re illicita, todos os danos a que o seu acto deu origem.

7. Ao invés, a relevância negativa da causa virtual quando se efective, representa uma limitação à causalidade como pressuposto da responsabilidade. Deixa-se de responder pelo prejuízo ou prejuízos que efectivamente se causaram.»

- vd. Acs. do STJ de 16.06.2009, proc. n.º 1623/03.1TCLRS.S1 e de 06.03.2007, proc. n.º 07A138.

8.ª - Mas crê a recorrente que o Tribunal a quo não esteve bem não só porque contrariou tal jurisprudência, como pelo facto de condenar a recorrente no pagamento de uma indemnização por resultar “séria e consistente” a chance de a recorrente ganhar os concursos

É que, como tem vindo a ser sublinhado pela jurisprudência, em casos de concursos públicos (especialmente de empreitada) não é possível concluir que foi pela atuação da recorrente que a recorrida sofreu os danos que invoca porque não se pode profetar que ganharia o concursos referenciados no ponto 56 dos factos assentes

9.ª - Como pressuposto prévio, deve ter-se presente que a disciplina legal aqui em discussão é, antes de tudo, direito administrativo europeu e que, por isso, os pedidos de indemnização a este nível não deverão distanciar-se do sentido resultante desse direito.

A nível do Direito Europeu resulta expressamente do artigo 2.º, n.º 7 da Diretiva 92/13/CEE que o direito à indemnização por perdas e danos relativo aos custos incorridos com a preparação de uma proposta ou a participação num procedimento de celebração de um contrato fica subordinado à prova da possibilidade real de ser atribuído o contrato ao lesado que pressuporá: i) a efetiva apresentação de uma proposta num procedimento de contratação pública; e ii) tratar-se de uma proposta competitiva, aderindo a jurisprudência nacional à doutrina da “posição de resultado garantido” que exige a demonstração efetiva (e não meramente hipotética ou probabilística) de que a recorrida seria a real adjudicatária

No caso, a recorrida não apresentou qualquer proposta aos referidos concursos públicos nem sequer provou que ficaria em 1.º lugar no concurso em termos de lhe ser adjudicada a empreitada, ou que a entidade estaria vinculada a celebrar consigo o contrato de empreitada

- vd. a título exemplificativo, Acs. do STJ de 03.03.2005, proc. n.º 041794; de 29.09.2005, proc. n.º 0179/05, de 29.09.2004, proc. n.º 01936/03 e de 04.04.2006, proc. n.º 077B/02 e do TCAN de 24.11.2016, proc. n.º 13745/16 e de 05.03.2021, proc. n.º 00777/08.5BEPNF

10.ª - Aliás, no entender da recorrente, a recorrida encontrava-se em situação de desvantagem perante os demais concorrentes dos concursos em causa: descapitalizada, com elevado nível de endividamento e a braços com um processo de recuperação; além disso não dispunha de disponibilidade financeira para executar as empreitadas; não dispunha de pessoal suficiente para as executar e teria que subcontratar os trabalhos; não dispunha de material e equipamento e teria que o alugar; não cumpria os prazos definidos para conclusão e empreitadas; tinha dificuldades na organização e gestão

Igualmente não é crível que a recorrida reunisse condições para se apresentar a todos os concursos, pois que tal sempre pressuporia capacitação técnica e humana, de que não dispunha. De resto, se entre 2014 e 2016 não concorreu a qualquer concurso público, considerando o que se disse, não se afigura plausível que equacionasse ou tivesse condições para concorrer a 39 concursos num hiato de 5 meses.

Igualmente não resultou comprovado que, não fosse a comunicação ao Banco de Portugal, a recorrida estaria em condições de apresentar, e apresentaria, a sua candidatura a cada um dos concursos em causa de acordo com as específicas condições de cada um

- vd. relatório pericial junto aos autos

11.ª - Diga-se ainda que também será desadequada e injustificada a alegação e aceitação de que a recorrida teria a expectativa/hipótese de se lhe serem adjudicadas 50% das obras abertas a concurso: é que o cálculo da probabilidade só poderia ser realizado concretamente, em função do tipo de obra, dos recursos humanos necessários, dos meios materiais exigidos e das demais empresas concorrentes (seja em número como em condições em que cada uma dela concorreria)

Para isso seria necessário que a recorrida tivesse alegado e comprovado que para uma das obras para as quais foram abertos concursos estaria não só capaz de reunir os requisitos para se candidatar, como teria maior hipótese de que a obra lhe fosse adjudicada do que as demais concorrentes nesses concursos (p. ex., apresentando a proposta que apresentaria e comparando-a com aquela que foi a proposta vencedora)

Todavia, isso não aconteceu: nem se comprovou a superioridade competitiva da recorrida por si; nem se comprovou ter maior competitividade quando comparada com as demais concorrentes.

12.ª - Assim, não ficou provado que o dano do não vencimento dos concursos seria uma lesão que a recorrida, provavelmente, não teria sofrido caso não fosse a participação ao Banco de Portugal

Aliás, conforme é entendimento jurisprudencial, tal nunca poderia ser dado por provado porque, tratando-se de concursos públicos, as probabilidades de ganho nunca são previsíveis

Em situações próximas o Supremo Tribunal de Justiça já afirmou e reafirmou que a aplicação da perda de chance deve ser afastada no caso de concursos públicos por a sua decisão depender de juízos de discricionariedade e de manifesta álea, tornando imprevisível a ocorrência do dano e assim afastando o nexo causal exigido para a condenação em indemnização

E se assim é para as situações em que há uma apresentação de proposta a concurso, mais será ainda para as situações em que, como no caso, existirá apenas uma mera possibilidade/expectativa de participação

- vd. Ac. STJ, de 06.03.2007, proc. n.º 07A138; Ac. STJ, de 16.06.2009, proc. n.º 1623/03.1TCLRS.S1

13.ª - Tudo o que aqui dissemos reforça o apelo ao entendimento que tem sido seguido por este Supremo Tribunal de Justiça a respeito da não aplicabilidade da figura da perda de chance a situações em que não é possível fazer qualquer juízo sobre se as eventuais propostas a apresentar pela recorrida seriam as propostas vencedoras, considerando os diferentes fatores que envolvem a tomada de decisão num procedimento concursal

Tomar como ponto de partida que qualquer pessoa que teria interesse em concorrer teria legítima expectativa de ganhar tais concursos seria conceder-lhe um privilégio injustificado não comportado no espírito do legislador quando exige para acionar a responsabilidade civil o nexo de causalidade

A recorrente crê que o Tribunal a quo, mantendo a decisão da 1.ª instância, se desviou destes requisitos, aligeirando-os e condenou a recorrente no pagamento de uma indemnização fundada na expectativa/probabilidade de ganho (que não chega a ser uma expectativa séria e/ou real).

- vd. art. 563.° do CC

- vd. Ac. TRC, de 09.12.2014, proc. 37/09.4TBSRT-I.C1

14.ª - De igual importância será de considerar que não ficou provado que os concursos em causa foram efetivamente executados e por isso não se consegue saber se, efetivamente, a recorrida teria tido possibilidade de executar tais empreitadas e, pois, auferir o lucro pretendido

Pelo que, a assim ser, não haveria lugar a reconhecer-lhe qualquer indemnização com respeito aos procedimentos de contratação pública em causa.

15.ª - Igualmente merece reparo a decisão impugnada porque se afasta da linha jurisprudencial segundo a qual o concorrente que apresenta uma proposta a concurso de empreitada apenas poderá ser ressarcido pelos encargos, ónus ou compromissos que assumiu e suportou como consequência direta e necessária da sua apresentação ao concurso e da jurisprudência uniformizada de acordo com a qual os lucros cessantes correspondentes à responsabilidade contratual propriamente dita devem ser lucros cujo montante deve ser avaliado e provado, pressupondo a prévia celebração de um contrato válido e o seu incumprimento.

É que o Tribunal a quo não só confirma a condenação da recorrente por lucros cessantes, como a confirma quando não existiu qualquer celebração de um contrato válido por não ter sido a recorrida a adjudicatária nesses concursos

- vd. Ac. de uniformização de jurisprudência do STA, de 14.01.2016, proc. n.º 01403/12

16.ª - Por fim, decidiu também o Tribunal a quo a quantia indemnizatória em desconsideração da posição jurisprudencial unânime segundo a qual valor da indemnização a fixar pela perda de chance não pode ser igual ou superior ao dano final e correspondente ao resultado que se pretendia evitar

A título exemplificativo foi já firmado:

«I - Tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência mais recente que a “perda de chance” consubstancia a perda de possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável, sendo considerado como um dano autónomo, intermédio, configurável como dano emergente e ressarcível diferentemente do dano final, já que nestas circunstâncias a fixação da indemnização total ou a sua recusa pura e simples não satisfazem o escopo da justiça material.

II - Apenas serão indemnizáveis as chances “sérias e reais”, pelo que importa averiguar se a possibilidade perdida gozava de um determinado grau de consistência e probabilidade suficiente de verificação do resultado pretendido.

III - A probabilidade de êxito no recurso tem de ser aferida em função dum “juízo sobre o juízo” desse recurso, ou seja, se seria suficientemente provável o seu êxito, atendendo às circunstâncias do caso concreto e à jurisprudência seguida nessa matéria pelo tribunal de recurso.

IV - O valor da indemnização a fixar pela perda de chance não pode ser igual ou superior ao dano final e correspondente ao resultado que se pretendia evitar.

V - Importa, assim, apurar qual a percentagem que representa o grau de probabilidade, face ao valor correspondente ao valor do dano final, apurando-se o valor da indemnização pelo dano “perda de chance”, enquanto dano autónomo.»

- vd. Ac. TRP, de 1.06.2016, proc. n.º 540/13.1T2AVR.P1

17.ª - Daqui resulta então que o valor indemnizatório a atribuir nos casos de perda de chance não poderá corresponder ao benefício que se pretenderia obter, mas antes ao valor da oportunidade perdida porque é essa que é tutelada de forma autónoma nos casos de perda de chance

Ora, ao condenar a recorrente no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor de lucro que a recorrida alegadamente receberia se tivesse ganho as obras em discussão, o Tribunal a quo contrariou a linha jurisprudencial unânime

18.ª - Aos olhos da recorrente, o Tribunal a quo desconsiderou uma etapa para o cálculo equitativo da indemnização, que forçava a quantificação da consistência das possibilidades que a recorrida detinha de alcançar o resultado pretendido, i. e., que forçava a determinar a probabilidade real de a recorrida ser a vencedora de cada uma das empreitadas

A decisão proferida desvirtuou, assim, toda as regras subjacentes ao instituto que temos vindo a analisar e ainda a teoria da causalidade adequada, adotada como pressuposto da indemnização fundada em responsabilidade civil

Não sendo possível calcular objetivamente o valor da oportunidade perdida, o Tribunal a quo deveria ter fixado equitativamente o valor indemnizatório

- vd. Acs. TRP, de 16.06.2016, proc. n.º 540/13.1T2AVR.P1 e do STA, de 23.09.2003, proc. n.º 01527/02

- arts. 562.°, 564.°, n.°1 e 566., n.° 2 do CC

19.ª - Por tudo isto, deve ser revista e revogada a decisão proferida.

