Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2080/19.6T8MTS.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
ÁGUAS
TRIBUNAL TRIBUTÁRIO
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : As questões que emergem de contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos clientes finais, quanto ao pagamento do custo dos ramais de ligação de edifício particular à rede pública, sendo demandada uma sociedade comercial e no domínio da vigência do ETAF antes da alteração legal introduzida pela Lei 114/2019, de 12-09, são da competência dos tribunais tributários.
Decisão Texto Integral:
PROC. 2080/19.6T8MTS.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório
1. “Indaqua Gestão de Águas de Matosinhos, S.A.” propôs a presente acção de condenação sob a forma de processo comum contra “Galliotta Desig, Lda.”, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 662,45, sendo € 643,00 de capital e € 19,36 de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, valor correspondente à tarifa inerente à construção do ramal de saneamento e vistorias efectuadas ao imóvel da R., constantes da factura nº ..., emitida em 02/10/2018, na sequência de pedido efectuado pela R. junto da A. de ligação da sua rede predial ao sistema público de água e saneamento.
A R. contestou invocando a incompetência absoluta do tribunal e a prescrição do crédito invocado pela autora, defendendo-se, ainda, por impugnação.
Notificada para o efeito a autora respondeu pugnando pela improcedência das excepções deduzidas.

2. No despacho saneador foi conhecida a questão da competência do tribunal, tendo-se aí decidido:
“Em face do exposto, julgo procedente por provada a excepção deduzida e, em consequência, declaro este tribunal absolutamente incompetente por violação das regras de competência em razão da matéria e absolvo a Ré da instância.
Custas pela Autora (art. 527º, nºs 1 e 2 do C.P.C.).”

3. A A. interpôs recurso de apelação, conhecido pelo Tribunal da Relação do Porto, que decidiu:
“Julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.”

4. Novamente inconformada a A. apresentou recurso de revista (nos termos do disposto nos artigos 629.º n.º 2 al. a), 671.º, n.º 2, al. a); 675.º e 676.º, 644.º, n.º 2 alínea a) todos do CPC), admitido pelo Tribunal da Relação (com o seguinte despacho: “Tenho por verificados os pressupostos gerais para que o recurso interposto pela autora, Indaqua Matosinhos S.A., possa ser admitido como recurso de Revista Excepcional. Assim sendo e após cumprimento de todas as formalidades legais, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça para apreciação e decisão.”).

