Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
381/04.7TBPVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A RERVISTA
Sumário :

1 – Transitado em julgado o despacho saneador, na parte que julgou improcedente a excepção da caducidade do direito de investigação de paternidade da autora, que propôs a acção com 40 anos de idade, a aplicação da Lei nº 14/2004, de 1 de Abril, que alterou a redacção do art. 1817.º, nº 1 do CC, ao processo, não pode conflituar com tal passamento em julgado e com a inerente força obrigatória da decisão proferida.
2 - O singelo facto de a A. ter proposto a acção de investigação de paternidade aos 40 anos de idade, tendo o pretenso pai falecido no dia anterior ao da propositura da acção, não revela, só por ele, abuso de direito.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:




AA veio intentar acção, com processo ordinário, contra BB, pedindo que seja declarado que a autora é filha do réu, sendo este condenado a reconhecer tal qualidade.

Alegando, para tanto, e em suma:
A A. nasceu em 4 de Novembro de 1963 e, conforme registo de nascimento, é filha de CC
Mas a A. é também filha do réu, tendo nascido das relações sexuais de cópula completa que sua mãe só com ele manteve, mormente nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento.
Sempre o réu, como todos os que os conhecem, reconhecem a autora como sua filha.

Falecido o réu e habilitados os seus herdeiros(1), foram os mesmos citados, tendo, na sua contestação, também alegado, em síntese:
Caducou o pedido da autora, que tem actualmente 42 anos de idade.
De qualquer modo, a autora não é filha do falecido BB, que nunca com a mãe dela se relacionou sexualmente.
Nunca o réu, nem o público, tratou a A. como sua filha.

Veio a A. responder à excepção de caducidade pelo réu arguida, pugnando pela sua improcedência.

Foi proferido o despacho saneador, no qual, e alem do mais, se concluiu pela tempestividade do direito da autora propor a acção de investigação de paternidade.
Este despacho transitou em julgado.

Foram fixados os factos tidos como assentes, tendo sido organizada a base instrutória.

Realizado o julgamento, foi decidida a matéria de facto da base instrutória pela forma que do despacho de fls 212 e 213 consta.

Foi proferida a sentença e, na procedência da acção, foi declarado que a autora é filha do falecido BB, mais se ordenando que se proceda ao respectivo averbamento no seu assento de nascimento.

Inconformados, vieram os habilitados herdeiros do falecido BB interpor, sem êxito, recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