A Recorrente juntou parecer jurídico.

A Autora respondeu, defendendo a manutenção do acórdão recorrido, tendo igualmente junto parecer jurídico.

Já no Supremo Tribunal de Justiça a Ré juntou novo parecer jurídico.

*

II – Do objeto do recurso

A Ré alega que o acórdão recorrido ao considerar que a celebração da referida transação no processo executivo violou o plano de insolvência da Autora, desrespeitou o caso julgado formado pela sentença que homologou a transação celebrada na Execução n.º 534/16.5..., que correu termos pela Secção Cível J1 da Instância Central de ....

Se é verdade que na fundamentação do acórdão recorrido, a dado passo, se escreveu que a atuação da Ré foi flagrantemente violadora do plano de insolvência, quer ao recusar o recebimento das prestações constantes do plano, quer ao celebrar uma cordo paralelo para pagamento do seu crédito, ferindo o que constava no plano e em claro prejuízo dos restantes credores, não é a imputação dessa violação que, na lógica do acórdão recorrido, fundamenta a apurada responsabilidade extracontratual da Ré que justificou a sua condenação, mas sim a manutenção da comunicação ao Banco de Portugal da existência de um crédito sobre a Autora incumprido.

As referências à transação, como manifestação do desrespeito pelo plano de insolvência, surgem apenas numa lógica de contextualização da omissão que o acórdão recorrido considera como ato gerador da responsabilidade da Ré, não integrando, porém, o comportamento ilícito que se considerou gerador do dano indemnizável, constituindo, pois, um obiter dictum no acórdão recorrido.

Daí que a imputação a essa referência de violação do caso julgado formado pela sentença que homologou aquela transação é irrelevante para a procedência deste recurso, não devendo ser objeto do conhecimento por este tribunal de recurso.

Assim, considerando as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apenas apreciar as seguintes questões:

- a manutenção da comunicação da Ré ao Banco de Portugal não é um ato ilícito que a possa responsabilizar pelos prejuízos invocados pela Autora?

- não existe um nexo de causalidade entre aquela comunicação e o alegado dano de perda de oportunidade?

- não é indemnizável o dano da perda de oportunidade, alegado pela Autora?


*


III – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à actividade de construção civil e obras públicas, nomeadamente, terraplanagens, transportes de materiais de construção, arruamentos, saneamentos, asfalto, construção civil e obras públicas, empreendimentos turísticos e sua comercialização.

2. No exercício da sua actividade comercial a Autora sempre necessitou de recorrer a entidades bancárias com a finalidade de financiar e potenciar a sua actividade, obtendo financiamentos bancários, garantias bancárias e outros semelhantes.

3. A dado momento, em 26/12/2000, a Autora acordou com a Ré um negócio segundo o qual a Ré disponibilizava um determinado montante monetário na conta da Autora para despesas correntes, mediante o pagamento de juros, vulgarmente denominado “contrato de abertura de crédito em conta corrente” ou “conta caucionada”.

4. Nos termos desse negócio, a Ré concedeu à Autora um crédito, em conta corrente, até ao montante de 50.000.000$00 (equivalente, atualmente, a cerca de € 250.000,00), destinando-se a cobrir necessidades de tesouraria da Autora.

5. Foi estabelecido que tal contrato vigoraria pelo prazo de 180 dias a contar da data da sua assinatura, sendo prorrogável por iguais períodos.

6. Desde a data da sua celebração o contrato de conta caucionada foi sendo sucessivamente prorrogado, mantendo-se em vigor todas as condições e cláusulas contratuais dele constantes, nunca tendo a Ré solicitado qualquer informação à Autora quanto à sua vontade ou necessidade de renovação deste contrato, bem como, nunca tendo a Autora, expressamente, solicitado essa mesma renovação, pelo que acabou por se entender que este contrato se renovava automaticamente.

7. Na data de assinatura do contrato referido, a Autora e os então sócios da Autora, entregaram à Ré uma livrança em branco, subscrita por aquela e avalizada por estes, e que se destinava a garantir e titular o bom cumprimento das obrigações assumidas por aquela Autora perante a Ré, e decorrentes do contrato em causa.

8. No decurso da relação contratual, nunca a Autora esteve em incumprimento perante a Ré no que dissesse respeito ao contrato supra mencionado.

9. A dado momento, e devido a dificuldades financeiras e de tesouraria, a Autora viu-se na necessidade de se apresentar a um Plano Especial de Revitalização (PER) que correu termos pela Secção de Competência Genérica – J1 da Instância Local de ..., da comarca de Viana do Castelo, sob o nº ... 32/14.1..., tendo existido despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório da Autora em 14/10/2014.

10. Por força do Plano Especial de Revitalização a Autora iniciou o normal procedimento de renegociação das dívidas com todos os seus credores, tendo a aqui Ré reclamado o seu crédito.

11. No âmbito do processo a que se vem de aludir (Processo Especial de Revitalização), decorreram as negociações normais com os credores da Autora.

12. O acordo em causa acabou por não ser homologado, tendo tal processo sido “reconvertido” num processo de insolvência, a pedido da própria Autora, onde acabou por ser votado, aprovado e homologado um plano de insolvência que também incluía um plano de pagamento relativo aos débitos da Autora e no qual se incluía o crédito da Ré.

13. Em 14/08/2015, realizou-se a assembleia de credores com vista à discussão e votação do plano, tendo-se considerado o mesmo aprovado, com 77,55% de votos favoráveis contra 22,45% de votos contra. Tal deliberação foi publicitada nos termos legais.

14. A Ré votou contra.

15. Em 24/08/2015, o credor Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, aqui Ré, que esteve presente na assembleia de votação do plano, apresentou requerimento no processo de insolvência requerendo a recusa de homologação do mesmo.

16. O plano de insolvência foi homologado por sentença judicial transitada em julgado proferida a 18.09.2015.

17. O processo de insolvência foi declarado encerrado a 30/10/2015.

18. Após a homologação do plano de insolvência, e dando cumprimento ao plano anteriormente aprovado, a Autora deu início aos pagamentos a vários credores.

19. Dando igualmente início aos pagamentos à aqui Ré.

20. A Ré, apesar das solicitações da Autora, não lhe forneceu quaisquer instruções acerca do modo como deveria dar início aos pagamentos das prestações previstas no plano de insolvência.

21. O que forçou a Autora a enviar, mensalmente, à Ré, por meio de vale postal, o valor das prestações que estavam definidas.

22. A Ré recusou-se sempre a receber tais montantes, alegando que não tinha votado favoravelmente esse plano.

23. A Ré intentou uma execução contra todos os avalistas da Autora, execução esta que correu termos pela Secção Cível J1 da Instância Central de ..., dessa mesma comarca, sob o nº 534/16.5... T8VCT.

24. Nessa execução foram demandados todos os sócios da Autora, bem como um ex-sócio que o havia deixado de ser no ano de 2000.

25. Os valores reclamados pela Ré aos sócios, a título pessoal, consistiam, basicamente, nas quantias de que a Autora seria devedora, acrescidas de outros montantes e encargos.

26. No momento em que se apresentou ao PER, e até à apresentação do plano de insolvência, a Autora deixou de pagar o crédito da Ré.

27. A partir de Novembro de 2014 a Ré declarou internamente o crédito sobre a Autora como estando na situação de incumprimento.

28. No final do mês de Novembro de 2014 a Ré efetuou uma comunicação eletrónica ao Banco de Portugal comunicando que o crédito sobre a Autora estava em situação de “crédito vencido em litígio judicial”, código 006, a que correspondia uma situação de crédito em incumprimento.

29. A Ré manteve essa comunicação mensal ao Banco de Portugal até Janeiro de 2017.

30. As garantias bancárias ou seguros caução são instrumentos essenciais à prossecução da actividade da Autora, e sem os quais a sua actividade empresarial fica paralisada, uma vez que fica impedida de concorrer a empreitadas de obras públicas com valores superiores a € 200.000,00 ou mesmo a obras com valores inferiores mas nas quais se exija a apresentação dessas garantias.

31. As comunicações ao Banco de Portugal, efetuadas pela Ré, não eram do conhecimento da Autora.

32. A Autora só teve conhecimento de que constava da central de risco do Banco de Portugal quando pediu a emissão de garantias bancárias para três empreitadas que tinha ganho de valor superior a € 200.000,00 e nas quais era obrigatório apresentar uma garantia bancária/seguro caução ou depósito caução para a adjudicação dessas empreitadas e para a subsequente execução das mesmas.

33. A emissão dessas garantias bancárias foi recusada por várias instituições bancárias devido ao facto de a Autora figurar na central de risco do Banco de Portugal.

34. A Autora dirigiu-se, em Setembro de 2016, à instituição financeira denominada Seguro Braga, solicitando a subscrição de uma Linha Seguro Caução que lhe permitisse obter os supra referidos seguros caução destinados a instruir os contratos de adjudicação de obras que lhes fossem atribuídos.

35. Por essa instituição financeira, em 28 de Setembro de 2016, foi comunicado à Autora que não seria possível aceitarem o pedido de subscrição da supra indicada Linha Seguro-Caução dados os indicadores financeiros à data, da Autora, não permitirem essa aceitação.

36. Em Setembro de 2016, na sequência da adjudicação de obras à Autora, solicitou esta a emissão de garantias bancárias, exigidas legalmente aquando da celebração de contratos de adjudicação de obras, desta feita à Caixa Geral de Depósitos, em 07 de Outubro de 2016, foi comunicado à Autora que o pedido de emissão de uma garantia bancária que esta havia solicitado foi recusado face ao registo de incumprimento da empresa junto do Banco de Portugal,

37. Em Outubro de 2016, a Autora solicitou ao Montepio Geral, a emissão de garantias bancárias destinadas a acompanhar os contratos de adjudicação de obras pelo Montepio Geral, foi comunicado à Autora que, após uma prévia análise de risco efetuada por esta instituição bancária e baseada na consulta às bases de dados disponíveis (Banco de Portugal e DUN), o Montepio não tinha interesse em sequer apresentar condições para emissão de garantias bancárias.

38. O facto de uma empresa figurar na central de risco do Banco de Portugal é comunicado por este às entidades bancárias que ponderam conceder crédito.

39. Cada banco pondera casuisticamente se, apesar de uma empresa figurar na central de risco do Banco de Portugal, concede ou não crédito a essa empresa.