5. No recurso a recorrente formula as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas à Recorrida na sequência dos pedidos de ligação à rede pública de drenagem de águas residuais, para inclusão deste serviço público essencial no contrato de fornecimento de água, e que originou a construção por parte da Recorrente do respetivo ramal com os inerentes custos peticionados.
2. Serviço esse adjacente e indissociável do contrato de fornecimento de água já celebrado e em vigor entre as partes, sendo certo que nos presentes autos está em causa meramente os custos inerentes aos serviços respeitantes a saneamento.
3. Trata-se de serviços ligados à prestação de bens públicos essenciais, conforme resulta da causa de pedir e pedido formulado.
4. Concretamente, trata-se de uma relação contratual entre a Recorrente (concessionária) e a Recorrida (consumidor), após esta última ter solicitado expressamente (cfr. docs. 1 e 2 da p.i.) junto da Recorrente, a execução de ramais de ligação para prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos.
5. Relação contratual esta que, apesar de não configurar o contrato de fornecimento do bem em si (água e saneamento), trata-se de uma relação de consumo.
6. Sendo a Recorrente a prestadora de serviço: a que exerce uma atividade económica, com caráter profissional, para obtenção de benefícios, incluindo a construção de ramais para posterior ligação e contratação do fornecimento do bem: água e saneamento, e a Recorrida a consumidora: aquela a quem foram fornecidos bens, no caso, prestados serviços, destinados a uso não profissional.
7. Nos termos do art 1º da Lei 24/96 atualizada: “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” e “consideram-se incluídos no âmbito da presente lei os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos.”
8. Ou seja, consumidor é cada um de nós, é todo aquele todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
9. São, assim, elementos da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor (elementos subjetivos) o produto ou o serviço (elemento objetivo), independentemente do tipo contratual celebrado entre as partes, o que se verifica preenchido no caso dos autos.
10. Entende a Recorrente, por um lado que, a relação de consumo relativa aos bens de serviço público essencial (água e saneamento) não se subsume ao abastecimento mensal de água e saneamento, mas inclui todos os serviços relacionados e intrínsecos a tal abastecimento e saneamento, devidamente previstos na legislação, Regulamento em vigor e tarifários/preçários publicitados anualmente pela Recorrente.
11. Os serviços prestados – execução de ramais de ligação e tarifas de vistorias inerentes - foram-no no âmbito da relação de consumo iniciada por solicitação expressa da Recorrida (cfr. Doc. 1 e 2 da p.i.) onde consta “solicitação de execução de ramal”.
12. Encontrando-se os serviços de construção de ramais no âmbito do contrato de concessão, no âmbito da relação de consumo, e em que apenas os serviços prestados pela Recorrente têm origem subjetivamente pública e são prestados “in fine” e diariamente.
13. Sem prescindir, caso assim não se entenda, ao ser solicitada pela Recorrida a execução de um ramal de ligação, e ao ser executado pela Recorrente no âmbito das suas funções e serviços incluídos no seu objeto social e contrato de concessão, estamos sempre, obviamente, perante uma relação de consumo em que a Recorrente presta o serviço e a Recorrida recebe a prestação do mesmo, por sua solicitação.
14. E dúvidas não podem existir acerca da existência de um vínculo contratual – o contrato de empreitada celebrado entre as partes.
15. Motivos pelos quais sempre a relação em causa está, em qualquer dos casos, expressamente abrangida pela atual alínea e) do art. 4º do ETAF e, anteriormente, excluída da alínea f) do art. 4º.
16. A Recorrente não pratica atos administrativos, nem celebra contratos administrativos com os utilizadores, presta apensas, por força do contrato de concessão (este sim público), serviços/bens de caráter público essencial
17. A considerar-se – o que por mero dever de patrocínio se admite - que atua no âmbito de poderes públicos transmitidos por força da concessão, então todos os seus poderes teriam que ser considerados de natureza pública, e todos os seus atos teriam natureza pública incluindo os praticados no abastecimento mensal de água e prestação de saneamento a todos os consumidores
18. Dado que todos os seus poderes e atos têm a mesma origem: o contrato de concessão.
19. E a verdade é que a alteração efetuada pela Lei 114/2019 ao art. 4º do ETAF não refere contratos de consumo ou contratos respeitantes a bens públicos essenciais mas refere sim, de uma forma muito mais abrangente, relações de consumo, aqui incluídos todos os atos relacionados com o contrato de consumo, quer os pré-contratuais quer os que decorrem no decurso do contrato.
20. Nos termos do disposto na alínea e) do atual art. 4º do ETAF, na redação dada pela Lei 114/2019 publicada, recentemente, a 12.09.2019 em Diário da República está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
21. Esclarecendo a opção legislativa, leia-se o Anteprojeto de Proposta de Lei - in http://www.smmp.pt/wp-content/uploads/Oficio-n-452-de-14-03-2018.pdf que especifica:A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” – negrito nosso