De novo irresignados, vieram os mesmos pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª - Com o devido respeito, ao abrigo do artigo 664.° do C.P.C., os Excelentíssimos Juízes Desembargadores, deveriam e podiam ter apreciado a questão da incidência da alteração legislativa superveniente à interposição e motivação do recurso e potencial relevância no presente processo da entrada em vigor da Lei n.º 14/2009, porquanto a publicação, na pendência do recurso, do referido diploma, em função da aplicação da mesma aos processos pendentes, como decorre do respectivo artigo 3.°, é uma questão típica de direito e de conhecimento oficioso.
2ª - Pelo que, não tendo essa questão sido apreciada pelo Tribunal da Relação, tem a mesma de ser apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3ª - Face à nova redacção do n.º 1, do artigo 1817.° do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que entrou em vigor na ordem jurídica em 2 de Abril de 2009, a acção de investigação da paternidade só pode ser proposta nos dez anos posteriores à maioridade, aqui aplicável por força do artigo 1873.º do Código Civil.
4ª - Este (novo) prazo de caducidade do direito de acção é também aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, conforme dispõe o artigo 3.° do Diploma.
5ª - Sendo que, em relação a esta norma transitória, que prevê a aplicação da nova lei a processos pendentes, pronunciou-se já o Tribunal da Relação de Coimbra, cujo entendimento é no sentido de que a nova lei se aplica "a todos os processos pendentes em que se investigue uma paternidade (…) "aplicam-se" os novos prazos para a propositura dessa acção, retirando-se o efeito do respectivo esgotamento quando, ao tempo da propositura dessa acção, esse prazo ­verifica-se agora - já se mostrasse decorrido" (proc. 1000/06.2TBCNT.C1, de 23/06/2009, in www.dgsi.pt).
6ª - Concluindo, portanto, que a aplicação retroactiva da nova lei só pode ser concebida quando a acção de investigação de paternidade tenha sido intentada anteriormente à publicitação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de forma a proteger as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento acolhido no referido Acórdão do Tribunal Constitucional e, consequentemente, salvaguardar o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático.
7ª - Ademais, não tendo sido declarado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/06 que a fixação de qualquer prazo seria inconstitucional, mas apenas que seria constitucionalmente inadequado o prazo de dois anos subsequentes à maioridade, a inclusão de um prazo de caducidade (dez anos) para o exercício do direito de acção, não pode ser visto como inconstitucional.
8ª - No caso sub judice, a A. quando intentou a acção de investigação de paternidade (04/0212004) não tinha ainda sido publicado o Acórdão do Tribunal Constitucional que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n.º 1, do artigo 1817.º do Código Civil, pelo que àquela data a A. não tinha criado qualquer legítima expectativa, porquanto, para todos os efeitos, vigorava ainda o prazo de caducidade de dois anos após a maioridade.
9ª - Assim, conforme decorre do artigo 3.° da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, o prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação de paternidade, previsto na actual redacção do n. ° 1, do artigo 1817. ° do Código Civil, deve ser aplicado ao presente processo.
10ª- Com efeito, da aplicação do prazo de dez anos a este caso em concreto, necessariamente se conclui que, à data da instauração da acção de investigação de paternidade, em 4 de Fevereiro de 2004, a A. com 40 anos de idade, já havia decorrido o prazo legal para a propositura da acção.
11ª- Daí decorrendo a intempestividade da acção de investigação de paternidade.
Sem prescindir, quanto à questão do abuso de direito,
12ª- Durante 40 anos a A. nunca se mostrou interessada em determinar as suas origens, a sua família, a sua verdadeira ascendência biológica, quando, aliás, desde sempre teve conhecimento da identidade do seu pretenso pai biológico, lançando mão dos meios legais ainda em vida do mesmo.
13ª- Tendo, curiosamente, apenas surgido essa vontade no dia seguinte à morte do seu pretenso pai biológico.
14ª- É, por isso, por demais evidente que para a A. o verdadeiro e único móbil do reconhecimento judicial da paternidade é o benefício patrimonial que pode obter.
15ª- O que aqui choca no exercício do direito de investigar é que a A. se move exclusivamente por interesses patrimoniais e não conhecer a sua ascendência biológica e estabelecer esse vínculo, pois até durante os dezoito meses em que o seu pretenso pai esteve gravemente doente e acamado, necessitando diariamente de cuidados dos seus familiares, a A. o visitou ou se disponibilizou para também prestar esses cuidados.
16ª- A conduta da A. claramente se integra numa ideia de "caça à fortuna", pois apenas pretendeu ser reconhecida como filha do investigado depois de este já ter falecido e quando já não era um "fardo" para ninguém.
17ª- De modo que, o exercício do direito de investigar deve ser combatido pelo instrumento do abuso do direito, previsto no artigo 334.° do Código Civil, o qual face aos contornos do caso em concreto é constitucionalmente justificado, necessário e proporcional.
18ª- O douto acórdão violou, assim, o disposto nos artigos n° 1, do artigo 1817.°, 334.° e 335.°, todos do Código Civil e 664.° do C.P.C .

A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Vem dado como PROVADO:

I - A Autora nasceu a 4 de Novembro de 1963, tendo sido registada como filha de CC, no estado de solteira, e ilegítima de pai – al. A) dos factos assentes.

II - O BB faleceu no dia 3 de Fevereiro de 2004, com 86 anos, no estado de casado com DD – al. B).