40. O facto de uma empresa constar na central de risco do Banco de Portugal dificulta ou mesmo impossibilita na generalidade dos bancos e seguradoras a emissão de garantias bancárias ou de seguros caução.

41. A Caixa Geral de Depósitos tem uma diretiva interna que impede a concessão de garantias bancárias a empresas que constem da central de risco do Banco de Portugal.

42. No segundo semestre do ano de 2016, devido ao facto de se aproximarem eleições autárquicas a ocorrer no ano de 2017, vários municípios abriram concursos de obras públicas.

43. A Autora tentou diligenciar junto do Banco de Portugal a sua remoção da lista da central de risco, o que não logrou alcançar uma vez que o Banco de Portugal informou a Autora que a comunicação e remoção da central de risco era da responsabilidade das entidades bancárias.

44. Devido ao risco de penhora e venda de bens pessoais dos avalistas e também como forma de remover o seu nome da central de risco do Banco de Portugal, a Autora celebrou uma transação judicial no âmbito do processo executivo instaurado pela Ré contra os avalistas supra identificado

45. A Autora acabou por não poder concluir o processo de adjudicação de uma obra a realizar em ... (I.... . ....... .........), dado exigir a prestação de garantia bancária que, devido ao facto de constar da central de risco do Banco de Portugal, não lhe foi possível prestar.

46. Na sequência de tal adjudicação (relatório final) devia ser celebrado o contrato de adjudicação, com a consequente prestação de garantia bancária ou semelhante garantia.

47. Porém, a Autora viu-se obrigada a comunicar à entidade adjudicante que, mau grado ter submetido na respetiva plataforma eletrónica onde se desenvolve o concurso público em causa, os documentos de habilitação necessários à subsequente celebração do contrato de adjudicação, o certo é que não iria conseguir juntar a garantia bancária exigível legalmente para a realização da obra em causa.

48. Facto que determinou a caducidade da adjudicação da obra à Autora

49. Os depósitos caução realizados pela Autora consistem em depósitos em numerário realizados à ordem das entidades adjudicantes das obras que a Autora realiza, e que ficam cativos até à receção definitiva dessas mesmas obras o que pode demorar entre 2 e 10 Anos a ser libertos, facto este que impede a Autora de fazer uso desses valores durante esses períodos.

50. Caso a Autora concorresse e ganhasse concursos de empreitadas públicas, mas depois não apresentasse garantias bancárias ou seguros caução poderia ser autuada pelo IMPIC (Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e Construção).

51. A actividade da Autora traduz-se, na esmagadora maioria, na realização de obras e empreitadas públicas.

52. No mesmo período temporal, prévio ao conhecimento da situação de incumprimento perante o Banco de Portugal, a Autora tinha concorrido e ganho duas empreitadas (uma em ... e outra no ...) que, de igual modo, exigiam a prestação/entrega de garantias bancárias/seguros caução.

53. Confrontada com a mesma situação acima descrita, a Autora na impossibilidade de obter essas garantias bancárias e dada a estrita necessidade de realização das obras, para a sua sobrevivência comercial, viu-se forçada a realizar depósitos caução, no montante global de € 39.644,64 e que não teria de o fazer não fosse a comunicação feita pela ré à central de risco do Banco de Portugal.

54. O facto de ter realizado depósitos caução no montante global de € 39.644,64 descapitalizou a Autora e causou constrangimentos de tesouraria.

55. O facto de não ter acesso a garantias bancárias e seguros caução fez com que a Autora não tivesse concorrido às seguintes obras:

- Município de P..., Agosto de 2016, € 460.000,00;

- Município de P..., Agosto de 2016, € 290.000,00;

- Águas do ..., Agosto de 2016, €490.000,00;

- Gestão de Obras Públicas da Câmara Municipal do ..., Agosto de 2016, € 370.000,00.

- Município de O..., Agosto de 2016, € 248.000,00.

- Município de M..., Setembro de 2016, € 310.758,00.

- Águas do N..., Setembro de 2016, € 620.000,00.

- Freguesia de ..., Setembro de 2016, € 305,373,24.

- Município de S..., Setembro de 2016, € 1732.224,74.

- Município de ..., Setembro de 2016, € 309.100,00.

- Município de An..., Setembro de 2016, € 396.702,60.

- Município de P.. do ..., Setembro de 2016, € 450.000,00.

- Município de Go..., Setembro de 2016, € 1135.745,48.

- Águas da Região de ..., Outubro de 2016, €249.000,00.

- Município de Mir..., Outubro de 2016, € 1333.333,00.

- Município de Mir..., Outubro de 2016, € 862.000,00.

- Município de Ar..., Outubro de 2016, € 1196.200,00.

- Município de Al..., Outubro de 2016, € 727.168,20.

- Município de Anadia, Outubro de 2016, € 349.906,18.

- Águas de ..., Outubro de 2016, € 375.000,00.

- ..., Outubro de 2016, € 976.747,10.

- Município de L..., Outubro de 2016, € 360.168,00.

- Município de ..., Outubro de 2016, € 542.905,69.

- Município de G..., Outubro de 2016, 1393.503,00.

- Águas de ..., Outubro de 2016, € 375.000,00.

- Município de Santo ..., Novembro de 2016, € 200.869,52.

- Município de V..., Novembro de 2016, € 237.482,03.

- Município de V..., Novembro de 2016, € 237.482,03.

- Município de Ar..., Novembro de 2016, € 349.382,13.

- Município de A..., Novembro de 2016, € 218.607,61.

- Município de Go..., Novembro de 2016, € 678.205,75.

- Município de Go..., Novembro de 2016, € 361.610,87.

- Município de Go..., Novembro de 2016, € 227.676,50.

- Município de Par..., Dezembro de 2016, € 335.000,00.

- Município de Pe..., Dezembro de 2016, € 1689.604,18.

- Município de So..., Dezembro de 2016, € 350.000,00.

- Águas da Região de ..., Dezembro de 2016, € 249.000,00.

- Município de O..., Dezembro de 2016, € 1500.000,00.

- Águas de Co..., Dezembro de 2016, € 240.000,00.

56. De todos os concursos supra enumerados a Autora tinha a expectativa de conseguir ganhar as seguintes obras que, temporalmente, se situam entre .../08/2016 e .../12/2016:

• Empreitada de reabilitação do intercetor de ... (... - Zona industrial), cujo Dono de Obra foi Águas do N..., pelo valor de 490 000,00€.

• Reforço da rede viária Municipal e obras complementares - empreitada de reforço de pavimentos em diversos arrumamentos, cujo Dono de Obra foi o Município de M..., pelo valor de 310 758,00€.

• Infraestruturas de Abastecimento de água em ... e ... e de saneamento em ..., cujo Dono de Obra foi Águas do ..., pelo valor de 620 000€

• Requalificação urbana do espaço envolvente à biblioteca, cujo Dono de Obra foi o Município da Anadia, pelo valor de 396 702,60€.

• Estruturação de corredor urbano - Rua ... e envolvente ao M....., cujo Dono de Obra foi o Município de P.. do ..., pelo valor de 450 000,00€.

• Requalificação de arruamentos do centro histórico de ... - requalificação do largo ..., cujo Dono de Obra foi o Município de Go..., pelo valor de 1 135 745,48€.

• Requalificação do Espaço Urbano Público – ..., cujo Dono de Obra foi o Município de Ar... pelo valor de 1 196 200,00€.

• Abastecimento de água - renovação da rede nas povoações de ... e de ..., cujo Dono de Obra foi o M........ .. ......, pelo valor de 349 906,18€.

• CONSTRUÇÃO DOS APOIOS DE PRAIA E1 E E2 - PRAIA NORTE, cujo Dono de Obra foi o Município de V..., pelo valor de 976 747,10€.

• Requalificação da ..., cujo Dono de Obra foi o Município de G..., pelo valor de 1 393 503,00€.

• Execução de Reforço da Rede de Defesa de Floresta contra Incêndios, cujo Dono de Obra foi o Município de V..., pelo valor de 237 482,03€ 18/27.

• Valorização do Jardim do Sameiro, cujo Dono de Obra foi o Município de V..., pelo valor de 360 176,54€.

• Expansão do Parque da Cidade - 4.ª fase, cujo Dono de Obra foi o Município de Pe..., pelo valor de 1 689 604,18€.

• Saneamento e Salubridade - Rede de Esgotos - Fecho da Rede de Drenagem de águas residuais domésticas de Gesteira/Piquete à Povoação de ..., cujo Dono de Obra foi o Município de So..., pelo valor de 350 000€.

• Repavimentação de várias Ruas em ..., cujo Dono de Obra foi o Município de O..., pelo valor de 1 500 000,00€.

57. E isto porque a Autora está especializada nestas áreas de construção, está dotada de pessoal especializado e qualificado nesta matéria, possui equipamento próprio necessário para este tipo específico de obras, factos que determinam que a Autora tivesse uma vantagem competitiva superior aos seus concorrentes.

58. Acresce a isto que a Autora não tem de recorrer a aluguer de equipamento específico para a realização destas obras, cujo custo é elevadíssimo, designadamente pavimentadoras, cilindros, máquinas de compactação, motoniveladoras e giratórias.

59. Do mesmo modo, pelo facto do pessoal que a Autora dispõe ao seu serviço estar bastante especializado no tipo de obras agora referido, para além de ter bastante experiência, permite a esta uma vantagem competitiva perante todos os seus concorrentes, na medida em que não precisa de subcontratar determinados serviços técnicos (como sejam de projeto, arquitetura e execução de obra), sendo que o seu pessoal, devido à vasta experiência que possui, muito rapidamente responde às mais diversas solicitações em obra, poupando tempo na sua realização permitindo reduzir o tempo de obra e obter ganho de eficácia que permite a apresentação de preços inferiores à concorrência.

60. A Autora não tinha disponibilidade de tesouraria para realizar mais depósitos caução.

61. O montante global de valor base de adjudicação das obras anteriormente enumeradas ascende a € 22.856.117,36.

62. A Autora tinha capacidade para realizar as obras descritas no facto 56., no montante de € 11.428.058,68.

63. Da totalidade das obras acima referidas e que ascendem a € 22.856.117,36, a Autora tinha possibilidade de lhe serem adjudicadas 50% dessas obras.

64. A Autora retira um lucro médio neste tipo de obras nunca inferior a 12% sobre o valor das adjudicações que sejam realizadas.

