Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10/08.0GAMGL.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
MEDIDA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ILICITUDE
DOLO DIRECTO
IDADE
ARGUIDO
VÍTIMA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 09/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário :

I - Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP – Ac. n.º 7/95 do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-95, no Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série - A, n.º 298, de 28-12-95 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
II - Dentro da moldura abstracta da pena funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- A intensidade do dolo ou da negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
III - No domínio da versão originária do CP 82, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Prof. Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20), segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, sendo exemplos de tal posição os Acs. de 13-07-83, BMJ n.º 329, pág. 396; de 15-02-84, BMJ n.º 334, pág. 274; de 26-04-84, BMJ n.º 336, pág. 331; de 19-12-84, BMJ n.º 342, pág. 233; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 19-12-94, BMJ n.º 342, pág. 233; de 10-01-87, Proc. n.º 38627 - 3.ª, Tribuna da Justiça, n.º 26; de 11-11-87, BMJ n.º 371, pág. 226; de 11-05-88, Proc. n.º 39401 - 3.ª, Tribuna da Justiça, n.ºs 41/42.
IV -Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.
V - A refutação de tal critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho 1985, págs. 8/9, e Alfredo Gaspar, em anotação ao Ac. de 02-05-85, in Tribuna da Justiça, n.º 7, págs. 11 e 13, dando-se conta, em ambos os casos, de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o Ac. da Relação de Coimbra de 09-11-83, in CJ 1983, tomo 5, pág. 73.
VI - Posteriormente, e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se não ser correcto partir-se dum ponto médio dos limites da moldura penal para a agravação ou atenuação consoante o peso relativo das respectivas circunstâncias, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, podem ver-se os Acs. do STJ de 16-12-86, BMJ n.º 362, pág. 359; de 25-11-87, BMJ n.º 371, pág. 255; de 22-02-89, BMJ n.º 384, pág. 552; de 09-06-93, BMJ n.º 428, pág. 284; de 22-06-94, Proc. n.º 46701, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 255. E no Ac. de 27-02-91, in A. J., n.º 15/16, pág. 9 (citado no Ac. de 15-02-95, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.
VII - Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g., os Acs. de 21-06-89, BMJ n.º 388, pág. 245, e de 17-10-91, BMJ n.º 410, pág. 360.
VIII - Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).
IX - A partir de 01-10-95 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.
X - A terceira alteração ao CP operada pelo DL 48/95, de 15-03, entrado em vigor em 01-10 seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do art. 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
XI - Com esta reformulação do CP, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
XII - No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25 «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
XIII - Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual art. 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
XIV - Está subjacente ao art. 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
XV - Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido art. 71.º do CP (preceito que a alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado art. 40.º), estando vinculado aos módulos – critérios de escolha da pena constantes do preceito.
XVI - Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
XVII - O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo – total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
XVIII - Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.
XIX - Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no Ac. de 10-04-96, Proc. n.º 12/96, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva. Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”.
XX - Ainda do mesmo relator, e a propósito de caso de tráfico de estupefacientes, diz-se no Ac. de 08-10-97, Proc. n.º 356/97 - 3.ª, in Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, volume II, págs. 133/4: «As “exigências de prevenção” variam em função do tipo de criminalidade de que se trata. Na criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes, com todo o seu cortejo de lesão de bens jurídicos muito relevantes, a carecerem de adequada protecção pelo direito penal – além do efeito propulsor de outras formas de criminalidade, nomeadamente contra as pessoas e contra o património, a que, a justo título, se tem chamado de “flagelo social” – são de considerar as particulares exigências de prevenção, tanto geral como especial».
XXI - Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos Acs. do STJ de 17-09-97, Proc. n.º 624/97; de 01-10-97, Proc. n.º 673/97; de 08-10-97, Proc. n.º 874/97; de 15-10-97, Proc. n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, Proc. n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205, e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização”.
XXII - “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. No sentido deste último segmento, ver do mesmo relator, os Acs. de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214.
XXIII - A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1 - 3.ª.
XXIV - Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no art. 71.°, n.º 2, do CP, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se no entanto de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.
XXV - O limite mínimo da pena a aplicar é assim determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cf. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
XXVI - Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o Ac. de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.
XXVII - Ou, como expressivamente se diz no Ac. do STJ de 16-01-2008, Proc. n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento.
XXVIII - O modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.
XXIX - O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
XXX - Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
XXXI - Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.»
XXXII - Segundo Denis Sala, Le délinquant sexuel, in “La Justice e le mal”, ed. Odile Jacob, 1997, págs. 53 e segs., referido no Ac. do STJ de 13-07-2005: «Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade. A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade. Os crimes sexuais contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir».