III - O Réu e a mãe da Autora conheciam-se desde crianças – resposta ao quesito 1º.

IV - Entre Fevereiro e Maio de 1963 mantiveram relações sexuais de cópula completa – resposta ao quesito 2.º..

V - A mãe da Autora sofre de doença de foro físico e psíquico originada em doença de meningite – respostas aos quesitos 3.º e 4.º.

VI - A mãe da Autora não foi vista com qualquer outro homem durante o período referido em IV – resposta ao quesito 5.º.

VII - Em consequência das relações de sexo da mãe da Autora com o Réu aquela engravidou – resposta ao quesito 6.º.

VIII - Gravidez da qual veio a nascer a Autora – resposta ao quesito 7.º.

As conclusões da alegação dos recorrentes, como é bem sabido, delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pelos recorrentes nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

Vejamos, pois:

Começando-se pela (renovada) questão da caducidade do exercício do direito da autora de investigar a sua paternidade.

Tendo a acção sido proposta em 4 de Fevereiro de 2004, no domínio do disposto no art. 1817.º, nº 1 ex vi do art. 1873.º, ambos do CC, na redacção do DL 496/77, de 25 de Novembro (2), podia, nos termos da lei, a acção de investigação ser proposta, segundo o prazo -regra de então, fora os casos de falta de escrito do pai ou de tratamento como filho, durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

Certamente por via disso, vieram os habilitados herdeiros do pretenso pai da investigante, arguir a excepção da caducidade do exercício do direito da autora, à data da propositura da acção (3).

Contudo, aplicando ao caso o Ac. do TC nº 23/06, publicado no DR I S. de 8/2/06 (4). , julgou o senhor Juiz do processo tempestivo o exercício do direito da autora de investigar a paternidade do seu pretenso pai.

Este despacho transitou em julgado, pois não foi alvo de qualquer recurso.

Entretanto, com a publicação da Lei 14/2009, de 1 de Abril (5), foi alterado o mencionado art. 1817.º, nº 1, no sentido de se fixar o prazo de propositura da acção de investigação, durante a menoridade do investigante – tal como aliás já sucedia – ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

Contendo tal diploma uma norma de direito transitório, o seu art. 3.º, que estabelece a sua aplicação aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.

Dúvidas não restando que o presente processo ainda está pendente, vêm agora os recorrentes sustentar que o prazo de caducidade do exercício do direito de acção se verificou, pois, quando a mesma a propôs, já haviam decorrido mais de dez anos desde que a investigante atingiu a maioridade(6).

Mas, a questão da caducidade já foi expressamente decidida nestes autos, por despacho transitado em julgado (7).

Não tendo os habilitados herdeiros do falecido BB, por com certeza com a mesma terem concordado, de tal decisão interposto qualquer recurso (8).

Não podendo, por via disso, ser alterada, dada a força de caso julgado formal de que ficou revestida (art. 672.º do CPC).

Constituindo a pedra de toque do caso julgado a imodificabilidade da decisão (9).

Com efeito, tanto no caso julgado material como no formal, a decisão atinge o carácter de imodificável quando já não é possível impugná-la por meio de recurso ordinário(10).

Assim, a aplicação do normativo em causa aos processos pendentes, designadamente a este, não pode conflituar com o trânsito em julgado e com a inerente força obrigatória das decisões já neles proferidas (11).

Passemos, agora, à outra questão suscitada: a do abuso de direito.

Sustentam, ainda, os recorrentes que, não obstante o direito ao conhecimento da ascendência biológica e da identidade pessoal ter ganho uma nova dimensão nestes últimos anos, casos há em que o exercício do direito de investigar é manifestamente desproporcional, ofendendo os limites impostos pela boa fé.

Tendo in casu a A. exercido o direito de investigação da sua paternidade com manifesta má fé.

Pois, tendo falecido o investigado em 3/2/2004, com 86 anos, no estado de casado, a A. intentou a acção no dia seguinte, nunca se tendo preocupado, em vida do pai, em descobrir a sua ascendência biológica, nem em estabelecer o respectivo vínculo.

