Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 4ª SECÇÃO | ||
| Relator: | VASQUES DINIS | ||
| Descritores: | CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DOENÇA PROFISSIONAL ÓNUS DA PROVA MATÉRIA DE FACTO INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA CONTRADIÇÃO | ||
| Nº do Documento: | SJ | ||
| Data do Acordão: | 11/12/2009 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA REVISTA | ||
| Sumário : | I - A impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador continuar a exercer as funções para que foi contratado, devido a incapacidade decorrente de doença profissional contraída em resultado directo da actividade exercida ao serviço do empregador, só determina a caducidade do contrato de trabalho, nos termos do artigo 387.º, alínea b), do Código do Trabalho de 2003, se for impossível ao empregador proceder à reconversão funcional do trabalhador, a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 248/99, de 2 de Julho. II - Para fazer operar a caducidade, em tal caso, não basta a alegação, pelo empregador, de que se verifica a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador continuar a prestar o trabalho habitual, impondo-se que alegue e prove em juízo, por se tratar de facto constitutivo do direito de invocar a caducidade, que lhe era impossível proceder à reconversão profissional do trabalhador e de lhe atribuir outras funções compatíveis, designadamente por não dispor na empresa de qualquer posto de trabalho para o efeito. III - Deve ter-se por não escrita a afirmação constante da decisão proferida sobre a matéria facto segundo a qual a empregadora «não podia nem pode subordinar a Autora ao exercício de funções contra a sua vontade», por traduzir um juízo de valor que só pode ser alcançado mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa — artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC). IV – A asserção constante da decisão da matéria de facto segundo a qual, em «nenhuma [das] ocasiões — em que a Autora, após a cessação do contrato, se dirigiu aos escritórios da empregadora (pelo menos duas vezes) —, manifestou interesse em, conjuntamente com a Ré, encontrar uma solução consensual», pressupõe o apuramento de factos concretos susceptíveis de preencher a vacuidade de tal expressão, que encerra um juízo de valor determinante do sentido a dar à solução do litígio relativamente à questão da caducidade do contrato de trabalho, devendo ter-se aquela expressão como não escrita, por aplicação analógica do citado artigo 646.º, n.º 4. V - Tendo a empregadora alegado factos tendentes a demonstrar a impossibilidade de proporcionar à Autora ocupação compatível com a sua situação de incapacidade, tais factos, a ter sido elaborada base instrutória, deveriam nela ter sido inscritos, a fim de sobre eles incidir a actividade probatória. VI - Na falta de elaboração da base instrutória, é indispensável que, na decisão da matéria de facto controvertida se proceda a uma concretização dos factos aos quais se dirige o juízo de provado e/ou de não provado, por forma a permitir apreciar da correcção e completude da selecção dos factos que interessam à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. VII - Não se mostra respeitada a exigência referida no ponto anterior, se, na decisão proferida sobre a matéria de facto, o julgador, após a indicação dos factos que considerou provados por referência ao teor dos artigos da petição inicial e da contestação, em que não contemplou nenhum dos que narravam os factos indicados em V, faz constar que «não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa» e motiva este veredicto dizendo que a «matéria de facto não provada resulta de ser conclusiva, ou não ter interesse para a decisão da causa ou nem sequer se ter provado por testemunhas ou documentos», ficando, pois, sem se saber se foram, ou não, considerados com interesse para a decisão da causa e seleccionados para serem objecto de prova os factos em causa, e ignorando-se, por conseguinte, se o veredicto relativo à matéria de facto não provada os contempla. VIII - Não se mostrando feita a concretização a que se aludiu, deve entender-se que a decisão proferida sobre a matéria de facto não constitui base suficiente para a decisão de direito, situação em que se impõe ao Supremo Tribunal que mande julgar novamente a causa, nos termos dos artigos 729.º, n.º 3 e 730.º, n.