22. Ou seja, a alteração legislativa veio no sentido de clarificar as questões interpretativas, nomeadamente jurisprudenciais, e com conflitos de competência, que se levantavam no âmbito da anterior redação do art. 4º do ETAF.
23. Consequentemente, e desde logo, não faz sentido fazer tábua rasa da clarificação interpretativa que veio a ser plasmada na nova disposição legal, com justificação expressa no seu anteprojeto.
24. Em simultâneo, não faz sentido igualmente, fundamentar as atuais decisões nesta matéria com base na jurisprudência anterior à entrada em vigor da supra citada Lei, que se tornaram obsoletas, na medida em que se tratava, até aí, de uma questão de interpretação da Lei agora ultrapassada.
25. Muito menos sentido fará, a mesma matéria vir a ser discutida nuns casos/processos no TAF com base em tal entendimento e, noutros casos/processos, vir a ser discutida nos tribunais comuns com base no entendimento da atual Lei.
26. Pelo que, s.m.o., seria desfasado atender atualmente a orientações interpretativas obsoletas, como os Acordãos anteriores à Lei 114/2019 enunciados na douta sentença proferida.
27. A não ser assim – o que não se concede - afigura-se relevante o entendimento sufragado no Acordão do Tribunal da Relação do Porto de 06.06.2016 no processo 85565/15.6yiprt, no sentido da inexistência de argumentos válidos para excluir a competência dos tribunais comuns quando esteja em causa a falta de pagamento dos encargos decorrentes da obrigatoriedade legal de ligação dos imóveis à rede pública relativamente a serviços prestados pelas mesmas empresas, valendo também, quanto a esses encargos, os mesmos argumentos utilizados em relação ao fornecimento de água:
28. E, no fundo, o que a alínea e) do art. 4º do ETAF diz é o seguinte: mesmo que esteja em causa a prestação de um serviço público essencial no âmbito de uma relação de consumo, os Tribunais Administrativos e Fiscais não são competentes para decidir sobre tal matéria.
29. Obviamente, tratando-se de uma relação de consumo particular, serão sempre competentes os tribunais cíveis comuns.
30. A entender-se – o que não se admite – que a clarificação pela atual redação do art. 4º do ETAF não se aplica, sempre se dirá que mesmo a sua anterior redação - introduzida pelo DL nº 214-G/2015, que alterou o artigo 1º e suprimiu a anterior alínea f), substituindo-a pela actual alínea e) - já se esclareceram possíveis dúvidas, confinando a competência dos tribunais administrativos aos contratos celebrados «nos termos da legislação sobre contratação pública».” – cfr. Acordão da Relação do Porto de 13.09.2018
31. O que não sucede no caso dos autos.
32. Por outro lado, a figura da concessão implica tão somente a transferência temporária do exercício (mas não da titularidade), dos direitos e poderes da pessoa coletiva pública, necessários à gestão do serviço pelo concessionário. – cfr. Acordão da Relação do Porto de 13.06.2019
33. A Recorrente não atua como titular de um poder público, é uma entidade privada, nem em causa está um contrato ou ato administrativo – mas tão só uma relação de consumo privada, para prestação de um bem público essencial ou, sem prescindir, de um contrato de empreitada privado.
34. Por último, em causa nos autos está o preço/tarifa, e não qualquer taxa, muito menos de caráter tributário, relativo aos serviços que a Recorrente prestou, por solicitação expressa da Recorrida.
35. E, de acordo com o 2 do artigo 82º da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro) o regime de tarifas a praticar pelas empresas concessionárias de serviços públicos de águas obedece aos critérios do n.º 1, visando ainda assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão, e o cumprimento dos critérios definidos nas bases legais aplicáveis e das orientações definidas pelas entidades reguladoras.
36. Resultando assim que, os preços ou, como são chamados, tarifas, são instrumentos de remuneração e, no caso específico de o serviço estar concessionado, visam, ainda, assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão.
37. Rege o “Princípio da recuperação dos custos”, nos termos do qual os tarifários (preçários) dos serviços de águas e resíduos devem permitir a recuperação tendencial dos custos económicos e financeiros decorrentes da sua provisão, em condições de assegurar a qualidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com custos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas;” – cfr. RECOMENDAÇÃO ERSAR 01/2009 in http://www.ersar.pt/pt/o-que-fazemos/recomendacoes
38. Em suma, quer pela existência de uma relação de consumo privada, quer pela inexistência de titularidade de um poder público ou ato administrativo, quer pela inexistência de aplicação de quaisquer taxas com caráter de tributo, verifica-se a competência do tribunal comum para decidir nos presentes autos.
39. Acresce apenas dizer que, de acordo com o entendimento do douto Acordão do Tribunal da Relação do Porto,
40. Terá de concluir-se pois que, o douto Acordão recorrido violou os artigos 89º 1 do CPC, o art. 157º do CPTA, os arts. 1º e 4º nº 1 al. e) do ETAF, art. 211º nº 1 e art. 212º nº 3 da CRP, art. 18º nº 1 da LOTJ e do art. 6º, nº 1, al. c) do Código dos Contratos Públicos, por errada interpretação jurídica.
Termos em que deverá ser admitido o presente recurso de revista, por legal e tempestivo, e dar-se provimento ao mesmo, revogando-se o douto Acordão recorrido, devendo os autos prosseguir até final.”