Durante os dezoito meses em que o investigado se manteve acamado, e que antecedeu a sua morte, nunca a A. o visitou, nem dele procurou saber.

A A. , já com 41 anos de idade, aguardou que o seu pretenso pai falecesse, sem com ele ter quaisquer trabalhos, apenas tendo o intuito de alcançar os direitos patrimoniais, de avultado valor, que do pretendido reconhecimento judicial lhe adviriam.

A conduta da A. configura um verdadeiro abuso de direito, por lei sancionado.

Insurge-se a recorrida contra este entendimento, afirmando ter intentado a acção – e começou as suas diligências para o efeito, mormente requerendo a nomeação de patrono, antes do dia em que ela foi proposta – de acordo com a doutrina que se começou a firmar no sentido da imprescritibilidade do respectivo direito de acção.

E, quanto à questão da presente acção mais não ser do que uma verdadeira “caça à fortuna”, cita o Ac. nº 23/2006 do Tribunal Constitucional quando nele se escreve: ”Pode aliás deixar-se em aberto a questão de saber se a motivação, também patrimonial, da família do pretenso progenitor merece maior apreço do que a do investigante, quando aquele pretende “proteger” a herança face à protecção deste último … “

A Relação, no seu acórdão recorrido, entendeu, depois de explanar considerações oportunas sobre o tema, que, in casu, se não verificava abuso de direito.

Assim discorrendo, a propósito:
A singeleza e a objectividade dos factos apurados e contra os quais os recorrentes não se insurgiram, não permite a conclusão que eles – e apenas nesta instância recursiva, que não no tribunal a quo – clamam.
Não se vislumbrando que os factos alegados sejam suficientes para se poderem deles retirar tais ilações, até porque, na própria alegação dos contestantes, e devidamente interpretada, para o invocado desinteresse também terá contribuído a actuação do pretenso pai, porque «o falecido … nunca reputou/tratou a ora A. como sua filha».
Assim sendo, e considerando os princípios do dispositivo e da auto responsabilidade das partes e porque – no próprio dizer dos recorrentes – apenas estão em causa interesses de cariz patrimonial, rectius os bens que compõem o património do falecido, não pode este tribunal ad quem indagar oficiosamente sobre outros factos que não os assentes em função das normas aplicáveis e das posições das partes.
As alegações dos recorrentes reportam-se assim a factos que não foram provados nem já o podem ser.
E, como se disse e tem de, finalmente, reiterar-se, aos dados como assentes falha, desde logo, qualidade e dignidade, para, a qualquer título, se poder concluir pelo abuso de direito invocado.
Tem razão a Relação, como procuraremos demonstrar.

Preceitua o art. 334.º do CC que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa ré, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Não basta, porém, que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.

Não se exigindo, por outro lado, que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, isto é, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, bastando que, na realidade (objectivamente), esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito (12)..

A complexa figura do abuso de direito, como é sublinhada no Acórdão do STJ, de 21.9.93 (13), citando Manuel de Andrade (14), Almeida Costa(15), Pires de Lima e Antunes Varela (16) e Antunes Varela (17), «é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”(18).

Ora, da matéria de facto apurada – e outra houve que levada à base instrutória não se provou, nenhuns outros factos alegados havendo, por seu turno, com relevo para a problemática em apreço - com interesse para a decisão da questão que ora nos é colocada, apenas podemos reter que a autora intentou a presente acção de investigação de paternidade contra o falecido BB quando já tinha 40 anos de idade (19)

Não podendo assumir grande relevo, mesmo que tal se desse por certo, que a autora não tivesse cuidado de seu pretenso pai em vida, pois, sendo este casado, com outra mulher que não sua mãe, tendo com a mesma constituído voluntariamente família, e não se tendo provado que o mesmo a tratava como filha, poderia não ser fácil tal contacto, sendo antes tido, pelo pai que nunca aceitou a filha, como bem indesejável, fonte de conflitos, que a investigante, ainda que ciosa dos seus direitos à paternidade assumida, poderia querer evitar.