º 1, do CPC. IX - Verifica-se contradição na decisão proferida sobre a matéria de facto se dela se faz constar que a trabalhadora, que tinha a categoria profissional de magarefe, «vinha desempenhando funções correspondentes à sua categoria profissional, mas, igualmente desempenhava tarefas correspondentes a funções de natureza administrativa» e, noutro ponto, que «a única tarefa que [...] desempenhou diferente daquela para a qual foi contratada foi a recolha e processamento de análises clínicas aos animais abatidos para despiste da BSE e da SCARPIE». X - Tal contradição, no contexto factual da acção, é susceptível de perturbar a viabilização da solução jurídica do pleito, cabendo, portanto, na previsão dos citados artigos 729.º, n.º 3 e 730.º, n.º 1. a dar à solução do litígio relativamente à questão da caducidade. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1. No Tribunal do Trabalho de Évora, em acção com processo comum, intentada em 24 de Outubro de 2007, AA demandou M... M... do A... A..., S.A., pedindo que seja decretada a nulidade do seu despedimento, declarando-se que subsiste o vínculo laboral celebrado com a Ré, e esta condenada pagar-lhe: i) € 2.452,00, de créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação; ii) € 13.075,20 de indemnização de antiguidade; iii) as prestações pecuniárias vencidas e vincendas que deixou de auferir desde a data do despedimento; iv) uma indemnização por danos não patrimoniais, decorrentes do despedimento ilícito, de valor não inferior a € 1.500,00; v) tudo acrescido de juros, à taxa legal, até integral pagamento. Para o efeito, alegou, em resumo: — Ter sido admitida ao serviço da Ré em 17 de Dezembro de 1990, para exercer funções de magarefe, auferindo ultimamente o salário base mensal de € 545,00, e desempenhando também funções de natureza administrativa; — Ao serviço da Ré, contraiu doença profissional (brucelose), que lhe determinou uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e uma incapacidade permanente parcial de 10% para profissões não sujeitas ao risco de contacto e manuseamento de carnes; — Tendo do facto informado a Ré, a quem solicitou a atribuição de outras tarefas, foi informada, por carta datada de 27 de Outubro de 2006, de que o seu contrato de trabalho caducava nos termos do artigo 387.º, alínea b), do Código do Trabalho (de 2003), por não haver posto de trabalho compatível, o que não corresponde à verdade e se traduz num despedimento ilícito. Na contestação, a Ré impugnou os fundamentos da acção, dizendo, em síntese, que, estando a Autora impossibilitada de prestar o trabalho para o qual havia sido contratada e tendo ela recusado todo e qualquer tipo de funções que não fossem de secretariado ou de apoio à contabilidade, serviços cujo quadro se achava preenchido, ocorreu fundamento para a cessação do contrato por caducidade, pelo que concluiu pela absolvição dos pedidos, com excepção dos créditos emergentes da cessação do contrato. Foi proferido despacho saneador e, tendo sido dispensada a condensação, realizou-se a audiência de discussão e julgamento. Decidida a matéria de facto, com referência aos pontos dos articulados, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, declarou a caducidade do contrato de trabalho celebrado entre a Autora e a Ré, por impossibilidade superveniente e absoluta de aquela prestar o seu trabalho, tendo condenado a Ré, tão somente, a pagar à Autora a quantia de € 454,16 (quatrocentos e cinquenta e quatro euros e dezasseis cêntimos), a título de subsídio de férias do ano da cessação do contrato. Para assim decidir, o tribunal considerou, entre o mais, que «da matéria de facto provada não resultou que a Ré tenha a possibilidade de colocar a autora em lugar compatível com a sua actual situação e à Autora cabia o ónus da prova de tal facto, o que esta não fez nem sequer alegou». 2. Apelou a Autora e o Tribunal da Relação do Évora, tendo concluído que não pode ter-se por legítima a caducidade do contrato declarada pela apelada, decidiu revogar a sentença e, em consequência, condenar a Ré a: «a) Reconhecer a ilicitude da desvinculação contratual da A., promovida pela R. sob a invocação de caducidade do contrato de trabalho, que nessa medida correspondeu a um despedimento ilícito; b) Pagar à A., a título de indemnização pela cessação ilícita do contrato, uma quantia equivalente a 20 dias de retribuição base, referenciada ao valor mensal de € 545,00, por cada ano completo ou fracção de antiguidade, computada à data do trânsito em julgado da decisão judicial, e em montante a apurar em incidente de liquidação de sentença; c) Pagar à A. as retribuições que a mesma deixou de auferir desde a data do despedimento, e até trânsito em julgado da decisão judicial, deduzidas dos valores referidos no art. 437.