Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1396/23.1PCSTB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DOS REIS BRAVO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO
DESCENDENTE
VÍCIOS
ARTIGO 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 06/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. A pena única do concurso, formada no sistema de cúmulo jurídico, que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

II. A atuação do arguido, enquanto progenitor da vítima, demonstrada nos autos revela, pelo menos num período limitado, relativamente ao crime de violência doméstica e ao crime de violação, ambos agravados, uma atitude de completo desprezo pelos valores e bens jurídicos tutelados por tais incriminações, movida por um propósito de atentar contra a liberdade sexual da vítima, de forma violenta e num quadro de indefesa e concretamente acrescida vulnerabilidade da mesma.

III. Não se mostram, face ao que se documentou nos autos – e o arguido expressamente aceita – desproporcionais nem excessivas as penas – de quatro e de onze anos de prisão – que, respetivamente, foram aplicadas aos referidos tipos de crime.

IV A personalidade do arguido, documentada nos factos provados, traduz uma atuação indiferente aos bens jurídicos protegidos pelos crimes cometidos – a integridade física, moral e sexual da vítimas – sem se registar qualquer ato de arrependimento ou tentativa de reparação.

V. Permanecendo inalteradas as penas parcelares aplicadas no acórdão recorrido, importa reconhecer, no contexto da apreciação das consequências jurídicas dos crimes provados, numa moldura (de concurso efetivo) que oscila entre 11 (onze) e os 15 (quinze) anos de prisão, não se mostra excessiva a pena única de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Setúbal/Juiz 1 procedeu ao julgamento do arguido AA, melhor identificado nos autos, tendo proferido acórdão nos presentes autos, em 31 de janeiro de 2025 (Ref.ª Citius .......42), depositado em 03-02-2025, deliberando condená-lo, entre outras determinações, nos seguintes termos:

«(…)

2. Condenar o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, pela prática dos seguintes crimes nas seguintes penas:

a) 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelos artigos 152.º n.º 1, alínea e), n.º 2 alínea a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

b) 1 (um) crime de violação, praticado no dia 23 de dezembro de 2023, previsto e punido pelo artigo 164.º n.º 2 alínea a), agravado pelo artigo 177.º n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal na pena de 11 (onze) anos de prisão.

3. Proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares e condenar o arguido AA na pena única de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

4. Condenar o arguido AA no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais, à assistente BB, no valor de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil de 4%, contabilizados a partir do depósito do presente acórdão até efetivo e integral pagamento.

5. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas pelo período máximo de 5 (cinco) anos;

6. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contactos com a assistente pelo período máximo de 5 (cinco) anos;

7. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 15 anos.

8. Condenar AA na pena acessória de proibição de assumir as responsabilidades parentais, confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 15 anos.

(…)».

2. Desta decisão, recorre(u) o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também “STJ”), em 03-03-2025 (Ref.ª Citius .....05), apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª O arguido manifesta o interesse na subida do recurso interlocutório, interposto em 10/02/2025 (referência citius .....49), já admitido, a subir a final, conforme douto despacho de 17/02/2025 (referência citius .......82).

2.ª A pena tem, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, como finalidade primeira a proteção de bens jurídicos, bem como as expetativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada e no restabelecimento da paz jurídica, devendo fixar-se de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal,

3.ª Sopesado a moldura penal, as exigências de prevenção geral e as exigências de ressocialização, entendemos como adequada, necessária e proporcional a aplicação das penas parcelares de 3 (três) anos de prisão para o crime de violência doméstica agravada e de 6 (seis) anos de prisão para o crime de violação agravado e na aplicação da pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses,

4.ª O Tribunal Coletivo ao condenar o arguido nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e de 11 (onze) anos para, respetivamente, o crime de violência doméstica agravado e para o crime de violação agravado e na aplicação da pena única de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses, não observou os critérios de determinação da pena que resulta da conjugação dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.

5.ª A sentença recorrida viola os artigos 40º, 43º, 47º, 50º, 70º e 71º do Código Penal.

6.ª Verifica-se a nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal por referência ao nº 2 do artigo 374º desse diploma.

6.ª A norma contida no nº 3 do artigo 71º do Código Penal é inconstitucional, quando interpretada no sentido de que a Sentença dá cumprimento ao dever de expressamente referir os fundamentos da medida da pena, mesmo que omita a alusão a algumas das circunstâncias mencionadas no nº 2 do artigo 71º do código penal, por violação dos nºs 1 e 2 do artigo 27º, do nº 1 do artigo 32º e do nº 1 do artigo 205º da lei fundamental.

Nestes termos, concedendo V.Exas. provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência, condenar o arguido na pena de 3 (três) anos de prisão para o crime de violência doméstica agravada e na pena de 6 (anos) de prisão para o crime de violação agravada e na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão».

3. Admitido tal recurso do arguido, por despacho de 11-03-2025 (Ref.ª Citius .......91), respondeu a Senhora magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido em 20-03-2025 (Ref.ª Citius .....02), de cuja peça se extratam as respetivas conclusões (transcrição):

«1ª – O douto acórdão recorrido não se mostra ferido de nulidade por falta de fundamentação da medida das penas parcelares e única – subsumível aos arts. 374º nº 2 e 379º nº 1 al. a) do C.P.P. –, observando escrupulosamente os ditames do artº 71º nº 3 do C.P. e do artº 375º nº 1 do C.P.P.;

2ª – A pena única de oito anos e seis meses de prisão reclamada pelo Recorrente não se distancia daquela que o Ministério Público propôs em sede de alegações orais no final da produção de prova.

V. Exªs, porém, melhor apreciarão, decidindo conforme for de JUSTIÇA»

4. O arguido AA havia interposto recurso, em 10-02-2025 (Ref.ª Citius .....49), da parte do despacho de 09-01-2025 (Ref.ª Citius .......01), que havia indeferido a sua pretensão no sentido de ser realizada nova perícia de personalidade.

No âmbito de tal recurso interlocutório – cujo interesse na sua apreciação o arguido manifesta – o recorrente apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

«1.ª) – O relatório da perícia médico-legal na valência de Psicologia é um meio de prova, nos termos do disposto pelo artigo 151.º do Código de Processo Penal, que serve para fundamentar a decisão final a proferir pelo Tribunal a quo.

2.º) – O despacho que se pronuncie acerca do pedido de uma segunda perícia é recorrível, nos termos do disposto pelo artigo 399.º e 400.º, 1, al. a) a contrario.

3.º) – Não tendo o relatório transmitido ou comunicado previamente ao examinado, aqui recorrente, que procederia à gravação da entrevista (com vista a reduzir com exatidão as suas respostas), não pode ser aceite, como decorrente das regras da experiência comum, que um perito conseguisse formular perguntas, estar a observar o examinado/recorrente e a reduzir ipsis verbis o que lhe estava a ser respondido, tal como encontramos neste relatório pericial em crise.

4.ª) – Um relatório pericial não se pode afastar do objeto do processo e da sua acusação,

5.ª) – Na perícia ao recorrente, foi usado um teste, ao caso o teste ECV, que é um teste para aferir a escala de crenças sobre violência conjugal, que, salvo melhor opinião, não pode ser aplicado ao caso presente, porque o examinado não se achava a responder a uma acusação por violência contra pessoa que com ele mantinha uma relação igual à de cônjuge ou mesmo seu cônjuge,

6.ª) – Sem que tivesse existido qualquer fundamentação (no relatório) para estar a ser aplicado esse teste ao recorrente.

7.ª) – As incongruências assinaladas não podem deixar de fundamentar um pedido de realização de segunda perícia porque abalam a validade legal – não a competência da perita ou a idoneidade da entidade a quem foi delegada a tarefa – que se pode retirar, deste especifico, meio de prova,

8.ª) – Ou seja, não fala o recorrente de ambiguidades ou de obscuridades do relatório pericial, antes, e muito anterior a isso, são dos meios e testes usados para a realização da perícia, que ferem depois o resultado.

9.ª) – O fundamento para o pedido da segunda perícia foi invocado pelo recorrente, no seu requerimento de 26/12/2024 (referência citius .....24) de fls….., o que teria de ser suficiente, ou seja, não precisando de invocar qualquer desconformidade formal para o cimentar e/ou impugná-lo com base em obscuridade ou ambiguidade.

10.ª) – Bastando a norma do artigo 158.º, 1. al. b) do Código de Processo Penal que o recorrente – como o fez – invocar que aquela nova perícia importava à descoberta da verdade, era pertinente e não se revelava dilatória processualmente,

11.ª) – Ao indeferir a realização dessa segunda perícia, pelas razões e motivos que se apontaram, violou o Tribunal a quo tal disposição legal.

Nestes termos, deverão V. Exas. dar provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar que seja substituída por outra que admita o requerimento de pedido de segunda perícia.»

5. Admitido tal recurso (interlocutório) por despacho de 17-02-2025 (Ref.ª Citius .......82), respondeu o Ministério Público no tribunal recorrido, em 20-03-2025 (Ref.ª ...46), pugnando pela sua improcedência, concluindo nos termos:

«1ª – Insurge-se o Recorrente contra o despacho proferido em 9 de Janeiro de 2025, na parte em que indeferiu a realização de nova perícia à personalidade por si requerida;

2ª – Só pode haver lugar a nova perícia quando a sua realização “se revelar de

interesse para a descoberta da verdade” – juízo cuja formulação cabe ao julgador e não ao eventual requerente;

3ª – Ao contrário do que parece pressupor o Recorrente, não existe uma espécie

de “direito” a uma segunda perícia que se baste com a invocação (insindicável) da sua importância para a descoberta da verdade no caso concreto;

4ª – O relatório pericial junto aos autos não patenteia inobservância dos requisitos estabelecidos no artº 157º do C.P.P., nem deixa transparecer incumprimento dos procedimentos da perícia contemplados no artº 156º do C.P.P., apresentando-se inteiramente compreensível, completo e fundamentado;

5ª – O inconformismo do Recorrente relativamente ao sobredito relatório assenta em alegações sobre a forma como decorreu a perícia (indemonstradas) e recai sobre as respectivas conclusões e os instrumentos técnico-periciais utilizados (que não lhe compete questionar e de que o próprio tribunal só pode divergir limitadamente – arts. 151º e 163º do C.P.P.);

6ª – Ao indeferir a realização de nova perícia, o Mmº Juiz a quo interpretou correctamente a norma constante da al. b) do nº 1 do artº 158º do C.P.P., sem violar esse ou qualquer outro comando legal.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido o douto despacho recorrido.»

6. A assistente-demandante BB recorreu, igualmente, em 10-02-2025 (Ref.ª ......85), da parte do despacho de 09-01-2025 (Ref.ª Citius .......01), que havia indeferido a sua pretensão no sentido de ser ampliado o pedido de indemnização civil formulado, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

«A. Não foi acertada a decisão do, conquanto, mui douto Tribunal a quo quando inferiu o pedido de ampliação da indemnização a arbitrar em consequência dos crimes de que a ora recorrente foi vítima.