E, se comparados nos pratos de uma balança (20), os deveres da arrogada filha em prestar cuidados em vida de seu pretenso pai, que até teria a sua família constituída a dar-lhe, com certeza, o necessário apoio, com os deveres deste em assumir uma paternidade a que só ele – que não seguramente a ora autora – um dia – seja por que razão fosse - e por um acto da sua inteira responsabilidade buscou, não nos admiraremos, por certo, em ver o fiel da balança pender para o lado (o dos deveres do pretenso pai), mais pesado, com a carga de uma maior censurabilidade.

Pois, não nos esqueçamos que o ora investigado, à data do nascimento da autora, já teria cerca de 46 anos, homem maduro, casado em 1941 21), com as inerentes responsabilidades assumidas, nas quais não “caberiam” facilmente, as provocadas por uma concepção extra-matrimónio.

Concedendo-se aceitar a angústia e os dissabores que tal situação lhe poderia acarretar – e nem se diga que o relacionamento entre ele e a mãe da autora foi meramente fortuito, já que provado ficou que ambos se conheciam desde crianças – podendo até ter eventuais dúvidas sobre a sua paternidade, a verdade é que desde há muito, com a consabida evolução da ciência, se quisesse, poderia a elas ter posto termo, tendo resultado da perícia da investigação biológica de filiação, que também serviu de fundamentação à decisão da matéria de facto a ela respeitante, uma probabilidade de paternidade de 99,999996% (paternidade da autora praticamente provada).

E o assumir da paternidade – possa ela causar os maiores escolhos – é um dever primeiro de qualquer progenitor.

Bem, mas dir-se-á, a autora, ao exercitar o seu direito, fazendo-o ao cabo de 40 anos de vida, tantos anos volvidos sobre a sua maioridade, mais não quer do que “caçar a fortuna” de seu arrogado pai, entretanto falecido, excedendo manifestamente os limites da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do seu direito.

Ora, sabendo-se, pelo teor do testamento junto aos autos de habilitação de herdeiros, que o falecido deixou prédios, desconhece-se o seu valor, sempre se podendo aceitar que algum terão.

E, mais não se sabe, quanto aos meios de fortuna do investigado.

Nem sobre os da investigante.

Contudo, pode colocar-se, desde logo, como já se colocou (22), a questão de saber se, com a possibilidade ilimitada do direito à investigação (ou com a possibilidade retardada desse mesmo exercício) não se está a permitir uma instrumentalização da acção, que pode apenas visar a exigência tardia de bens materiais, ou seja, de “caça à herança” paterna.

Sendo a finalidade dos investigantes puramente egoística, “próxima dos sentimentos de cobiça, quando os pretensos pais estavam em fim de vida(23)

Temos, também, para nós, que as coisas não podem ser vistas com estas simplicidade.

Vendo-se como “abusiva” uma investigação, só porque pode também estar em causa uma pretensão patrimonial por banda do investigante.

Podendo ler-se a propósito no citado Ac. do TC nº 23/06:
“Se já anteriormente não era claro que acções antigas fossem necessariamente intentadas contra honestos cidadãos, com uma finalidade de cobiça, é certo que, hoje, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram, podendo mesmo muitas acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorrer hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna não muito diversos, com formação profissional e um emprego. E, o móbil do investigante pode bem ser apenas esclarecer a existência do vínculo familiar, chamar o progenitor a assumir a sua responsabilidade e descobrir o lugar no sistema de parentesco para deixar de estar só. Isto, mesmo em momentos em que não tenha pretensões patrimoniais, por não poder deduzir pretensões de natureza alimentar e não ter ainda previsivelmente expectativas sucessórias.
Acresce que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor. Pode, aliás, deixar-se em aberto a questão de saber se a motivação também patrimonial da família do pretenso progenitor merece maior apreço do que a do investigante, quando aquela pretende “proteger” a herança, [face) à protecção deste último, por se afigurar decisiva a impossibilidade de anular totalmente a possibilidade de exercer o “direito pessoal” a conhecer o progenitor, a partir dos vinte anos, com invocação de uma tal motivação de segurança patrimonial. Perante esta diferença, verdadeiramente qualitativa, dos interesses em presença, afigura-se, aliás, difícil que se possa sindicar a motivação do investigante – e, de toda a forma, se a motivação censurável pode fundar limitações em casos extremos (a aplicação do instrumento do abuso do direito ou de outro remédio expressamente previsto), não legitimará por certo uma exclusão geral e total do direito a investigar a paternidade”.

