Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3798/13.2TBBRG.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: CARTA DE CONFORTO
GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
GARANTIA DO PAGAMENTO
MUNICÍPIO
NULIDADE
DIREITO DE RETENÇÃO
IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / NEGÓCIOS UNILATERAIS / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE JUROS / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / CARTAS DE CONFORTO / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / MORA DO DEVEDOR.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1999, 372-373, 375-378.
- João Vasconcelos Barros Rodrigues, dissertação de mestrado A Juridicidade das Cartas de Conforto, Porto, 2012, 11, acessível em http://repositorio.ucp.pt/
- Maria Raquel Aleixo Antunes Rei, Da Interpretação da Declaração Negocial no Direito Civil Português (Tese de Doutoramento), 152-155, disponível em http://repositorio.ul.pt .
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Volume X, Almedina, 2015, 575 e ss.; ob. cit., Parte I, tomo I, Almedina, 2.ª Ed., 2000, 555.
- Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 4.ªed., Almedina 2012, 135, 136.
- Pinto Monteiro, com a colaboração de Júlio Gomes, Ab Uno Ad Omnes - Sobre as Cartas de Conforto na Concessão de Crédito, Coimbra Editora, 1998, 420, 428-438.
- Romano Martinez/ Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, 1997, 86, 90-91.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 236.º, N.ºS 1 E 2, 280.º, N.º 1, 286.º, 289.º, N.º1, 292.º, 410.º, N.º 2, 415.º, 457.º, 485.º, 559.º, 785.º N.º 1, 798.º, 804.º, 805.º, N.º1, 806.º, N.º 1.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 102.º § 3
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 501.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 609.º, N.º1.
D.L. N.º 59/99, DE 2 DE MARÇO (REVOGADO PELO DL N.º 18/2008, DE 29-01): - ARTIGO 267.º.
LEI N.º 112/97, DE 16-09, POSTERIORMENTE ALTERADA PELAS LEIS N.ºS 64/2012, DE 20-12, E 82-B/2014, DE 31-12: - ARTIGOS 1.º, N.º 2, 2.º, N.ºS 1 E 2.º, N.º 2.
LEI N.º 2/2007, DE 15-01 (LEI DAS FINANÇAS LOCAIS): - ARTIGO 38.º, N.º10.
LEI N.º 73/2013, DE 03-09: - ARTIGO 49.º, N.º 7.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18-03-2003, PROC. N.º 57/03, E DE 19/12/2001, PROC. N.º 2509/01,TODOS DISPONÍVEIS EM HTTP://WWW.STJ.PT/JURISPRUDENCIA/SUMARIOS
-DE 07-12-2005, PROC. N.º 3558/05, 7.ª SECÇÃO, DISPONÍVEL EM HTTP://WWW.STJ.PT/JURISPRUDENCIA/SUMARIOS
-DE 02-10-2014, PROC. N.º 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 9/2015, IN D.R., I SÉRIE, DE 24-06-2015.

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TRIBUNAL DE CONTAS:

-ACÓRDÃO N.º 7/2013 E SENTENÇA N.º 1/2013 (DISPONÍVEIS EM HTTP://WWW.TCONTAS.PT/ )
Sumário :
I - As cartas de conforto são consideradas uma modalidade especial de garantia das obrigações e distinguem-se das garantias habituais por serem atípicas, na medida em que não dispõem de um regime legal traçado, e por não comungarem das suas características.

II - As cartas de conforto apresentam-se estruturalmente como uma epístola dirigida a um destinatário e com a assinatura do remetente, consubstanciando, porém, um contrato unilateral, porquanto da carta de conforto depreende-se a existência de um acordo entre o emitente e o destinatário, seja este prévio ou derivado de uma aceitação posterior, ainda que tácita.

III - A sua redacção surge, habitualmente, como propositadamente ambígua, imprecisa, com contornos difusos, traduzindo uma ideia de contratação mitigada ou enfraquecida, uma vez que os seus autores evitam assumir vinculações precisas.

IV - As cartas de conforto distinguem-se, no que concerne ao seu conteúdo, entre cartas fracas, médias e fortes, podendo, no concreto, surgir figuras mistas.

V - Sem prejuízo de algumas classificações considerarem que não cabe no conceito de “carta de conforto” a prestação de garantias e outras assumirem que tal ainda se configura e pode livremente integrar uma carta de conforto forte – sendo esta última posição a que se nos afigura de subscrever – o decisivo é apurar em concreto a extensão da relevância do compromisso jurídico assumido pelo signatário na carta.

VI - O valor e a eficácia jurídica das cartas de conforto depende do sentido das declarações concretamente feitas por quem as subscreve, ou seja, trata-se, fundamentalmente, de um problema de interpretação e até de integração negocial.

VII - Constando da carta de conforto emitida pelo Réu Município expressões como: “assume o cumprimento” ou “pagará, logo que esta o solicite, as facturas vencidas e não pagas” com referência a um contrato de subempreitada, um declaratário normal, colocado na posição da Autora subempreiteira, só poderia concluir que o Réu pretendeu garantir o cumprimento das obrigações de pagamento que recaíam sobre o empreiteiro.

VIII - Tendo o Réu Município, em violação das normas legais que o proibiam, emitido, sob a forma de uma “carta de conforto”, uma declaração que consubstancia uma garantia pessoal atípica de cumprimento de obrigações de um terceiro, deve a mesma ser considerada nula e insusceptível de produzir qualquer efeito, sem prejuízo do cumprimento do dever de retenção dos pagamentos devidos ao empreiteiro igualmente assumido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório:

         “AA - Metalomecânica, S.A.” intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra o “Município de Chaves” (embora venha mencionada como Ré a Câmara Municipal, deve entender-se que figura como Réu o Município, pois é ele quem detém personalidade jurídica e judiciária daquela autarquia local) pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 143.365,48, acrescida de juros de mora comerciais, vencidos e vincendos, calculados desde 30-06-2009 e até integral e efectivo pagamento.

         Alegou, em síntese, ter o Réu celebrado um contrato de empreitada de obras públicas com BB & Filhos, Lda., referente ao Mercado de Gado de Chaves, tendo-lhe esta sociedade dado, em subempreitada, a obra de execução da estrutura metálica. Só aceitou a subempreitada na condição de lhe garantirem o pagamento do preço orçamentado, tendo o Réu aceitado emitir cartas de conforto, através das quais se obrigou ao pagamento do preço no caso de incumprimento da empresa empreiteira e à retenção dos montantes que a esta seriam devidos. Pese embora a conclusão dos trabalhos e a sua aceitação sem reservas, a empreiteira não procedeu aos pagamentos acordados, pelo que interpelou o Réu, por várias vezes, para que assumisse as obrigações decorrentes das cartas de conforto, sem ter tido sucesso. Instaurou então acção contra a BB & Filhos, Lda., e consequente execução, na qual só logrou obter o pagamento parcial, reclamando através da presente acção o pagamento da diferença, acrescida de juros de mora.