B. A assistente deduziu pedido de indemnização civil apenas 6 meses após decorridos os macabros crimes dos quais foi vítima, tratando-se de uma menor de 16 anos de idade, cuja mãe tinha falecido era ela ainda uma criança, tendo vindo de Angola residir para Portugal com o pai, onde não tinha qualquer referência ou suporte, que não o pai, arguido.

C. A assistente, no pedido de indemnização que apresentou, deu por reproduzido o teor da acusação pública e acrescentou toda a factualidade susceptível de fundar a obrigação de indemnizar, tal como a lei lhe impunha, nomeadamente explicando que os danos que sofrera ultrapassavam em muito as meras dores físicas e danos morais temporários, incluindo ainda traumas irreversíveis e incalculáveis, humilhação, vergonha, medo, ansiedade, sentimento de ruptura completa com o conceito de família e dos laços afectivos e confiança que deviam existir nesse seio e que sente que nunca conseguirá recuperar a capacidade de confiar no futuro, ou de se sentir confortável com a sua sexualidade novamente.

D. Explicou também que toda a actuação do arguido levou à mudança de escola e consequente ruptura dos laços de amizade que já tinha conseguido desenvolver, a que acresceu depois a reprovação no ano lectivo.

E. E explicou que mantém apoio psicológico e que tem momentos de muita tristeza e instabilidade emocional que, invariavelmente, acabam em choro e profunda mágoa e em noites sem dormir ou com o sono perturbando por pesadelos.

F. E tudo isto levou a ora recorrente a equacionar por termo à sua própria vida.

G. Não obstante, a ora recorrente quando deduziu o Pedido de Indemnização Civil, não contabilizou, por assim dizer, devidamente, o que os crimes dos quais foi alvo iriam implicar para a sua saúde mental e para o seu futuro, nem tinha forma de o fazer, dado o estado emocional em que se encontrava (e encontra) e ainda a sua imaturidade e inexperiência. E não contabilizou que estava sozinha num país que não era o seu e também não contabilizou que o seu objectivo de vir para Portugal – estudar para ter uma vida melhor – estava irremediavelmente comprometido, por não ter forma de prover ao seu sustento e, consequentemente, aos seus estudos.

H. Decorre da fundamentação do despacho de que ora se recorre, que o Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação do Direito.

I. Como se viu, toda a factualidade relativa aos danos passados, presentes e futuros encontra-se devidamente refletida no seu pedido de indemnização civil ab initio e está também reflectido que os danos são permanentes e alguns deles irreversíveis.

J. Assim, quando a ora recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 265.º n.º 2 do Código de Processo Civil, requereu a ampliação do pedido de indemnização cível para a quantia de 50.000,00 Euros, justificou o referido requerimento com a “gravidade dos danos morais sofridos pela assistente e cujo ressarcimento não se alcança com o valor do pedido inicialmente formulado.

K. Pelo que resulta claramente da formulação do pedido, que a causa de pedir e a fundamentação se mantêm, alterando-se apenas o quantum em função do facto de a gravidade dos danos morais sofridos pela ora recorrente ter-se revelado maior que aquela inicialmente considerada.

L. O artigo 265.º n.º 2 CPC, aplicável ex vi art.º 4.º CPP, é claríssimo quando dispõe que o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, não limitando ou exigindo que o pedido de ampliação seja acompanhado de qualquer fundamentação, desde que a ampliação esteja virtualmente contida no âmbito do pedido inicialmente deduzido, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, sem a dedução de novos factos.

M. Pelo que resulta claro que é entendimento da jurisprudência e doutrina que o caso que aqui nos ocupa configura um desenvolvimento do pedido primitivo, cuja causa de pedir emerge dos factos constantes do pedido de indemnização civil originariamente apresentado, que se encontra devidamente fundamentado.

N. Ainda que se tratasse de factos novos que não tivessem sido alegados, sempre seria admissível a ampliação do pedido, nos termos do decidido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de junho de 2019, proferido no processo nº 22392/16.0T8PRT.P1.S1, pois os mesmos não integram uma nova causa de pedir e a causa de pedir já estava suficientemente individualizada na petição inicial.

O. No que respeita à “total ausência de causa de pedir” que fundamentou o indeferimento da ampliação do pedido de indemnização civil do qual se recorre, além do que já foi supra exposto, acresce que apenas existe falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor, não indicando o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão.

P. Ora, daqui resulta que no caso do requerimento apresentado pela Recorrente não se trataria nunca de uma falta de causa de pedir, pois os factos foram alegados - gravidade dos danos morais sofridos pela assistente e cujo ressarcimento não se alcança com o valor do pedido inicialmente formulado - é esse o “núcleo essencial do direito invocado”.

Q. Não definindo a lei o que se entende por “desenvolvimento” ou por “consequência” do pedido primitivo, deve então entender-se que a ampliação do pedido será processualmente admissível, quando o novo pedido esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicialmente deduzido, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, sem a dedução de novos factos

R. Pelo que mal andou o Tribunal a quo quando indeferiu o pedido com esse fundamento.

S. Resta, então, averiguar se existiu insuficiência da causa de pedir: há insuficiência da causa de pedir quando aqueles factos são alegados, mas são insuficientes para determinar a procedência da acção.

T. Mas essa insuficiência, como se sabe, não fulmina de inepta a petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido, antes cabendo ao juiz, nos termos do artº. 590º, nº. 2, al. b) e nº. 4 providenciar pelo suprimento dessas deficiências por convidar as partes ao aperfeiçoamento dos respectivos articulados.

U. Ainda que se considerasse que a causa de pedir era insuficiente, o que não se aceita, mas se concede por dever de patrocínio, tal não poderia determinar o indeferimento do pedido de ampliação, devendo ter sido feito o convite ao aperfeiçoamento do pedido.

V. O que não fez, nos termos que lhe eram impostos pelo art.º 590.º n.º 2 alínea b), 3 e 4 CPC, aplicável ex vi art.º 4.º CPP.

W. Já o Demandado, ainda que se tenha oposto à requerida ampliação alegando que a mesma não deveria ser admitida porque não teria existido um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, claramente compreendeu que a ampliação deriva da gravidade dos factos alegados no pedido de indemnização que já havia contestado e cuja contestação se limitou a negar os factos dos quais vinha acusado.

X. A actuação do Tribunal a quo violou ainda o direito à reparação integral do dano previsto no artigo 562.º do Código Civil, que visa garantir que todos os danos resultantes dos factos alegados sejam devidamente indemnizados.

Y. Embora, in casu, saibamos que não há possibilidade de qualquer reposição ou reconstituição, a verdade é que em matéria de danos não patrimoniais o que a lei visa acautelar é alguma reparação e alguma compensação para o mal sofrido, que deve ser proporcional à gravidade do dano e com alcance significativo.

Z. Assim, e salvo melhor opinião, cremos que o indeferimento do pedido de ampliação da indemnização a atribuir à vítima configura uma clara, infundada e inaceitável compressão do Direito que a mesma tem de ver os danos não patrimoniais que sofreu não reparados – pois que in casu não têm reparação possível -, mas compensados com a perspectiva de uma possibilidade de alcançar um futuro melhor.

AA.Pelo que a rejeição da ampliação do pedido impede a reparação integral do dano prevista pelo artigo 562.º CC.

BB.Incorreu ainda o Tribunal a quo em violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva pois, a improceder o presente recurso com fundamento numa suposta ausência de causa de pedir quando, como se viu, esta já estava identificada, representa uma interpretação excessivamente restritiva e contrária ao princípio do acesso efectivo à justiça, previsto no art.º 20.º, n.º 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, pois as normas que modelam este acesso não podem obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível ou dificultá-lo de forma não objetivamente exigível, desproporcionada ou com formalismos excessivos.

CC.A manter-se a decisão recorrida, verifica-se a violação do princípio da economia processual, pois não existe nenhum obstáculo, material ou formal, à ampliação do pedido, sendo que, razões relacionadas com a economia processual, com o denominado princípio pro actione – visando a concretização de uma tutela jurisdicional não formalista, efetiva e eficaz, nos termos constitucionalmente consagrados - poderão determinar a aplicação de um tal instituto, sendo ainda de admitir a ampliação do pedido em relação a danos que o demandante já conhecia no momento em que apresentou o pedido de indemnização

DD.Pelo que, além de ser admissível a ampliação do pedido com base no que se tem vindo a invocar, é ainda desejável, por razões de economia e celeridade processual, que a mesma seja admitida.

EE. Face a tudo o exposto, a decisão recorrida violou as seguintes normas jurídicas: 129.º CP, 265.º n.º 2 CPC, 260.º CPC, 186.º n.º 1 e 2 alínea a) CPC, a contrario, 552.º n.º 1 alíneas d) e e) CPC, a contrario, 590.º n.º 2 alínea b) e n.ºs 3 e 4 CPC, 6.º CPC, 562.º CC, 7.º n.º 1 CP e 20.º n.ºs 4 e 5 CRP.

FF. Impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido, o que implica anulação do julgamento, apenas, na parte em que não foi apreciada a ampliação do pedido civil, reabrindo-se a audiência para apreciação dessa ampliação, proferindo-se de seguida nova sentença em relação ao pedido civil formulado pela demandante.

FACE AO SUPRA EXPOSTO, DEVE O PRESENTE RECURSO PROCEDER E SER REVOGADO O DESPACHO QUE INDEFERIU A AMPLIAÇÃO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL, SENDO SUBSTITUIDO POR OUTRO QUE O ADMITA,

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA

JUSTIÇA.»

7. Admitido tal recurso (interlocutório) da assistente por despacho de 17-02-2025 (Ref.ª Citius .......82), respondeu o arguido em 27-02-2025 (Ref.ª ......60), no sentido da improcedência do mesmo.

8. Ordenada a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor magistrado do Ministério Público aqui em funções emitiu parecer ao abrigo do art. 416.º do CPP, em 07-05-2025 (Ref.ª Citius ......93), no sentido da não admissibilidade dos recursos interlocutórios (do arguido e da assistente) e da improcedência do recurso do acórdão final.

9. Notificados os sujeitos processuais, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, os mesmos nada requereram.

10. Não tendo sido requerida audiência, colhidos os vistos, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II.1. Fundamentação de facto (Factos provados)

11. Encontram-se provados, e não provados, os seguintes factos com relevância para a decisão (transcrição):

«(…)

1. A assistente BB (doravante apenas assistente) nasceu no dia ... de ... de 2007 e é filha do arguido e de CC, já falecida.

2. A assistente residiu em Angola, seu país de origem, aos cuidados de uma tia materna, até data não apurada do mês de setembro de 2023, data em que a ofendida veio viver para Portugal, juntamente com o arguido, seu pai, com quem sempre teve muito pouco contacto e convívio.

3. Em data não apurada do ano de 2022, o arguido convidou a assistente para vir viver consigo, em Portugal.

4. A assistente aceitou o convite do seu pai durante o ano de 2023, na expectativa de prosseguir os seus estudos em Portugal.