º, n.os 2 e 4, do C.T., e em montante também a apurar em incidente de liquidação de sentença; d) Pagar à A os juros de mora à taxa supletiva legal, sobre as importâncias referidas em a) e b), desde que as mesmas se mostrem liquidadas e até integral pagamento.» Não se conformou a Ré, por isso que veio pedir revista, a pugnar pela revogação do acórdão da Relação e repristinação da decisão da 1.ª instância, não deixando, porém, de manifestar o entendimento de que deve, se se considerar não haver base suficiente ou segura para a decisão de direito, ser ordenada a devolução do processo ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil (CPC), para o que formulou, a terminar a alegação, conclusões assim redigidas: «1. Dada a posição assumida pelos Venerandos Desembargadores quanto à matéria de facto, os quais deram a factualidade apurada pelo Tribunal a quo como definitivamente assente; 2. Entende a ora Recorrente que o douto Acórdão recorrido consubstancia uma violação da lei substantiva, mais concretamente da al. b) do art. 387.º do Código do Trabalho, uma vez que não fez uma correcta aplicação dessa norma jurídica aos factos dados como provados pelo Tribunal a quo; 3. Ao dar como assente/inquestionável a factualidade apurada pelo Tribunal a quo, os Venerandos Desembargadores apenas podiam ter tido em consideração, na sua decisão jurídica, os factos tal como eles foram apreendidos e valorados pelo julgador; 4. E basearam-se numa outra factualidade que nada tem a ver com aquela que foi apurada pelo Mmo. Juiz a quo! 5. O douto Acórdão recorrido considera que não resultaram provados, em sede de audiência de julgamento, quaisquer factos que pudessem demonstrar a impossibilidade da entidade empregadora proceder à reconversão profissional da trabalhadora incapacitada; 6. O que está em absoluta contradição com a posição do julgador e, bem assim, com a factualidade apurada em sede de audiência de julgamento; 7. Das decisões proferidas pelo Mmo. Juiz a quo resulta, de forma inequívoca, que este não teve quaisquer dúvidas que a factualidade apurada lhe permitiu concluir que a entidade empregadora não possuía, à data da cessação do contrato, [ ] um posto de trabalho vago que fosse compatível com o estado de saúde da trabalhadora, nem de condições para criar esse posto de trabalho compatível com a sua capacidade residual; 8. Era com base nesta factualidade que deveriam ter tomado uma decisão de Direito e não com base noutra; 9. Não podiam ter ignorado os factos provados e, sobretudo, não podiam ter deixado de interpretar os juízos de valor proferidos pelo Mmo. Juiz a quo na fundamentação da resposta à matéria de facto e na motivação da sentença, a propósito da questão da reconversão profissional da trabalhadora incapacitada; 10. É certo que o Mmo. Juiz a quo não procedeu à fixação de base instrutória e, [a] posteriori, talvez até se possa dizer que foi pouco diligente na explicitação da matéria de facto, sendo certo, todavia, que não resultou provado um único facto a favor da ora Recorrida, mas daí a dizer-se que nada se provou quanto à questão da reconversão profissional vai uma grande distância; 11. Se os Venerandos Desembargadores [ ] entendiam que existia uma “lacuna fáctica”, ou seja, que a matéria de facto era insuficiente para aferir da possibilidade ou impossibilidade de a entidade empregadora proceder à reconversão profissional da trabalhadora, se entendiam que existiam contradições entre factos provados e não provados que careciam de ser explicadas, ou se entendiam que o Mmo. Juiz a quo não fez uma correcta apreciação da prova, deveriam ter feito uso dos poderes que a lei processual lhe confere - art. 712.