        O Réu contestou excepcionando a incompetência material, a ilegitimidade activa e passiva e impugnou a versão da Autora.

A excepção da incompetência absoluta foi julgada inicialmente procedente, decisão que veio a ser revogada por Acórdão da Relação de Guimarães, já transitado em julgado, que concluiu pela competência material dos tribunais judiciais para a apreciação do litígio.

        Fixado o objecto do litígio e seleccionados os temas da prova, foi, após o julgamento, proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou o Réu a pagar à Autora o capital peticionado de € 143.365,48, acrescidos de juros de mora comerciais contados apenas desde a citação.

          Inconformado, apelou o Réu, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães julgado parcialmente procedente o recurso e condenado o Réu a pagar à Autora a quantia de € 68.423,27, acrescida de juros de mora comerciais desde a data da interpelação, ocorrida em 11-05-2009, até integral e efectivo pagamento.

           Deste acórdão interpôs a Autora recurso de revista.

           Na alegação apresentada aduziu as seguintes conclusões:

«A. A sentença do Tribunal Judicial de Braga (1ª instância) tendo em consideração a matéria de facto dada como provada, considerou que as denominada "cartas conforto" emitidas pela R. Câmara Municipal de Chaves constituem "garantias autónomas mediante as quais a R. caucionou o cumprimento das obrigações assumidas pela empreiteira, substituindo-se, se necessário fosse, a esta (...)" independentemente do disposto no artigo 267° do D.L. 55/99, de 2 de Março.

B. Consequentemente, condenou a R. Câmara Municipal de Chaves a pagar à A. a quantia de 143.365,48 € acrescida de juros legais à taxa legal para os juros comerciais desde a citação até efectivo pagamento.

C. O Tribunal da Relação de Guimarães, porém, aderiu à interpretação que a R., no seu recurso, atribuiu às referidas "cartas conforto", reduzindo-as ao simples direito de retenção consagrado naquele artigo 267° do D.L. 55/99, de 2 de Março, condenando a R. Câmara Municipal de Chaves a pagar à A. a quantia de 68.423,27 €, montante de que a R. no seu recurso se confessa expressamente devedora à A., acrescida dos respectivos juros moratórios à taxa comercial contados desde 11.05.2009 e até efectivo pagamento.

D. A interpretação do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães ignora os factos dados como provados e é contrária à realidade e à verdade material que daqueles factos emerge, bem como é contrária à própria vontade real das partes que tem inequívoca expressão no texto das "cartas conforto" em mérito.

E. O Tribunal da Relação de Guimarães não alterou a matéria de facto provada e não provada (…).

F. Tendo em conta (…) a matéria de facto provada, que sentido e interpretação atribuiria às denominadas "cartas conforto" uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente que não poderia deixar de ter em consideração, como expressamente refere o Acórdão recorrido (pág. 24 in fine) que "quer a A. quer a R. tinham perfeito conhecimento do regime de empreitada de obras públicas e da possibilidade atrás referida de os subempreiteiros poderem reclamar directamente ao dono da obra os pagamentos que o empreiteiro lhe tivesse em atraso, ficando o dono da obra legitimado a exercer um direito de retenção sobre as garantias que ele próprio tivesse para com o empreiteiro"?

G. É óbvio que A. e R. não quiseram nem queriam uma nova garantia que reproduzisse o direito de retenção assegurado e consagrado no art. 267° do RJEOP, cuja disciplina já conheciam.

H. As "cartas conforto" em mérito, como bem decidiu a sentença da 1ª Instância constituem uma "garantia atípica, semelhante à fiança", autónoma do direito de retenção consagrado no art. 267° do D.L. 59/89, de 2 de Março, devendo qualificar-se com cartas conforto fortes que contêm uma verdadeira obrigação de pagar o preço do contrato de subempreitada celebrado e aditamento.

I. Com efeito, resulta dos factos provados e demais circunstâncias atendíveis, que a A., para além do direito de retenção consagrado no art. 267° do D.L. 59/89, de 2 de Março (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas -RJEOP) que lhe assistia e que conhecia, porque não tinha confiança na empreiteira BB & Filhos, Lda. quis efectivamente que a R., enquanto dona da obra, prestasse uma outra garantia, independente daquele direito de retenção, que lhe assegurasse o pagamento total do preço no contrato de subempreitada que viesse a celebrar como a referida empreiteira BB & Filhos, Lda., sendo certo que condicionou a celebração do contrato de subempreitada à efectiva prestação desta garantia.

J. Por seu turno, a R., dona da obra, porque tinha grande interesse na sua execução, aceitou a condição e exigência da A. e quis efectivamente prestar-lhe, para além do dispositivo legal previsto no art. 267° do D.L. 59/89, de 2 de Março (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas), uma outra garantia, por escrito, do pagamento integral do preço do contrato de subempreitada que viesse a ser celebrado e apenas caso este contrato viesse a ser celebrado.

K. Daí que a A. só tenha celebrado o contrato de subempreitada porque já se encontrava na posse da carta conforto que lhe garantia o pagamento integral do preço, de cuja redacção e texto expressamente consta a vontade real das partes e a declaração de que a R. garante à A. o pagamento do preço ou da totalidade das obrigações assumidas no contrato de subempreitada celebrado.

L. Sem prescindir, caso venha a entender-se que a interpretação e sentido que a recorrida e o Acórdão recorrido atribuem às cartas conforto em mérito merece acolhimento, sempre a R., utilizando os argumentos e raciocínio do Acórdão recorrido, deverá ser condenada a pagar à A. a referida quantia de 143.365,48 (cento e quarenta e três mil, trezentos e sessenta e cinco euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa aplicável para as transacções comerciais desde a citação até efectivo pagamento, confirmando-se a sentença da 1.ª Instância.

M. A R. constituiu-se em mora no dia 11.05.2009, data em que recebeu a interpelação para pagar a quantia de 278.423,27 €, e até esta data não pagou à A. qualquer quantia.

N. A R. não só não quis pagar aquele montante, que podia e devia ter realizado, como faltou à verdade, tentando enganar a A. e fugir às obrigações assumidas declarando na carta de 01.07.2009, perante a insistência da A., que os créditos da empreiteira BB & Filhos, Lda. já lhe haviam sido integralmente pagos, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e o compromisso assumido na garantia prestada.

O. Os juros de mora à taxa legal para as transacções comerciais desde o dia 11.05.2009 até 30.11.2015 (data actual) sobre a quantia de 278.423,27 € importam no montante de 142.795,29 €.