XXXIII - Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos, definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa, tendo-se em conta a importância do crime para a ordem jurídica violada, avaliando o conteúdo e a extensão da lesividade da conduta em apreciação.
XXXIV - O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. p. pelo art. 165.º do CP, insere-se na Secção I “Crimes contra a liberdade sexual” do Capítulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, do Título I da Parte Especial do Código Penal.
XXXV - O bem jurídico a proteger é a liberdade e/ou a autodeterminação sexual de todas as pessoas, sem fazer acepção de idade – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, pág. 442.
XXXVI - No caso presente há que atender ao facto de a vítima M, em 1993, no início da conduta do arguido, ser menor, então com 11 anos de idade, sendo que a atitude do arguido permaneceu e se repetiu até aos 25 anos da ofendida, a qual actualmente conta 28 anos de idade.
XXXVII - Por seu turno, o arguido em 1993, tinha 54 anos de idade e manteve a conduta ofensiva até aos 68 anos; actualmente, à data desta decisão, conta 71 anos de idade.
XXXVIII - É grande a intensidade da ilicitude da conduta do arguido, sendo os motivos da sua conduta a satisfação dos seus instintos sexuais.
XXXIX - A vítima, sua filha, com ele convivente, merecia-lhe o maior respeito, até em função da situação de deficiência e incapacidade de que é portadora desde muito cedo, abusando o arguido do seu corpo, da sua liberdade sexual, da sua incapacidade.
XL - A culpa é acentuada e revelada pelo modo de actuação, já valorado em sede de subsunção no tipo legal.
XLI - O arguido agiu com dolo directo, revelando com a repetição de condutas, ao longo do tempo e, nomeadamente, nos oito casos concretizados, persistência e tenacidade na prática do crime, encontrando do outro lado, a fragilidade e debilidade da vítima, com falta de capacidade de resistir.
XLII - As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração – que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição – são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – e impostas pela frequência dos casos de abusos sexuais em geral e do elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral, justificando resposta punitiva firme, o que de resto foi bem assinalado na decisão recorrida.
XLIII - Neste segmento, em sede de prevenção, procura-se alcançar a neutralização dos efeitos negativos da prática do crime.
XLIV - Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
XLV - Como se expressou o Ac. do STJ de 04-07-96, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.
XLVI - As necessidades de prevenção especial têm em vista uma contribuição para a reinserção social do arguido e avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência. No caso avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, não se esgotando na mera necessidade de prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.
XLVII - Como refere Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
XLVIII - Como refere o Ac. do Supremo de 15-06-2005, Proc. n.º 1558/05 - 3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 216, em caso com alguma conexão com o presente “a exigência de emenda cívica, de correcção do arguido, em jeito de aprendizagem, que não fez até ao presente, a conviver com as suas filhas, num imperativo clima de absoluto e indeclinável respeito pela sua liberdade sexual, pelo seu corpo, faz-se sentir ao mais alto grau, e, com isso, as necessidades de prevenção especial”.
XLIX - No caso em apreciação os actos lesivos da liberdade/integridade sexual da vítima provêm de quem tinha o especial dever de o não fazer – arts. 1878.º, n.º 1, e 1885.º, n.º 1, e, sobretudo, n.º 2, ambos do CC –, não se olvidando que, inclusive, face ao que dispõe o art. 179.º do CP (em conexão com o disposto no art. 913.º, n.º 1, al. a), do CC), podem conduzir a aplicação de pena acessória de inibição do exercício do poder paternal, por um período de 2 a 15 anos, que no caso não esteve em equação.
L - A idade actual do arguido não pode assumir o relevo que o recorrente lhe pretende dar, pois a verdade é que a idade não foi impedimento da prática dos factos, e sempre haveria que atender ao valor relativo da fragilidade do idoso em confronto com a fragilidade da filha menor e depois maior, mas incapacitada, que conduziu à prática dos abusos cometidos pelo arguido.
LI - Igualmente como irrelevante é de ter a referência à circunstância de depois dos factos não se ter mais aproximado da ofendida M de F, sua filha, de não existir perigo de virem os mesmos a repetir-se.
LII - De anotar que o arguido não assumiu a conduta dada por provada, relevando a postura acrítica que mantém relativamente aos factos ilícitos cometidos, vendo como mãe de todos os males, não o seu comportamento, mas a atitude de uma das filhas, T A, que apresentou queixa contra si, e a seu ver, movida por intuitos de vingança contra si – sem explicar porque razões – e de interesse económico – sem explicitar quais, para além de ausência de arrependimento sentido e sincero.
LIII - Concluindo: ponderando todos os parâmetros já analisados no Ac. recorrido, considerando que a aplicação de penas tem como primordial finalidade a de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico penal, não devendo ultrapassar o grau de culpa, entende-se ser de manter a pena aplicada, não se justificando uma intervenção correctiva do Supremo Tribunal, já que a pena aplicada é de ter por adequada, pois não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – art. 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência comum, antes é equilibrada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente.
LIV - Face à reconfirmação da pena aplicada na 1.ª instância e confirmada pela Relação, não se coloca a possibilidade de suspensão da execução, conforme pretensão do recorrente expressa nas conclusões 5.ª, 6.ª, 7.ª e 8.ª, por se mostrar ultrapassado o limite máximo da pena concreta a considerar para efeitos de aplicação da medida de substituição, que nos termos do art. 50.º, n.º 1, do CP, é de 5 anos.
Decisão Texto Integral:
No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.º 10/08.0GAMGL, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde, integrante do Círculo Judicial de Viseu, foi submetido a julgamento o arguido AA, casado, operário fabril, reformado, nascido a 20-7-1939, natural da freguesia de ......., concelho de Mangualde, residente na Rua ......., ....., Tibalde, ......., Mangualde.
Era-lhe imputada a prática de um crime de violação agravado, na forma continuada, previsto e punido nos termos dos artigos 164.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alínea a), 30.º, n.º 2 e 79.º, todos do Código Penal.