º CPC - e ordenar a anulação da decisão e solicitar ao tribunal recorrido a reapreciação da prova; 12. O que não podiam era dar como assente a factualidade tal como ela foi apreendida pelo Mmo. Juiz a quo e atender a outra factualidade que está, tão só, em contradição com aquela; 13. O efeito jurídico a extrair por aquele que considera demonstrado que a entidade empregadora não possui um posto de trabalho vago compatível com o estado de saúde da trabalhadora, nem possui condições para criar esse posto de trabalho; 14. terá, naturalmente, de ser diferente do efeito jurídico extraído por aquele que se limita a considerar que nada resultou provado acerca dessa matéria da reconversão profissional; 15. Essa contradição entre a factualidade tida por cada uma das instâncias para sustentar a sua decisão de Direito é a única razão para que o Venerando Tribunal da Relação tivesse alterado o sentido da decisão do Tribunal a quo. 16. Portanto, se tivesse tomado em consideração a factualidade tal como ela foi apreendida e valorada pelo julgador, o douto Acórdão recorrido teria, naturalmente, de concluir pela verificação do carácter absoluto da impossibilidade e, consequentemente, pela verificação da caducidade do contrato de trabalho. 17. Atento o exposto, considera a ora Recorrente que estamos perante uma situação de violação da lei substantiva - al. b) do art. 387.º do Código do Trabalho -, por erro na aplicação do Direito aos factos e, acessoriamente, perante uma violação da lei processual - art. 712.º Código de Processo Civil - por não ter ordenado a ampliação da matéria de facto, tendo em vista a explicitação de todos os pontos de factos que julgasse pertinentes para a decisão de direito; 18. Nestes termos, se [se] entender que da resposta à matéria de facto, da fundamentação da resposta à matéria de facto e da motivação da sentença, não resultam, por si só, factos suficientes para se aferir da possibilidade ou impossibilidade de a entidade empregadora proceder à reconversão profissional da trabalhadora incapacitada ou que existe contradição entre factos provados e factos não provados, entende a Recorrente que a solução para o presente processo deverá passar pela ampliação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do art. 729.º do CPC; 19. Pois, pode e deve este Venerando Tribunal ordenar oficiosamente a baixa do processo, quando se mostre indispensável, para a decisão da causa, a correcção das contradições existentes na matéria de facto apurada peias instâncias, bem como a indagação do factualismo articulado pelas partes; 20. Sob pena de este Venerando Tribunal não ter uma base segura que lhe permita extrair com precisão o regime jurídico adequado ao caso concreto; 21. A justeza desta solução pode ser aferida pelo douto parecer emitido pela Exma. Senhora Procuradora junto do Tribunal da Relação de Évora, a qual solicitou a anulação da decisão e a repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto, de modo a que naquela decisão se incluam factos donde resulte a possibilidade ou impossibilidade de a ora Recorrente poder colocar a ora Recorrida a praticar funções que não impliquem o contacto directo com a carne dos animais.» Contra-alegou a recorrida para defender a confirmação do julgado. Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer — a que as partes não reagiram — em que, assinalando sofrer a decisão da matéria de facto dos vícios de insuficiência e contradição, além de conter pontos com matéria conclusiva, propugnou que, desde já, se dessem como eliminados tais pontos, e fosse ordenada a remessa dos autos à 1.ª instância, para ser ampliada a base instrutória e sanado o vício de contradição. Corridos os vistos, cumpre decidir. II 1. A sentença da 1.ª instância exprimiu a narração do que considerou factos provados, nos seguintes termos (a numeração foi aposta pelo acórdão recorrido): «1 - A A. foi admitida em 17/12/1990 para exercer as funções de magarefe sob as ordens, direcção e fiscalização da R. , no âmbito de contrato de trabalho individual sem termo. 2 - Auferia ultimamente a remuneração mensal de base, ilíquida, de € 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco euros). 3 - A A. detinha ultimamente e formalmente a categoria profissional de magarefe de 3.ª, mas certo é que vinha desempenhando funções correspondentes à sua categoria profissional, mas, igualmente, desempenhava tarefas correspondentes a funções de natureza administrativa. 4 - No exercício da sua actividade profissional, que implicava o contacto e manuseamento de carnes, actividade essa desenvolvida ao serviço e no interesse da R. , a A. contraiu doença profissional - Brucelose. 5 - Na sequência de tal doença profissional foi reconhecida à A. uma Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual (100% de incapacidade para a sua profissão) e uma Incapacidade Permanente Parcial de 10% para profissões não sujeitas ao mesmo risco. 