P. Somando o valor em dívida e os juros vencidos até 30.11.2015 obtemos o montante de 421.218,56 € (278.423,27 € + 142.795,29 €) de que a R. é devedora.

Q. A este montante haverá que deduzir a quantia de 210.000,00 € (valor que a A. recuperou no âmbito do processo executivo que instaurou), pelo que a R. deve ainda à A. a quantia de 211.218,45 € com referência ao dia 30.11.2015 (421.218,45 €-210.000,00 €).

R. A dívida principal, peticionada na presente acção de 143.365,48 €, acrescida de juros de mora à taxa legal para as transacções comerciais desde a citação para a presente acção (09.07.2013) até ao mesmo dia 30.11.2015 no montante de 24.755,28 €, perfaz o total de 168,120,76 €, consideravelmente inferior à quantia de 211.218,45 €.

S. Dado, porém, que a fiança não pode exceder a dívida principal, a R. apenas terá que pagar à A. o montante que foi condenada a pagar na sentença de 1ª Instância (143.365,48 €), acrescida de juros de mora à taxa legal para as transacções comerciais desde a citação e até efectivo pagamento.

T. O raciocínio e conta feita no Acórdão recorrido, ao não contabilizarem os juros de mora vencidos desde a data de interpelação da R. para pagamento da quantia de 278.423,27 € e sobre esta mesma quantia até esta data, traduzem um claro benefício ou vantagem para a R., em prejuízo da A., constituindo um manifesto enriquecimento sem causa da R. à custa do empobrecimento da A., para além de esquecer e não considerar o comportamento de má fé da R. ao longo de todo o processo, faltando à verdade e excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.

U. O presente recurso violou, entre outros, o disposto nos artigos 262º, 236.º, nº 1 e 238º, nº 1 do Cód. Civil

Finalizou, pedindo a revogação do acórdão recorrido em conformidade com as conclusões recursivas e com a douta sentença do Tribunal de 1ª Instância.

Contra-alegou o Réu, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As Instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1 - A A. dedica-se, com escopo lucrativo, ao fabrico de estruturas metálicas, reservatórios e recipientes metálicos, tratamento de metais e outras obras de serralharia civil;

2 - No exercício da sua actividade, a A. foi contactada pela firma “BB & Filhos, Lda.” no sentido de fornecer um orçamento para a execução da estrutura metálica, revestimento de fachadas e colocação de coberturas numa obra, denominada “Mercado do Gado de Chaves”, que lhe havia sido adjudicada pelo Município de Chaves em 21 de Dezembro de 2007;

3 - Correspondendo a essa solicitação, a A. enviou o orçamento referente aos mencionados trabalhos para a “BB & Filhos, Lda.” e para a Câmara Municipal de Chaves e, na sequência de informações então recolhidas sobre a solvabilidade daquela, condicionou a celebração do contrato de subempreitada à prestação de uma garantia de pagamento da contrapartida pecuniária proposta;

4 - Porque tivesse grande interesse na realização da obra, a Câmara Municipal de Chaves, representada pelo seu então Presidente, prontificou-se a dar satisfação à exigência da A., o que veio a concretizar-se através de carta datada de 27 de Outubro de 2008, denominada “carta conforto”;

5 - Nos termos dessa carta, inserta a fls. 18 a 19 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a referida autarquia declarou assumir perante a A. “o cumprimento das obrigações” decorrentes da “subempreitada de estruturas metálicas e revestimento no Mercado do Gado de Chaves (…)” e que pagaria à A., logo que instada para o efeito, as facturas vencidas e não pagas emitidas por esta sobre a firma “BB & Filhos, Lda.”;

6 - Uma vez na posse de tal garantia, a A., por escrito datado de 5 de Novembro de 2008, apelidado “Contrato de Subempreitada de Obras Públicas”, obrigou-se perante a firma “BB & Filhos, Lda.” a realizar os mencionados trabalhos, mediante uma contrapartida pecuniária global de € 281.500,00, acrescida de IVA à taxa legal em vigor - cfr. doc. de fls. 20 a 26, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

7 - Posteriormente, por escrito datado de 9 de Fevereiro de 2009, outorgado pela A. e pela “BB & Filhos, Lda”, esta adjudicou àquela trabalhos adicionais a realizar na dita obra, mediante uma contrapartida pecuniária de € 79.050,55, acrescida de IVA à taxa legal em vigor – cfr. doc. de fls. 27 a 29, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

8 - Na sequência desse aditamento e porque a A. voltou a exigir uma garantia de pagamento da contrapartida pecuniária ajustada pelos trabalhos que dele foram objecto, a Câmara Municipal de Chaves emitiu nova carta conforto, datada de 3 de Abril de 2009, assumindo perante aquela o cumprimento das obrigações da empreiteira, nomeadamente o pagamento dos valores devidos por esta e que se encontrassem em atraso – cfr. doc. de fls. 34 a 35, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

9 - Mais ficou a constar dessa carta, elaborada pelos serviços jurídicos da própria Ré, que esta poderia exercer o direito de retenção de quantias devidas à empreiteira geral e entregá-las directamente à ora A. se aquela, notificada para o efeito, não comprovasse a respectiva liquidação nos 15 dias subsequentes, de acordo com o estipulado nos artigos 266º e 267º do DL 59/89, de 2 de Março;

10 - A A. executou todas as obras que lhe foram adjudicadas no âmbito da ajuizada subempreitada e emitiu as correspondentes facturas, com vencimento a 30 dias, enviando-as à “BB & Filhos, Lda.”, acompanhadas dos autos de medição que lhes serviram de base;

11 - Sucede, porém, que, apesar de ter recebido, sem reservas, todos os trabalhos executados pela A. em 1 de Julho de 2009, a “BB & Filhos, Lda.” não procedeu ao pagamento de nenhuma das facturas emitidas por aquela;

12 - Por carta registada com aviso de recepção datada de 6 de Março de 2009, recepcionada no dia 9 desse mês, a A., arrogando-se um crédito, vencido e não pago, no montante de € 220.404,12, emergente de trabalhos executados no âmbito da obra do Mercado do Gado de Chaves, instou a Ré a exercer o direito de retenção de igual valor nos pagamentos devidos àquela firma e a observar o procedimento previsto no artigo 267º do DL 59/99, de 2 de Março – cfr. doc. de fls. 36 a 37;

13 - Porque a Ré não tivesse respondido a essa missiva, a A., por carta datada de 5 de Maio de 2009, igualmente enviada àquela por correio registado sob aviso de recepção, instou a proceder à “regularização” da situação no prazo de oito dias, findo o qual recorreria a tribunal para exercer os seus direitos – cfr. doc. de fls. 38 a 40;