No decurso da audiência de julgamento teve lugar comunicação ao arguido da eventual alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, no sentido de preencherem o tipo legal de crime previsto no artigo 165.º, n.º s 1 e 2, com referência aos artigos 177.º, n.º 1, alínea a), 30.º, n.º 2 e 79.º, todos do Código Penal – crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado na forma continuada -, tendo o arguido prescindido de prazo para a preparação da defesa.

Por acórdão do Colectivo de Mangualde, de 6 de Janeiro de 2010, constante de fls. 451 a 462, foi deliberado condenar o arguido como autor de um cri­me de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, na forma continuada, pre­visto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º s 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea a), 30.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal (actual redacção), na pena “única” de seis (6) anos de prisão (sic).
Na procedência do pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público, em representação da incapaz BB, foi condenado o arguido a pagar a esta a quantia de 5 000 €, acrescida de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa de 4%.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, apresentando a motivação de fls. 465 a 472, onde enuncia claramente que o recurso é circunscrito à questão da determinação da sanção criminal, sintetizando a sua pretensão nas seguintes conclusões:
1 - Nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 403.°, n° 1 e 2 alíneas a) e f) do C.P.P. o presente recurso é circunscrito á medida da pena de prisão decretada de seis anos de prisão efectiva
2 - Submetido a julgamento em audiência de processo comum colectivo, foi o arguido, acusado da prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 165º n°s 1 e 2, 177.°, n° 1 al. a), 30.°, n° 2 e 79 do Código Penal, condenado na pena única de seis anos de prisão.
3 - Em virtude da fixação da pena prisão em seis anos de prisão efectiva, que o recorrente entende injusta, por excessiva e desproporcionada, o tribunal não ponderou, como ponderaria, a possibilidade legal da sua suspensão.
4 - Violando, destarte, a sentença recorrida o disposto nos artigos 71.° 50.°, 51.° e 52° , todos do Código Penal.
5 - Entendendo o arguido ser adequada, justa e proporcional afixação de uma pena de prisão com duração não superior a quatro (4) anos, suspensos na sua execução pelo período mais dilatado que a lei preveja.
6 - Suspensão essa subordinada também ao cumprimento de deveres, regras de conduta e injunções de comportamento.
7 - Devendo em consequência, atentos os comandos legais dos artigos 50 e seguintes do Código Penal a pena de prisão efectiva decretada ser revogada e substituída por outra com duração não superior a quatro (4) anos, suspensa na sua execução pelo período de tempo mais dilatado que a lei preveja.
8 - Cumulativamente á requerida suspensão da pena, por ser adequado e conveniente aos fins da punição deverá a suspensão ser subordinada ao cumprimento de deveres (art. 51.° do Código Penal), observância de regras de conduta (art.52.° do C.P.), ou determinando que seja acompanhada do regime de prova (art.º 53.° do C.P.), tudo concatenado com o exposto no ponto anterior.
Pede a revogação do acórdão, na parte respeitante à duração da pena de prisão e a sua substituição por outra que condene o arguido em conformidade com o exposto.

O Ministério Público junto do Tribunal de Mangualde respondeu, conforme fls. 494 a 497, concluindo:
1 – Na determinação da medida da pena aplicada ao arguido – e como resulta da sentença recorrida – o Tribunal a quo ponderou com equilíbrio todas as circunstâncias do art. 71° do Código Penal, tendo em conta, designadamente, a culpa do agente, as exigências de prevenção geral e especial, o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como a intensidade do dolo, conduta do arguido anterior e posterior à data da prática dos factos e ainda as suas condições pessoais e a sua situação económica, mostrando-se, pois, adequada a pena que lhe foi imposta.
2 – O Tribunal a quo não violou quaisquer disposições legais.
Entende que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido.

Por despacho de fls. 498 foi admitido o recurso para a Relação de Coimbra.

Por decisão sumária proferida pelo Exmo. Desembargador, a fls. 510 e verso, de 26-05-2010, foi ordenada a remessa dos autos a este Supremo Tribunal, por ser o competente para conhecer dos ulteriores termos do recurso.