5. Chegada a Portugal, em data não apurada do mês de setembro de 2023, a assistente passou a residir com o arguido, aos cuidados deste, com a sua companheira, DD, e com a filha comum de ambos, menor de um ano de idade, na residência sita em Rua ....

6. No mesmo dia em que a assistente chegou a Portugal, o arguido questionou-a sobre se tinha namorado em Angola e sobre se ainda era virgem, tendo a assistente respondido com verdade, dizendo que já não era virgem.

7. A partir de então, o arguido sempre que consumia bebidas alcoólicas em excesso, visivelmente aborrecido com o facto de a assistente já ter iniciado a sua vida sexual, passou a revelar bastante agressividade para com aquela.

8. Concretizando, com periodicidade não apurada e em número não apurado de vezes, o arguido apelidou a assistente de «burra» e de «lenta»;

9. Disse ainda que ela era «uma merda» e que, como filha, não valia nada e não prestava para nada;

10. Apelidando-a em pelo menos uma ocasião, de «bandida» e de «fingida», depois da assistente lhe ter dito que não se sentia bem a morar consigo, e que não gostava do arguido por conta das coisas que os seus tios lhe tinham contado em Angola acerca do próprio.

11. Em data não apurada, mas ocorrida num dia em que a assistente, por se sentir indisposta não realizou a aula de Educação Física, o arguido, depois de ter tomado conhecimento do sucedido, desferiu-lhe pelo menos cinco chapadas no rosto, o que lhe causou dores.

12. Noutra ocasião, em data não apurada, mas ocorrida num dia em que o arguido ordenou à assistente que fosse à frutaria, e em que a assistente aproveitou a circunstância para comprar dois pacotes de pensos higiénicos, que lhe faziam falta e que já tinha pedido ao arguido que lhos deixasse comprar, o arguido, aborrecido com tal compra, puxou-lhe a orelha e desferiu-lhe uma bofetada no rosto, o que lhe causou dores.

13. Mais tarde, nesse dia, quando a assistente se assoou, saiu-lhe sangue do nariz.

14. Em data não apurada, mas ocorrida num dia em que a assistente se encontrava à varanda a estender roupa, o arguido por acreditar que a ofendida se tinha distraído porque levou muito tempo a executar a tarefa, desferiu-lhe uma bofetada na cara provocando-lhe dor.

15. Numa ocasião, em data não apurada do mês de novembro de 2023, quando a assistente se encontrava deitada na sua cama, no seu quarto, a dormir, o arguido dirigiu-se à mesma e pediu-lhe que lhe fizesse uma massagem nas costas e no pescoço, despindo-se da cintura para cima, pretensão a que a assistente acedeu, embora a contragosto.

16. Enquanto a assistente assim procedia, o arguido pediu que se sentasse ao colo dele, pretensão a que a ofendida, contudo, não acedeu.

17. Finda a massagem, o arguido pediu à ofendida que nada contasse à sua companheira, madrasta da assistente.

18. A assistente relatou o sucedido à companheira do arguido que, contudo, desvalorizou o relato.

19. No dia 23 de dezembro de 2023, perto da hora de jantar, quando a assistente se encontrava sozinha em casa, uma vez que a sua madrasta e a sua irmã tinham ido passar o fim-de-semana a Vila Franca de Xira, o arguido, ao chegar a casa, visivelmente alcoolizado, ordenou-lhe que trancasse a porta de casa, ordem que esta acatou.

20. Ordenou-lhe também, que lhe servisse o jantar, ordem que a assistente também acatou.

21. Depois disto, o arguido solicitou à assistente que se sentasse ao seu colo, numa cadeira da sala de jantar, pretensão que embora a contragosto, acedeu.

22. Passados uns minutos, o arguido pediu à assistente que lhe fizesse uma massagem nas costas e no pescoço, desta feita, no quarto do arguido.

23. Estranhando o pedido efetuado pelo arguido, para lhe fazer uma massagem no quarto deste, a assistente tentou esquivar-se, dando uma desculpa para o efeito.

24. Ainda assim, o arguido insistiu, ordenando-lhe que lhe fizesse a massagem e se deitasse na cama com ele, ordem que a assistente não acatou.

25. Nisto, o arguido deitou a ofendida na cama e disse-lhe que se deitasse por cima dele, pretensão a que a assistente, por medo, acedeu.

26. Então, o arguido questionou a assistente acerca do que lhe fazia falta, mormente roupas e dinheiro, e questionou-a, também, sobre se estaria disposta a ajudar o seu pai, caso fosse necessário, no futuro, ao que a assistente retorquiu afirmativamente, dizendo que ajudaria o seu pai no que estivesse ao seu alcance.

27. Entretanto, o arguido introduzindo as mãos por dentro da roupa, começou a acariciar as costas e as nádegas da assistente, ao mesmo tempo que lhe dizia que tal não era errado, mesmo sendo seu pai.

28. Nisto, o arguido virou a assistente na cama, colocando-a de barriga para cima, e deitou-se por cima da mesma.

29. Antecipando o que o arguido se preparava para fazer, a assistente começou a chorar e aquele ordenou-lhe que se calasse e parasse de chorar, para os vizinhos não ouvirem.

30. A assistente não parou de chorar e o arguido desferiu-lhe uma bofetada no rosto, com tal força que a assistente perdeu momentaneamente os sentidos.

31. Ato contínuo, o arguido agarrou a assistente pelos braços, impedindo que a mesma se libertasse, após o que lhe baixou as calças do pijama e as cuecas.

32. Enquanto o arguido assim procedia, a assistente após recuperar os sentidos informou-o que se encontrava menstruada e suplicou-lhe sucessivas vezes: “Pára pai!”, ao mesmo tempo que tentava com a mão segurar as cuecas e o penso higiénico de que fazia uso para, até ao limite das suas forças, evitar que o arguido a penetrasse.

33. Decidido a prosseguir com o seu propósito, o arguido ordenou à assistente que se calasse e retirasse a mão.

34. Após o que se despiu da cintura para baixo e, segurando com força os braços da filha, introduziu-lhe o seu pénis ereto no interior da vagina, penetrando-a, após o que aí o friccionou, por diversas vezes, em movimentos de vaivém, ao longo de aproximadamente cinco minutos.

35. Durante esse período, a assistente chorou em crescendo, ao mesmo tempo que o arguido lhe repetia que a mataria, atirando-a da janela.

36. Terminado o ato sexual, o arguido ordenou que saísse do quarto e fosse buscar algo para o próprio se limpar, pois que estava sujo do sangue proveniente da menstruação da assistente.

37. Porque a assistente não parava de chorar, o arguido disse-lhe que fez o que fez para que se tornasse uma mulher melhor no futuro e que, doravante, já não teria coragem de se relacionar com mais ninguém.

38. Em seguida, perguntou à assistente se ainda gostava do seu namorado e, perante a resposta afirmativa da mesma, o arguido desferiu-lhe bofetadas no rosto.

39. Então, a assistente, acatando a ordem que lhe fora dada anteriormente pelo arguido, e sem parar de chorar, foi à casa de banho buscar toalhitas.

40. Em seguida o arguido ordenou à assistente que lhe entregasse a chave da porta de casa, ordem que esta acatou, após o que o arguido trancou a porta de casa, para impedir que a sua filha saísse e relatasse a alguém o sucedido.

41. Na ocasião, a assistente não dispunha de telemóvel, pois que o uso de telemóvel lhe fora interdito pelo arguido, como castigo, pelo sucedido na aula de Educação Física.

42. Privada de movimentos e de liberdade de circulação e de se ausentar da sua residência pelo arguido, e impedida de contactar telefonicamente com quem quer que fosse, a assistente viu-se obrigada a permanecer em casa, naquela noite e durante parte do dia seguinte, contra a sua vontade.

43. No dia seguinte, o arguido, em conversa com a assistente, sob o pretexto de que cometera um erro na noite anterior, e enquanto pedia desculpa pelo sucedido, pediu-lhe que não contasse nada a ninguém, nem mesmo à sua madrasta e que lhe daria tudo aquilo que ela quisesse;

44. Disse-lhe, também, que se contasse o sucedido a alguém, voltaria para Angola sem completar os seus estudos.

45. A assistente, exteriorizando revolta e mágoa, não aceitou o pedido de desculpa do arguido e este tentou, então, justificar a sua conduta da noite anterior, dizendo que o seu tio fizera o mesmo com a sua tia e que se tratava de uma espécie de praga da sua família.

46. Aproveitando a conversa que mantinham, a assistente pediu novamente ao arguido que a deixasse sair de casa, pretensão a que o arguido não acedeu, mantendo-a privada de movimentos, em casa, para que esta não contasse o sucedido a ninguém.

47. Entretanto, o arguido ordenou à ofendida que fosse tomar banho e esta, fingindo que procedia em conformidade com a ordem que lhe fora dada pelo seu pai, dirigiu-se para a casa de banho, pôs a água do duche a correr e limpou-se superficialmente com papel higiénico, pois que não queria destruir eventuais vestígios biológicos do arguido que pudesse ter deixado no seu corpo.

48. Só no período da tarde do dia 24 de dezembro, é que o arguido acedeu ao pedido da ofendida e permitiu a saída de casa, porque a mesma se comprometeu a ir assistir à reunião do culto Jeová, que já frequentava com a sua madrasta, e regressar, tudo sem contar nada a ninguém.

49. Foi, então, na reunião do culto Jeová que a assistente conseguiu pedir ajuda, depois de ter relatado o sucedido na noite anterior e naquele mesmo dia, tendo, posteriormente, sido acompanhada por outros membros do culto Jeová à Esquadra da P.S.P. de Setúbal, onde denunciou os factos de que foi vítima.

50. Em consequência direta e necessária da factualidade supra descrita a assistente sofreu, para além de dores na região genital, ao nível da cabeça, equimose na hemiface esquerda, na bochecha, arroxeada, linear, com 3 cm de comprimento vertical, lesões que lhe determinaram 8 (oito) dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem consequências permanentes; e, ao nível da região genital, soluções de continuidade na comissura posterior e freio dos pequenos lábios posterior e na rafe perineal à esquerda, que resultaram de traumatismo contundente, compatível com penetração vaginal por pénis, lesões que lhe determinaram 8 (oito) dias para a cura.

51. O arguido agiu conforme anteriormente descrito, tirando partido da circunstância de viver, na mesma residência, com a assistente, sua filha, que se encontrava à sua guarda, aos seus cuidados e sob a sua educação, assistência e responsabilidade, e da relação de parentesco existente, usando sempre, para o efeito, do ascendente e poder de autoridade que tinha sobre a mesma, por ser seu pai.

52. Ao praticar os factos descritos nos pontos 8 a 14, 19, 20, 36, 38, agiu sempre com a intenção, concretizada, de amedrontar e de atemorizar a assistente, intimidando-a e levando-a a fazer o que ordenava, bem assim como de lesar a sua saúde psíquica, humilhando e ofendendo a sua honra e consideração, vexando-a na sua dignidade enquanto pessoa, e, ainda, com a intenção de molestar o seu corpo, o que conseguiu.