14 - Posteriormente, ante o avolumar dos seus créditos insatisfeitos sobre a “BB & Filhos, Lda.”, a A., por carta registada com aviso de recepção datada de 8 de Maio de 2009, recepcionada no dia 11 desse mês, reclamou novamente junto da Ré o pagamento das quantias em dívida, que ascendiam então a € 278.423,27 – cfr. doc. de fls. 41 a 42;

15 - Perante a insistência da A., a Ré, representada pelo seu Presidente, por escrito datado de 1 de Julho de 2009, declarou que “todos os trabalhos executados pelo subempreiteiro (a ora A.) e posteriormente facturados pelo empreiteiro “BB & Filhos, Lda.” já se (…)” encontravam “integralmente liquidados a este último” – cfr. doc. De fls. 43, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

16 - Por sentença, transitada em julgado, proferida em 18 de Maio de 2011 no âmbito do processo n.º 5834/09.8TBBRG, que correu termos pela extinta Vara Mista do Tribunal Judicial de Braga, a “BB & Filhos, Lda.” foi condenada a pagar à A. a quantia de € 353.265,48, correspondente à totalidade da contrapartida pecuniária ajustada no âmbito do contrato de subempreitada e seu aditamento, acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde as datas de vencimento de cada uma das facturas reclamadas até efectivo e integral pagamento;

17 - Na execução posteriormente instaurada com base nessa sentença condenatória, a A. logrou recuperar apenas a quantia de € 210.000,00, proveniente da penhora de um crédito que a Ré detinha sobre a executada, visto que entretanto esta foi declarada insolvente;

18 - A Ré pagou, directamente à “BB & Filhos, Lda.” ou no âmbito da execução instaurada contra esta pela A., a contrapartida pecuniária ajustada pela realização da obra do “Mercado do Gado de Chaves”, com excepção de parte das quantias que, nos termos ajustados, tinha o direito de reter a título de garantia da obra;

19 - Após a data em que recebeu a carta referida no item 12, a Ré pagou directamente à “BB & Filhos, Lda.” o montante global líquido de € 149.393,48 e na execução que contra ela foi instaurada pela ora A. o montante global de € 221.947,31 (€ 216.336,49 + € 5.610,83), todos referentes a facturas emitidas e vencidas posteriormente àquela data no âmbito da ajuizada obra;

20 - A Ré é titular de uma garantia bancária à primeira solicitação no montante de € 291.457,03 prestada pela Caixa Geral de Depósitos a favor da “BB & Filhos, Lda.” – cfr. doc. de fls. 54.»


De direito:

Vistas as conclusões da alegação da recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa, são quatro as questões essenciais a decidir, a saber:

- caracterização da carta de conforto como modalidade de garantia das obrigações;

- qualificação e interpretação das “cartas de conforto” emitidas pelo Réu;

- juridicidade e validade das declarações por este emitidas;

- cômputo da dívida e dos juros moratórios.


1. A carta de conforto é um documento, normalmente redigido sob a forma epistolar, no qual uma entidade (o patrono ou confortante) se dirige a uma outra entidade, em regra um banqueiro (o confortado ou beneficiário), tranquilizando-o quanto à capacidade, honorabilidade ou à eficácia de um terceiro interveniente (o patrocinado, afilhado ou devedor), assumindo mesmo, em certos casos, deveres próprios nesse sentido (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Volume X, Almedina, 2015, pág. 575 e segs.,obra que, essencialmente, acompanharemos no que respeita à caracterização desta figura. Num sentido mais restritivo, conexo com a actividade bancária e sua relação com grupos de sociedades, podemos citar Pinto Monteiro, com a colaboração de Júlio Gomes, Ab Uno Ad Omnes - Sobre as Cartas de Conforto na Concessão de Crédito, Coimbra Editora, 1998, pág. 420, e Romano Martinez/ Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, 1997, pág. 86).

Conforme apontam a maioria dos autores, as cartas de conforto tiveram origem nos Estados Unidos da América, tendo-se expandido internacionalmente nos finais dos anos 60 do seculo XX por via bancária impulsionadas pela globalização dos negócios, devido a diversas vantagens que apresentam em relação às garantias clássicas.

Calvão da Silva (Estudos de Direito Comercial (Pareceres), Almedina, 1999, págs. 372-373) aponta como razões para as empresas recorrerem às cartas de conforto como sucedâneo de garantias comerciais: (i) razões internas, como sejam as relacionadas com as regras societárias relativas à sujeição e aprovação pelos órgãos societários; (ii) razões de balanço, pelo diferente tratamento contabilístico dado a estas em relação às garantias comuns; (iii) razões fiscais, pelo distinto regime fiscal susceptível de ser aplicado às cartas de conforto; (iv) razões de prestígio, imagem e discrição, por a sociedade-mãe não pretender prestar garantias fidejussórias a dívidas de sociedades por si controladas; (v) razões valutárias, presentes nas relações entre residentes e não residentes.

Consideradas uma modalidade especial de garantia das obrigações, as cartas de conforto distinguem-se das garantias habituais por serem atípicas, na medida em que não dispõem de um regime legal traçado, e por não comungarem das suas características, distinguindo-se das garantias reais por não onerarem certos e determinados bens e apenas implicarem prestações e em relação às garantias pessoais como a fiança por, em regra, não serem acessórias em sentido forte, e quanto à garantia autónoma à primeira solicitação, por não funcionarem on first demand (Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 580. Distinção mais aprofundada entre a carta de conforto e outras figuras afins pode ser encontrada em Pinto Monteiro com a colaboração de Júlio Gomes, ob. cit., págs. 428-438).

As cartas de conforto apresentam-se estruturalmente como uma epístola dirigida a um destinatário e com a assinatura do remetente, consubstanciando, assim, uma única declaração de vontade. Mas tal não significa que se insiram no domínio dos negócios jurídicos unilaterais, caso em que estariam sujeitas ao princípio da tipicidade (art. 457.º do Código Civil), porquanto da carta de conforto depreende-se a existência de um acordo entre o emitente e o destinatário, seja este prévio ou derivado de uma aceitação posterior, ainda que tácita (art. 217.º do Código Civil).

Daí que a maioria da doutrina considere que as cartas de conforto constituem contratos unilaterais, sem que o facto de serem apenas assinadas por uma das partes impeça essa qualificação, uma vez que tal é comum em contratos unilaterais, como o contrato-promessa (art. 410.º, n.º 2, do Código Civil) ou o pacto de preferência (art. 415.º do Código Civil). Neste sentido Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 4ªed., Almedina 2012. pág. 136).

        A forma como as declarações insertas nas cartas de conforto podem surgir são diversas, tendo a doutrina procurado proceder à catalogação de exemplos que, isolada ou conjuntamente, podem constituir hipóteses de cartas de conforto, como observa Menezes Leitão (ob. cit., pág. 135), sem que tal contribua, contudo, para a compreensão da figura, em grande medida, devido à multiplicidade de declarações que podem estar em causa.