65. No plano de insolvência a Autora apenas iria pagar à Ré a quantia de € 274.090,62 (juros incluídos).

66. No dia 14 de dezembro de 2016, foi apresentado na execução ordinária n.º 3824/15.0..., juízo central cível de ..., juiz 1, uma transação, envolvendo a Autora, a Ré e 4 avalistas com o seguinte teor:

“PRIMEIRA

A exequente e os executados consolidam a dívida exequenda, nesta data, no montante de € 286.370, 25 (…)

(…)

TERCEIRA

O montante referido na condição primeira será pago à exequente da seguinte forma:

1 - € 46.014,53 (…) na presente data

2 - € 239.839,12 (…), que serão pagos da seguinte forma:

a - € 60.000,00 (…) pelo executado AA, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

b - € 60 000,00 (…) pela executada BB, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

c - € 60 000,00 (…) pelo executado CC, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

d - € 59.839,12 (…) pela sociedade Duque & Duque, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…), sendo que a quantia agora referida, e as suas condições de pagamento, derrogam todo e qualquer acordo e/ou plano anteriormente fixado ou existente entre a Caixa de Crédito Agrícola e a Duque & Duque (nomeadamente aquele resultante do processo de insolvência n.º 32/14.1..., que correu termos pela Instância Local de ... - J1), passando apenas a valer, para o futuro o ressente acordo e respetivo plano de pagamentos, inexistindo qualquer outro que não este

3 - (…)

4 - As responsabilidades assumidas pelos devedores referidos na presente cláusula, não revestem solidariedade passiva entre eles, respondendo, cada um, única e exclusivamente pela dívida de sua responsabilidade

(…) SÉTIMA

A exequente e a executada Duque & Duque - Terraplanagens, Lda., concordam em reduzir a hipoteca que incide atualmente sobre o “prédio urbano, propriedade desta sociedade, sito em ..., freguesia de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 5186, descrito no registo predial sob o n.º 445”, para o montante máximo pelo qual esta executada, pelo presente acordo, se obriga, ou seja, pelo montante de € 59.839,12, acrescido dos juros previstos no respetivo plano de pagamento

(…)

(…)

DÉCIMA-SEXTA

A exequente obriga-se a comunicar ao Banco de Portugal, no prazo máximo de 10 dias, após a assinatura do presente acordo, que a executada “Duque & Duque -Terraplanagens, Lda.,” não se encontra em qualquer tipo de incumprimento, promovendo, assim, a sua remoção da lista de utilizadores de risco junto daquela instituição.

(…)”

67. Em 14 de outubro de 2014, a Autora apresentou no juízo local de ... o processo especial de revitalização, alegando, em síntese, “uma dívida assaz elevada e incumprimento perante os fornecedores”.

68. Em 18 de novembro de 2014, o administrador judicial provisório juntou a esse processo a lista provisória de credores, constando da mesma que o total dos créditos ascendia a € 1.676.133,06 (um milhão seiscentos e setenta e seis mil, cento e trinta e três euros e seis cêntimos).

69. Até 13 de março de 2015, não tinha sido junto a esse processo qualquer plano de recuperação e por isso o tribunal declarou encerrado o processo negocial.

70. Em 21 de abril de 2015, o juízo local de ... declarou insolvente a Autora, designando a assembleia de credores para o dia 11 de junho de 2015.

71. Na sequência, a Autora apresentou um plano de insolvência, que veio a ser votado na assembleia de credores de 14 de agosto de 2015, tendo obtido 77,55% de votos favoráveis, com o voto contra da Ré.

72. Em 19 de outubro de 2015, a Ré instaurou a execução n.º 3824/15.0..., juízo central de ..., juiz 1, contra AA, BB, DD, CC e EE

73. Em 5 de novembro de 2015, a Ré requereu, contra o executado AA, por apenso a essa execução, o procedimento cautelar de arresto de saldos bancários de sete imóveis.

74. Por sentença de 10 de novembro de 2015, o juízo central de ... decretou o arresto dos referidos bens.

75. Em 10 de fevereiro de 2016, a Ré apresentou no juízo central cível de ..., juiz 1, contra a referida executada BB, a filha FF e o ainda familiar GG, a ação comum n.º 534/16.5...

76. Nessa ação a Ré alegou a simulação e, subsidiariamente, a impugnação paulina, dos negócios de doação e dação em cumprimento outorgados por esses Réus e que tiveram por objeto duas moradias.

77. Todos os executados deduziram embargos à execução em título, que passaram a correr termos nos apensos com as letras “B” e “C”.

78. Nesses embargos esses avalistas/executados alegaram, em síntese, a modificação da obrigação de pagamento por eles assumida e consequente inexigibilidade da mesma.

79. A Ré contestou esses dois processos de embargos.

80. A solicitação da Autora e desses executados, iniciou-se um processo negocial em vista de um acordo.

81. A transação apresentada no processo executivo pôs termo a todas as ações antes referidas.

82. Em 4 de janeiro de 2017, a Autora alegando que a atualização do mapa de responsabilidades no Banco de Portugal demorava 60 dias, solicitou à Ré uma declaração autónoma e expressa de que o incumprimento estava regularizado.

83. Declaração essa que a Ré emitiu.

84. Em 24 de outubro de 2014, a Autora enviou uma comunicação ao Banco de Portugal e à Ré, informando que havia requerido o PER n.º 32/14.1..., estando por isso impedida de amortizar os 19 cheques da lista anexa, cujos valores seriam amortizados nos termos do plano de recuperação.

85. Em 2 de fevereiro de 2015, a Ré notificou a Autora e os seus gerentes de que: “(…) foi verificada a falta de pagamento do cheque n.º ........77, sacado sobre a conta n.º .........42, titulada pela autora, no valor de € 5.137,50, devendo proceder à respetiva regularização até ao dia 2015.03.09, (…) Se não regularizar esse cheque, ver-nos-emos obrigados a rescindir a convenção do seu uso, (…), sendo o seu nome incluído na listagem de utilizadores que oferecem risco, divulgada pelo Banco de Portugal.”

86. A Autora não regularizou o referido cheque por qualquer uma das modalidades referidas na comunicação anterior e, por isso, em 9 de março de 2015, a Ré enviou à Autora e aos seus gerentes a seguinte nova comunicação: (…) notificamos V. Exas. que, não tendo sido demonstrada a regularização do cheque referido (…) rescindimos a convenção que lhe atribuía o direito de emitir cheques sobre esta instituição (…) Informamos que a decisão de rescisão será objeto de comunicação ao Banco de Portugal, sendo o seu nome incluído na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco, divulgada por este banco central.”

87. Em 13 de abril de 2015, o Banco de Portugal solicitou à Caixa Central de Crédito Agrícola - que, por sua vez, solicitou à Ré - informação sobre se, entre outros, o cheque n.º .........77, no valor de € 5.137,50 - esteve na origem da comunicação da rescisão da convenção de uso de cheque.

88. Em 5 de janeiro de 2017, logo após a Ré ter emitido e entregue à Autora a declaração de regularização do crédito a Autora questionou a Ré sobre a possibilidade de emitir uma garantia bancária para a execução de uma nova empreitada para o Município de P....

89. Em 13 de janeiro de 2017, a Ré apresentou à Autora as condições para essa garantia, tendo mesmo, em 25 de janeiro, aceite reduzir a comissão dessa garantia de 4% para 3%.

90. Após essa comunicação a Autora não mais contactou a Ré.


*


IV – O direito aplicável

1. A ilicitude do comportamento da Ré

O acórdão recorrido manteve a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pela perda da oportunidade, cuja causa considerou ser imputável a um comportamento ilícito desta – a comunicação ao Banco de Portugal, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro, de um crédito sobre a Autora, em situação de incumprimento.

A Recorrente questiona a ilicitude dessa comunicação.

Provou-se que entre a Autora e a Ré se havia constituído no ano de 2000 uma relação jurídica assente na celebração de um contrato de abertura de crédito, através do qual a Ré concedeu à Autora um crédito, em conta corrente, até ao montante de 50.000.000$00, destinando-se a cobrir necessidades de tesouraria da Autora.

A dado momento, e devido a dificuldades financeiras e de tesouraria, a Autora instaurou um Processo Especial de Revitalização (PER) que correu termos pela Secção de Competência Genérica – J1 da Instância Local de ..., da comarca de ..., sob o nº ... 32/14.1..., tendo existido despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório da Autora em 14/10/2014, onde a Ré veio a reclamar o pagamento de um crédito sobre a Autora com origem no incumprimento daquele contrato.

Na verdade, no momento em que se apresentou ao PER e até à apresentação do plano de insolvência, a Autora havia deixado de pagar o crédito da Ré, pelo que, no final do mês de Novembro de 2014, a Ré efetuou uma comunicação eletrónica ao Banco de Portugal, informando que o crédito sobre a Autora estava em situação de “crédito vencido em litígio judicial” (código 006), o que correspondia a uma situação de crédito em incumprimento, tendo reproduzido mensalmente essa comunicação ao Banco de Portugal até Janeiro de 2017.

Desde o Decreto-Lei n.º 47.909, de 07.09.1967, que, no Banco de Portugal, existe um serviço que visa centralizar os elementos informativos respeitantes ao risco da concessão e aplicação de créditos, com a finalidade de dotar as instituições de crédito e as sociedades financeiras de informação que lhes permita avaliar corretamente os riscos das suas operações. Esse serviço veio posteriormente a ser regulado pelo Decreto-Lei n.º 29/96, de 11 de abril, o qual, entretanto, foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro, anda vigente, que alterou a denominação deste serviço do Banco de Portugal para Central de Responsabilidades de Crédito (CRC).

Dispõe o artigo 1.º deste diploma, quanto aos objetivos deste serviço:

1 - A Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), assegurada pelo Banco de Portugal, nos termos da sua Lei Orgânica, aprovada pela Lei 5/98, de 31 de Janeiro, tem por objeto:

a) Centralizar as responsabilidades efetivas ou potenciais de crédito concedido por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal ou por quaisquer outras entidades que, sob qualquer forma, concedam crédito ou realizem operações análogas;

b) Divulgar a informação centralizada às entidades participantes;

c) Reunir informação necessária à avaliação dos riscos envolvidos na aceitação de empréstimos bancários como garantia no âmbito de operações de política monetária e de crédito intradiário.

2 - A Central de Responsabilidades de Crédito abrange a informação recebida relativa a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito, sob qualquer forma ou modalidade, de que sejam beneficiárias pessoas singulares ou coletivas, residentes ou não residentes em território nacional.

Relativamente às entidades participantes deste sistema, elucida o artigo 2.º do mesmo diploma:

1 - As entidades participantes são as entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal que concedam crédito, sucursais de instituições de crédito com sede no estrangeiro e actividade em Portugal e outras entidades designadas pelo Banco de Portugal que, de algum modo, exerçam funções de crédito ou actividade com este diretamente relacionada.

(...)

3 - Compete ao Banco de Portugal estabelecer as normas regulamentares e procedimentos que tiver por convenientes para o bom funcionamento da Central de Responsabilidades de Crédito e divulgá-los pelas entidades participantes.

4 - A informação divulgada pelo Banco de Portugal, constante da Central de Responsabilidades de Crédito, é da responsabilidade das entidades que a tenham transmitido, cabendo exclusivamente a estas proceder à sua alteração ou retificação, por sua iniciativa ou a solicitação dos seus clientes, sempre que ocorram erros ou omissões.