53. Ao praticar os factos descritos nos pontos 15, 16, 21, 22 a 35, agiu o arguido com o propósito, concretizado, de satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente às consequências que tal atuação provocava na assistente, bem sabendo que ao proceder da forma supra descrita, e ao utilizar o seu ascendente e autoridade para a forçar a fazer-lhe as massagens e ao empregar a força física para manter relações sexuais de cópula com a sua filha, atuava contra a vontade desta.

54. Mais sabia o arguido que a sua atuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da assistente, e que ao atuar da forma descrita, punha em crise a livre formação da sua personalidade, por atentar de forma grave contra o sentimento de pudor, vergonha e decência da sua própria filha.

55. Ao cercear a liberdade de movimentos da assistente, nos termos descritos nos pontos 40 a 47, agiu com a intenção concretizada, de a privar da sua liberdade e de a manter, contra a sua vontade, no interior da aludida habitação.

56. O arguido agiu, sempre e em tudo, de forma livre, deliberada e consciente, sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, podia determinar-se em sentido contrário de acordo com essa avaliação que efetivamente fez e, ainda assim, não se absteve de as praticar.

Mais se provou

57. O arguido praticou os factos descritos nos pontos 17, 40 a 47, também com o intuito de ocultar as suas condutas.

58. Por causa da conduta do arguido, a assistente sofreu e sofre muita angústia, ansiedade e desgosto por ter sido vítima do próprio pai, o que a afetou na sua personalidade e desenvolvimento, percecionando os factos sofridos como traumáticos.

59. A assistente sentiu-se profundamente triste, desiludida, envergonhada, humilhada e revoltada com os factos praticados pelo arguido, sentimentos que mantém à data de hoje.

60. Por causa das múltiplas chapadas que o arguido lhe desferiu, a assistente sofreu dores nas zonas atingidas.

61. A assistente esteve internada no Hospital do ... pelo menos do dia 25 de dezembro de 2023 ao dia 05 de janeiro de 2024, após o que foi acolhida na instituição de solidariedade social Casa ... em..., ficando privada das suas roupas e dos seus documentos, retidos na residência do progenitor, o que lhe causou tristeza, desconforto e ansiedade acrescidos.

62. A institucionalização mantém-se à data de hoje.

63. Por causa dos factos praticados pelo arguido, a assistente ponderou pôr termo à sua vida.

64. Passou por dificuldades em dormir, tendo ataques de pânico, sofrendo ainda de insónias e somatizando dores quando recordava o episódio ocorrido no dia 23 de dezembro de 2023.

65. Mantém acompanhamento psicológico semanal, sendo medicada para a insónia e ansiedade com sertralina 50mg e olanzapina 2,5mg.

66. A assistente tem medo do arguido.

Factos atinentes ao relatório social

67. O arguido nasceu em angola e viveu a infância com os seus pais, tendo 9 irmãos, sendo 6 uterinos e 3 germanos, passando períodos com os tios.

68. O agregado familiar manteve-se unido até à separação dos progenitores por volta dos anos 2007/2008

69. A mãe, empresária do ramo automóvel, faleceu em 2015.

70. O pai, militar, está reformado.

71. O arguido ingressou no ensino escolar aos 6 anos e reprovou no 7.º ano ainda em Angola.

72. Ingressou no Instituto Industrial de Luanda, tendo reprovado.

73. Após, trabalhou para a Sonangol além do mais na construção de tanques.

74. Em 2020 decidiu vir para Portugal trabalhar na manutenção industrial, tendo frequentado formações na área da instrumentação automática, metalomecânica/tubagens e soldadura.

75. O arguido teve a sua primeira relação, com a mãe da assistente, nunca tendo vivido com a mesma e tendo manifestado dúvidas quanto à sua paternidade.

76. Posteriormente teve mais uma relação curta da qual não teve filhos seguindo-se mais três relacionamentos dos quais teve mais cinco filhos, um casal do primeiro, dois filhos do segundo e uma filha do terceiro e último relacionamento com a madrasta da assistente.

77. O arguido tem junto de familiares mais próximos e amigos, imagem de pessoa muito trabalhadora, empática, adotando habitualmente comportamentos socialmente aceitáveis.

78. O arguido é descrito ainda junto de familiares e amigos próximos como consumidor moderado de álcool.

79. O arguido foi alvo de uma tentativa de homicídio, tendo sido atingido a tiro no interior do prédio da sua residência, razão pela qual passou a colocar todas as noites uma garrafa de gás encostada da parte de dentro, à porta de saída do seu apartamento.

80. A factualidade subjacente ao episódio descrito no ponto 79, foi julgada neste Juízo Central Criminal de...– J..., sob o n.º de processo 211/22.8...

Antecedentes criminais

81. O arguido não tem antecedentes criminais

A. Factos não provados com relevância para a decisão da causa:

a. Que o arguido tenha ordenado à assistente que lhe fizesse massagem nas costas noutras ocasiões para além das que se julgaram provadas.

b. Que também aquando da factualidade julgada provada e descrita no ponto 16, o arguido tenha questionado a assistente sobre o namorado que a mesma tinha em Angola e sobre se tinha saudades dele.

c. Que também no preciso momento descrito no ponto 33, o arguido tenha desferido bofetadas no rosto da assistente.

d. Que a assistente fosse especialmente frágil e vulnerável em função da sua tenra idade, aquando da prática dos factos pelo arguido.»

II.2. Mérito do recurso

9. O âmbito dos poderes de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21-02).

Tendo-se analisado o acórdão recorrido, não se pode dizer que enferme de nulidade por falta de fundamentação, ou de qualquer outra das previstas no artigo 379.º, n.º 1, do CPP, bem como qualquer dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, que igualmente se não têm por verificados.

Da motivação e das conclusões do recurso interposto pelo arguido AA, do acórdão (final), podemos inferir que o mesmo pretende sindicar o acórdão recorrido, exclusivamente quanto à matéria de direito – em concreto, quanto à nulidade do acórdão por falta de fundamentação, à medida das penas parcelares aplicadas aos crimes de violência doméstica e de violação agravada, e da pena única aplicada ao cúmulo das penas parcelares aplicadas aos dois referidos crimes, pelos quais foi condenado, suscitando ainda uma inconstitucionalidade da norma do art. 71.º, n.º 3, do CP.

Todavia, conforme atrás se mencionou, acham-se admitidos dois recursos interlocutórios, um por parte do arguido, e um outro interposto pela assistente-demandante, relativamente às duas partes do despacho do Senhor juiz Presidente do Coletivo, de 09-01-2025, cumprindo, pois, apreciar tais recursos, enquanto Questões prévias

10. Questões prévias (recursos interlocutórios admitidos)

10.1. Recurso interlocutório interposto pelo arguido AA

Pelo despacho de 09-01-2025 (Ref.ª Citius .......01), face a anterior requerimento do arguido de realização de nova perícia à sua personalidade, nos termos do artigo 158.º, n.º 1, al. b), do CPP, foi decidido indeferir o mesmo, considerando não se encontrar o relatório da perícia realizada inquinado por qualquer nulidade, e ser o mesmo «(…) claro e objetivo, não resultando da sua leitura qualquer dúvida ou obscuridade, tendo sido realizado pela entidade legalmente habilitada e competente para o efeito nos termos do disposto no artigo 159.º n.º 1 e 160.º n.º 1 do Código de Processo Penal», não estando, por isso, verificados os pressupostos legais que impusessem a realização de nova perícia.

O arguido impugnou tal despacho, tendo interposto recurso do mesmo em 10-02-2025, sustentando a anterior argumentação, discordando da metodologia adotada na perícia e da falta de autorização do arguido para a reprodução de declarações suas no respetivo relatório, bem como alegando ser desnecessária a invocação de qualquer nulidade daquele meio de obtenção de prova.

O Ministério Público no tribunal recorrido considerou dever ser julgado improcedente tal recurso.

Neste STJ, o Senhor Procurador-geral-adjunto defende que, apesar de o arguido ter manifestado interesse «(…) na subida do recurso interlocutório, interposto em 10/02/2025 (…), já admitido, a subir a final (…).», afirma, depois, que «(…) aceita a matéria de facto dada como provada, que optou por não colocar em crise. Demonstrativo da sua atitude autocritica.»

Por outro lado, «(…) as conclusões do relatório quanto aos traços de personalidade do arguido (3.) não foram tidas em conta pelo tribunal coletivo para formar a convicção sobre a matéria de facto provada.

De acordo com o artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.

(…)

É essa também a solução explicitamente acolhida no artigo 632.º do Código de Processo Civil que estabelece que não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida (n.º 2), podendo a aceitação ser expressa ou tácita, derivando esta última da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (n.º 3).

Ora, se o arguido acabou por aceitar a factualidade assente no acórdão (8.), incluindo, pois, a que resultou provada pelo relatório de perícia psicológica (factos provados 67 a 78), que interesse ou utilidade tem discutir nesta altura se os «meios e testes usados para a realização da perícia» (sic conclusão 8.ª do recurso do despacho interlocutório) ferem o resultado alcançado?

A resposta, salvo melhor entendimento, parece-nos evidente: nenhum.

Donde que, nesta parte, o recurso deva ser rejeitado por falta de interesse em agir do recorrente.

Caso esse entendimento não prevaleça, o recurso deve improceder porquanto os fundamentos invocados para a realização de nova perícia […], face ao princípio da legalidade consagrado no artigo 118.º do Código de Processo Penal, não comprometem a validade plena do relatório [v. a parte final do ponto n.º 10 do requerimento de realização de nova perícia (4.) e a conclusão 7.ª do recurso (6.)], sendo igualmente certo que as questões que determinaram a sua realização oficiosa (2.) ficaram devidamente esclarecidas sem inconsistências, lacunas ou contradições manifestas que justificassem a necessidade de uma segunda perícia (4).»

Importa decidir.

De acordo com o disposto no art. 407.º, n.º 3, do CPP, «Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa.», tendo sido nesse pressuposto que o recurso foi instruído e mandado subir com o recurso da “decisão que tiver posto termo à causa”, pelo despacho de 17-02-2025.

Sucede que o arguido veio interpor recurso per saltum do acórdão final, o que é uma opção sua, ao não pretender discutir a decisão em matéria de facto. O recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça é admitido relativamente a acórdãos do tribunal coletivo que apliquem pena superior a cinco anos de prisão, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito ou com os fundamentos previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP – art. 432.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do CPP.

Ou seja, ao optar pela exclusiva sindicância da matéria de direito – em que questiona a nulidade prevista nos artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, do CPP, a medida das penas aplicadas e a inconstitucionalidade do art. 71.º, n.º 3, do CP –, o recorrente renuncia a discutir qualquer aspeto da matéria de facto relativo ao acórdão recorrido, sem prejuízo da possibilidade de apreciação oficiosa da verificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou de nulidades não sanadas. No caso de pretender discutir a decisão em matéria de facto, deveria o recorrente ter interposto recurso para Relação.