Neste Supremo Tribunal de Justiça a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, tendo vista nos termos do disposto no artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu douto parecer, de fls. 516 a 520, pronunciando-se sobre as questões atinentes à medida judicial da pena e à suspensão da mesma na correspondente execução, defendendo a manutenção do decidido.

Cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente silenciou.

Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

Questões a decidir

Face ao que se extrai das conclusões apresentadas pelo recorrente, maxime, a primeira, e como enunciava já no preâmbulo da motivação, a redução da medida da pena aplicada é a primeira questão a apreciar e decidir, seguindo-se, na eventualidade de procedência da pretensão de redução da medida da pena para quatro anos – conclusões 5.ª a 8.ª - a suspensão da execução da pena.
O recorrente pretende, pois, a fixação da pena em 4 anos de prisão, de modo a propiciar a suspensão da execução da pena.

Factos Provados

Vem definitivamente assente que:

A ofendida BB, nascida em 28/05/1982, é filha do arguido e reside com ele, a mãe e duas irmãs, na Rua ......., n.º ..., em Tibalde – ....... - Mangualde.
A ofendida sofre, pelo menos desde os cinco anos de idade, e de forma permanente e irreversível, de deficiência mental em grau moderado a grave, correspondendo às rubricas F71-72 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS), que se caracteriza por uma paragem do desenvolvimento ou desenvolvimento incompleto do funcionamento intelectual, traduzidos essencialmente por um comprometimento, durante o período de desenvolvimento, das faculdades que determinam o nível global da inteligência, isto é, das funções cognitivas, de linguagem, da motricidade e do comportamento social.
A referida dotação intelectual, significativamente baixa, da ofendida limita seriamente a sua capacidade de autodeterminação em relação a comportamentos de natureza sexual bem como a sua capacidade de entender a cópula como acto procriador.
Tudo como sempre foi do pleno conhecimento do arguido, seu pai.
Acontece que, no ano de 1993, o arguido começou a acalentar o desejo de manter com a sua filha relações sexuais de cópula completa, com vista à satisfação das suas paixões lascivas, sempre que os seus apetites sexuais o reclamassem, aproveitando-se da sua relação de parentesco e da incapacidade mental da visada.
Logo nessa altura, o arguido traçou um plano que consistia em, quer durante o dia, quer durante a noite, no interior da sua residência, ou num seu barracão de guardar lenha situado perto da sua residência, ir ao encontro da filha e constrangê-la a manter consigo as almejadas relações sexuais.
Assim, desde o ano de 1993 e até à noite de 8 de Janeiro de 2008, o arguido manteve relações sexuais de cópula completa com sua filha BB durante a noite, as quais ocorreram um número não determinado de vezes, não inferior a oito.
Nessas ocasiões, designadamente na noite de 8/1/2008, o arguido dirigiu-se ao quarto onde sua filha BB dormia sozinha e onde já se encontrava deitada e, aí chegado, deitou-se ao lado dela, abriu a braguilha das suas calças, baixou as cuecas dela, desnudando-a da cintura para baixo e deitou-se sobre ela, afastando as pernas dela uma da outra.
Nessa posição, introduziu completamente o membro viril erecto na vagina da ofendida, aí o friccionando até ejacular.
No decurso do referido período temporal, durante o dia, pelo menos por duas vezes, quando o arguido sentiu vontade de manter relações sexuais com sua filha BB deu dinheiro à mulher, às suas outras duas filhas e ao neto, para irem todos ao café e, assim que todos saíram de casa, o arguido, na cozinha, abeirou-se de sua filha BB, abriu a braguilha das calças e subiu a saia ou baixou as calças dela, após o que lhe desceu as cuecas, desnudando-a da cintura para baixo, e afastou as pernas dela uma da outra.
De seguida, apontou o seu membro viril erecto na direcção da vagina da ofendida onde o introduziu completamente, aí ejaculando.
Ainda no referido período temporal, durante o dia, por uma vez, o arguido acercou-se da ofendida no interior de um barracão de lenha situado próximo da residência familiar e abriu a braguilha das calças, subiu a saia ou desceu as calças dela, baixou-lhe as cuecas, desnudando-a da cintura para baixo, e afastou as pernas dela uma da outra.
De seguida, apontou o seu membro viril erecto na direcção da vagina da ofendida onde o introduziu, fazendo movimentos ritmados e aí ejaculando.
De cada vez que o arguido desenvolveu a descrita actividade, a ofendida, quer em razão da sua idade, quer do ascendente que o arguido tinha sobre ela, quer ainda em razão da deficiência mental acima referida, não conseguiu evitar que o arguido mantivesse com ela as sobreditas relações sexuais de cópula completa, encontrando-se incapacitada de resistir às investidas do arguido, o que tudo era do conhecimento deste.