Assim, não pode este argumento, de ordem meramente patrimonial, sem mais, ou seja, sem outros dados de relevo que a propósito ficassem demonstrados, afastar a possibilidade legítima do exercício do direito de investigar a paternidade, assim se privilegiando o direito à identidade pessoal, na actualidade indubitavelmente protegido, incluindo o interesse da identificação pessoal e da própria identidade, como o do conhecimento das próprias raízes.

Devendo antes privilegiar-se o direito de investigar os vínculos biológicos e do reconhecimento jurídico da paternidade(24), em detrimento de eventuais causas laterais, que, podendo não deixar de impressionar em si mesmas, impedirão o relevo devido dos factos biológicos que, hoje, são determinantes na conformação do respectivo regime jurídico, que é dominado pelo princípio da verdade biológica (25).

Podendo ler-se, a respeito, no Curso de Direito de Família (26)
, a p. 251:
“O pai biológico tem um dever jurídico de perfilhar. De facto, não dou relevância à liberdade-de-não-ser-considerado-pai, só pelo facto de terem passado muitos anos sobre a concepção; pai e filho estão inexoravelmente ligados e tanto o “princípio da verdade biológica” que inspira o nosso direito da filiação quanto as noções sobre responsabilidade individual a que adiro não reconhecem uma faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente”.

O exercício do direito da autora não é, pois, abusivo.
Concluindo:
1 – Transitado em julgado o despacho saneador, na parte que julgou improcedente a excepção da caducidade do direito de investigação de paternidade da autora, que propôs a acção com 40 anos de idade, a aplicação da Lei nº 14/2004, de 1 de Abril, que alterou a redacção do art. 1817.º, nº 1 do CC, ao processo, não pode conflituar com tal passamento em julgado e com a inerente força obrigatória da decisão proferida.
2 - O singelo facto de a A. ter proposto a acção de investigação de paternidade aos 40 anos de idade, tendo o pretenso pai falecido no dia anterior ao da propositura da acção, não revela, só por ele, abuso de direito.
Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 11 de Março de 2010

Serra Bapista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Santos Bernardino