Ora, no caso vertente, como assinala o Ministério Público, apesar de manifestar interesse na subida do recurso interlocutório, o recorrente vem expressamente afirmar, na motivação de recurso, que «(…) aceita a matéria de facto dada como provada, que optou por não colocar em crise. Demonstrativo da sua atitude autocritica.»

Tal pretensão – de interesse na apreciação do recurso interlocutório retido – mostra-se incompatível com a outra declaração, de aceitar a matéria de facto dada como provada. Esta declaração engloba, como não poderia deixar de ser, uma renúncia a discutir a bondade do despacho interlocutório, atinente à realização da 2.ª perícia de personalidade.

Por ser assim, tendo o arguido aceitado (expressamente) a decisão final em matéria de facto – que, quanto aos factos dos pontos 67. a 78 também se alicerçou no relatório da perícia de psicologia forense realizada ao arguido –, deixa de subsistir, agora, interesse em agir por parte do mesmo, para ser conhecido o recurso daquela decisão interlocutória de 09-01-2025.

Portanto, o resultado da apreciação do recurso interlocutório interposto pelo arguido, do despacho de 09-01-2025, não teria qualquer repercussão na decisão do recurso da decisão que põe termo à causa.

Conforme entendem Paulo Pinto de Albuquerque e Helena Morão, «Tem interesse em agir aquele que tem carência do processo (rectius, do recurso) para fazer valer o seu direito.

(…)

A conformação com a decisão proferida é sinal de que o sujeito ou interveniente processual não necessita do recurso para fazer valer o seu direito, porque a decisão proferida, ela mesma, já representa o direito aos olhos do sujeito ou interveniente processual por ela visado. Isto é, o sujeito já não tem carência do processo» (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, II Vol., 5.ª ed. atualizada, Lisboa, UCP Editora, 2023, p. 580).

Pelo exposto, apesar de ter legitimidade, e de tal recurso ter sido oportuna e regularmente admitido, não se verifica que, presentemente, o arguido mantenha interesse em agir no tocante ao recurso do despacho interlocutório, retido, não se tomando, por isso, conhecimento de tal recurso – artigos 401.º, n.º 2, 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP.

10.2. Recurso interlocutório interposto pela assistente-demandante BB

A assistente-demandante BB havia pedido a ampliação do pedido de indemnização civil, oportunamente apresentado.

Tal pedido foi indeferido, pelo despacho de 09-01-2025 – 1.ª parte (Ref.ª Citius .......01), porquanto «(…) uma ampliação do pedido, acabaria por significar um estender do prazo para apresentar o pedido de indemnização civil, na medida em que o agora apresentado visa simplesmente substituir o anterior, sem que nenhum pressuposto se tenha alterado ou evoluído, verificando-se uma total ausência de causa de pedir para o montante suplementar peticionado.»

Desse despacho, a assistente-demandante interpôs recurso, o qual foi admitido por despacho de 17-02-2025 (Ref.ª Citius .......82), fixando-se o regime de acordo com o qual o recurso deveria «(…) subir nos próprios autos e a final com o recurso da decisão final - artigos 406.º n.º 1 e 407.º n.º 3 do CPP, nos próprios, e com efeito devolutivo - artigo 408.º do CPP à contrario».

Sucede que, notificada do acórdão (final) do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Setúbal/J1, de ...-...-2025 – que condenou o arguido na totalidade do valor do pedido de indemnização civil originariamente apresentado (€ 25.000,00) –, a assistente-demandante não veio do mesmo interpor recurso.

De acordo com o que entendem Helena Morão e Paulo P. Albuquerque, «O recurso interlocutório retido só sobe e é julgado com o recurso interposto da decisão que puser termo à causa se o sujeito que interpôs o recurso interlocutório recorrer também da decisão que puser termo à causa. Para tanto, o recorrente especifica, nas conclusões do recurso da decisão que puser termo à causa, quais os recursos interlocutórios por si interpostos que mantêm interesse (artigo 412.º, n.º 5).» (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, cit., p. 602).

A assistente-demandante, como se viu, não veio interpor recurso do acórdão final, sendo certo que lhe assistiria, abstratamente, legitimidade para o fazer.

Para além disso, o arguido-demandado também não veio interpor recurso do referido acórdão final, no tocante à sua condenação no pedido de indemnização civil.

Nessa medida, o acórdão de 31-01-2025, transitou (parcialmente) em julgado, no que diz respeito à condenação do arguido-demandado no pedido de indemnização civil (art. 628.º, do CPC ex vi do art. 4.º, do CPP).

Por isso, não poderia a assistente-demandante prevalecer-se da interposição de recurso do acórdão, por parte do arguido – apenas no tocante à dimensão penal da decisão final –, para pretender a apreciação do seu recurso interlocutório, permanecendo inerte, i. e., sem interpor, ela própria, recurso da decisão que “pôs termo à causa” (o acórdão recorrido) nem ter indicado qualquer interesse na sua efetiva subida e apreciação.

Em tais circunstâncias, pois, ainda de acordo com Paulo P. Albuquerque e Helena Morão, «Havendo um recurso interlocutório retido e não sendo interposto recurso da decisão final, o recurso retido fica sem efeito (acórdão do STJ, de 9.3.1995, in BMJ, 445/257).» (ob. cit., p. 680).

Pelo exposto, apesar de o recurso interlocutório da assistente-demandante ter sido regularmente admitido, aquando da sua interposição, o certo é que, face ao trânsito em julgado (parcial) do acórdão final (de 31-01-2025), no tocante à dimensão do pedido de indemnização civil, o mesmo perdeu o seu efeito, cumprindo concluir pela sua não apreciação, por não se verificarem os necessários pressupostos legais – artigos 407.º, n.º 3, a contrario e 414.º, n.º 3, do CPP.

11. Sobra, assim, a necessidade de apreciação do recurso interposto pelo arguido AA, relativamente ao acórdão do tribunal coletivo de Setúbal, de 03-02-2025.

As questões concretamente suscitadas pelo recorrente, em tal sede, são as seguintes:

i) nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, quanto à fundamentação da decisão das penas aplicadas – conclusões 2, 5 e 6;

ii) medida das penas parcelares aplicadas aos crimes de violência doméstica e de violação agravada, e da pena única aplicada ao cúmulo das penas parcelares desses dois crimes, sugerindo a desproporcionalidade e o excesso das mesmas – conclusões 3, 4 e 5;

e

iii) inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3 do artigo 71.º do Código Penal “quando interpretada no sentido de que a Sentença dá cumprimento ao dever de expressamente referir os fundamentos da medida da pena, mesmo que omita a alusão a algumas das circunstâncias mencionadas no nº 2 do artigo 71º do código penal, por violação dos nºs 1 e 2 do artigo 27º, do nº 1 do artigo 32º e do nº 1 do artigo 205º da lei fundamental.” – conclusão 6 [bis].

Apreciando.

12.

i) nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, quanto à fundamentação da decisão das penas aplicadas.

O arguido invoca, a este respeito, no seu recurso, o seguinte:

«O douto Acórdão alude genericamente à operação de determinação da medida concreta da pena e, depois, enumera algumas conclusões retiradas da matéria de facto provada sem as enquadrar como circunstâncias que depõem a favor ou contra o arguido, conforme estabelecido pelo nº 2 do artigo 71º do Código Penal.

O douto Acórdão não dá cumprimento cabal ao dever de fundamentar a aplicação da concreta pena única de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão. Assim, verifica-se a nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, por referência ao nº 2 do artigo 374º desse diploma, o que expressamente se invoca.»

O Ministério Público junto do tribunal da condenação discorda de tal alegação, sustentando ter havido uma escrupulosa observância dos ditames do art. 71.º, n.º 3, do CP e dos artigos 374.º, n.º 2 e 375.º, n.º 1, do CPP. Também o Senhor Procurador-geral-adjunto neste STJ defende que «(…) a fundamentação do acórdão recorrido quanto à medida da pena satisfaz os ditames legais dos artigos 205.º, n.º 1, da Constituição, 71.º, n.º 3, do Código Penal, e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (v. as páginas 29 a 35 do acórdão);».

O Código de Processo Penal prevê, no art. 379.º o regime específico da nulidade da sentença, cominando como tal – de forma simplificada –, a falta de fundamentação (alínea a) do n.º 1 do artigo citado), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do mesmo n.º 1) e a omissão e o excesso de pronúncia (alínea c) do mesmo n.º 1).

No caso vertente, o arguido aponta a nulidade de falta de fundamentação do acórdão, no tocante à decisão de escolha e determinação das penas aplicadas.

Porém, face ao que resulta do acórdão recorrido, constata-se ter sido feito um exercício de fundamentação suficientemente cabal da justificação da opção pela escolha e determinação das penas, parcelares e única, aplicadas. No mesmo foram abordadas, especificadamente, depois de se verificarem as necessidades de prevenção, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a gravidade das consequências dos crimes de violência doméstica e de violação agravados, os sentimentos manifestados na prática do crime bem como os motivos que levaram à sua prática, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências da prática do crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Conclui o acórdão no sentido em que «A conjugação dos muito elevados graus de ilicitude com a necessidade de fazer refletir na pena a falta de preparação que o arguido apresenta para agir conforme ao direito nestes dois concretos tipos de crime, impõe que o tribunal não aplique penas parcelares inferiores aos dois terços da moldura, antes devendo ser superiores. Apenas a ausência de antecedentes criminais e a razoável inserção familiar e boa inserção profissional do arguido permitirão que as penas parcelares não se aproximem dos respetivos limites máximos.»

Enfim, crê-se que, embora os fundamentos da escolha e determinação das penas pudessem ser mais desenvolvidos, o acórdão satisfaz cabalmente as exigências constitucionais e legais de fundamentação das decisões judiciais, emergentes do art. 205.º, n.º 1, da Constituição e do art. 97.º, n.º 5, do CPP. Longe de ser omisso quanto à fundamentação das razões de facto e de direito que respeitam à escolha e determinação da medida das penas aplicadas, o acórdão não padece de qualquer nulidade, que pudesse remetê-lo para o vício da nulidade invocada pelo recorrente (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP).

Tal fundamentação mostra-se, pois, suficientemente observada e é clara e inteligível para os seus destinatários, não se refugiando em linguagem formular, mais ou menos hermética.

Pelo exposto, improcede, nesta parte, o recurso do arguido.

13.

ii) medida das penas parcelares aplicadas aos crimes de violência doméstica e de violação agravada, e da pena única aplicada ao cúmulo das penas parcelares desses dois crimes, sugerindo a desproporcionalidade e o excesso das mesmas.