Ao longo desses anos, o arguido agiu sempre com o propósito, conseguido, de constranger sua filha a ter consigo relações sexuais de cópula completa, fazendo-a, assim, sofrer actos que atingem os sentimentos de decência e decoro dela, constituindo uma ofensa séria e grave à sua intimidade e liberdade por atentarem contra bens jurídicos fundamentais da ofendida no que concerne à sua livre expressão do sexo e que violam gravemente os sentimentos gerais de moralidade sexual.
Tudo como forma de o arguido dar satisfação aos seus instintos libidinosos e lascivos, bem sabendo que o fazia sem o consentimento e contra a vontade dela e aproveitando-se da sua relação de parentesco e da incapacidade mental da visada, incapacidade esta que o arguido bem conhecia.
Por ser pai da ofendida e viver com ela debaixo do mesmo tecto, o arguido aproveitou-se da circunstância de ter uma maior proximidade física com ela, o que favoreceu a concretização do seu desiderato criminoso, assim como pensou que podia copular com ela sempre que lhe apetecesse, sem que ela, mercê da sua deficiência mental, o denunciasse, o que lhe permitiu continuar impunemente a ter relações sexuais de cópula completa com a filha ao longo desses anos.
O arguido agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Por sentença proferida na acção especial n.º 381/08.8TAMGL do 1º Juízo deste Tribunal, transitada em julgado, foi decretada a interdição da ofendida BB em virtude de anomalia psíquica, tendo sido nomeada como sua tutora CC, sua irmã.
A ofendida encontra-se, desde o dia 1/5/08, integrada no Centro de Actividades Ocupacionais da APPACDM, em regime diurno, regressando à casa de morada da família depois das actividades.
Em consequência dos factos descritos, perpetrados pelo arguido, a ofendida sofreu dores físicas e desgosto.
O arguido nasceu e cresceu no seio de uma família numerosa de baixa condição socio-económica, sendo o mais velho de sete irmãos.
O seu processo de desenvolvimento decorreu numa dinâmica familiar pouco securizante com várias problemáticas das quais se destaca o facto de ambos os progenitores serem associados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
O arguido iniciou a escola aos 7 anos de idade vindo a concluir a 4ª classe com 15 anos de idade.
Mais tarde, com cerca de 23 anos de idade, em regime nocturno, viria a concluir o antigo 2º ano do Liceu, na Escola Comercial em Viseu.
Ao nível profissional, depois de sair da escola, deslocou-se com o pai para Évora, acompanhando-o nas suas tarefas laborais.
Entretanto, cumpriu o serviço militar obrigatório em Lamego, após o que esteve em comissão de serviço durante 2 anos em Angola, tendo depois permanecido mais cerca de 4 anos ligado à instituição militar, trabalhando como civil em Santa Margarida.
De seguida iniciou actividade profissional como servente de limpeza na fábrica da Citroen, em Mangualde, aonde esteve cerca de 27 anos, até à idade da reforma.
Em termos relacionais o arguido manteve apenas uma relação de namoro com aquela que viria a ser a sua esposa e mulher dos seus filhos e com a qual casou com cerca de 34 anos de idade, tendo nascido deste casamento oito filhos sendo que três das sete raparigas apresentam quadros de debilidade mental.
A dinâmica familiar caracterizou-se pelas marcantes dificuldades económicas e pelos problemas alcoólicos de ambas as figuras parentais, apresentando o arguido uma situação de consumo excessivo de álcool com início em idade precoce.
O arguido reside na casa de morada de família juntamente com a esposa DD e duas filhas, BB e EE.
À data dos factos residia junto da família outra filha, FF autora da denúncia que deu origem ao presente processo, a qual abandonou o agregado familiar após a reclusão do pai.
A habitação insere-se num meio de características marcadamente rurais e não oferece condições de conforto e habitabilidade satisfatórias, não dispondo de portas em determinadas divisões de forma a preservar a vida íntima das filhas do casal.
Após a reclusão do arguido, a família passou a contar com um apoio e controlo mais próximo da filha CC que beneficia de uma imagem social positiva associada ao seu nível de organização familiar e profissional, a qual colaborou na recuperação da habitação dos pais e promoveu a imposição de regras destinadas a salvaguardar a intimidade das irmãs mais novas.
O arguido aufere uma reforma mensal no valor de 545 euros.
Não tem antecedentes criminais.

Apreciando.

Como se viu, em causa está apenas a medida da pena, pugnando o recorrente por uma redução da mesma, de modo a poder ser encarada uma eventual suspensão da execução da mesma.

Da medida da pena

Ao crime por que foi condenado o recorrente, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, é cabível a penalidade de prisão de 2 anos e 8 meses a 13 anos e 4 meses.
Dentro da moldura referida funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
- A intensidade do dolo ou da negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.