6. Foram apresentadas contra-alegações, onde se conclui (transcrição):
“1. Notificada do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que confirmou a decisão de 1.ª Instância vem do mesmo, a Recorrente, recorrer num recurso que diz ser de Revista nos termos do disposto nos artigos 629.º n.º 2 al. a, 671.º n.º 2 al. a; 675.º e 676.º, 644.º n.º 2 alínea a todos do NCPC.
2. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, o presente recurso não é admissível tendo em conta o disposto no artigo 671.º n.º 3 do NCPC onde é referido que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”
3. Assim, discorrido todo o acórdão, em momento algum se faz referência a voto de vencido, e tendo em conta a sua fundamentação e a fundamentação usada pelo Tribunal de 1.ª instância, verificamos que é a mesma.
4. Não se conformando com a Douta decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, veio a Autora “Indaqua Matosinhos, S.A.”, dela interpor recurso, recorrendo da decisão de direito apresentada pelo Mmo. Juiz “a quo”.
5. Fundamenta o seu recurso dizendo que “Com o devido respeito, não concorda a Recorrente com a douta sentença recorrida, por considerar que o Tribunal a quo é competente em razão da matéria.”
6. Recurso esse que deu origem ao acórdão datado de 20 de Janeiro de 2020, e que teve como decisão a confirmação da sentença do tribunal de 1ª Instância, referindo “Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.”.
7. Pelo que, existe dupla conforme, obstando tal facto à interposição de recurso de revista normal, conforme entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de 20-11-2014 no processo n.º 3479/10.9TBGM-B.P1.S1. (ver anotação 32 ao artigo 671.º, in NCPC Anotado, Abílio Neto, 3.ª edição, Maio 2015).
8. Entendendo, assim, a recorrida de que o Recurso da Recorrente deve ser indeferido por não ser admissível nos termos das regras do NCPC, nomeadamente nos termos do artigo 671.º n.º 3. tendo estabelecido assim uma dupla conforme e obtendo a Recorrente duas decisões no mesmo sentido.
9. A Recorrente faz ainda menção ao artigo 644.º n.º 2 al. a do NCPC, no entanto tal preceito legal, no entender da recorrida em nada releva para o caso em discussão não podendo ser usado para justificar o recurso.
10.Também não podemos aceitar que um mês após ter enviado o recurso venha requerer a junção aos autos de quatro documentos, acórdãos, que segundo a mesma foram-lhe notificados posteriormente à entrega do requerimento.
11.Não se trata de algum erro ou falha de envio mas apenas de documentos que recebeu posteriormente e, porque lhe convinha e corroborava o seu entendimento, resolveu juntar.
12.Ora, se não estivéssemos em estado de emergência e os prazos não se encontrassem suspensos ao abrigo desta situação de pandemia já a aqui recorrida teria respondido, contra-alegado nesse prazo.
13.Pois desde a junção do requerimento de recurso até ao requerimento de junção destes documentos decorreram cerca de trinta e dois dias, pelo que no entender da Recorrida devem os mesmos ser desentranhados por não ser admissível a sua junção.
14.Assim sendo, e salvo o devido respeito por melhor opinião o recurso da Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser declarado improcedente por não ser admissível o Recurso de Revista nos termos do disposto no artigo 671.º n.º 3 do NCPC.
15.E em consequência ser também desentranhado o requerimento junto à posterior em 20 de Abril de 2020.
16.Alega a recorrente que “Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas à Recorrida na sequência dos pedidos de ligação à rede pública de fornecimento de água e drenagem de águas residuais, e que originou a construção por parte da Recorrente dos respectivos ramais com os inerentes custos peticionados.”
17.Pedido este que, na opinião da Recorrida, e segundo informação dada pelos serviços da Recorrente, faz parte integrante do contrato de fornecimento de serviços que foi outorgado.
18.Alegando ainda que está somente em causa os custos relativos ao saneamento, nomeadamente a ligação dos ramais, e que esta não é um contrato de fornecimento de bens mas sim uma relação de consumo.
19.O que jamais a Recorrida pode aceitar que assim seja, uma vez que essa ligação faz parte integrante do contrato de fornecimento de serviços pois sem esta ligação não há fornecimento de serviço.
20.Salvo o devido respeito por melhor opinião, entende a aqui recorrida, que o douto acórdão proferido pelo tribunal da Relação não merece qualquer reparo.
21. “Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas à Recorrida na sequência dos pedidos de ligação à rede pública de fornecimento de água e drenagem de águas residuais, e que originou a construção por parte da Recorrente dos respectivos ramais com os inerentes custos peticionados.”
22.Pedido este que, na opinião da Recorrida, e segundo informação dada pelos serviços da Recorrente, faz parte integrante do contrato de fornecimento de serviços que foi outorgado.
23.Vindo ainda invocar que “(…) nos termos do disposto na alínea e) do art. 4.º do ETAF, na redacção dada pela Lei 114/2019 publicada, recentemente, a 12.09.2019 em Diário da República está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva.”
24. Tal lei não se pode aplicar ao caso concreto, nem a Recorrente se pode dela valer.
25.A lei foi publicada em Diário da República no dia 12 de Setembro do corrente ano, no entanto no seu Artigo 6.º, que dispõe a propósito do âmbito da sua entrada em vigor, refere que “A presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação.”
26.O que significa que apenas entra em vigor no dia 12 de Novembro de 2019.
27.Não podendo assim ser aplicada ao caso em análise que já obteve sentença em 24 de Setembro, dias antes da publicação da lei e cerca de 2 meses antes da sua entrada em vigor.
28.No discorrer pela jurisprudência apresentada pela Recorrente se verifica que muitos são os acórdãos enunciados para fazer valer a sua opinião, no entanto não nos podemos colocar de parte que existe bastante jurisprudência na qual se refere que os tribunais cíveis não têm competência para julgar causas como as dos presentes autos.
29.Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 85567/15.2YIPRT.P1 datado de 13/09/2016 que no seu sumário refere: “I - Os tribunais comuns não são os competentes para a apreciação de um litígio em que uma empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água pretende cobrar quantias referentes à construção de ramais de ligação às redes públicas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais, vistorias e taxas correspondentes, uma vez que a respetiva causa de pedir se reconduz a uma relação jurídica pública. II - Essa competência pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.”
30.O mencionado acórdão menciona, que é necessário ter-se em conta não só a forma como o autor configura a acção, a causa de pedir do mesmo e ainda o pedido formulado.
31.Que vai de encontro à tese da Recorrida dizendo “Regressando à situação dos autos, assinala-se, desde logo, que a autora não pede ao réu o pagamento de quantia que lhe é devida por fornecimento de água e a que este estava obrigado por força do respetivo contrato de fornecimento. Com efeito, o que aqui está em causa é o pagamento pelo réu de uma fatura relativa à cobrança dos valores referentes à construção de ramais de ligação às redes públicas de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais e taxas correspondentes.”
32.Mesmo admitindo que haja jurisprudência maioritária deste tribunal que é da opinião de que os tribunais cíveis são competentes para dirimir litígios quando está em causa a cobrança coerciva de facturas relativas ao fornecimento de bens e serviços como o dos autos, o mesmo acórdão refere que no caso dos autos, e que é o mesmo que o nosso caso em apreço refere que esse assunto é da competência dos Tribunais administrativos e fiscais.