O arguido vem alegar que as penas aplicadas no acórdão recorrido, do tribunal de 1.ª Instância, não se justifica, sustentando que «Sopesado a moldura penal, as exigências de prevenção geral e as exigências de ressocialização, entendemos como adequada, necessária e proporcional a aplicação das penas parcelares de 3 (três) anos de prisão para o crime de violência doméstica agravada e de 6 (seis) anos de prisão para o crime de violação agravado e na aplicação da pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses» (conclusão 3.ª).

O Ministério Público no tribunal recorrido refere ter defendido em alegações orais finais uma pena não muito diferente daquela pela qual pugna o arguido, ou seja, de 8 anos e 6 meses de prisão, sendo certo que não recorreu do acórdão condenatório.

O Ministério Público junto deste STJ, no seu parecer, pronunciou-se nos seguintes termos:

«(…) à luz dos critérios e princípios estabelecidos nos artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, parte final, do Código Penal, alguém que, num curto espaço de três meses (factos provados 5 e 48), deliberada, livre e conscientemente (facto provado 56), dirige palavras injuriosas à própria filha de 16 anos (factos provados 1, 8, 9 e 10), agride-a com bofetadas no rosto (factos provados 11, 12, 14 e 38), viola-a (factos provados 27 a 37) e sequestra-a (factos provados 40 a 42 e 46), sempre sem justificação aceitável ou com uma justificação insana (facto provado 37), com os cruéis propósitos de vexá-la, de molestá-la fisicamente, de privá-la da liberdade e de satisfazer os seus instintos sexuais (factos prova-dos 52, 53 e 55) não é merecedor de maior clemência punitiva (…)».

Na decorrência da fundamentação dos critérios de escolha e determinação das penas parcelares aplicadas – concretizando que as penas parcelares “não deveriam ser inferiores aos dois terços da moldura, antes devendo ser superiores” –, o acórdão recorrido enuncia da seguinte forma as concretas operações que levaram à determinação da sua medida:

«Do crime de violência doméstica agravada previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 alínea e) e n.º 2 alínea a) do Código Penal.

O crime é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão.

Não sendo o crime mais grave e abarcando condutas iniciais de grau de ilicitude mediano, graduando-se como elevado apenas no último dia, não se vislumbra necessária a aplicação de uma pena superior ao supra estipulado mínimo de dois terços, considerando o que de positivo se valorou em benefício do arguido, pelo que se afigura justa porque proporcional à gravidade dos factos e adequada à sua personalidade, a aplicação de uma pena de 4 (quatro) anos de prisão.

Do crime de violação agravada previsto e punido pelo artigo 164.º n.º 2 e 177.º n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal.

O crime é punido com pena de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

É o crime mais grave, o que mais repulsa cria na comunidade, o que foi praticado com maiores requintes de perversidade, o que infligiu um maior grau de lesão na vítima e aquele que terá de balizar pelo máximo a pena parcelar a aplicar. Sendo difícil de conceber, ainda que no campo da imaginação, grau de ilicitude e de culpa superiores, o arguido deverá ser condenado quanto a este crime numa pena parcelar superior aos dois terços da moldura penal, ainda que possa e deva manter-se distante do limite máximo tendo em conta o que de positivo se valorou em benefício do arguido. Sem prejuízo, dir-se-á que sem a aplicação dos critérios elencados nas alíneas d) e e) do artigo 71.º do Código Penal, o grau de ilicitude no contexto das muito elevadas necessidades de prevenção geral e especial abarcaria uma pena muito próxima do seu limite máximo, amplamente coberta pelo grau de culpa máximo com que o arguido atuou.

Termos em que tudo ponderado se afigura justa, porque proporcional à gravidade dos factos e adequada à personalidade do arguido a condenação do mesmo numa pena de 11 (onze) anos de prisão pela prática do crime de violação agravada.»

Cumpre apreciar, em primeiro lugar, o segmento desta parte do recurso, no que respeita às penas parcelares.

O escrutínio, em sede de recurso, da adequação ou correção da medida concreta da pena impor-se-á apenas em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da sã racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de determinação e medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica uma intervenção do tribunal de recurso que altere a escolha e a determinação da espécie e da medida concreta da pena. Esta é uma asserção que é válida não só no tocante à determinação da medida das penas parcelares, como também na fixação da pena única ou conjunta.

Conforme acima se deixou dito, o arguido formula a sua pretensão de ser reduzida a medida das penas parcelares aplicadas, para uma medida que não ultrapassasse os três e os seis anos de prisão, respetivamente, pelos crimes de violência doméstica e de violação, ambos agravados.

Sublinha, na sua argumentação, que a motivação dos crimes respeita a «conflitos familiares» (facto 10. da matéria de facto provada), «(…) provocados pela rigidez nos princípios educativos e pela incompreensão das necessidades da vítima (adolescente), por parte do arguido, estes que podem (só) consubstanciar matéria eticamente reprovável.», o que o tribunal não esclareceu se funcionaram como atenuante ou como agravante, sendo que, na sua ótica, teriam de funcionar como atenuante, o que aponta para uma «(…) sensível diminuição da culpa e uma importante redução no que respeita às necessidades de prevenção especial.»

Acresce que a conduta anterior aos factos favorece o arguido: ausência de antecedentes criminais, inserção familiar e profissional e duração dos factos da violência doméstica.

No caso vertente, acham-se em causa dois crimes, um contra a saúde e integridade pessoal e outro contra a liberdade sexual, ambos na forma agravada.

Relembrando a fundamentação jurídica da qualificação jurídica dos factos dados como provados – que o arguido não questiona –, de acordo com a decisão condenatória de 1.ª Instância, quanto ao crime de violência doméstica, agravado, estabelece-se que

«Todo o contexto é perverso, forçando a perda de dignidade da vida da vítima que estava totalmente impossibilitada de se desvincular do arguido, elementos essenciais ao preenchimento do elemento objetivo do tipo do crime de violência doméstica. Veja-se que parte da iniciativa do arguido o início da convivência entre pai e filha. A assistente aceita de boa fé o convite do pai com quem nunca antes tinha vivido e aceita deixar o seu centro de vida em angola, para vir para Portugal viver com o pai, no intuito de completar os estudos e aqui obter melhor formação e ter mais oportunidades de chegar mais longe numa carreira profissional. Neste contexto muito particular que o arguido assume voluntariamente esta responsabilidade, sem que lhe tenha sido pedido, acaba por instrumentalizar a filha, ordenando-lhe a execução de tarefas que entendeu fazerem-lhe falta ou simplesmente lhe apeteceu que fossem executadas. Não satisfeito, o arguido aplicou castigos físicos, mormente chapadas na cara e puxão de orelhas, quando as suas ordens não foram executadas a seu gosto, ou simplesmente se mostrou desagradado com algo, como ocorreu no episódio em que a assistente por se sentir mal não fez a aula de educação física, quando comprou pensos higiénicos ou quando se distraiu a estender a roupa. Acresce um mal-estar que o arguido provocou, exteriorizando desagrado pelo facto da filha já não ser virgem e adotando por esse motivo e de forma percetível para a assistente, uma conduta especialmente agressiva. É manifesto que neste contexto, a vida da assistente perdeu dignidade e que só por estes factos ocorridos entre a chegada a Portugal em setembro de 2023 e o dia 23 de dezembro do mesmo ano, a conduta do arguido preencheria o elemento objetivo do tipo de crime na modalidade de maus tratos físicos e psíquicos e castigos corporais. Depois do dia 23 de dezembro, mormente depois do ato sexual não consentido até à tarde do dia 24 de dezembro, tudo se intensificou. Veja-se que forçada a ter relações sexuais com o próprio pai, se vê na contingência de ter de responder a perguntas sobre o seu namorado, a sofrer mais chapadas na cara porque o arguido não gostou da resposta, evidenciando um ciúme doentio sobre a sua própria filha, a prover à limpeza do seu agressor indo buscar toalhitas, como se porventura tivesse sido a assistente a responsável pelo pai se ter sujado no seu sangue, e a ver-se presa de movimentos dentro da residência que viu ser trancada e de cuja chave foi desapossada. E é neste contexto especialmente penoso, em que o arguido retira a chave de casa que a assistente possuía, para que não fugisse, que inicia uma tentativa absurda de justificação dos seus atos num jogo de sedução “para te tornares uma melhor mulher no futuro” e de convencimento da assistente a nada relatar sobre o que se passou “dou-te tudo o que quiseres”. Tentativa que facilmente se percebeu frustrada, não se coibindo o arguido de avançar para anúncios de mal futuro, caso não fosse obedecido, designadamente dizendo que voltaria para Angola sem completar os estudos.

É evidente a subsunção dos factos ao elemento objetivo do tipo de crime imputado.

A prática forçada do ato sexual de penetração vaginal, com recurso a agressões físicas e anúncio de mal futuro com prática de crime contra a vida, melhor descrita nos pontos 27 a 36 dos factos provados, subsumem-se no segmento “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, encontrando-se numa relação de concurso real e efetivo com outro tipo legal imputado que será adiante apreciado em separado.

A agravação está cabalmente verificada pela prova do grau de parentesco pai/filha entre o arguido e a assistente, bem assim como na prova dos factos terem ocorrido no interior da residência comum.

(…)

É igualmente manifesto o preenchimento do elemento subjetivo do tipo de crime na modalidade de dolo direto. O arguido quis humilhar e rebaixar a assistente sempre que a apelidou de burra, lenta, bandida, fingida e sempre que lhe disse que não prestava para nada. Quis molestá-la fisicamente sempre que desferiu chapadas no rosto e quando lhe puxou uma orelha. Quis instrumentalizá-la em seu próprio benefício, quando lhe ordenou para servir o jantar, estender roupa ou ir às compras, mormente para lhe fazer massagens nas costas, sendo quanto a esta última, em ato preparatório para uma agressão sexual. Quis ainda o arguido privar a assistente da sua liberdade de movimentos, como mal necessário para ocultar a prática de crime grave que sabia ter cometido.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, pelo que o arguido deverá ser condenado pela prática no período compreendido entre setembro de 2023 e 24 de dezembro de 2023, de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 alínea e) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, contra a assistente»

Por seu turno, relativamente à matéria que se subsume ao crime de violação, agravado, foi considerado que:

«Nos presentes autos é evidente o cabal preenchimento do elemento objetivo. O arguido realizou ato de cópula completa com a assistente, forçando-a através, quer de força física desferindo bofetadas na face em que uma delas a fez perder momentaneamente os sentidos, quer despindo e posicionando o corpo da filha a permitir a penetração com recurso a força de braços. Para além disso tentou forçar o seu silêncio para o choro audível não levantar suspeitas, anunciando mal futuro contra a vida “mato-te, atiro-te pela janela”.

O choro incessante, a verbalização repetida de “Pára pai!”, a tentativa gorada de segurar as cuecas e o penso higiénico, não deixam dúvidas para, na conjugação com a conduta julgada provada ao arguido, subsumi-la nos conceitos de constranger por meio de violência e ameaça grave, a praticar cópula.

O parentesco de pai/filha só por si preenche a agravação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal.