No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Professor Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20), segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, sendo exemplos de tal posição os acórdãos de 13-07-1983, BMJ n.º 329, pág. 396; de 15-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 274; de 26-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 331; de 19-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 233; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 19-12-1994, BMJ n.º 342, pág. 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.º 26; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.ºs 41/42.
Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.
A refutação de tal critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 02-05-1985, in Tribuna da Justiça, n.º 7, págs. 11 e 13, dando-se conta, em ambos os casos, de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, in Colectânea de Jurisprudência 1983, tomo 5, pág. 73.
Posteriormente, e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se não ser correcto partir-se dum ponto médio dos limites da moldura penal para a agravação ou atenuação consoante o peso relativo das respectivas circunstâncias, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-1986, BMJ n.º 362, pág. 359; de 25-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 255; de 22-02-1989, BMJ n.º 384, pág. 552; de 09-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 284; de 22-06-1994, processo n.º 46701, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 255. E no acórdão de 27-02-1991, in A. J., n.º 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.
Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g., os acórdãos de 21-06-1989, BMJ n.º 388, pág. 245 e de 17-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 360.

Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).

A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.
A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP).

Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25 «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».

Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.

Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.
O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.
Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.

Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 217/8, defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.

Segundo Maria João Antunes, em Consequências Jurídicas do Crime, Lições 2007-2008, págs. 19 e 20, no procedimento de determinação da pena trata-se de autêntica aplicação do direito – na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, por imposição do artigo 71.º, n.º 3, do CP. Consequentemente, há uma autonomização do processo de determinação da pena em sede processual penal (artigos 369.º, 370.º e 371.º do CPP) e a possibilidade de controlo da decisão sobre a determinação da pena em sede de recurso, ainda que este seja apenas de revista.

Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Ainda de acordo com o mesmo Professor, nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena.
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Anabela Miranda Rodrigues em “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no acórdão de 10-04-1996, processo n.º 12/96, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “ O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva. Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”.
Ainda do mesmo relator, e a propósito de caso de tráfico de estupefacientes, diz-se no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 356/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, volume II, págs. 133/4: «As “exigências de prevenção” variam em função do tipo de criminalidade de que se trata. Na criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes, com todo o seu cortejo de lesão de bens jurídicos muito relevantes, a carecerem de adequada protecção pelo direito penal - além do efeito propulsor de outras formas de criminalidade, nomeadamente contra as pessoas e contra o património, a que, a justo título, se tem chamado de “flagelo social” - são de considerar as particulares exigências de prevenção, tanto geral como especial».
Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97; de 01-10-1997, processo n.º 673/97; de 08-10-1997, processo n.º 874/97; de 15-10-1997, processo n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, processo n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. No sentido deste último segmento, ver do mesmo relator, os acórdãos de 08-10-1997, processo n.º 976/97 e de 17-12-1997, processo n.º 1186/97, in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132 e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214.

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo n.º 2693/00-5.ª; de 23-11-2000, processo n.º 2766/00 – 5.ª; de 30-11-2000, processo n.º 2808/00-5.ª; de 28-06-2001, processos n.ºs 1674/01-5.ª, 1169/01-5.ª e 1552/01-5.ª; de 30-08-2001, processo n.º 2806/01-5.ª; de 15-11-2001, processo n.º 2622/01 – 5.ª; de 06-12-2001, processo n.º 3340/01-5.ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5.ª; de 09-05-2002, processo n.º 628/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo n.º 585/02 – 5.ª; de 23-05-2002, processo n.º 1205/02 – 5.ª; de 26-09-2002, processo n.º 2360/02 – 5.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02 – 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo n.º 3399/03 – 5.ª; de 04-03-2004, processo n.º 456/04 – 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo n.º 3182/04 – 5.ª; de 23-06-2005, processo n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, processo n.º 2521/05 – 5.ª; de 03-11-2005, processo n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 – 3.ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 – 3.ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 – 5.ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 – 5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 – 5.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 – 5.ª; de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 – 3.ª; de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 – 3.ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 – 5.ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 – 3.ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 – 3.ª e 4832/07-3.ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 – 3.ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 – 3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 – 5.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 – 5.ª e processo n.º 999/08-3.ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 – 3.ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 – 5.ª; de 03-09-2008, no processo n.º 3982/07-3.ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 – 3.ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª.

Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.°, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se no entanto de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.
O limite mínimo da pena a aplicar é assim determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.
Ou, como expressivamente se diz no acórdão deste STJ de 16-01-2008, processo n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento.
O modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.
O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.»

Revertendo ao caso concreto.

Neste particular, ter-se-ão em conta as concretizações dos critérios legais estabelecidas pela decisão de primeira instância, que recolheu os elementos necessários e suficientes para o efeito e teve em vista os parâmetros legais a observar.