33.Dizendo, “(…) o caso “sub judice” apresenta contornos diversos, atendendo a que o litígio se reporta à cobrança de valores referentes à construção de ramais de ligação e taxas respetivas e não ao simples fornecimento de água. (…) O serviço de fornecimento de água constitui um serviço público essencial conforme decorre do art. 1º, nº 2, al. a) da Lei nº 23/96, de 26.7 e a sua exploração e gestão, como já se apontou, pode ser efetuada diretamente pelos respetivos municípios ou associações de municípios ou pode ser atribuída, em regime de concessão, a entidade pública ou privada de natureza empresarial, bem como a associação de utilizadores. No caso dos autos, a autora, enquanto concessionária do serviço de fornecimento de água e pese embora seja uma entidade privada, prossegue fins de interesse público, estando, para tanto, munida dos necessários poderes de autoridade, daí que, subjacente ao presente litígio, esteja uma relação jurídica administrativa. (…) Deste modo, a causa de pedir em que se funda a pretensão da autora, que exige do réu o pagamento dos ramais de ligação, reconduz-se a uma relação jurídica pública, até porque a autora o que visa obter é o pagamento de um serviço que efetua no quadro da sua atividade de concessionária de serviço público, na qual age no exercício de poderes administrativos.”
34.E vai mais longe dizendo, “O que está em discussão nos autos não se prende, assim, com uma relação jurídico privada em torno do incumprimento de obrigações decorrentes tão só do contrato de fornecimento de água, mas sim, perspetivando o litígio em toda a sua globalidade, com a legalidade ou ilegalidade da cobrança de quantias relativas à construção dos ramais de ligação à rede de abastecimento de água e de saneamento, o que nos remete para um quadro de relação jurídica pública. Ora, tratando-se de litígio emergente de relação jurídica pública (administrativa ou fiscal) os tribunais competentes para os dirimir serão os da jurisdição administrativa e fiscal.”
35.O mesmo entendimento é plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 106973/15.5YIPRT.P1, datado de 10 de Janeiro de 2017, onde no seu sumário é referido: “As questões emergentes de contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos fornecedores finais (quanto ao pagamento do custo dos ramais de ligação de edifício particular à rede pública) compete aos tribunais tributários.”
36.Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 657/10.4TBFAF.G1, datado de 25 de Setembro de 2014, é referido que “Cabe aos tribunais administrativos, e não aos judiciais, a competência para conhecer da execução instaurada pela empresa concessionária do serviço de fornecimento de água aos munícipes do concelho com vista à cobrança de dívida emergente de contrato de abastecimento de água e saneamento.”
37.No mesmo sentido destes acórdãos podemos enumerar ainda os seguintes: Acórdão do STA de 28/10/2015, no processo 0125/14 e de 04/11/2015 no processo n.º 0177/14, e especificamente para a questão versada nestes autos, do pagamento do custo dos ramais de ligação do edifício particular à rede pública;
38. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28/06/2013, no processo n.º 02708/11.6BEPRT; e de 24/10/2014, no processo n.º 00749/11.2BEPRT;
39. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, citados pelo voto de vencido do Desembargador Pedro Martins no Acórdão da Relação do Porto de 02/06/2016, processo n.º 85565/15.6YIPRT,
40.No caso dos nossos autos, a autora / recorrente é uma sociedade comercial que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município de Matosinhos,
41.Nesse sentido alega ter celebrado, nesse âmbito, um contrato com a Ré de disponibilização de ramal de ligação de água e saneamento.
42.Nos termos do artigo 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) é descrito que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
43.E de acordo com o artigo 64.º do Código de Processo Civil (CPC) “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
44.Também no artigo 40.º nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário é mencionado que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”
45.Por outro lado, nos artigos 212.º n.º 3 da Constituição da República e o artigo 1.º n.º 1 do ETAF (aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19/02) é consagrado um princípio segundo o qual os tribunais administrativos e fiscais são competentes para dirimir os “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”
46.No artigo 4.º n.º 1 f) do ETAF é referido “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.”
47.Tal é o entendimento do Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão no processo n.º 313901/11.2YIPRT.G1, que menciona que “É da competência dos Tribunais Administrativos, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º do ETAF, em conjugação com o nº 3 do artº 214º da Constituição da República Portuguesa, a acção em que actuando a Autora, na qualidade de concessionária e nos termos dos Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Fafe e do Contrato de Concessão celebrado com o Município de Fafe, e no âmbito deste, exclusivamente, os poderes de autoridade, caracterizadores de ius imperii, se mantêm na entidade concedente, não podendo, ainda, os serviços de fornecimento de água prestados pela requerente, na qualidade de concessionária de órgão público, ser realizados por qualquer entidade particular.”, publicado em http://www.dgsi.pt
48.No caso em análise, e como já se mencionou supra, o que a Autora / Recorrente pretende é que a aqui Recorrida lhe pague o valor de um serviço alegadamente prestado de ramal de água no âmbito de um contrato de concessão e exploração de tratamento de águas residuais e saneamento celebrado entre a Autora / Recorrente e o Estado.
49.Uma vez que a competência do tribunal se afere pelo pedido da Autora / Recorrente, dúvidas não restam que, ao fixar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária, a mesma está a agir no exercício de poderes administrativos.
50.A Indaqua Matosinhos é uma entidade criada no âmbito de um Contrato de Parceria Pública celebrado em 17.09.2007, onde o Município de Matosinhos concedeu a exploração dos respectivos sistemas municipais de saneamento e de águas residuais urbanas à Autora / Recorrente.
51.Pelo contrato referido, as partes outorgantes atribuíram à Autora / Recorrente, em regime de exclusividade, a exploração e gestão dos serviços públicos de saneamento de águas residuais urbanas relativas ao Município de Matosinhos.
52.Assim, tendo em conta o disposto no n.º 1 do artigo 1.º do ETAF, estamos perante um litígio emergente de relações jurídicas administrativas, no sentido de se considerar ser uma relação jurídica regulada pelo direito administrativo, com exclusão, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
53.Isto porque, “uma relação jurídica administrativa deve ser uma relação regulada por normas de direito administrativo que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada” – vide Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, com o n.º 07/12 (Tribunal de Conflitos) de 20/09/2012, publicado em www.dgsi.pt .
54.No Acórdão do Tribunal de Conflitos de 04.04.2006 (processo nº 27/05, disponível in www.dgsi.pt ) é referido que “a distinção entre relações jurídicas administrativas e relações jurídicas privadas decorre, grosso modo, dessa relação provir da prática de atos de gestão pública ou de atos de gestão privada” aí se considerando as relações jurídicas administrativas “como aquelas que são regidas por normas que regulam as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no desempenho da atividade administrativa de gestão pública, sendo esta, em síntese, e como já foi referido, a atividade que compreende o exercício de um poder público, integrando, ela mesma, a realização de uma função pública da pessoa coletiva, independentemente de envolver ou não o exercício de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática dos atos devam ser observadas”
55.Tendo em conta tudo quanto supra se expôs e que a relação jurídica administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração, a aqui Recorrente actua com base numa concessão pública atribuída pelo Município, e forma impositiva ao particular, revestindo-se do “poder público”, ao invés de se apresentar em posição de paridade com o particular.
56. Assim, sendo, conclui-se que face ao disposto nos artigos 96.º, 97.º alínea a), 99.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, conjugadas com as disposições legais do ETAF, se conclui que a sentença alvo de recurso por parte da recorrente não merece qualquer reparo, se concluindo pela incompetência do Tribunal civil para dirimir o assunto dos autos.
Termos em que, Nos melhores de direito e com o sempre Mui Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente, consequentemente, manter-se integralmente a Douta Sentença e Douto Acórdão proferida pelo Tribunal “a quo”, assim se fazendo Justiça.

Cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação
7. Revelam os elementos constantes do relatório que antecede.

8. Considerando que os recursos se delimitam pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e alguma questão prévia que possa ter sido suscitada pela defesa, a única questão suscitada neste recurso é da competência/incompetência material do Tribunal a quo para conhecer da presente acção.

9. Questões prévias
9.1. Da admissibilidade do recurso de revista
Esta questão foi suscitada pela recorrida - no sentido de não poder haver revista, por existir dupla conforme - e sempre deveria ser suscitada igualmente pelo tribunal (art.º 652.º do CPC), por não ter de se aceitar a admissão do recurso decidida pelo Tribunal da Relação, nomeadamente quando aí se decide admitir uma revista pela via excepcional, competência cometida à formação a que se reporta o art.º 672.º do CPC.
Vejamos.
Dispõe o artigo 671.º n.º 3 do CPC que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.
A primeira parte da norma abre logo uma excepção à não admissão dos recursos em que ocorra uma dupla conformidade decisória: a de se tratar de um caso em que o recurso seja sempre admissível, como sucede com as situações a que se reporta o art.º 629.º, n.º2, alíneas a) a c) do CPC e onde se inclui os recursos de decisões relativas a questões de competência material dos tribunais.
Considerando que neste processo se discute de os tribunais competentes são os judiciais (jurisdição comum) ou os tribunais da jurisdição administrativa/fiscal, não se oferecem dúvidas de estarmos perante a situação a que se reporta a alínea a) do n.º2 do art.º 629.º, a qual implica que o recurso seja admissível, mesmo sem alçada, sem sucumbência ou perante duas decisões que possam preencher o conceito de dupla-conforme.
Também por esse motivo não há lugar a suscitar a admissão da revista como excepcional, nem se compreende como essa possibilidade foi deferida sem ter sido objecto de solicitação pela recorrente.
Assim, a revista é admissível por via da aplicação do art.º 629.º, n.º2, al. a) do CPC.

9.2. Da possibilidade de junção de documentos após apresentação do requerimento de recurso pela recorrente.
Também na contra-alegação da recorrida se contesta a junção de documentos aos autos, já depois da entrega do requerimento de recurso, sendo pedido o seu desentranhamento.
A junção de documentos com o recurso de revista é tratado no art.º 680.º do CPC, que apenas admite a junção de documentos supervenientes com a alegação do recurso, e sem prejuízo do disposto no n.º3 do art.º 674.º e n.º 2 do art.º 682.º CPC.
A alegação de recurso foi apresentada pela recorrente em 18/3/2020.
A junção de documentos – acórdãos – foi efectuada a 20/4/2020, já depois de apresentada a alegação de recurso.
Ainda que a junção se reporte a acórdãos – e que não se identifique nenhuma desvantagem na sua manutenção nos autos – não se pode afirmar que tenha sido dado cumprimento à disposição legal que admitia a sua junção, fazendo também depender a mesma do seu carácter superveniente, pelo que importa indeferir a sua junção aos autos, determinando-se o seu desentranhamento, conforme solicitado pelo recorrido.