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(1) - Cônjuge mulher (viúva) e legatários instituídos em testamento - cfr. autos de habilitação de herdeiros).
(2) - Este preceito corresponde ao art. 1854.º, nº 1 do CC de 1966, na sua redacção originária (DL 47 344, de 25/11/66), tendo sido dado nova redacção ao nºs 4, 5 e 6 do dito art. 1817.º pela Lei nº 21/98, de 12 de Maio.
(3) - Que é o que releva para o efeito de impedimento da caducidade e o que conta para a pendência da causa (A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, p. 241)
(4) - Este acórdão decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º I do artigo 1817.° do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.ºdo mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.°, n° 1, 36.°, n.º 1, e 18.°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa.
(5) Que entrou em vigor em 2 de Abril seguinte (art. 2.º).
(6) Podendo pôr-se, de novo, mesmo com o aumento substancial do prazo de caducidade, a questão da inconstitucionalidade do art. 1817.º, nº 1, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação, o despacho do Cons. Benjamim Rodrigues, do TC, proferido no processo 783/09, em 19/10/2009, não julgou inconstitucional a norma do art. 1842.º, nº 1, também alterada pela citada Lei 14/2009.
(7) Cfr. art. 677.º do CPC.
(8) Sendo certo que o podiam fazer, pois o invocado Ac. do TC, com força obrigatória geral, apenas se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma, ao estabelecer o aludido prazo de dois anos. E não qualquer outro. Visando, assim, tal aresto, tal como na sua própria fundamentação se diz, o concreto limite temporal então imposto pelo art. 1817.º, nº 1 do CC.
(9) A. Varela e outros, ob. cit., p. 683.
(10) Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, p. 203.
(11) - Sobre a inconstitucionalidade de uma norma de um diploma legislativo, pronunciou-se o Ac. deste STJ, no sentido da mesma declaração não poder afectar o caso julgado (Ac. de 28/3/96 (Sá Couto), Bol. 455, p. 450).
Escrevendo, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 1041 e ss:
“A Constituição não define o conceito de caso julgado, mas trata-se de um conceito pré-constitucional suficientemente densificado (designando as situações que, de forma definitiva e irretractável, foram fixadas por sentença judicial) para não permitir a sua ampliação de modo a abarcar outras situações (relações ou situações definitivamente consolidadas ou exauridas por outros meios jurídicos, como cumprimento, transacção, prescrição, caducidade). De qualquer modo, não é preciso dissolver os contornos conceituais do caso julgado para reconhecer que também estas situações definitivamente consolidadas não podem ser retroactivamente perturbadas pela eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade”.
Estabelecendo a primeira parte do n.º 3 do artigo 282.° do texto constitucional actual, como limite geral aos efeitos retroactivos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a ressalva dos casos julgados.
Permanecendo intacta a decisão transitada em julgado, com toda a força e debilidade que possui segundo os princípios processuais gerais. Excluindo unicamente o citado nº 3 do art. 282.º da CRP que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dê origem a qualquer remédio específico contra as sentenças firmes fundadas na norma posteriormente declarada inconstitucional – Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. III, p. 832 e seg.
(12) - Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado. vol. I. pag. 217.
(13) - C.J., S., Ano I, T. III, pag. 21.
(14) - Teoria Geral das Obrigações, 1958, pags. 63 e segs.
(15) - Direito das Obrigações, pags. 60 e segs.
(16) - Ob. cit., pags. 298 e segs.
(17) - RLl, Ano 114°-75.
(18) - Ac. do STJ de 4/2/2010 (O. Rocha), revista nº 4913/05.5TBNG.P1.S1.
(19)A acção foi, de facto, intentada no dia seguinte ao falecimento do pretenso pai – este faleceu em 3/2/2004 e acção deu entrada em Juízo no dia 4 seguinte – sendo certo que à mesma A. foi concedido o apoio judiciário (necessariamente antes requerido) para propor acção de investigação de paternidade, por despacho da Segurança Social, de 11 de Junho de 2003 (fls 10).
(20) - Estamos, naturalmente, a partir do pressuposto que o investigado, tendo mantido relações sexuais de cópula completa com a mãe da autora, no período legal de concepção desta, sabia do seu nascimento.
(21) - Assento de casamento junto aos autos de habilitação de herdeiros.
(22) - Maxime, no período que se seguiu à entrada em vigor do art. 37.º do Decreto nº 2, de 25 de Dezembro de 1910, que permitia a investigação em vida do pretenso pai, ou dentro do ano posterior à sua morte e com as críticas que então tiveram lugar, designadamente com Gomes da Silva, O Direito da Família no futuro Código Civil (segunda parte), Bol. 88, p. 86.
(23) - Cfr. citado Ac. do TC nº 23/06.
(24) - Investigação que, hoje, com os testes de ADN, e mesmo depois da morte, permite probabilidades bioestatísticas com uma fiabilidade próxima da certeza.
(25) - Sendo hoje claro o movimento cientifico e social em direcção ao conhecimento das origens (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, vol. II, p. 248.
(26) - Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, vol. II, da responsabilidade deste último Professor..