(...)

A Ré encontra-se compreendida nas entidades participantes.

O dever de comunicação das entidades participantes é definido do seguinte modo no artigo 3.º do mesmo diploma:

1 - As entidades participantes ficam obrigadas a fornecer ao Banco de Portugal, nos termos da regulamentação aprovada, todos os elementos de informação respeitantes a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido em Portugal, referidos no número seguinte, e, quando requeridos pelo Banco de Portugal, todos os elementos de informação relativos a responsabilidades efetivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito concedido no estrangeiro pelas suas sucursais no exterior.

2 - Cada entidade participante fica obrigada a comunicar ao Banco de Portugal os saldos, em fim de cada mês, das responsabilidades decorrentes das seguintes operações de crédito concedido em Portugal, a residentes ou não residentes em território nacional, pelas suas sedes, filiais, agências e sucursais, incluindo as instaladas nas zonas francas da Madeira e da ilha de Santa Maria:

a) Operações ativas com pessoas singulares ou coletivas, a comunicar em nome do beneficiário direto do crédito e garantias prestadas e recebidas, em nome do potencial devedor, incluindo-se, nestas operações, as seguintes situações particulares:

i) Os montantes não utilizados, para quaisquer tipos de linhas de crédito irrevogáveis contratadas, incluindo cartões de crédito, a comunicar em nome do beneficiário direto, por constituírem responsabilidades potenciais;

ii) Os montantes das operações compensadas, a comunicar em nome do beneficiário direto, por constituírem responsabilidades efetivas;

iii) A utilização total ou parcial de empréstimos poupança-emigrante concedidos ao abrigo da legislação em vigor, ou qualquer modificação do capital em dívida;

iv) Os montantes de garantias prestadas por entidades participantes para assegurar o cumprimento de operações de crédito concedido por outras entidades participantes;

v) Os montantes das fianças e avales prestados a favor da entidade participante, a comunicar em nome dos fiadores e avalistas, a partir do início do contrato de mútuo, até ao limite da garantia prestada;

b) Créditos tomados com recurso, a comunicar em nome dos aderentes, a partir do momento da realização da operação, devendo ser reclassificados em situação de incumprimento os créditos em que tenham decorrido, após o vencimento das faturas ou dos títulos cambiários, o período de tempo definido em instrução do Banco de Portugal;

c) Créditos tomados sem recurso, a comunicar em nome dos devedores e com conhecimento destes, relativamente aos quais tenha decorrido, após o vencimento das faturas ou dos títulos cambiários, o período de tempo definido em instrução do Banco de Portugal;

d) Créditos cedidos em operações de titularização, a comunicar pela entidade cedente, em nome do beneficiário direto;

e) Créditos afetos a obrigações hipotecárias ou obrigações sobre o sector público, a comunicar pela instituição de crédito emitente das obrigações, em nome do beneficiário direto do crédito.

(...).

Do Regulamento da Central de Responsabilidades de Crédito aprovado pelo Banco de Portugal, ao abrigo do n.º 3, do artigo 2.º, do Decreto-Lei nº 204/2008, de 14 de Outubro, e do artigo 17.º da sua Lei Orgânica, na redação da Instrução n.º 21/2008, publicada no Boletim Oficial n.º 1, de 15.01.2009 1, vigente na altura em que foi efetuada a comunicação em causa (com as alterações que haviam sido introduzidas pelas Instruções n.º 7/2009, publicada no Boletim Oficial n.º 7, de 15.07.2009, n.º 18/2010, publicada no Boletim Oficial n.º 9, de 15.09.2010, e n.º 17/2013, publicada no Boletim Oficial n.º 7, de 15.07.2013), constava o seguinte no seu ponto 5.2. relativo aos dados a serem comunicados:

5.2. Comunicação dos saldos de responsabilidades

Na comunicação dos saldos de responsabilidades as entidades participantes deverão associar, para cada saldo, os seguintes elementos de caracterização:

a) Nível de responsabilidade − caracteriza o tipo de participação que o devedor tem no crédito, permitindo distinguir entre mutuários e fiadores/avalistas e entre situações de responsabilidade individual e conjunta.

b) Situação do crédito − caracteriza o saldo quanto ao seu carácter efectivo ou potencial e quanto ao grau de cumprimento do pagamento do crédito.

c) Prazo original do crédito − caracteriza o saldo relativamente ao prazo que foi contratado para a amortização integral do crédito.

d) Prazo residual do crédito − caracteriza o saldo relativamente ao prazo que medeia entre a data a que se refere a comunicação até à data contratada para a amortização integral do crédito.

e) Produto financeiro − caracteriza o saldo relativamente ao instrumento financeiro/finalidade do crédito.

f) Classe de crédito vencido − caracteriza um saldo que se apresente na situação de vencido quanto ao período de tempo que decorreu desde o início dessa situação.

g) Moeda do crédito − caracteriza o saldo quanto à moeda de denominação do crédito.

h) País onde o crédito foi concedido − permite distinguir os saldos relativos a operações de crédito realizadas em território nacional das realizadas no estrangeiro por sucursais das entidades participantes.

i) Tipo de garantia − caracteriza o saldo relativamente à existência de colaterais ou outros tipos de garantias.

j) Valor da garantia − valor de cada tipo de garantia associada a um determinado saldo para o qual seja comunicada a existência de colaterais ou outros tipos de garantias.

k) Característica especial − caracteriza o saldo quanto à existência de determinadas situações específicas associadas às operações subjacentes a esse saldo, designadamente, casos de créditos titularizados, sindicados, associados a contas poupança-emigrante, afetos à emissão de obrigações hipotecárias ou sobre o sector público, incluídos nas pools de ativos de garantia de operações de crédito do Eurosistema, reestruturados por dificuldades financeiras do cliente, em risco ou integrados no Regime Geral (Decreto-Lei nº 227/2012, de 25 de Outubro) ou Regime Extraordinário (Lei nº 58/2012, de 9 de Novembro) de incumprimento de contratos de crédito por particulares.

l) Prestação mensal − valor dos encargos mensais (convertidos para uma base mensal quando a sua liquidação ocorra com uma periodicidade diferente) associados ao pagamento do crédito. Aplica-se apenas nas situações em que o devedor associado a esse saldo seja uma pessoa singular e em determinadas situações específicas (devidamente explicadas no documento referido no ponto 15.3 em termos de produto financeiro, situação do crédito e nível de responsabilidade.

Os dados fornecidos podem ser comunicados às mesmas entidades nas condições mencionadas no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 204/2008, de 14 de Outubro:

1 - As entidades participantes podem requerer ao Banco de Portugal que lhes seja dado conhecimento da informação registada na Central de Responsabilidades de Crédito relativa às pessoas singulares ou coletivas que lhes hajam solicitado crédito.

2 - O resultado da consulta efetuada nos termos do número anterior deve ser comunicado ao consumidor, de forma clara e percetível, designadamente quando dê origem à recusa na concessão do crédito.

3 - São condições de legitimidade de o pedido de informação ser a entidade requerente credora atual da pessoa singular ou coletiva em causa, ou, não sendo credora, ter desta recebido pedido de concessão de crédito

(...).

Quando a Ré, no final do mês de Novembro de 2014, efetuou a comunicação que o crédito que detinha sobre a Autora estava em situação de “crédito vencido em litígio judicial”, com o código 006, ou seja, em situação de incumprimento, encontrava-se já pendente um Processo Especial de Revitalização (PER) requerido pela própria Autora.

O PER é um processo judicial especial dirigido a empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda são suscetíveis de recuperação, por terem viabilidade económica, e que se destina a promover negociações com os respetivos credores, com vista à aprovação de um plano de recuperação, conferindo-lhe a possibilidade da empresa continuar a exercer a sua atividade e, assim, evitar a insolvência.

A nomeação no Processo Especial de Revitalização de um administrador judicial provisório, à época, por um lado, suspendia todas as ações de cobrança de dívidas, e, por outro lado, impedia os credores de intentar novas ações, declarativas ou executivas, para cobrança coerciva de dívidas (artigo 17.º - E, n.º 1, do CIRE, na redação da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril).

Apesar de paralisar a cobrança judicial dos créditos, afetando a sua exigibilidade judicial, a pendência de um PER não influía, no entanto, na existência, dimensão e conteúdo dos créditos existentes, que se mantinham incólumes, designadamente quanto à sua situação de vencidos, não resultando da leitura da redação do Regulamento da Central de Responsabilidades de Crédito aprovado pelo Banco de Portugal, na redação do ponto 5.2. da instrução n.º 21/2008, vigente na altura em que foi efetuada a comunicação em causa e que se encontra acima transcrita, que esse fosse um dado que deveria figurar na comunicação do saldo creditício ou que determinasse a alteração da qualificação desse crédito como “crédito vencido em litígio judicial” (código 006).

Efetivamente, visando tal comunicação alimentar uma base de dados acessível às entidades concedentes de crédito, de forma a facultar-lhes informação que lhes permita ponderar os riscos de uma operação de concessão de crédito, a pendência de um PER, ao não influir no conteúdo creditício, designadamente no prazo de vencimento, mas apenas na sua exigibilidade judicial, não justificava que esse dado acompanhasse a comunicação da existência do crédito.

No entanto, não tendo sido aprovado qualquer programa de recuperação, o PER em causa foi “reconvertido” num processo de insolvência, a pedido da própria Autora, onde acabou por ser votado, aprovado e homologado um plano de insolvência que incluía um plano de pagamento relativo aos débitos da Autora e no qual se incluía o crédito da Ré.

Na verdade, em 14/08/2015, realizou-se a assembleia de credores com vista à discussão e votação do referido plano, tendo-se considerado o mesmo aprovado, com 77,55% de votos favoráveis e 22,45% de votos contra, tendo a Ré votado contra e requerido a recusa de homologação do plano.

Este plano de insolvência foi homologado por sentença judicial transitada em julgado proferida a 18.09.2015, tendo o processo de insolvência sido declarado encerrado a 30.10.2015.

Ora, a inclusão do crédito da Ré num plano de insolvência aprovado pela maioria dos credores e homologado por sentença judicial em que se prevêem novos prazos de pagamento das dívidas da Autora, provoca uma alteração da situação desses créditos, atento o teor do plano de insolvência, vinculando todos os credores, incluindo aqueles que votaram contra a aprovação do plano (artigo 217.º, n.º 1, do CIRE), pelo que, tendo-se verificado uma alteração da situação creditícia, na sequência da aprovação de um plano de insolvência da Autora, na comunicação mensal a enviar ao Banco de Portugal no mês seguinte a essa homologação (cfr. artigo 217.º, n.º 5, do CIRE), a Ré deveria ter feito refletir as consequências da alteração ocorrida, também quanto à situação do crédito, o qual deixou de ser um crédito vencido em litígio judicial (Código 006), para passar a ser um crédito renegociado (código 005) na classificação constante da Tabela 2, da Instrução n.º 21/2008, com a alteração introduzida pela Instrução 17/2013.