10. Entrando agora no conhecimento do objecto do recurso:
10.1. Em favor da tese da recorrida são citados os seguintes arestos:
1. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 85567/15.2YIPRT.P1 datado de 13/09/2016;
2. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no processo n.º 106973/15.5YIPRT.P1, datado de 10 de Janeiro de 2017;
3. Acórdão do STA de 28/10/2015, no processo 0125/14;
4. Acórdão do STA de 04/11/2015 no processo n.º 0177/14, e especificamente para a questão versada nestes autos, do pagamento do custo dos ramais de ligação do edifício particular à rede pública;
5. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28/06/2013, no processo n.º 02708/11.6BEPRT;
6. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de de 24/10/2014, no processo n.º 00749/11.2BEPRT;
7. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos, citados pelo voto de vencido do Desembargador Pedro Martins no Acórdão da Relação do Porto de 02/06/2016, processo n.º 85565/15.6YIPRT

10.2. Em favor da tese da recorrente são indicados os arestos que constam das conclusões supra transcritas.
Os principais argumentos da recorrida prendem-se com a qualificação da relação entre recorrente e recorrida (relação de consumo) e com a aplicação imediata do ETAF na versão introduzida pela Lei 114/2019,publicada, a 12.09.2019 em Diário da República, onde se afirmar estar excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respectiva cobrança coerciva.
Esta lei foi publicada em Diário da República no dia 12 de Setembro de 2019, no entanto, no seu Artigo 6.º, que dispõe a propósito do âmbito da sua entrada em vigor, refere que “A presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação, pelo que a mesma entrou em vigor no dia 12 de Novembro de 2019, já depois de proferida a sentença dos autos, mas isso não relevaria porque a nova versão do indicado artigo devia ser vista como interpretativa, logo de aplicação imediata ao presente processo.

10.3. Por seu turno, no acórdão recorrido disse-se:
“Como é sabido, o momento a atender para fixar a competência do Tribunal é o da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, conforme dispõe o artigo 38.º, nº1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
Por outro lado, a Constituição da República (CRP), no seu art.º 211º, n°1 estabelece a regra de que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, delimitando o seu art.º 212°, n°3, a jurisdição administrativa pelo objectivo de dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Assim, a atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, como jurisdição residual que é (artigos 211.º, n.º1, da CRP e 40º, n.º1, da LOSJ), depende da inexistência de norma específica atributiva de competência a outra ordem jurisdicional.
Ora, como claramente se verifica, à data em que foi instaurada a presente acção, vigorava o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei n° 13/2002, de 19/02, e sucessivas alterações até à Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, cujo artigo 4°, n°1, prevê a competência dos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal para litígios que tenham por objecto:
(…)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
É consabido que a questão de saber se os litígios que compreendem questões jurídicas respeitantes ao pagamento de encargos fixos e consumos de água fornecidos por empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de saneamento de município, por força de contrato celebrado com este, cabem ou não no âmbito de competência material da jurisdição administrativa, nos termos do citado normativo, é uma questão que há muito vem gerando controvérsia na nossa jurisprudência.
Espelhando tal realidade e no sentido da atribuição da competência material aos tribunais comuns, cf. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/10/2012, Proc.º n.º103543/08.8YIPRT, do Tribunal de Conflitos de 21.01.2014, processo n.º044/13 e da Relação do Porto de 07.11.2013, Processo n.º2338/12.5TBPRD-A.P1, de 06.02.2014, Processo n.º65542/12.0YIPRT.P1, de 29.05.2014, Processo n.º167178/12.0YIPRT-A.P1, de 04.05.2015, Processo n.º302768/11.0YIPRT.P1, e de 21.05.2015, Processo n.°65775/12, todos em www.dgsi.pt.
Ora apesar do respeito que nos merecem os argumentos que sustentam tais decisões, entendemos, no entanto, que por ser hoje largamente maioritária, designadamente na jurisprudência dos Tribunais Administrativos e do Tribunal dos Conflitos, deve ser adoptada a posição contrária, ou seja, a que, como se defende na decisão aqui recorrida, atribui competência aos Tribunais Tributários.
Isto e por ser este o entendimento que melhor se adequa à natureza jurídica das relações emergentes de contratos celebrados entre uma empresa concessionária do serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respectivos utilizadores finais.
Assim e neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STA de 28/10/2015, proc.º 0125/14, e de 04/11/2015, proc.º 0177/14, e especificamente para a questão versada nestes autos, do pagamento do custo dos ramais de ligação do edifício particular à rede pública, os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 28/06/2013, 02708/11.6BEPRT, e de 24/10/2014, 00749/11.2BEPRT e ainda o recente Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 07/11/2019, no Processo nº021/19, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, vai também o Acórdão desta Relação do Porto de 10.01.2017, no Processo nº106973/15.5YIPRT.P1, também em www.dgsi.pt. cuja argumentação temos vindo a seguir de muito perto.
Deste modo e transcrevendo aqui com todo o respeito que é devido, a argumentação que nele ficou vertido, temos o seguinte:
“Consideraram tais decisões que o contrato de concessão de serviço público é aquele pelo qual o co-contratante se obriga a gerir em nome próprio e sob sua responsabilidade, uma actividade de serviço público durante um determinado período, sendo remunerado pelos resultados financeiros dessa gestão, ou directamente pelo contraente público — art.º 407.º, n.º 2, do DL n.º 18/2008, de 29-01, republicado pelo DL n.º 278/2009, de 2-10. O concessionário é a entidade que recebe o encargo de gerir uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, página 1081 e seguintes.).E age no exercício de poderes administrativos quando actua dentro das matérias que estão atribuídas ao concedente no exercício de poderes públicos. A norma da al. f) do n.º 1 do art.º 4.º supra referenciado, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, atribui à jurisdição administrativa competência para apreciar questões relativas a (i) contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva); (ii) contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de (iii) contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público.
O contrato que integra a causa de pedir invocada pela recorrente enquadra-se no âmbito de serviços de abastecimento de águas, atribuídos às autarquias pelos arts 13.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da Lei 159/99, de 14-09. A concessão do fornecimento desses serviços foi concedida à autora — pessoa colectiva de direito privado — no âmbito de um contrato de concessão regulado pelo DL n.º 379/93, de 5-11 que, nos termos definidos por este diploma — diploma que tem por objecto o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos — está submetida a um regime substantivo de direito público: o conteúdo do contrato vem regulado no art. 11.º, sendo nulos os contratos de concessão que contrariem o nele disposto; em conformidade com o preceituado no art. 15.° a instalação e a cobrança da taxa/preço fixo/quota de serviço são fixadas através de regulamento do serviço de abastecimento de água emanado pela concedente Câmara Municipal.
Daí resultando que no desenvolvimento da actividade invocada pela autora como causa de pedir esta actua nas vestes de autoridade pública, investida de «ius imperium», com vista à realização do interesse público e que o contrato (de concessão) está sujeito a um regime substantivo de direito público. Actuação que é ainda mais evidente quando se trata da questão do pagamento dos encargos decorrentes da obrigatoriedade de ligação dos imóveis à rede pública de saneamento, de acordo com o art.º 69 do DL 194/2009 de 20/08, porquanto se trata da imposição do pagamento de obras obrigatórias.
Afigurando-se, pelo exposto, por maioria de razão, de rejeitar a competência material dos tribunais comuns para o presente litígio, como se decidiu na douta decisão recorrida.”.
E suma e porque a situação em apreço nos autos é em tudo idêntica à que foi tratada na supra referida decisão deste Tribunal da Relação, só cabe concluir que nenhuma censura nos merece a decisão recorrida.”