Com maior utilidade para a sua caracterização assinala-se a classificação que distingue, no que concerne ao seu conteúdo, entre cartas fracas, médias e fortes, sem prejuízo de, no concreto, poderem surgir figuras mistas.

        Acompanhando, novamente, Menezes Cordeiro (ob. cit., págs. 583-584), diremos que:

- na carta de conforto fraca, o emitente estabelece a relação de participação existente entre ele e a sociedade participada e apresenta tal relação com um mínimo de estabilidade; em suma, há uma concessão de informações e um dever genérico de diligência;

- na carta de conforto média, o emitente, além da parte informativa, que poderá ser omitida por desnecessária ou conhecida, faz ainda uma declaração negocial vinculando-se a actuações instrumentais (como seja, desenvolver esforços no sentido de acautelar interesses do credor ou proporcionar o efectivo cumprimento dos compromissos assumidos, ou mesmo vincular-se a manter ou reforçar determinada participação social); desta feita surgem deveres específicos, mas de facere ou de non facere, podendo estes assumir maior ou menor intensidade;

- na carta de conforto forte, o emitente, sempre para além dos aspectos informativos, assume declarações negociais de pagamento, tendo em comum a ideia de provocar, em caso de necessidade, um cumprimento, mediato ou imediato, pelo emitente; aqui os deveres específicos são, pois, de dare, sendo as obrigações em jogo efectivas garantias.

        Em sentido coincidente, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça por Acórdão de 07-12-2005 (Revista n.º 3558/05, desta mesma 7.ª Secção, disponível em http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios), afirmando que:

        “No que concerne à natureza jurídica das cartas de conforto, importa considerar que: - o conforto fraco é o produto de uma obrigação de informar (prévia) e de uma obrigação de prestação de facto, maxime de prestação de serviço e de diligência; - o conforto médio é uma garantia imprópria combinada, isto é, uma garantia que não se traduz num acréscimo da massa patrimonial posta ao serviço do credor, mas antes numa teia de prestações que, em termos práticos, facilitarão o desempenho do devedor; - o conforto forte é uma garantia eventualmente combinada com determinadas prestações de serviços, podendo a garantia ser autónoma ou tipo fiança e assumir ainda diversas particularidades em função da interpretação concreta.”

Em todo o caso, e independentemente de classificações, o valor e a eficácia jurídica das cartas de conforto depende do sentido das declarações concretamente feitas por quem as subscreve, ou seja, trata-se, fundamentalmente, de um problema de interpretação e até de integração negocial, conforme é unanimemente realçado pela doutrina (cfr. Romano Martinez/ Fuzeta da Ponte, ob. cit., págs. 90-91) e pela jurisprudência (Acórdãos deste Supremo Tribunal de 07-12-2005, já citado, de 18-03-2003, Revista n.º 57/03, e de 19/12/2001, Revista n.º 2509/01,todos disponíveis em http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios).


        2. Em causa nos autos está, precisamente, a qualificação e interpretação dos documentos emitidos pelo Réu, denominados de “cartas de conforto”, juntos a fls. 18 e 19 e a fls. 34 e 35, com referência a um contrato de subempreitada celebrado entre a Autora, na qualidade de subempreiteiro, e a sociedade BB & Filhos, Lda., na qualidade de empreiteiro, relativo a uma empreitada de obras públicas na qual o Réu é o dono da obra.

As instâncias consideraram, grosso modo, que tais documentos corporizavam cartas de conforto do tipo forte emitidas pelo Réu em favor da Autora, divergindo, contudo, quanto à sua interpretação e efeitos jurídicos no que se refere à extensão da obrigação de pagamento.

Na sentença de 1ª instância entendeu-se, essencialmente, que a primeira carta de conforto, ao abrigo da qual foi feita a interpelação inicial de cumprimento, integrava “uma garantia atípica, semelhante à fiança” pelo que foi considerado procedente o pedido de pagamento do valor peticionado de € 143.365,48, enquanto a Relação interpretou tal documento como abrangendo apenas a obrigação legal do Réu de proceder à retenção dos montantes devidos ao empreiteiro, ao abrigo do art. 267.º do DL n.º 55/99, de 02-03, então em vigor, pelo que reduziu o valor da condenação para € 68.423,27, correspondente ao montante retido.

Vejamos, então, qual o teor integral da denominada “carta de conforto”, junta a fls. 18 e 19:

«A Câmara Municipal de Chaves, (…), vem pela presente declarar que assume perante AA – Metalomecânica, S.A, (…) o cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da subempreitada de Estrutura Metálica e revestimento exterior no Mercado do Gado em Chaves, acordado entre as partes.

Para o efeito e caso a empresa BB & Filhos, Lda., incumpra para com AA – Metalomecânica, SA os deveres contratuais celebrados, conforme proposta de orçamento de AA - Metalomecânica, S.A., Ref.OR1…-REV2 no valor de € 281.500,00 (…) e até à recepção provisória dos trabalhos, a Câmara Municipal de Chaves pagará ao AA – Metalomecânica, SA, logo que esta o solicite, mediante carta registada com aviso de recepção, e demonstre a efectiva violação daqueles deveres acordados, as facturas vencidas e não pagas que a empresa BB & Filhos, Lda., tenha pendente perante AA - Metalomecânica, S.A.

A Câmara Municipal de Chaves procederá ao pagamento à firma AA – Metalomecânica, SA se esta se constituir como subempreiteiro, de acordo com o estipulado no artigo 266º e 267º do Decreto Lei 59/99 de 2 de Março.

Mais declara que o teor da presente carta de conforto e as obrigações da mesma decorrentes não infringem quaisquer normas internas nem qualquer diploma legal que se aplique a este município ou ainda quaisquer compromissos assumidos pelo mesmo.

(…).»


        Como é sabido, no que concerne à interpretação da declaração negocial, dispõe o art. 236.º, n.º 1 do Código Civil que: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente com ele.”

Tal significa que a interpretação da declaração negocial deve, em princípio, fazer-se no sentido propugnado pela teoria da impressão do destinatário. Na busca do sentido da declaração, são atendíveis todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta, nomeadamente, os termos do negócio e os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes (vide, entre muitos outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 02-10-2014, Proc. 319/04.1TCSNT-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.)

        Para além disso, preceitua o art. 236.º, n.º 2 do Código Civil que: “Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Este dispositivo consagra a aplicação da regra falsa demonstratio non nocet, segundo a qual, em situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de esse entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues, vale o sentido pretendido pelo declarante e correctamente compreendido pelo declaratário.