O Colectivo de Mangualde, sobre a determinação da medida da pena, pronunciou-se nestes termos:
«Como refere Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, 3, p 130, “a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade (…). Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas - de protecção do bem jurídico - e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa, por uma parte, e deverá ressocializar o delinquente pela outra”.
De seguida cita Denis Sala, Le délinquant sexuel, in “La Justice e le mal”, ed. Odile Jacob, 1997, p. 53 e segs., referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2005: «Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade.
A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade.
Os crimes sexuais contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir».
Após, conclui:
«Neste âmbito, havemos de referenciar em desfavor do arguido o elevado grau de ilicitude dos factos aferido pelas circunstâncias que rodearam a sua execução bem como pelo cariz dos actos sexuais cometidos.
De referir ainda a elevada intensidade do dolo na forma de dolo directo em toda a conduta criminosa do arguido, evidenciando a matéria de facto que o arguido agiu em circunstâncias que facilitaram as relações sexuais com a ofendida, sozinha e indefesa do que o arguido se aproveitou, para além da natural vulnerabilidade daquela.
A favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais bem como a sua idade e a respectiva situação pessoal e económica.
No sopesar de todas as circunstâncias o pendor é acentuadamente agravativo, sendo ainda prementes as necessidades de prevenção quer especial, quer geral dado o alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade com repercussões altamente negativas em sede de prevenção geral.
Reconhecido que é, entre nós, actualmente, o primado de um direito penal da culpa, de harmonia com o qual se há-de tomar em consideração, primordialmente, o maior ou menor juízo de censura sobre a personalidade do agente, de algum modo revelada no facto, sem esquecer, por outro lado, as prementes necessidades de prevenção especial e geral que este caso encerra, afigura-se-nos ajustada, por razoável e equitativa, à conduta do arguido a pena de seis (6) anos de prisão».

No seu parecer a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, quanto à medida judicial da pena, refere: “À semelhança do considerado pelo representante do Ministério Público na 1ª instância, crê-se que, no âmbito da qualificação jurídica dos factos e do circunstancialismo que exógeno ao tipo legal depõe a favor e contra o arguido (o último bem mais relevante que o primeiro, diga-se de passagem), a pena de 6 anos de prisão imposta pelo tribunal recorrido não se revela de todo em todo desproporcionada à culpa do agente e bem assim inadequada à satisfação das necessidades de prevenção, bem pelo contrário.
E entende-se deste jeito [não postergando embora o condicionalismo, escasso aliás, que depõe em benefício do arguido, tal seja o atinente: à idade que conta presentemente (70 anos); à sua primariedade; modesta condição social e débil situação económica (patente face ao que consta do relatório social de fls. 404 a 409)] ponderando: no grau de ilicitude dos factos (elevadíssimo tendo em conta: a intensidade do desvalor da acção que, não se esgotando numa só ocasião, foi reiterada pelo menos em oito oportunidades; na condição da ofendida BB que, se por via da deficiência mental de grau moderado a grave que a afecta, tem seriamente limitada a sua capacidade de autodeterminação em relação a comportamentos de natureza sexual bem como entender a cópula como acto procriador, também pelo facto de ser filha do arguido de quem dependia, não podia opor-se às práticas sexuais de que foi vítima por parte do próprio pai); na intensidade do dolo directo e culpa assaz acentuada com que o agente actuou e sentimentos que manifestou quer no cometimento do crime (uma profunda e lamentável indiferença pela deplorável condição física e mental da infeliz BB) quer posteriormente (manifesta na circunstância de, não assumindo qualquer arrependimento pela conduta ilícita havida, persistir em insurgir-se contra a sua outra filha a FF, por esta, alegadamente por motivos interesseiros, ter apresentado queixa-crime contra a sua pessoa) e as exigentíssimas necessidades de prevenção, a demandarem a rejeição de qualquer condescendência em casos da natureza do vertente e como assim a exigirem por parte da justiça uma reacção firme que, sem descurar as finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, constitua para potenciais delinquentes factor dissuasor adequado.
Daí que, sopesando todas estas particularidades que caracterizam o caso vertente e bem assim o disposto, designadamente, nos arts. 40º e 71º do Código Penal, se nos afigure que improcede de todo em todo a pretensão do recorrente e em consequência que inexistem razões para alterar a medida da pena imposta pelo tribunal recorrido, como visto 6 anos de prisão”.

Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos, definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado no tipo legal em causa, tendo-se em conta a importância do crime para a ordem jurídica violada, avaliando o conteúdo e a extensão da lesividade da conduta em apreciação.
O crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. p. pelo artigo 165.º do Código Penal, insere-se na Secção I “Crimes contra a liberdade sexual” do Capítulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, do Título I da Parte Especial do Código Penal.
O bem jurídico a proteger é a liberdade e/ou a autodeterminação sexual de todas as pessoas, sem fazer acepção de idade - Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo 1, pág. 442.
No caso presente há que atender ao facto de a vítima BB, em 1993, no início da conduta do arguido, ser menor, então com 11 anos de idade, sendo que a atitude do arguido permaneceu e se repetiu até aos 25 anos da ofendida, a qual actualmente conta 28 anos de idade.
Por seu turno, o arguido em 1993, tinha 54 anos de idade e manteve a conduta ofensiva até aos 68 anos; actualmente, à data desta decisão, conta 71 anos de idade.
É grande a intensidade da ilicitude da conduta do arguido, sendo os motivos da sua conduta a satisfação dos seus instintos sexuais.
A vítima, sua filha, com ele convivente, merecia-lhe o maior respeito, até em função da situação de deficiência e incapacidade de que é portadora desde muito cedo, abusando o arguido do seu corpo, da sua liberdade sexual, da sua incapacidade.
A culpa é acentuada e revelada pelo modo de actuação, já valorado em sede de subsunção no tipo legal.