10.4. Conhecendo.
10.4.1. A recorrente discorda da decisão por entender que se está perante uma relação de consumo.
Não cremos que lhe assista razão, desde logo porque o conceito de consumidor a que se reporta não se pode aplicar sem mais à Ré, pessoa colectiva, com um objecto de natureza comercial, como sugere a sua própria denominação e resulta da imposição do CSC – art.º 1º, n.º4.
Em segundo lugar, valem ainda os argumentos apresentados pelo tribunal recorrido: não se trata de cobrar o valor de consumos de água, mas da ligação ao ramal, que é coisa distinta e ligada à concessão do serviço público essencial.

10.4.2. A recorrente discorda ainda da decisão por entender que a alteração legal ao ETAF e que entrou em vigor já depois de proferida a sentença deve aplicar-se à situação dos autos, por se tratar de lei interpretativa.
Lido o projecto que veio a dar origem à lei – e a sua explicação de motivos – não se consegue acompanhar esta conclusão, ainda que o legislador aluda a “clarificar” (Diz-se aí: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”). No texto da exposição afirma-se claramente que se optou por determinar a realização de alterações no âmbito da jurisdição, o que não é compatível com a qualificação como lei interpretativa.
A própria divisão da jurisprudência mostra que a questão tem sido controvertida e só com a intervenção do legislador – a optar por uma solução – veio criar uma regra jurídica mais estável e segura na sua aplicação, não se podendo dela extrair qualquer sentido meramente interpretativo; ao invés, é uma solução nova – e nesse sentido só dispõe para o futuro, excepto se o próprio legislador tivesse optado pela sua aplicação retroactiva ou a mesma pudesse caber na previsão legal do art.º 12.º ou 13.º do CC.
Não se podendo afirmar o carácter interpretativo da nova alínea do ETAF e tendo em consideração o modo como a relação jurídica controvertida foi suscitada pelo A., o momento em que a acção deu entrada em juízo, a lei vigente nessa mesma data e todos os demais argumentos indicados no acórdão recorrido – que aqui se dão por reproduzidos por se entender que estão correctos – não pode este STJ deixar de considerar que os tribunais competentes para julgar a presente acção são os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, confirmando-se a decisão recorrida.

III. Decisão
Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.
Devem ser desentranhados os documentos juntos com o requerimento de 20/4/2020, pela recorrente.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 8 de Setembro de 2020

Fátima Gomes (Relatora)


Acácio Neves


Fernando Samões