6 - Tal facto foi comunicado à A. por ofício datado de 22/09/2006 do Centro Nacional de Protecção Contra os Riscos Profissionais, recebido pela A. em 28/09/2006. 7 - Por carta datada de 27 de Outubro de 2006, a R. informou a A. de que considerava que o seu contrato de trabalho caducava nos termos do disposto no art..º 387.º, al. b), do Código do Trabalho, por impossibilidade superveniente absoluta e definitiva de a A. prestar a actividade para que fora contratada e por alegadamente não se verificar a existência de nenhuma actividade de que a R. carecesse e que fosse compatível com o estado de saúde daquela . 8 - A A. trabalhou por conta da R., ininterruptamente, desde 17/12/1990 e até 30/10/2006. 9 - A A. contraiu brucelose quando trabalhava ao serviço e no interesse da R. 10 - A A. possui o 12.º ano de escolaridade. 11 - A R. é uma sociedade comercial que tem por objecto a prestação de serviços de abate de gado, desmancha e preparação de carnes. 12 - A única tarefa que a Autora desempenhou diferente daquela para a qual foi contratada foi a recolha e processamento de análises clínicas aos animais abatidos para despiste da BSE e da SCRAPIE. 13 - A R. não podia nem pode subordinar a Autora ao exercício de funções contra a sua vontade. 14 - A A. após a cessação do contrato dirigiu-se, pelo menos duas vezes, aos escritórios da Ré e, em nenhuma dessas ocasiões, manifestou interesse em, conjuntamente com a Ré, encontrar uma solução consensual. 15 - A A. entrou de baixa, por efeito de doença prolongada e omitiu por completo a questão da suspensão do contrato.» 2. A decisão proferida sobre a matéria de facto não foi impugnada no recurso de apelação, mas a Exma. Magistrada do Ministério Público no Tribunal da Relação de Évora, no parecer que emitiu, nos termos do artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, propugnou a anulação do julgamento para a ampliação da matéria de facto, o que não mereceu acolhimento por parte do Tribunal da Relação. Na sua alegação, a ora recorrente alude à violação, pelo acórdão recorrido, do artigo 712.º do CPC, por aquele tribunal superior não ter ordenado a ampliação da matéria de facto e aduz que, caso se venha a entender que «da resposta à matéria de facto, da fundamentação da resposta à matéria de facto e da motivação da sentença, não resultam, por si só, factos suficientes para se aferir da possibilidade ou impossibilidade de a entidade empregadora proceder à reconversão profissional da trabalhadora incapacitada ou que existe contradição entre factos provados e factos não provados, entende a Recorrente que a solução para o presente processo deverá passar pela ampliação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do art. 729.º do CPC». A Exma. Magistrada do Ministério Público neste Supremo suscita, no seu douto parecer, a insuficiência da matéria de facto apurada, bem como a existência nela de contradição, que impedem a solução jurídica do pleito, propugnando a baixa do processo para a sanação de tais vícios, e, por outro lado, defende a eliminação da respectiva decisão de pontos ou expressões que reputa de conclusivos. Há, pois, que, antes de mais, apreciar se a decisão de facto contém matéria conclusiva e se enferma de insuficiência e/ou contradições que inviabilizem a decisão de direito — questões do conhecimento oficioso do Supremo, nos termos dos artigos 664.º e 729.º, n.º 3, do CPC — e, só depois, caso se venha a concluir pela inexistência destes vícios, se imporá conhecer do mérito do recurso, no que diz respeito ao problema fundamental da lide, que versa a caducidade do contrato. 3. De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 646.º do CPC, que incide sobre o julgamento da matéria de facto, devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito. Tem esta norma subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito. Nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) — neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; na jurisprudência, entre outros, o Acórdão deste Supremo de 24 de Setembro de 2008 (Documento n.