        No entanto, sem prejuízo de alguma divergência doutrinária a este respeito evidenciada por Menezes Cordeiro (ob. cit., Parte I, tomo I, Almedina, 2.ª Ed., 2000, pág. 555), que adopta uma visão objectivista da interpretação, tal preceito não se limita a consagrar esta regra, mas vai mais além, pretendendo significar, por um lado, que da conjugação do disposto nos dois números do art. 236.º resulta a prevalência do n.º 2 (“sempre que…”), aplicando-se este sempre que o declaratário conhecer a vontade real do declarante e não apenas quando se constatar que a vontade real do declarante conhecida do declaratário não foi correctamente exteriorizada pelo declarante, e, por outro, que a aplicação preferencial do disposto no art. 236.º, n.º 2, poupa ao intérprete/aplicador a tarefa (árdua) de trabalhar com o modelo de “declaratário normal, colocado na posição do real declaratário”(cfr. Maria Raquel Aleixo Antunes Rei, Da Interpretação da Declaração Negocial no Direito Civil Português (Tese de Doutoramento), págs. 152-155, disponível em http://repositorio.ul.pt.).

Ora, interpretando as declarações negociais corporizadas nas “cartas de conforto” juntas aos autos, em particular a supra transcrita, de acordo com o n.º 1 do art. 236.º do Código Civil, ou seja, segundo a teoria da impressão do declaratário, delas se extrai a assumpção pelo Réu de uma obrigação de pagamento em substituição do empreiteiro, e, como tal devem, desde logo, neste sentido ser interpretadas.

Na verdade, expressões como “vem com a presente declarar que assume (…) o cumprimento”, ou “caso a empresa BB & Filhos, Lda. incumpra (…) os deveres contratuais celebrados (…) a Câmara Municipal de Chaves pagará ao AA - Metalomecânica, S.A., logo que esta o solicite (…) as facturas vencidas e não pagas”, expressas por referência ao contrato de subempreitada celebrado entre a Autora e o empreiteiro, apontam claramente no sentido de que o Réu com esta missiva pretendeu garantir o cumprimento da obrigações de pagamento que recaíam sobre o empreiteiro, motivado, segundo a facticidade apurada, pelo grande interesse que tinha na realização da obra denominada “Mercado do Gado de Chaves” (cfr. factos 2 e 4).

Consubstanciam, pois, as aludidas “cartas de conforto” verdadeira obrigação de dare, não sendo razoável ou expectável que um declaratário normal, colocado na posição da aqui Autora, entendesse de outra forma o seu teor.

Considerou, contudo, o Acórdão recorrido que, apesar de à primeira vista, um declaratário normal só poder concluir que o Réu assumiu a obrigação de pagar, directamente e por si próprio, o preço de um contrato de subempreitada (pág. 23 do acórdão), o segmento final do documento, a circunstância do pagamento não ser feito de imediato e o próprio nomen iuris do contrato, enquanto elementos interpretativos, impunham conclusão diversa.

Como se assume no Acórdão recorrido, não constitui o nomen iuris atribuído pelas partes um elemento decisivo para a qualificação dos contratos, não estando, pois, os tribunais vinculados pela denominação adoptada por estas. Decisivo é apurar, em concreto, a extensão da relevância do compromisso jurídico assumido pelo signatário na carta.

Lendo o segmento do texto da carta relativo à assunção do pagamento dos montantes que seriam devidos “até à recepção provisória dos trabalhos”, não pode extrair-se um sentido normativo que conduza à exclusão da intenção de o Réu assumir esse pagamento. Na verdade, um declaratário normal, não retiraria desse segmento qualquer isenção da garantia prestada, mas tão só uma limitação temporal da obrigação de pagamento por forma a evitar novas responsabilidades surgidas após a recepção provisória da obra.

Por último, entendeu-se no Acórdão recorrido que a menção no penúltimo parágrafo da carta de que o Réu “procederá ao pagamento à Firma AA - Metalomecânica, S.A. se esta se constituir como subempreiteiro, de acordo com o estipula.do no artigo 266º e 267º do Decreto-Lei 59/99 de 2 de Março”, pretendeu limitar a sua obrigação de pagamento ao que resultava do regime de retenção em vigor para os contratos de empreitadas de obras públicas.

Esta interpretação não é consentida pelo texto da carta, na sua globalidade considerada, o qual não poderá cindir-se para efeitos da determinação do seu sentido interpretativo. E, conjugando aquele texto com o restante teor da missiva, não se mostra conforme com os critérios de interpretação do art. 236.º, n.º 1 do Código Civil, que daí possa ser retirada tal leitura.

Na verdade, o texto antecedente é suficientemente claro no que se refere à obrigação de pagamento assumida pelo Réu, sem que a parte final possa corresponder a qualquer ressalva ou limitação da extensão da sua obrigação, que não seja a relativa ao valor do capital em dívida ou ao período temporal abrangido. Aliás, a não ser assim, restaria sem conteúdo ou sentido útil a vinculação precedentemente assumida pelo Réu, entendimento que os factos provados não consentem.

Pelo contrário, o segmento em análise inculca que o Réu quis obrigar-se para além do que resultava do regime jurídico das empreitadas de obras públicas consignado no DL nº 59/99, de 2 de Março (revogado pelo DL n.º 18/2008, de 29-01), diploma que previa no respectivo art. 267.º:

«1 - Os subempreiteiros podem reclamar junto do dono da obra pelos pagamentos em atraso que sejam devidos pelo empreiteiro, podendo o dono da obra exercer o direito de retenção de quantias do mesmo montante devidas ao empreiteiro e decorrentes do contrato de empreitada de obra pública.

2 - As quantias retidas nos termos do número anterior serão pagas directamente ao subempreiteiro, caso o empreiteiro, notificado para o efeito pelo dono de obra, não comprove haver procedido à liquidação das mesmas nos 15 dias imediatos à recepção de tal notificação».

 A referência a este regime legal, à luz da interpretação feita por um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, e em especial pela circunstância de se tratar de entidades dotadas de especiais conhecimentos no âmbito da contratação de empreitadas, não pode, em nosso entender, deixar de corresponder apenas à concretização da forma como esse pagamento seria feito, isto é, à custa dos montantes retidos ao empreiteiro no âmbito do regime jurídico das empreitadas das obras públicas.

Interpretar tal parágrafo como traduzindo uma declaração limitadora das responsabilidades, não só contraria a interpretação do texto das cartas no seu todo e esquece todas as referências anteriores em que se assume uma verdadeira garantia, como confunde a obrigação de pagamento a que o Réu expressamente se vinculou com a forma como seria cumprida essa obrigação.

Mas ainda que assim não fosse, consideramos que a matéria de facto provada é suficiente para concluirmos pela demonstração da vontade real das partes e, bem assim, de que esta era, efectivamente, a de que fosse prestada uma verdadeira garantia do cumprimento das obrigações tendo a “carta de conforto” emitida visado precisamente concretizar esse acordo prévio.