Pelos mesmos motivos já plasmados na apreciação do crime de violência doméstica, não se verifica a agravação prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal, por não se considerar a assistente pessoa especialmente vulnerável em função da idade.

O elemento subjetivo exige qualquer uma das modalidades de dolo sendo que de acordo com a matéria de facto provada, dúvidas não restam que o arguido agiu com dolo direto e intenso, pois que agiu de forma livre deliberada e consciente com o propósito de obter satisfação sexual à custa da liberdade sexual e do bem-estar físico e psíquico da sua filha e que de forma cruelmente egoísta vilipendiou.

Inexistem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, pelo que o arguido deverá ser condenado pela prática do crime que lhe está imputado.»

As penas aplicadas, respetivamente, de quatro e de onze anos de prisão, aos referidos crimes, não podem de forma alguma ser consideradas excessivas ou desproporcionais, pois, como o tribunal recorrido reforça na sua fundamentação, as penas teriam de se aproximar de medidas acima dos dois terços da(s) moldura(s) penal(ais), embora ainda distantes dos respetivos limites máximos, salientando-se que ambos os tipos incriminatórios são agravados.

A alegada circunstância de os factos (da violência doméstica) terem sido motivados por um “conflito familiar” (enquanto “conflito de gerações”) – e como tal, funcionarem como circunstancia atenuante – não pode colher minimamente, uma vez que o modo socialmente esperado ou adequado de reagir a um comportamento da filha que fosse considerado incorreto à luz de conceções mais rígidas, não pode nunca passar pela agressão, pela ameaça ou pela sua iminência, sendo que no caso se materializou em comportamentos física e moralmente violentos, que a vítima não tinha de suportar.

Apenas a circunstância favorável da conduta anterior aos factos poderia ter, como teve – como tal tendo sido valorada –, algum relevo: a ausência de antecedentes criminais registados e a inserção profissional do arguido. Porém, a mesma foi expressamente considerada no contexto do acórdão recorrido.

No artigo 40.º do Código Penal, que encerra sincreticamente o programa político-criminal das finalidades das penas pelo qual optou o legislador autorizado, é mencionado que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece, por seu turno, o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Como vem sendo consistentemente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Dito por outras palavras, a legitimidade constitucional para se privar alguém da liberdade radica na violação por essa pessoa de outros direitos constitucionalmente protegidos. A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (assim, J.J. Gomes Canotilho - Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra: Coimbra Ed., 2007, notas aos artigos 18.º e 27.º).

Para aferir da medida da gravidade da culpa importa, por seu turno, de acordo com o disposto no artigo 71.º do Código Penal, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, «por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.” (Direito Penal Português: As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, pp. 210 e 245). Para este Autor, esses fatores podem dividir-se em “fatores relativos à execução do facto”, “fatores relativos à personalidade do agente” e “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.

Por seu turno, Maria João Antunes entende que podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do artigo 71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (Consequências Jurídicas do Crime, Lições para os alunos da FDUC, Coimbra, 2010-2011).

Por respeito à eminente dignidade da pessoa humana a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2 do CP), designadamente por razões de prevenção.

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a confiança comunitária na manutenção contrafáctica da norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é, pois, na determinação da presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação empreendida pelo agente (o arguido) pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 26-06-2019: Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1; de 09-10-2019: Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1; de 03-11-2021: Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, e de 08-06-2022: Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1).

No que respeita aos factos que concretamente relevam para a culpabilidade, no processo estão em causa crimes contra a saúde e integridade pessoal, entre outros bens jurídicos, e a liberdade sexual da vítima, os quais tutelam bens jurídicos que integram o núcleo da esfera de integridade e inviolabilidade pessoal, praticados com grau de dolo direto, persistente (no tocante ao crime de violência doméstica) e intenso, empreendidos com uma inusitada energia e reiteração, cuja ressonância ética e social implica um reforçado juízo de censurabilidade e reprovação.

Partindo da matéria factual provada, concluímos legitimamente que o arguido-recorrente não só perpetrou os crimes de forma fria, cruel e calculada, como aproveitou a circunstância de a vítima ter, de algum modo, sido atraída para um cenário de crimes, no qual dificilmente se defenderia e libertaria, o que aumentou, em concreto, o seu estado de indefesa e de vulnerabilidade enquanto vítima.

No caso em apreço, para além das elevadas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir – pertinentemente assinaladas no acórdão recorrido, sendo as de prevenção especial relativamente ao arguido algo residuais, dado ser “primário” –, importa atentar nas graves consequências das suas condutas criminosas para a vítima, sua filha, cujo processo de amadurecimento e socialização ficou indelevelmente marcado por comportamentos que violaram não só a sua liberdade de autodeterminação sexual, mas também o livre e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade, a sua autoimagem e autoestima e o seu direito a não ser violentada na sua intimidade e no seu pudor, a sua dignidade; enfim, os seus direitos humanos mais essenciais. Todos estes funestos e lamentáveis eventos não deixarão de ter significativo impacto no seu futuro enquanto mulher e como pessoa, a quem o direito à cidadania plena foi violentado numa idade em que se forma a personalidade. Tais resultados apenas remota e indiretamente poderão ser mitigados pela decisão condenatória do arguido, a que o Estado se encontra obrigado, desde logo pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e as Raparigas e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21-01 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21-01, entrada em vigor em 01-08-2014), aplicável diretamente e indiretamente, através da adesão à mesma pela União Europeia, a partir de 01-10-2023 – artigos 1.º, n.º 1, al. a), 3.º, alíneas a), e) e f) e 36.º (Violência sexual, incluindo violação).

Por outro lado, a República Portuguesa subscreveu os principais instrumentos internacionais neste domínio – designadamente da Convenção de Lanzarote1 –, encontrando-se obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com, em ou perante uma criança que não tenha atingido a idade legalmente prevista para o efeito; abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre acriança, incluindo o ambiente familiar; ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.

Portugal está também obrigado a sancionar com uma pena máxima não inferior a oito anos de prisão quem praticar atos sexuais com uma criança, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” se esta não tiver atingido a maioridade sexual, e não inferior a três anos, se a criança tiver atingido essa maioridade; a punir com penas de prisão de igual moldura penal máxima a prática de atos sexuais com uma criança recorrendo ao abuso de uma situação particularmente vulnerável da criança, nomeadamente em caso de uma situação de dependência – art. 3.º, n.º 5.

A Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, e, posteriormente, a Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, vieram, por seu turno, adequar as normas incriminatórias de condutas sexuais, agravando-as, de acordo com aqueles instrumentos normativos internacionais e da União, visando transpor para o ordenamento jurídico interno as disposições da Diretiva 2011/93/UE2 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, bem assim cumprir as obrigações assumidas por Portugal com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais [Convenção de Lanzarote]. A Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, veio reforçar o quadro sancionatório e processual em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e estabelecer deveres de informação e de bloqueio de sítios contendo pornografia de menores, concluindo a transposição da Diretiva 2011/93/UE.

Por seu turno, a “coabitação” não constituindo elemento do tipo de crime em apreço, é, isso sim, uma circunstância que funciona como agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pelo legislador ao art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal na alteração operada pela Lei n.º 103/2015, que, como se antecipou, visou essencialmente transpor para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/UE que, repete-se, no art. 3.º, n.ºs 1 e 5, iii. impõe a agravação do crime de violação (sexual) de crianças que não tenham atingido a maioridade sexual, com pena máxima de prisão não inferior a 10 anos, e, no art. 9.º, al. c) a sua agravação, desde que seja “cometido por um membro da família da criança”.

Estes comandos impõem-se de forma imperativa ao Estado português, logo aos seus tribunais, não podendo o nosso sistema sancionatório penal deixar de se estruturar de acordo com os mesmos.

Na sistematização do Código Penal, o crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, enquadra-se na categoria “Dos crimes contra as pessoas” - Título I, do Livro II – (Parte especial), e mais especificamente, no Capítulo III, “Dos crimes contra a integridade física” – artigos 142.º a 152.º-B – conquanto, como se sabe, a integridade física não seja o único bem jurídico por ele tutelado.

Por seu turno, o crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, atualmente na redação da Lei n.º 59/2007, de 04-09 (entrada em vigor em 15-09-2007 - artigo 13.º), enquadra-se na categoria “Dos crimes contra as pessoas” - Título I, do Livro II – (Parte especial), e mais especificamente, no Capítulo V, “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual” – artigos 163.º a 179.º – mais especificamente na Secção I (Crimes contra a liberdade sexual) – artigos 163.º a 171.º – e com a agravação constante da disposição comum do artigo 177.º.

O bem jurídico tutelado pela incriminação da violência doméstica é a saúde, enquanto bem jurídico que coenvolve a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra, reconduzindo-se à integridade pessoal e à dignidade da pessoa humana, sendo certo que esta não tem aptidão para, de per si, legitimar a criminalização da sua violação. Trata-se de um crime de dano e de resultado que exige o dolo do agente, designadamente, o conhecimento da identidade e das características da vítima.

O bem jurídico protegido pela incriminação da violação é a liberdade sexual de outra pessoa, sendo um crime de dano, revestindo, de resto, uma danosidade pessoal e social de difícil avaliação e superação, ficando a vítima com marcas e traumas que, de acordo com a literatura especializada, perduram para toda a vida (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed. atualizada, Lisboa, UC Ed., 2021, p. 711).

No quadro do regime legal das prioridades de política criminal, a violência doméstica e a violação, integrando a categoria dos crimes violentos e de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual, estão previstos na primeira linha dos crimes de prevenção prioritária (artigos 4.º, alíneas c) e f) da Lei n.º 55/2020, de 27-08 – Prioridades de Política Criminal do biénio 2020-2022, e 4.º, al. a) da Lei n.º 51/2023, de 28-08 – Prioridades de Política Criminal do biénio 2023-2025).

A fixação das penas parcelares em causa nos autos, remetem para uma medida efetivamente superior à que os crimes não agravados exigiriam. Porém, atenta a moldura penal aplicável aos mesmos – 2 a 5 anos de prisão, no caso da violência doméstica agravada (art. 152.º, n.º 2, do CP) e 4 a 13 anos e quatro meses de prisão, no caso da violação agravada pela circunstância da relação de paternidade do arguido (artigos 164.º, n.º 2 e 177.º n.º 1 alínea a), ambos do Código Penal) – afigura-se-nos que não é de censurar a fixação de tais medidas das penas parcelares, sob pena de não ficarem satisfeitas as exigências de prevenção geral e especial e a tendencial igualdade na determinação das penas.

O acórdão recorrido fundamenta adequadamente tal determinação, como acima se mencionou, na transcrição da parte pertinente do mesmo.

Nenhuma censura se deve, assim, dirigir ao acórdão recorrido.

No tocante à parte do recurso do arguido dirigido à fixação da pena única, o Ministério Público junto da instância recorrida exarou a sua posição no sentido de se dever atender a alguma redução da mesma – conquanto não tenha recorrido do acórdão – exprimindo a posição no sentido em que «A pena única de oito anos e seis meses de prisão reclamada pelo Recorrente não se distancia daquela que o Ministério Público propôs em sede de alegações orais no final da produção de prova.» (conclusão 2.ª da sua resposta ao recurso).