º SJ20080924037934, em www.dgsi.pt). No mesmo âmbito da matéria de facto, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio. que contempla o julgamento da matéria de facto. Atendendo a que só os factos concretos — não os juízos de valor que sejam resultado de operações de raciocínio conducentes ao preenchimento de conceitos, que, de algum modo, possam representar, directamente, o sentido da decisão final do litígio — podem ser objecto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º tem o seu campo de aplicação alargado às asserções de natureza conclusiva, «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.» — Acórdão desde Supremo de 23 de Setembro de 2009, publicado em www.dgsi.pt (Processo n.º 238/06.7TTBGR. S1). Assim, ainda que a formulação de tais juízos não envolva a interpretação e aplicação de normas jurídicas, devem as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas da base instrutória e, quando isso não suceda e o tribunal sobre elas emita veredicto, deve este ter-se por não escrito. A afirmação, constante do n.º 13 do elenco dos factos provados, de que a Ré «não podia nem pode subordinar a Autora ao exercício de funções contra a sua vontade», encerra um juízo de valor só possível de ser alcançado mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa, pelo que não pode deixar de ter-se como não escrita. Por outro lado, a asserção inscrita no n.º 14 do referido elenco, segundo a qual a Autora, em «nenhuma [das] ocasiões — em que se dirigiu aos escritórios da Ré (pelo menos duas vezes) —, manifestou interesse em, conjuntamente com a Ré, encontrar uma solução consensual», pressupõe o apuramento de factos concretos susceptíveis de preencher a vacuidade da expressão que comporta a ideia de não manifestação de interesse de encontrar uma solução consensual, preenchimento esse que implica a formulação de um juízo de valor sobre realidades factuais — as declarações, através de palavras, escritas ou transmitidas por qualquer outro meio de manifestação de vontade, ou actos equivalentes. A referida afirmação encerra, por conseguinte, um juízo de valor, que, no caso, se apresenta como determinante do sentido a dar à solução do litígio, pois, como se verá, a resposta à questão da existência de fundamento para a extinção do contrato de trabalho, em caso de incapacidade absoluta para o trabalho habitual, depende do apuramento do comportamento assumido pelas partes relativamente à eventualidade do desempenho de tarefas compatíveis com a capacidade de trabalho residual. Nesta conformidade, em consonância com o propugnado pela Exma. Magistrada do Ministério Público, é mister declarar, também, não escritas as referidas expressões do n.º 14. 4. Dispõe o n.º 3 do artigo 729.º do CPC que «[o] processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito» e o artigo 730.º, n.º 1, prescreve que, «[n]o caso excepcional a que se refere o n.º 3 do artigo anterior, o Supremo, depois de definir o direito aplicável, manda julgar novamente a causa, em harmonia com a decisão de direito pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, sempre que possível». A ampliação da matéria de facto pressupõe, por um lado, que os factos a averiguar tenham sido, oportunamente, alegados e sobre eles as instâncias tenham omitido qualquer pronúncia, e, por outro lado, que o veredicto em falta se mostre relevante para a decisão de direito, isto é, que, sem a produção e apreciação das atinentes provas e consequente pronúncia sobre os mesmos, não seja possível, correctamente, decidir a causa. O juízo sobre a necessidade da ampliação implica a valoração jurídica, prévia, dos factos disponíveis, fixados pelas instâncias, sendo que, só após a apreciação global, à luz do regime jurídico aplicável, de todo o material de facto disponível poderá afirmar-se a indispensabilidade da ampliação. 5. No que diz respeito ao regime jurídico aplicável, são de acolher as seguintes considerações vertidas no acórdão recorrido, que traduzem o essencial das linhas de orientação que vêm inspirando a jurisprudência deste Supremo (v.g. Acórdãos de 24 de Setembro de 2008 e de 1 de Julho de 2009, nos processos 07S3793 e 703/05.3TTVFR.S1, em www.dgsi.pt): «A cessação de um contrato de trabalho, por caducidade, traduzida na impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho, ou de o empregador o receber, hipótese que na lei vigente encontra acolhimento no citado art.º 387.