Ao não ter procedido à alteração da situação do seu crédito sobre a Autora após a homologação judicial do plano de insolvência desta última, a Ré infringiu as regras de comunicação ao Banco de Portugal da situação dos créditos por si concedidos, agindo ilicitamente 2.

Improcedem, pois, todos os argumentos da Recorrente visando afastar a ilicitude da sua conduta e consequentemente da sua obrigação de indemnizar.

2. O nexo de causalidade

O acórdão recorrido confirmou a sentença da 1.º instância que condenou a Ré a indemnizar a Autora pela perda da oportunidade desta ganhar vários concursos de adjudicação de obras públicas, a qual resultava desta não ter podido a eles candidatar-se, devido a estar impedida de obter garantias bancárias que necessitava para substituir o pagamento das cauções habitualmente exigidas nesses concursos, como resultado de, por força das comunicações incorretas da Ré, figurar na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, como incumpridora.

Considerou-se que a atuação ilícita da Ré configurava um caso de responsabilidade extracontratual 3.

O raciocínio do acórdão recorrido evidencia um complexo de nexos de causalidade em cadeia que, na sua perspetiva, estabelecem uma ligação causal entre o facto ilícito e um dano de perda de oportunidade.

Para este aresto, o comportamento ilícito da Ré (manutenção na CRC do Banco de Portugal da comunicação incorreta de que era titular de um crédito vencido em litígio judicial sobre a Autora) impedia a Autora de obter garantias bancárias que necessitava para substituir o pagamento das cauções habitualmente exigidas nos concursos de adjudicação de obras públicas, o que, por sua vez, a impedia de se candidatar a esses concursos, retirando-lhe a oportunidade de os ganhar e auferir os lucros proporcionados pela execução daquelas obras.

O primeiro elo do nexo de causalidade estabelecido pelo acórdão recorrido não corresponde, porém, inteiramente ao julgamento efetuado sobre a matéria de facto provada.

Na verdade, não se provou que a comunicação à central de risco do Banco de Portugal de que a Autora tinha um crédito em situação de incumprimento originou que a Autora se encontrasse totalmente impossibilitada de obter garantias bancárias ou seguros caução, junto de entidades financeiras e bancárias, tendo-se até provado que cada banco pondera casuisticamente se, apesar de uma empresa figurar na central de risco do Banco de Portugal, concede ou não crédito a essa empresa

Provou-se, no entanto:

- a emissão dessas garantias bancárias foi recusada por várias instituições bancárias devido ao facto de a Autora figurar na central de risco do Banco de Portugal.

- o facto de uma empresa constar na central de risco do Banco de Portugal dificulta ou mesmo impossibilita na generalidade dos bancos e seguradoras a emissão de garantias bancárias ou de seguros caução.

- a Caixa Geral de Depósitos tem uma diretiva interna que impede a concessão de garantias bancárias a empresas que constem da central de risco do Banco de Portugal.

Assim, apesar de estar afastada a prova de que a manutenção da comunicação incorreta da Ré ao Banco de Portugal impedia inexoravelmente a Autora de obter garantias bancárias, a factualidade provada permite, porém, verificar que essa informação, no caso concreto, não permitiu que a Autora obtivesse garantias bancárias ou seguros caução, pelo que é possível imputar objetivamente ao comportamento ilícito da Ré o facto da Autora não lograr obter a garantia por terceiros do pagamento das cauções habitualmente exigidas nos concursos de obras públicas.

O segundo elo do nexo de causalidade encontra-se fixado no ponto 55 da matéria de facto provada, quando se refere que o facto da Autora não ter acesso a garantias bancárias e seguros caução fez com que esta não tivesse concorrido às obras elencadas nesse número da lista de factos provados, de onde resulta que, mediatamente, foi o comportamento ilícito da Ré que, ao não ter permitido que a Autora obtivesse aquelas garantias, esteve na génese causal desta não ter concorrido a vários concursos de obras públicos.

O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar o resultado do julgamento da matéria de facto pelos tribunais da Relação nos casos em que se tenha verificado ofensa de uma determinada disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de um determinado facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, nada tendo sido alegado pela Recorrente nesse âmbito, pelo que há que respeitar e considerar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

Apurada a existência de um nexo de causalidade entre o comportamento ilícito da Ré e o facto da Autora não ter concorrido a vários concursos de obras públicas, resta apurar se esse quadro fáctico confere à Autora o direito à indemnização pela perda de oportunidade de lhe serem adjudicadas as obras em jogo nesses concursos, o qual lhe foi reconhecido pelo acórdão recorrido.

3. O dano da perda de oportunidade

A ressarcibilidade do dano da perda de oportunidade, mais conhecido pelo dano da perda de chance, cujo acolhimento tem origem nos tribunais franceses, após ter sido bem recebida por setores da doutrina nacional, veio progressivamente a ter aplicação na jurisprudência, tendo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2002, do Supremo Tribunal de Justiça 4 consolidado a sua admissão no nosso ordenamento jurídico com a seguinte exigência: (...) a verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo causal entre o facto lesivo e o dano, impõem, em linha com o que se referiu, que a “chance”, para poder ser indemnizável, seja “consistente e séria” e que a sua concretização se apresente com um grau de probabilidade suficiente e não com carácter meramente hipotético.

Só assim a “chance” preencherá, num limiar mínimo, a certeza que é condição da indemnizabilidade do dano, só assim este pode ser considerado como objetivamente imputável ao ato lesivo e só assim se respeitará a regra (e a ideia de justiça) de que ao lesante apenas poderá ser imposto que responda pelos danos que causou.

(...)

É precisamente esta exigência que a Recorrente sustenta que nunca se poderá verificar numa situação em que alguém, por força da conduta ilícita de outrem, não se candidata a um processo concursal de adjudicação de uma obra pública, por a decisão desses concursos ser aleatória, dependendo de juízos de discricionariedade, o que torna imprevisível que alguém os possa ganhar.

Alega a Recorrente que é esta a visão sobre a perda de oportunidade de ganhar concursos públicos que resulta da leitura da jurisprudência administrativa sobre o tema, das orientações do direito europeu e da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

Relativamente à jurisprudência dos tribunais administrativos, deve ter-se presente que a mesma se pronuncia sobre a indemnização devida em concursos públicos pela anulação de procedimentos concursais, por ilegalidades cometidas pelas entidades adjudicantes, pela revogação e anulação de atos de adjudicação pelas entidades adjudicantes, e não sobre a indemnização devida por terceiros que ilicitamente obstam a que alguém se candidate a um concurso público, como sucede na presente ação.

Os arestos invocados pela Recorrente 5 decidiram, nesse tipo de situações, que a indemnização pelos prejuízos sofridos pelo candidato ao concurso deve ressarcir os encargos que este teve com o procedimento concursal (interesse contratual negativo) e não os lucros que ele auferiria se tivesse ganho o concurso (interesse contratual positivo), uma vez que não era possível prognosticar, com o grau de certeza necessário ao estabelecimento de um nexo de causalidade, que o candidato ganharia o concurso. Além de nestes acórdãos estar em causa a responsabilidade por atos ocorridos numa relação administrativa, o que convoca a aplicação de normas, interesses e critérios de ponderação específicos, a leitura dos referidos arestos revela que apenas se teve como preocupação apurar qual o interesse contratual que deveria nortear a indemnização compensatória, sendo que, à época, apesar de já serem audíveis algumas vozes na doutrina, nos tribunais ainda não se tinha equacionado a possibilidade de se indemnizar a perda de uma mera oportunidade, estando apenas em jogo uma indemnização pelos lucros cessantes.

Se atentarmos à jurisprudência mais recente dos tribunais administrativos vemos que, nessas situações, já é ponderada, sem qualquer rebuço, a possibilidade de ser indemnizada a oportunidade de ganho perdida e de, sempre que se entenda que a mesma é considerada “consistente e séria”, se atribui essa indemnização, com recurso a juízos de equidade 6.

A jurisprudência dos tribunais administrativos invocada pela Recorrente revela-se, pois, desatualizada, não podendo servir de exemplo, nem de orientação, por todos os motivos acima apontados, para a solução do presente caso.

A única ideia útil que se poderá retirar da jurisprudência mais recente dos tribunais administrativos, não é a de que não há lugar a um direito de indemnização pela perda da oportunidade de concorrer a um concurso para adjudicação de uma obra pública, mas apenas a de que as contingências próprias de um processo concursal deste tipo exigem uma maior atenção e rigor na determinação de que a oportunidade perdida era “consistente e séria”. Mas, apuradas essas caraterísticas, nada obsta a que tal dano seja indemnizável, tal como os tribunais administrativos vêm fazendo, mesmo no âmbito das relações administrativas concursais.

Alega ainda a Recorrente que a nível do Direito Europeu, o n.º 2, do artigo 7.º da Diretiva 92713/CEE, não admite a indemnização deste tipo de dano, quando está em causa a celebração de um contrato de direito público, por concurso, atento o disposto no n.º 7, do artigo 2.º desta Diretiva - Quando uma pessoa introduza um pedido de indemnização por perdas e danos relativo aos custos incorridos com a preparação de uma proposta ou a participação num procedimento de celebração de um contrato, apenas terá de provar que houve violação do direito co­munitário em matéria de celebração dos contratos ou das normas nacio­nais de transposição desse direito e que teria tido uma possibilidade real de lhe ser atribuído o contrato que foi prejudicada por essa violação.

Em primeiro lugar relembra-se que estamos perante direito europeu em matéria de direito público, estando em causa a responsabilidade por atos ocorridos em determinadas relações administrativas (celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações), o que convoca a aplicação de normas, interesses e critérios de ponderação específicos, estranhos aos interesses privados em jogo na presente ação.

Em segundo lugar, a exigência da prova de uma possibilidade real (note-se que uma possibilidade real é menos exigente que uma probabilidade consistente e séria) de vitória num concurso, para atribuição de uma indemnização pelos danos relativos às despesas com a preparação de uma proposta num procedimento concursal, por violação da entidade adjudicante das regras do direito europeu, não exclui a admissão pelo direito nacional que essa indemnização tenha em consideração, não as despesas com a candidatura frustrada (interesse contratual negativo), mas sim a perda do lucro que resultaria para o concorrente da adjudicação da obra em concurso (interesse contratual positivo), nomeadamente quando a perda de oportunidade de concorrer não seja imputável à entidade adjudicante, mas sim a um terceiro.