O arguido agiu com dolo directo, revelando com a repetição de condutas, ao longo do tempo e, nomeadamente, nos oito casos concretizados, persistência e tenacidade na prática do crime, encontrando do outro lado, a fragilidade e debilidade da vítima, com falta de capacidade de resistir.

As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão - e impostas pela frequência dos casos de abusos sexuais em geral e do elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, com repercussões altamente negativas também em sede de prevenção geral, justificando resposta punitiva firme, o que de resto foi bem assinalado na decisão recorrida.
Neste segmento, em sede de prevenção, procura-se alcançar a neutralização dos efeitos negativos da prática do crime.
Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.

As necessidades de prevenção especial têm em vista uma contribuição para a reinserção social do arguido e avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência. No caso avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, não se esgotando na mera necessidade de prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.
Como refere Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.
E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
Como refere o acórdão deste Supremo de 15-06-2005, processo n.º 1558/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 216, em caso com alguma conexão com o presente “a exigência de emenda cívica, de correcção do arguido, em jeito de aprendizagem, que não fez até ao presente, a conviver com as suas filhas, num imperativo clima de absoluto e indeclinável respeito pela sua liberdade sexual, pelo seu corpo, faz-se sentir ao mais alto grau, e, com isso, as necessidades de prevenção especial.

No caso em apreciação os actos lesivos da liberdade/integridade sexual da vítima provêm de quem tinha o especial dever de o não fazer – artigos 1878.º, n.º 1 e 1885.º, n.º 1 e, sobretudo, n.º 2, ambos do Código Civil - , não se olvidando que, inclusive, face ao que dispõe o artigo 179.º do Código Penal (em conexão com o disposto no artigo 1913.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), podem conduzir a aplicação de pena acessória de inibição do exercício do poder paternal, por um período de 2 a 15 anos, que no caso não esteve em equação.
A idade actual do arguido não pode assumir o relevo que o recorrente lhe pretende dar, pois a verdade é que a idade não foi impedimento da prática dos factos, e sempre haveria que atender ao valor relativo da fragilidade do idoso em confronto com a fragilidade da filha menor e depois maior, mas incapacitada, que conduziu à prática dos abusos cometidos pelo arguido.
Igualmente como irrelevante é de ter a referência à circunstância de depois dos factos não se ter mais aproximado da ofendida BB, sua filha, de não existir perigo de virem os mesmos a repetir-se.
De anotar que o arguido não assumiu a conduta dada por provada, relevando a postura acrítica que mantém relativamente aos factos ilícitos cometidos, vendo como mãe de todos os males, não o seu comportamento, mas a atitude de uma das filhas, FF, que apresentou queixa contra si, e a seu ver, movida por intuitos de vingança contra si – sem explicar porque razões - e de interesse económico – sem explicitar quais, para além de ausência de arrependimento sentido e sincero.
Teremos a considerar ainda as atenuantes já assinaladas, com relevo para a primariedade, atenta a idade, e a vivência e as condições pessoais do recorrente expressas nos factos provados.

Concluindo: ponderando todos os parâmetros já analisados no acórdão recorrido, considerando que a aplicação de penas tem como primordial finalidade a de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico penal, não devendo ultrapassar o grau de culpa, entende-se ser de manter a pena aplicada, não se justificando uma intervenção correctiva deste Supremo Tribunal, já que a pena aplicada é de ter por adequada, pois não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência comum, antes é equilibrada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente.

Da suspensão da execução da pena

Face à reconfirmação da pena aplicada na primeira instância e confirmada pela Relação, não se coloca a possibilidade de suspensão da execução, conforme pretensão do recorrente expressa nas conclusões 5.ª, 6.ª, 7.ª e 8.ª, por se mostrar ultrapassado o limite máximo da pena concreta a considerar para efeitos de aplicação da medida de substituição, que nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, é de cinco anos.
Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.

Decisão

Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à que lhes foi dada pela Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro – Regulamento das Custas Processuais - com as alterações introduzidas pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, uma vez que de acordo com o artigo 27.º daquela Lei, o novo regime de custas processuais só é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009), e nos termos dos artigos 74.º e 87.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código das Custas Judiciais, com taxa de justiça de 4 unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia – cfr. fls. 484 e 490.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.


Lisboa, 23 de Setembro de 2010

Raul Borges (Relator)
Fernando Fróis