º, al. b), do C.T., tem merecido considerável tratamento jurisprudencial, que se tem orientado no sentido de uma particular exigência e rigor na verificação dos pressupostos de facto que configuram semelhante instituto. A par de tal orientação geral, tem prevalecido uma outra ideia importante, que se prende com a hipotética reconversão do objecto do contrato de trabalho, em termos de permitir a subsistência do vínculo, mas com a atribuição ao trabalhador de funções diferentes daquelas que o mesmo antes exercia. Nesse sentido, e tendo presente as regras sobre o conteúdo e a flexibilidade da prestação laboral, definidas no art.º 151.º do C.T., a jurisprudência também tem sido clara: não existe disposição legal que imponha genericamente ao empregador a atribuição de novas funções ao trabalhador que se incapacitou para continuar a exercer aquelas que antes desempenhava, hipótese essa que passaria pela alteração do contrato; logo, verificados que estejam a superveniência e o carácter definitivo e absoluto da impossibilidade da prestação, estará configurada a caducidade do contrato (neste sentido v. Ac. do STJ de 19/12/2007 e de 24/9/2008, in www.dgsi.pt). Os dados da questão alteram-se porém, e de maneira significativa, em hipóteses, como a dos autos, em que a impossibilidade superveniente, que impede de maneira definitiva e absoluta o trabalhador de continuar a exercer as funções para que foi contratado, é resultado directo da actividade exercida ao serviço do empregador. É o que sucede em casos de acidente de trabalho ou doença profissional, em que razões de elementar e compreensível justiça material determinam que a reabilitação funcional não deva processar-se à margem da entidade empregadora, como porventura sucederia se a incapacidade decorresse de factores estranhos à prestação laboral. Nesse sentido, a regra do art.º 9.º do Dec.-Lei n.º 248/99, de 2/7, (diploma que regulamentou a Lei n° 100/97, de 13/9, relativamente a protecção da eventualidade de doenças profissionais, a par do que para os acidentes de trabalho sucedeu com o Dec.-Lei n° 143/99, de 30/4), é inequívoca: 'aos trabalhadores afectados de lesão ou doença que lhes reduza a capacidade de trabalho ou de ganho em consequência de doença profissional será assegurada, na empresa ao serviço da qual ocorreu a doença, a ocupação e função compatíveis com o respectivo estado e a respectiva capacidade residual'. Ou seja: a lei impõe como regra, em caso de trabalhador afectado de doença profissional, que o empregador proceda à sua reconversão funcional, garantindo-lhe emprego compatível com a sua capacidade de trabalho residual. E essa é, inequivocamente, a situação da recorrente. Em consequência, para fazer operar a caducidade da relação laboral, não bastava à R. alegar verificar-se a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de a A. continuar a prestar o seu trabalho, nas funções de magarefe para que havia sido contratada. Impunha-se à apelada que tivesse alegado, e que o tivesse provado em juízo, que lhe era impossível proceder à reconversão profissional da trabalhadora, e de lhe atribuir outras funções compatíveis, designadamente por não dispor na empresa de qualquer posto de trabalho para o efeito. Como elemento fáctico constitutivo do direito a invocar a caducidade do contrato, era sem dúvida a R. que incumbia o ónus de provar essa eventualidade.» 6. Na contestação, alegou-se, entre os mais, que: — A Autora desprezou postos de trabalho afectos ao bar e à cantina, à portaria, à segurança e à limpeza das instalações [13 a 15]; — A Ré apenas dispunha (e dispõe) de menos de 5 postos de trabalho cujo leque de funções se coaduna com as que a Autora pretendia desempenhar [17]: um de telefonista-recepcionista [18]; três de secretariado [19]; e um de apoio à contabilidade, exercido por uma contabilista [20]; — Quanto ao secretariado, «duas estão afectas ao Departamento Financeiro e a terceira está afecta ao Departamento de Recursos Humanos» [21] e; — Tal quadro de pessoal é mais do que suficiente para fazer face às necessidades de carácter administrativo, razão pela qual não sofreu nos últimos anos, qualquer alteração na sua composição [22 e 23]. Estes factos, tendentes a demonstrar a impossibilidade de a Ré proporcionar à Autora ocupação compatível com a sua situação de incapacidade, assumem, no quadro do regime jurídico aplicável, traçado pelo acórdão da Relação, e aqui acolhido, manifesto interesse para a resolução da questão da caducidade, pelo que, sendo controvertidos, a ter sido elaborada a base instrutória, deveriam nela ter sido inscritos, a fim de sobre eles incidir a actividade probatória. Na decisão proferida sobre a matéria de facto (fls. 104/105), após a