Na verdade, resultou demonstrado que, previamente à celebração do contrato de subempreitada e à emissão das cartas de conforto, a Autora foi contactada pelo empreiteiro para executar uma estrutura metálica respeitante ao contrato de empreitada, celebrado por este com o Réu, tendo enviado o respectivo orçamento para o empreiteiro e para o Réu (facto provado n.ºs 2 e 3).

Na sequência de informações recolhidas sobre a solvabilidade do empreiteiro, a Autora condicionou a celebração do contrato de subempreitada à prestação de uma garantia de cumprimento da contrapartida pecuniária proposta, tendo-se o Réu prontificado a dar satisfação a esta exigência por ter grande interesse na realização da obra (factos provados n.º 3 e 4).

Foi, pois, neste contexto – que traduz a vontade real do declarante – que o Réu emitiu a “carta de conforto” em análise, sendo a factualidade provada expressa em afirmar que a mesma foi uma concretização do acordado (factos provados n.ºs 4 e 5).

Socorrendo-nos dos elementos interpretativos que a doutrina aponta especificamente para a interpretação das “cartas de conforto”, importa sublinhar a relevância das negociações prévias, ou seja, toda a envolvente, o contexto da emissão das cartas, bem como os interesses em jogo e a finalidade prosseguida (cfr. Calvão da Silva, ob. cit., págs. 377-378), os quais apontam para a vontade de prestar uma garantia pessoal, excluindo qualquer intenção de a limitar ao que resultaria do regime de retenção vigente nas empreitadas de obras públicas.

De resto, conforme assinala certa doutrina, do ponto de vista da teoria dos efeitos prático-jurídicos, deve sempre presumir-se que as cartas de conforto constituem um instrumento jurídico e não apenas declarações graciosas, de boa vontade, ou simples compromissos de honra (como seria o caso de se limitar a repetir o que já resultava do regime legal), recaindo sobre o patrocinante, interessado na sua irrelevância jurídica, provar que no caso concreto faltou essa intenção (cfr. Calvão da Silva, ob. cit., págs. 375-376 e João Vasconcelos Barros Rodrigues, dissertação de mestrado A Juridicidade das Cartas de Conforto, Porto, 2012, pág. 11, acessível em http://repositorio.ucp.pt/), o que manifestamente, in casu, não logrou o Réu demonstrar.

Em síntese, seja com base em interpretação assente na demonstração da vontade real, seja pela via interpretativa assente na impressão do destinatário, o texto da “carta de conforto” em análise corporiza uma verdadeira assunção de uma garantia de pagamento por parte do Réu perante a Autora das obrigações de pagamento incumpridas pelo empreiteiro perante esta.

 

3. Concluindo-se que a “carta de conforto” emitida pelo Réu integra a prestação de uma verdadeira garantia pessoal, importa agora indagar da sua força jurídica, independentemente, desta se poder assemelhar a uma fiança, a uma garantia autónoma ou constituir uma verdadeira garantia pessoal atípica.

Trata-se do problema da juridicidade das cartas de conforto, debatendo-se tradicionalmente se as declarações incluídas nas cartas de conforto correspondem a meras obrigações morais ou acordos de cavalheiros (“gentlemen’s agrements”) ou se constituem verdadeiros negócios jurídicos susceptíveis de constituírem um compromisso assumido por uma parte e validamente aceite pela outra.

Hodiernamente, é aceite a juridicidade das cartas de conforto, apenas se distinguindo as suas consequências e efeitos jurídicos na esfera do emitente em razão do conteúdo concreto da declaração emitida.

Assim, por referência à classificação entre cartas de conforto fracas, médias e fortes, pode dizer-se de forma simplificada e acompanhando, novamente, Menezes Cordeiro (ob. cit., págs. 588-589) que, relativamente às primeiras, a falta de fidedignidade das declarações de informação aí contidas pode gerar responsabilidade nos termos do art. 485.º do Código Civil (conselhos, recomendações ou informações), relativamente às segundas, o dever de apoio genérico entre sociedades coligadas pode gerar responsabilidade civil nos termos do art. 501.º do Código das Sociedades Comerciais ou, quando concretizado em obrigações específicas, responsabilidade civil em geral (pré-contratual ou não) pelos danos causados, enquanto nas terceiras pode ser exigido o efectivo cumprimento do dever de prestar assumido, aí se incluindo, quando for o caso, o accionar das garantias prestadas.

        No caso presente, não pode deixar de qualificar-se como forte a “carta de conforto” inicialmente emitida e ao abrigo da qual a Autora efectuou a primeira interpelação para pagamento, constituindo o Réu numa obrigação de pagamento em substituição do empreiteiro incumpridor.

        Nessa medida, consubstancia uma garantia pessoal atípica que impõe ao Réu um dever de prestar correspondente à obrigação de pagamento dos montantes reclamados em substituição do devedor, sendo que o incumprimento o faz incorrer em responsabilidade civil (art. 798.º do Código Civil).

        Simplesmente – conforme já ventilado a págs. 20 do Acórdão recorrido – há que indagar da validade da prestação de tal garantia atípica, porquanto esta encontra-se sujeita às regras gerais da validade dos negócios jurídicos (art. 280.º, n.º 1, do Código Civil), nomeadamente, às que se referem à legalidade da prestação de garantias por parte de municípios.

        Efectivamente (repetindo aqui o que consta do Acórdão recorrido), à data de emissão das “cartas de conforto” em causa, o art. 38.º, n.º 10 da Lei n.º 2/2007, de 15-01 (Lei das Finanças Locais), proibia a concessão pelos municípios de garantias reais ou pessoais nos seguintes termos: “É vedado aos municípios quer o aceite quer o saque de letras de câmbio, a concessão de avales cambiários, a subscrição de livranças, a concessão de garantias pessoais e reais, salvo nos casos expressamente previstos na lei”, regime idêntico vindo a ser consagrado no art. 49.º n.º 7 da actual Lei n.º 73/2013, de 03-09.

        Os casos ressalvados na lei são os que constam na Lei n.º 112/97, de 16-09, posteriormente alterada pelas Leis n.ºs 64/2012, de 20-12, e 82-B/2014, de 31-12, diploma que estabelece o regime jurídico da concessão de garantias pessoais pelo Estado ou por outras pessoas colectivas de direito público.

        Tal diploma dispõe que a concessão de garantias pessoais pelo Estado e por outras pessoas colectivas de direito público reveste natureza excepcional (art. 1.º, n.º 2) e prevê um apertado e formalizado sistema de autorização para o efeito, cominando a assunção de garantias em violação do que no mesmo se dispõe com a sanção de nulidade (art. 2.º, n.º 1) e a possibilidade de responsabilidade criminal por parte dos membros do Governo (art. 2.º, n.º 2).