Já o Ministério Público junto deste STJ se afasta deste entendimento, pugnando, no seu parecer, pela improcedência do recurso do arguido quanto à medida das penas.

Apreciemos, recordando-se, agora, a fundamentação do acórdão recorrido para a determinação da medida da pena única aplicada:

«O artigo 77.º n.º 1 do Código Penal, dispõe que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, sendo de considerar em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

O n.º 2 do referido normativo estabelece que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão. Já como limite mínimo, impõe a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Desta forma, no presente caso, teremos como limite máximo uma pena de 15 (quinze) anos de prisão e como limite mínimo uma pena de 11 (onze) anos de prisão.

Conforme amplamente referido, os factos assumem uma especial gravidade que reclamam a aplicação de uma pena única suficientemente intensa a não frustrar as fortíssimas necessidades de prevenção geral e especial. Sem prejuízo na apreciação conjunta dos factos, tal como supra se referiu, as consequências de ambos os crimes diluem-se no dano psíquico único que provocaram na assistente, tendo o crime de violação surtido um efeito mais devastador. Neste contexto, sendo a pena parcelar aplicada ao crime de violação garantida enquanto mínimo da pena única em cúmulo jurídico a aplicar, afigura-se desnecessário exceder os dois terços da moldura de cúmulo jurídico. Por outro lado, considerando o grau de ilicitude e de culpa muito elevados dos últimos factos que abarcaram em concurso aparente a factualidade enquadrada juridicamente pela acusação no crime de sequestro, quer pelo modo de execução da privação da liberdade, quer pela intensidade do grau de violação dos deveres impostos ao arguido, seria socialmente intolerável a aplicação de pena inferior.

Termos em que se considera justa, porque proporcional à gravidade global dos factos e adequada à personalidade do arguido a aplicação de uma pena única em cúmulo jurídico de 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão

Na determinação da pena única ou conjunta – única dimensão que importa ser apreciada na presente decisão –, impõe-se, igualmente, atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso” (Ac. STJ de 10-12-2014, processo n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Ano de 2014), impregnados da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta – dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu – se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», sem esquecer, que «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)» (assim, Ac. STJ de 27-06-2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1).

Como este Supremo Tribunal de Justiça vem considerando de forma reiterada e preponderante, o critério da determinação da medida da pena conjunta do concurso – determinação feita em função das exigências gerais da culpa e da prevenção – impõe que do teor da decisão conste uma especial fundamentação, em função de tal critério. «Só assim – afirma-se no acórdão de 06-02-2014, proferido no processo n.º 6650/04.9TDLSB.S1- 3.ª Secção – se evita que a medida da pena do concurso surja consequente de um acto intuitivo, da apregoada e, ultrapassada, arte de julgar, puramente mecânico e, por isso, arbitrário».

Aos critérios gerais de determinação da medida da pena estabelecidos no artigo 71.º do CP, acresce, para a pena única, o critério peculiar ou específico previsto no artigo 77.º, n.º 1, do mesmo CP, segundo o qual “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, de modo a poder concluir-se se a ilicitude dos factos considerados em conjunto e na sua unidade relacional e em conjugação com a personalidade do arguido neles refletida e por eles evidenciada, aponta para uma “certa tendência ou mesmo carreira delinquente”, ou antes para uma atuação isolada ou episódica ou “(pluri)ocasional”, acentuando ou desvanecendo as necessidades de prevenção especial e, em função disso, fixar a medida da pena em função delas dentro da moldura da prevenção geral, com o limite inultrapassável da culpa.

O artigo 77.º do Código Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes, dispondo no n.º 1 que «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena», em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece «[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão (…), e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Sobre a pena única, e para os casos em que aos crimes correspondem penas parcelares da mesma espécie, considera Maria João Antunes que «o direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico» (Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra: Coimbra Ed., 2.ª ed., 2015, p. 56).

A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2006 (Proc. n.º 06P3379), «na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita a avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso». Ainda no mesmo acórdão, pode ler-se que «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente».

Conforme também esclarece José de Faria Costa, «Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa» («Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, N.º 3945, pp. 326-327).

Considerando este enquadramento, e, por outro lado, a personalidade do arguido e as suas condições pessoais e sócio-económicas, resultantes dos factos provados (pontos 67. a 81. dos factos provados, resultantes do relatório social), face ao seu grau de culpa, à imagem global dos factos e as exigências de prevenção, a pena única a encontrar terá de ser determinada de acordo com os limites, mínimo e máximo, da moldura do concurso, no caso, entre 11 e 15 anos de prisão, mas sem valorar, de novo, quer as agravantes modificativas, nem o grau de culpa nem a gravidade da ilicitude, sob pena de violação do princípio non bis in idem.

Os critérios determinantes são, como se disse supra, a gravidade do ilícito globalmente apreciado, e a personalidade do agente, não podendo duplicar-se a valoração quer das circunstâncias agravantes modificativas quer das circunstâncias agravantes comuns.

O grau de culpa, enquanto limite inultrapassável da pena reportada ao facto, é bastante acentuado, pelo desempenho manifestado e querido no quadro da ação desvaliosa do concurso de crimes.

A personalidade do arguido, documentada nos factos provados, traduz uma deficiente conceção da natureza das relações familiares, bem como dos bens jurídicos tutelados pelos crimes que cometeu, carecendo de censura penal, mas também de reorientação ressocializadora, sendo certo que o cumprimento da pena não pode ser mera punição, mas deve significar um período de reflexão e tomada de consciência para a gravidade das consequências das suas condutas e para a sensibilização para a sua não repetição.

O facto de se reconhecer a extraordinária gravidade dos crimes e das suas consequências para a vítima, filha do arguido, não implica que se abdique de tentar ressocializá-lo, esforço em que o próprio terá de tomar consciência e de participar.

As exigências de prevenção geral são fortíssimas (para usar a designação do acórdão recorrido), não podendo deixar de suscitar especial censura ético-jurídica a circunstância de a ofendida ter sido colocada num cenário concentracionário (objetivo sequestro), aquando da ocorrência da sua violação, não tendo qualquer possibilidade de defesa ou de socorro, i. e., ficando à mercê do ímpeto predador do arguido. A situação de vulnerabilidade foi exponenciada por ação do arguido, num local que deveria ser o “porto seguro” da vítima.

Ora a determinação da pena única em 13 anos e 8 meses de prisão não se mostra, por isso, excessiva ou desproporcional, antes se mostra necessária para a assegurar as exigências de prevenção especial e geral, bem como a tendencial igualdade na aplicação das penas criminais.

Improcede, assim, também nesta parte, o recurso do arguido.

14.

iii) a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3 do artigo 71.º do Código Penal “quando interpretada no sentido de que a Sentença dá cumprimento ao dever de expressamente referir os fundamentos da medida da pena, mesmo que omita a alusão a algumas das circunstâncias mencionadas no nº 2 do artigo 71º do código penal, por violação dos nºs 1 e 2 do artigo 27º, do nº 1 do artigo 32º e do nº 1 do artigo 205º da lei fundamental.”

Este segmento do recurso do arguido não satisfaz, como muito rigorosamente refere o Ministério Público junto deste STJ no seu parecer, as exigências formais do desenvolvimento, na motivação, da conclusão extraída em 6 [bis].

Tal circunstância dispensar-nos-ia, em rigor, de sobre ela nos pronunciarmos, por tal omissão corresponder a falta de motivação, sem que se impusesse a formulação de convite ao aperfeiçoamento (neste sentido, ac. STJ de 05-06-2008; rel. Cons. Simas Santos), uma vez que tal putativo convite poderia ter como consequência a apresentação de uma “nova” motivação, peça que, como é sabido, é imodificável.

Em todo o caso, sempre se dirá que os moldes em que tal inconstitucionalidade se mostra invocada, se prefigura como uma modalidade inapta a que sobre a mesma se pudesse emitir um juízo sobre a interpretação normativa apontada como inconstitucional – da norma do n.º 3 do art. 71.º do Código Penal –, dado que se omite a enunciação dos fundamentos pelos quais a dita interpretação incorreria em vício de inconstitucionalidade e qual seria, na ótica do recorrente, a interpretação constitucionalmente conforme da norma. Carece, assim, a alegação de um mínimo de idoneidade para que sobre a tal interpretação normativa se pudesse formular um juízo de in/constitucionalidade.

Como é sabido, o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade assenta na característica da normatividade: o recurso tem de revestir um carácter normativo. A fiscalização da constitucionalidade incide sobre normas, seus segmentos ou interpretações normativas, e não é um “contencioso de decisões” seja qual for a sua natureza (cfr., Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 26, 98; Jorge Reis Novais, Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade. Avaliação Crítica, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, p. 51).

Como tal, um eventual recurso de constitucionalidade, presuntivamente a interpor de uma decisão sobre a questão de inconstitucionalidade assim suscitada, não teria um objeto normativo, uma vez que se acha inadequadamente formulada. Nessa medida, ainda que o seu desenvolvimento se contivesse na motivação do recurso – o que não sucede – abster-nos-íamos de conhecer de tal questão, uma vez que a mesma não foi adequadamente suscitada, não sendo plausível que um eventual recurso de constitucionalidade a interpor de uma qualquer decisão pudesse ser efetivamente conhecido, por inidoneidade do seu objeto.

Pelo exposto, não se toma conhecimento da suscitada questão de inconstitucionalidade.

III. Decisão

Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

I) não tomar conhecimento do recurso interlocutório da assistente BB, em virtude de ter perdido efeito, por não ter recorrido da decisão que pôs termo à causa, tendo esta transitado em julgado no tocante à condenação do arguido em indemnização civil;

II) não tomar conhecimento do recurso interlocutório do arguido AA, por falta de interesse em agir, dado ter expressamente aceitado toda matéria de facto provada no acórdão recorrido;

III) julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se o acórdão recorrido;

e

IV) não tomar conhecimento da questão de (in)constitucionalidade.

*

Custas pelo arguido - art. 513.º, n.º 1 do CPP, fixando-se a taxa de justiça em seis (6) UC, nos termos do art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III a ele anexa.

*

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 12-06-2025

Texto elaborado e informaticamente editado, e integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Ernesto Nascimento (2.º adjunto)


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1. Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote em 25 de outubro de 2007, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 90/2012 de 28 de maio e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 75/2012, pub. no DR 1.ª série - N.º 103 - 28 de maio de 2012, entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa em 01-12-2021 (cfr. https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-para-protecao-das-criancas-contra-exploracao-sexual-e--0).

2. Numeração retificada pela declaração publicada no JOUE de 21-02-2012, L 18/7, de 21 de janeiro de 2012, uma vez que na publicação original era designada como «Diretiva 2011/92/EU». Cfr. nota 19 do Parecer do CC da PGR n.º 35/2016, de 23-03-2017.