A Recorrente invoca ainda o sentido de alguns acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça 7 para afastar a possibilidade de ser atribuída uma indemnização pela perda de oportunidade, resultante do facto de alguém se ter visto impedido, por ação de outrem, de se candidatar a um concurso de adjudicação de obra pública.

Também aqui a jurisprudência invocada, atenta a época em que foi proferida, tal como ocorreu com a jurisprudência administrativa convocada pela Recorrente, não ponderou a possibilidade de ser indemnizável uma mera perda de oportunidade, tendo perfilhado o entendimento segundo o qual a possibilidade de um recorrente ganhar um concurso estava envolta numa álea, que conferia ao resultado do concurso uma imprevisibilidade que não se coadunava com a exigência de uma causalidade adequada. No entanto, apesar de não ter sido publicado, em anterior acórdão 8, o Supremo Tribunal de Justiça já havia admitido a possibilidade da perda de oportunidade de alguém se candidatar a um concurso público poder ser objeto de indemnização, sem, contudo, teorizar a indemnizibilidade da perda de chance, teorização que veio a ser efetuada pelo acórdão do mesmo Tribunal de 22.10.2009 9, o qual concluiu que se uma pessoa que se aprestava para participar num concurso, foi impedida de nele tomar parte, ninguém poderá saber ou testemunhar sobre o resultado daquele em relação a ela. Mas, ainda assim, cremos que será o juiz a ter de esforçar-se em ordem a fixar factualmente e, apenas para efeito de julgamento, tal resultado. Ficcionará, é certo, porque este resultado não viu a luz do dia, mas essa ficção é imprescindível. Repare-se, aliás, que – ainda que impercetivelmente, dada a vulgaridade e probabilidade - a ficção existe com imensa frequência nos julgamentos da matéria de facto. Assim, por exemplo, se alguém vê o seu veículo destruído por outrem, não deixam de se considerar os prejuízos daí derivados, quando não se sabe, nem se pode saber, se, não tendo ocorrido a destruição, o proprietário não teria um acidente gerador de danos superiores, que assim teriam sido evitados. Claro que nestes casos, o grau de probabilidade de minoração da relevância do facto danoso é tão pequeno que ninguém deixará de julgar ignorando a possibilidade de se verificar o acidente. Já nos casos de tratamento médico negligente (e lembremo-nos da dimensão que os franceses dão à figura da “perte de chance”) a fixação factual relativamente ao que se passaria se não tivesse tido lugar tal tratamento, poderá envolver muito menor grau de incerteza. Assim como nos concursos em que a probabilidade relativamente ao resultado, ainda que nublosa, também assenta em dados atendíveis. O juiz tem de decidir no plano factual, com os elementos de que disponha. No primeiro caso, perante os dados médicos certos e os conhecimentos de medicina que lhe forem facultados; no segundo, face ao número de concorrentes e respetiva preparação, à preparação da pessoa impedida de participar e aos critérios de exigência do júri. Tudo factos que as partes podem trazer ao tribunal acompanhados da respetiva prova.

Apesar de não se encontrarem na jurisprudência publicada dos tribunais judicias arestos recentes, que tenham ponderado a atribuição de uma indemnização pela perda de oportunidade de uma pessoa se candidatar a um concurso público 10, esta não deixa de ser uma situação que nos estudos que se debruçaram sobre o tema da indemnização da perda de chance, é normalmente apontada como uma das situações em que pode ocorrer este tipo de dano autónomo 11.

Daí que, tal como concluímos, após a leitura da jurisprudência dos tribunais administrativos, se é verdade que a álea dos concursos públicos pode interferir no apuramento da existência de uma oportunidade perdida “consistente e séria”, essa contingência não é absolutamente proibitiva que se atribua uma indemnização por este tipo de prejuízo. Necessário é que a oportunidade tenha um grau de previsibilidade de concretização suficiente para que a sua perda justifique uma compensação.

E esse grau, diferentemente do que pode suceder com a perda de chance de sucesso numa ação judicial, em que se exige que a probabilidade de se vencer o litígio deve ser superior à probabilidade de o perder, como se afirma no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2002 para esse tipo de perda de oportunidade, a probabilidade de vitória no concurso não tem que ser necessariamente superior a 50% 12.

A seriedade da oportunidade perdida, sendo uma ideia conclusiva, deve resultar da prova de factos que a revelem. Sendo possível que o julgador da matéria de facto apure a prova da percentagem de hipóteses que o lesado tinha de concretização da oportunidade que perdeu por ação de outrem, resultando do valor dessa percentagem o grau de consistência e a seriedade dessa chance, tais caraterísticas também podem resultar do apuramento das condições fácticas que o lesado reunia para que essa oportunidade se concretizasse, competindo ao aplicador do direito efetuar um juízo sobre a robustez da probabilidade, sem que tenha necessariamente que a quantificar.

No presente caso, estamos perante a alegação de uma perda de oportunidade da Autora se ter candidatado a vários concursos de adjudicação de obras públicas, perda essa imputável à conduta da Ré, como acima se concluiu.

Provou-se que a Autora não teve oportunidade de concorrer a umas dezenas de concursos de obras públicas que tiveram lugar num determinado período de tempo (facto 55), tendo aquela a expetativa e a possibilidade de ganhar 15 desses concursos (factos 56 e 63), assim como a capacidade de realizar as respetivas obras (facto 62).

Mais se provou que a Autora está especializada nestas áreas de construção, está dotada de pessoal especializado e qualificado nesta matéria, possui equipamento próprio necessário para este tipo específico de obras, factos que determinam que a Autora tivesse uma vantagem competitiva superior aos seus concorrentes (facto 57) e que, pelo facto do pessoal que a Autora dispõe ao seu serviço estar bastante especializado no tipo de obras, para além de ter bastante experiência, permite a esta uma vantagem competitiva perante todos os seus concorrentes, na medida em que não precisa de subcontratar determinados serviços técnicos (como sejam de projeto, arquitetura e execução de obra), sendo que o seu pessoal, devido à vasta experiência que possui, muito rapidamente responde às mais diversas solicitações em obra, poupando tempo na sua realização permitindo reduzir o tempo de obra e obter ganho de eficácia que permite a apresentação de preços inferiores à concorrência (facto 59).

Perante a prova destas vantagens sobre os demais potenciais concorrentes, quer quanto à qualidade e rapidez de execução das obras, quer quanto ao preço a propor, a consistência e a seriedade da chance da Autora ganhar os referidos 15 concursos de adjudicação de obras públicas não oferece grandes dúvidas, sendo a probabilidade da Autora ganhar esses concursos uma realidade segura e, por isso, merecedora de uma indemnização, na linha da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2002.

Apurou-se que o benefício que a Autora retiraria, caso ganhasse todos esses 15 concursos seria o lucro da realização das respetivas obras, o qual atingiria o valor mínimo de € 1.371.367,04 (12% de € 11.428.058,68).

Foi esse precisamente o valor da indemnização que o acórdão recorrido, confirmando a sentença da 1.ª instância, arbitrou.

Contudo, tal valor corresponderia precisamente ao valor dos lucros que a Autora teria auferido caso tivesse ganho todos os referidos 15 concursos, quando apenas existia uma probabilidade séria e consistente de os ganhar e não uma certeza absoluta de vitória.

Ora, a indemnização a arbitrar pela perda de oportunidade não visa compensar um prejuízo efetivo, mas apenas uma probabilidade de o mesmo ter ocorrido, pelo que o valor do benefício que a oportunidade perdida poderia proporcionar ao lesado deve ser deduzido de um coeficiente de redução proporcional ao grau de probabilidade de o obter.

Como já acima constatámos não foi definido na matéria de facto apurada um grau de probabilidade quantificado da chance de a Autora ganhar todos os 15 concursos em que se considerou existir essa probabilidade. Apenas se ajuizou, perante a factualidade apurada que essa probabilidade era séria e consistente, sendo, por isso, a perda da respetiva oportunidade merecedora de uma compensação, justificando-se, por isso, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, que se arbitre o montante indemnizatório, com recurso a um juízo de equidade, que pondere todas as circunstâncias do caso 13.

Por um lado, devemos ter em consideração que a seriedade e consistência da oportunidade perdida resultou de se ter provado que a Autora está especializada nestas áreas de construção, está dotada de pessoal especializado e qualificado nesta matéria, possui equipamento próprio necessário para este tipo específico de obras, factos que determinam que a Autora tivesse uma vantagem competitiva superior aos seus concorrentes, e que, pelo facto do pessoal que a Autora dispõe ao seu serviço estar bastante especializado no tipo de obras, para além de ter bastante experiência, permite a esta uma vantagem competitiva perante todos os seus concorrentes, na medida em que não precisa de subcontratar determinados serviços técnicos (como sejam de projeto, arquitetura e execução de obra), sendo que o seu pessoal, devido à vasta experiência que possui, muito rapidamente responde às mais diversas solicitações em obra, poupando tempo na sua realização permitindo reduzir o tempo de obra e obter ganho de eficácia que permite a apresentação de preços inferiores à concorrência, o que eleva o grau de probabilidade da Autora ganhar os concursos em causa.

Mas, por outro lado, há que ter em conta, não só que estamos perante uma probabilidade genérica de ganhar um grande número de concursos, o que diminui a probabilidade de os ganhar todos, mas também que o tipo de concursos em causa reveste especificidades que adensam a incerteza sobre o desfecho dos mesmos. Na verdade, estamos perante concursos de adjudicação de obras públicas sujeitos aos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos, em que, além dos elementos comuns obrigatórios, as exigências impostas às candidaturas variam conforme o tipo de obras a realizar, sendo o resultado do concurso decidido por um júri próprio, cujos critérios de decisão integram fatores envolvidos num grau elevado de subjetividade. Daí que, todas as vicissitudes a que estão sujeitos este tipo de processos concursais debilitem a probabilidade de qualquer um dos concorrentes os ganhar.

Mas, na fixação do valor de uma indemnização, com recurso a um juízo de equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, não pode deixar de estar presente, a influência do grau de culpa do lesante no montante do dano ressarcível, exigindo o sentimento de justiça uma maior severidade na avaliação dos danos causados com culpa grave 14.

Provou-se o seguinte, relativamente ao comportamento da Ré após a aprovação do plano de insolvência da Autora em 14 de agosto de 2015, em que a Ré votou contra:

18. Após a homologação do plano de insolvência, e dando cumprimento ao plano anteriormente aprovado, a Autora deu início aos pagamentos a vários credores.

19. Dando igualmente início aos pagamentos à aqui Ré.

20. A Ré, apesar das solicitações da Autora, não lhe forneceu quaisquer instruções acerca do modo como deveria dar início aos pagamentos das prestações previstas no plano de insolvência.

21. O que forçou a Autora a enviar, mensalmente, à Ré, por meio de vale postal, o valor das prestações que estavam definidas.