        Sobre a validade da prestação deste tipo de garantias, sob a denominação de “cartas de conforto”, teve já o Tribunal de Contas oportunidade de se pronunciar, designadamente, no Acórdão n.º 7/2013 e na Sentença n.º 1/2013 (disponíveis em http://www.tcontas.pt/),considerando, precisamente, que a sua emissão padecia do vício de nulidade por violação das supra mencionadas regras legais.

        No caso da presente garantia pessoal prestada pelo Réu, sendo a nulidade de conhecimento oficioso pelo tribunal (art. 286.º do Código Civil) e tendo como efeito a anulação do negócio com efeitos retroactivos (art. 289.º, n.º 1, do Código Civil), apenas resta considerar que a mesma padece do vício de nulidade, sendo, por conseguinte, insusceptível de constituir fundamento legal válido para o pedido de pagamento formulado na acção.

        Na verdade, tendo o Réu Município, em violação das normas legais que o proibiam, emitido, sob a forma de uma “carta de conforto”, uma declaração que consubstancia uma garantia pessoal atípica de cumprimento de obrigações de um terceiro, deve a mesma ser considerada nula e insusceptível de produzir qualquer efeito.

        O que não obsta a que sobre o Réu recaia a obrigação de proceder ao pagamento correspondente ao exercício do direito de retenção, ao abrigo do art. 267.º do DL 59/99, de 02-03, já que, seja por efeito do instituto da redução do negócio jurídico (art. 292.º do Código Civil) ou por mera decorrência da aplicação daquele regime legal, sempre se concluiria estar o Réu obrigado a liquidar em favor da Autora os montantes que foram objecto de retenção, conforme decidiu o Acórdão recorrido.

        Termos em que, ainda que por “caminho diverso”, se conclui, em sintonia com a decisão recorrida, que sobre o Réu impende apenas a obrigação de pagamento à Autora dos montantes retidos e não entregues.


        4. Finalmente, insurge-se a Recorrente contra o Acórdão recorrido no tocante à imputação do valor recuperado no âmbito da execução por não ter atendido aos juros moratórios vencidos desde a interpelação do Réu.

        Entende, nesse sentido que, mesmo considerando a tese do Acórdão no sentido de o Réu apenas ser responsável pelo valor sujeito a retenção, deveriam ser computados no montante total da dívida reclamada, no valor de € 278.423,27, os juros de mora comerciais vencidos desde a última interpelação efectuada por carta recepcionada pelo Réu em 11-05-2009, os quais, em 30-11-2015, ascendiam a mais € 142.795,29.

Assim, o valor de € 210.000,00 recuperado na execução instaurada contra o empreiteiro deveria ser deduzido ao resultado da adição daqueles valores, no total de € 421.218,56., perfazendo o montante total da condenação € 211.218,48, calculado com referência a essa data.

No Acórdão recorrido, entendeu-se que o total em dívida ascendia a € 68.423,27 em resultado da operação aritmética de subtracção do montante de € 210.000,00, recuperado na execução, ao valor do capital que o Réu estava obrigado a reter, correspondente a € 278.423,27.

É sabido que a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor e que, em regra, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (arts. 804.º e 805.º, n.º 1 do Código Civil), salvo se a obrigação tiver prazo certo.

Tratando-se de obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806.º, n.º 1, do Código Civil), podendo estes ser calculados à taxa de juros civis ou comerciais, sendo estes aplicáveis no caso de créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas (art. 559.º do Código Civil e art. 102.º § 3 do Código Comercial).

Em relação à imputação de prestações pecuniárias que não cheguem para extinguir a totalidade da dívida, na ausência de designação pelo devedor, devem ser tidas em consideração as disposições supletivas fornecidas pela própria lei.

Assim, quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital (art. 785.º, n.º 1, do Código Civil).

No caso presente, o valor da prestação em dívida correspondia ao montante que deveria ter sido retido pelo Réu e que, indevidamente, não o foi, porquanto, conforme se concluiu no Acórdão recorrido, existiam montantes sujeitos a retenção suficientes para garantir o pagamento do valor de € 278.423,27, reclamado na data da última interpelação, recebida pelo Réu em 11-05-2009.

Em relação a este valor eram, efectivamente, devidos juros de mora, os quais seriam contados desde a data da interpelação, não fora a circunstância da Autora no pedido que formulou na acção apenas os ter peticionado a partir do dia 30-06-2009, pelo que, atento o princípio do pedido, a condenação tem de limitar-se ao período posteriormente vencido (art. 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), conforme doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 9/2015, in D.R., I Série, de 24-06-2015.

Com esta ressalva, assiste, no mais, razão à Recorrente. As regras de imputação no cumprimento da obrigação não permitiam a imediata dedução do montante de € 210.000,00 recuperado na execução no valor do capital em dívida, conforme considerou o Acórdão recorrido.

Tal imputação deve ser feita com referência ao momento em que a Autora viu ressarcido parcialmente o seu crédito, ou seja, o valor de € 210.000,00 recuperado na execução apenas pode ser diminuído à dívida com referência à data da sua liquidação, considerando-se o capital e os juros vencidos nessa data.

Ora, a este respeito a matéria de facto é omissa. Desconhece-se a data em que essa satisfação parcial do crédito da Autora teve lugar, sendo tal determinante para apurar em que medida a mesma se repercutiu na liquidação dos juros vencidos e capital em dívida.

Nestes termos, embora o Acórdão recorrido mereça confirmação na parte em que limita a responsabilidade do Réu aos montantes que deveriam ter sido sujeitos a retenção (ainda que com fundamentação diversa), o montante líquido da dívida ficará dependente de ulterior apuramento da diferença entre o valor do capital de € 278.423,27 e dos juros de mora à taxa aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais vencidos desde 30-06-2009 até à data em que a Autora recebeu a quantia de € 210.000,00, valor a imputar com observância do critério supletivo ínsito no citado art. 785.º n.º 1 do Código Civil, constituindo a quantia que resultar dessa operação, acrescida dos juros de mora contabilizados sobre o capital ainda em dívida, à referida taxa, a partir daquela data e até integral pagamento, o crédito da Autora.


III. Decisão:

Termos em que se concede parcialmente a revista e se condena o Réu a pagar à Autora o valor de € 278.423,27, acrescido de juros de mora, à taxa aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, vencidos desde 30-06-2009, abatido do valor de € 210.000,00, com referência à data que vier a ser apurada em sede de liquidação ulterior e observância, no apuramento da dívida, das regras de imputação supletivas insertas no artigo 785.º do Código Civil.

Custas a cargo de Autora e Réu na proporção do decaimento, que se fixa, provisoriamente, em 25% e em 75%, respectivamente.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 5 de Maio de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Pires da Rosa