indicação dos factos que o tribunal considerou provados, por referência ao teor dos artigos da petição inicial e da contestação, através da menção dos respectivos números, indicação que não contemplou nenhum dos supra referidos números da contestação, lê-se: «Para além destes não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa» e, mais adiante, «A matéria de facto não provada resulta de ser conclusiva, ou não ter interesse para a decisão da causa ou nem sequer se ter provado por testemunhas ou documentos». Aquela asserção decisória pressupõe um juízo de selecção dos factos com interesse para a decisão da causa. Ignora-se, em face do modo como se exprimiu o julgador, se foram, ou não, considerados como tal — com interesse para a decisão da causa — e escolhidos para serem objecto de prova os pontos acima indicados e, consequentemente, se o veredicto de não provado os contempla, ou não, o que também não é esclarecido pela motivação do mesmo veredicto, em que se afirma, sem a necessária discriminação, que a matéria de facto não provada resulta de ser conclusiva, ou não ter interesse para a decisão da causa ou nem sequer se ter provado por testemunhas ou documentos. A dúvida adensa-se, porquanto o julgador, na solução da questão de direito, considerou que à Autora incumbia o ónus de alegar e provar os factos atinentes à possibilidade de ela ser colocada em posto de trabalho compatível com a sua incapacidade. Não falta de elaboração da base instrutória, afigura-se indispensável que na decisão da matéria de facto controvertida se proceda a uma concretização dos factos aos quais se dirige o juízo de provado e/ou de não provado, por forma a permitir apreciar da correcção e completude da selecção dos factos que interessam à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, pois só assim pode actuar o disposto no n.º 3 do artigo 729.º citado. Tal concretização não se mostra feita, pelo que, não tendo havido pronúncia específica sobre os pontos de facto em causa, e ignorando-se se o julgador os considerou ou não com interesse para a decisão da causa, deve entender-se, para efeito da aplicação daquele preceito, que a decisão proferida sobre a matéria de facto não constitui base suficiente para a decisão de direito. 7. No âmbito da previsão do mesmo preceito, há que dizer que, como assinala a Exma. Magistrada do Ministério Público, existe contradição entre o que se afirma no n.º 3 do elenco dos factos provados — «A A. detinha ultimamente e formalmente a categoria profissional de magarefe de 3.ª, mas certo é que vinha desempenhando funções correspondentes à sua categoria profissional, mas, igualmente, desempenhava tarefas correspondentes a funções de natureza administrativa» — e o que consta do n.º 12 do mesmo elenco — «A única tarefa que a Autora desempenhou diferente daquela para a qual foi contratada foi a recolha e processamento de análises clínicas aos animais abatidos para despiste da BSE e da SCRAPIE». Tal contradição é patente, dada a incompatibilidade entre a afirmação de que a Autora desempenhava tarefas correspondentes a funções de natureza administrativa e a asserção de que a única tarefa que desempenhou, diferente daquela para a qual foi contratada foi a de recolha e processamento de análises clínicas, e, no contexto do quadro factual disponível e do que for fixado após a ampliação, e é susceptível de perturbar a viabilização da solução jurídica do pleito. De tudo quanto se deixou dito decorre a necessidade de voltarem os autos ao tribunal recorrido, a fim de serem sanados os apontados vícios da decisão da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto nas conjugadas disposições dos artigos 729.º, n.º 3 e 730.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. III Por tudo o exposto, decide-se: — Declarar não escritas as expressões, supra indicadas, dos pontos 13 e 14 do elenco dos factos provados; — Ordenar que os autos voltem ao tribunal recorrido, a fim de ser ampliada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por forma a contemplar os factos, acima referidos, alegados pela recorrente para fundamentar a cessação por caducidade do contrato de trabalho e a fim de ser eliminada a apontada contradição, julgando-se novamente a causa, segundo o regime jurídico supra definido, nestes termos se concedendo a revista. Custas a cargo da Autora. Lisboa, 12 de Novembro de 2009. Vasques Dinis (Relator) Bravo Serra Mário Pereira |