22. A Ré recusou-se sempre a receber tais montantes, alegando que não tinha votado favoravelmente esse plano.

72. Em 19 de outubro de 2015, a Ré instaurou a execução n.º 3824/15.0..., juízo central de ..., juiz 1, contra AA, BB, DD, CC e EE (avalistas da livrança em causa).

73. Em 5 de novembro de 2015, a Ré requereu, contra o executado AA, por apenso a essa execução, o procedimento cautelar de arresto de saldos bancários de sete imóveis.

74. Por sentença de 10 de novembro de 2015, o juízo central de ... decretou o arresto dos referidos bens.

75. Em 10 de fevereiro de 2016, a Ré apresentou no juízo central cível de ..., juiz 1, contra a referida executada BB, a filha FF e o ainda familiar GG, a ação comum n.º 534/16.5...

76. Nessa ação a Ré alegou a simulação e, subsidiariamente, a impugnação paulina, dos negócios de doação e dação em cumprimento outorgados por esses Réus e que tiveram por objeto duas moradias.

77. Todos os executados deduziram embargos à execução em título, que passaram a correr termos nos apensos com as letras “B” e “C”.

78. Nesses embargos esses avalistas/executados alegaram, em síntese, a modificação da obrigação de pagamento por eles assumida e consequente inexigibilidade da mesma.

79. A Ré contestou esses dois processos de embargos.

80. A solicitação da Autora e desses executados, iniciou-se um processo negocial em vista de um acordo.

65. No plano de insolvência a Autora apenas iria pagar à Ré a quantia de € 274.090,62 (juros incluídos).

66. No dia 14 de dezembro de 2016, foi apresentado na execução ordinária n.º 3824/15.0..., juízo central cível de ..., juiz 1, uma transação, envolvendo a Autora, a Ré e 4 avalistas com o seguinte teor:

“PRIMEIRA

A exequente e os executados consolidam a dívida exequenda, nesta data, no montante de € 286.370, 25 (…)

(…)

TERCEIRA

O montante referido na condição primeira será pago à exequente da seguinte forma:

1 - € 46.014,53 (…) na presente data

2 - € 239.839,12 (…), que serão pagos da seguinte forma:

a - € 60.000,00 (…) pelo executado AA, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

b - € 60 000,00 (…) pela executada BB, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

c - € 60 000,00 (…) pelo executado CC, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…)

d - € 59.839,12 (…) pela sociedade Duque & Duque, em prestações mensais constantes, nos termos do plano de pagamento anexo (…), sendo que a quantia agora referida, e as suas condições de pagamento, derrogam todo e qualquer acordo e/ou plano anteriormente fixado ou existente entre a Caixa de Crédito Agrícola e a Duque & Duque (nomeadamente aquele resultante do processo de insolvência n.º 32/14.1..., que correu termos pela Instância Local de ... - J1), passando apenas a valer, para o futuro o ressente acordo e respetivo plano de pagamentos, inexistindo qualquer outro que não este

3 - (…)

4 - As responsabilidades assumidas pelos devedores referidos na presente cláusula, não revestem solidariedade passiva entre eles, respondendo, cada um, única e exclusivamente pela dívida de sua responsabilidade

(…) SÉTIMA

A exequente e a executada Duque & Duque - Terraplanagens, Lda., concordam em reduzir a hipoteca que incide atualmente sobre o “prédio urbano, propriedade desta sociedade, sito em ..., freguesia de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 5186, descrito no registo predial sob o n.º 445”, para o montante máximo pelo qual esta executada, pelo presente acordo, se obriga, ou seja, pelo montante de € 59.839,12, acrescido dos juros previstos no respetivo plano de pagamento

(…)

(…)

DÉCIMA-SEXTA

A exequente obriga-se a comunicar ao Banco de Portugal, no prazo máximo de 10 dias, após a assinatura do presente acordo, que a executada “Duque & Duque -Terraplanagens, Lda.,” não se encontra em qualquer tipo de incumprimento, promovendo, assim, a sua remoção da lista de utilizadores de risco junto daquela instituição.

(…)”

81. A transação apresentada no processo executivo pôs termo a todas as ações antes referidas.

82. Em 4 de janeiro de 2017, a Autora alegando que a atualização do mapa de responsabilidades no Banco de Portugal demorava 60 dias, solicitou à Ré uma declaração autónoma e expressa de que o incumprimento estava regularizado.

83. Declaração essa que a Ré emitiu.

O comportamento da Ré revela claramente que tinha consciência dos efeitos perniciosos para a Autora da manutenção da declaração de crédito vencido efetuada ao Banco de Portugal, tendo retirado partido desses efeitos, para obter o pagamento do seu crédito num valor superior àquele que havia sido fixado no plano de insolvência, o que revela que a sua conduta ilícita foi dolosa, o que deve ser considerado na fixação do valor indemnizatório, num juízo de equidade.

Tendo em consideração todos estes fatores e tendo como referência o valor do lucro que a Autora poderia auferir, caso ganhasse todos os concursos a que poderia ter concorrido, não fora a ação ilícita da Ré, não deixando de ter presente o elevado grau de culpa da Ré que resulta da factualidade apurada, num juízo de equidade, entende-se como adequada a atribuição de uma indemnização no valor de € 400.000,00, face ao valor da moeda à data de hoje.

Por estas razões, o valor da indemnização arbitrada pela sentença proferida na 1.ª instância e confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação deve ser reduzido para € 400.000,00.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré e, em consequência, altera-se o decidido no acórdão recorrido, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 400.000,00, acrescida de juros de mora desde a data desta decisão, até integral pagamento, à taxa definida por lei


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Custas da ação na proporção de 27% pela Ré e 73% pela Autor.

Custas do recurso de apelação e de revista, na proporção de 29% pela Ré e 71% pela Autora.


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Notifique.

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Lisboa, 14 de setembro de 2023


João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

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1. Esta Instrução havia revogado a anterior Instrução n.º 7/2006, publicada no Boletim do Banco de Portugal n.º 6, de 16.06.2006.

2. Acórdãos do S.T.J. de 29.10.2009, Proc. 6409/06 (Rel. Lázaro Faria), e de 18.01.2011, Proc. n.º 6725/04 (Rel. Salazar Casanova).

3. Apesar de ser questionável se a responsabilidade apurada tem natureza extracontratual ou contratual, face à violação de um dever acessório do contrato de abertura de crédito que relacionava Autora e Ré, não só tal questão não foi colocada nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como, uma diferente qualificação da responsabilidade, não alteraria a análise das questões a apreciar neste recurso, uma vez que a indemnização da perda de chance tanto pode ocorrer quando a responsabilidade é extracontratual como contratual.

4. Diário da República n.º 18/2022, Série I, de 26.01.2022.

5. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 29.09.2004, Proc. 1936/03 (Abel Anatásio), de 03.03.2005, Proc. 041794 (Rel. Cândido de Pinho), de 29.09.2005, Proc. 179/05 (Rel. Pais Borges), e de 04.04.2006, Proc. 077B/02 (Rel. Simões de Oliveira).↩︎

6. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20.11.2012, Proc. 949/12 (Rel. Alberto Augusto Oliveira), de 11.09.2019, Proc. 829/18 (Rel. Ana Paula Portela), e de 10.02.2022, Proc. 1543/11 (Rel. Adriano Cunha), e do Tribunal Central Administrativo Norte de 11.10.2013, Proc. 1119/08 (Rel. Carlos Carvalho), de 05.12.2014, Proc. 322/08 (Rel. Alexandra Alendouro), de 08.05.2015 Proc. 1490/13 (Rel. Joaquim Cruzeiro), de 09.10.2015, Proc. 814/2000 (Rel. Joaquim Cruzeiro), de 05.06.2016, Proc. 927/99 (Rel. Frederico Macedo Branco), de 01.07.2016, Proc. 542/05 (Rel. Frederico Macedo Branco), de 17.11.2017, Proc. 11/11 (Rel. Joaquim Cruzeiro), de 05.03.2021, Proc. 777/08 (Rel. Ricardo de Oliveira e Sousa), e de 28.01.2022, Proc. 1965/16 (Rel. Antero Pires Salvador). A exigência de que se verifique uma situação de perda de um “resultado garantido” e não de uma simples oportunidade, como ocorre nos acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 16.12.2015, Proc. 10.999/14 (Rel. Helena Canelas), e de 24.11.2016, Proc. 13.745/16 (Rel. Nuno Coutinho), apenas ocorre, relativamente à indemnização pela totalidade dos lucros cessantes e não, quando está em causa uma indemnização que compense a mera perda de oportunidade.

7. Acórdãos de 06.03.2007, Proc. 07A138 (Rel. Borges Soeiro), de 29.04.2008, Proc. 771/08 (Rel. Salreta Pereira) e de 16.06.2009, Proc. 1623/03 (Rel. Hélder Roque).

8. Acórdão de 18.05.2006, Proc. 923/06 (Rel. Noronha Nascimento).

9. Processo n.º 409/09 (Rel. João Bernardo).

10. Com exceção do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.11.2019, Proc. 1982/16 (Rel. Paulo Duarte Teixeira).

11. V.g. CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil. Responsabilidade Civil. O Método do Caso, Almedina, 2010, p. 104, PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, Coimbra Editora, 2008, nota 3103, JÚLIO GOMES, Em Torno do Dano da Perda de Chance – Algumas Reflexões, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume II, Studia Iuridica, Coimbra Editora, 2008, e PATRÍCIA COSTA, A Perda de Chance – dez anos depois, Julgar, n.º 42, Set. – Dez 2020, p. 153.

12. Afastando a necessidade de a fasquia da chance perdida atingir esta percentagem em algumas hipóteses de perda de chance, RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, Coimbra Editora, 2008, p. 230, ANDRÉ DIAS PEREIRA e NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Uncertain Causation under Portuguese Tort Law, PoLAR – Portuguese Law Review, Julho 2017, Vol. 1, n.º 1, PATRÍCIA COSTA, ob. cit., p. 183, e MARIA MALTA FERNANDES, A Perda de Chance no Direito Português, Nova Causa, 2022, p. 278 e seg.

13. CARNEIRO DA FRADA, ob. cit., p. 104, JÚLIO GOMES, Ainda sobre a figura do dano da perda de oportunidade ou perda de chance, Cadernos de Direito Privado, II Seminário dos Cadernos de Direito Privado. Responsabilidade Civil. Número Especial 02, dezembro de 2012, p. 29, PATRÍCIA COSTA, ob. cit., p. 167, e MARIA MALTA FERNANDES, ob. cit., p. 284-287.

14. Neste sentido, PAULA MEIRA LOURENÇO, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006, p. 270-272.

  Também VAZ SERRA, em Obrigação de Indemnização..., no B.M.J. n.º 89, citando De Cupis, acentuava a participação do grau de culpa no juízo de equidade na fixação de um valor indemnizatório.