Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3808/21.0JAPRT.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
COABITAÇÃO
AGRAVAÇÃO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Recorre o arguido do acórdão proferido em 1.ª instância que o condenou na pena única de 5 anos e 4 meses de prisão pela prática, em concurso, de três crimes de abuso sexual de criança agravado [artigos 171.º, n.ºs 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do CP], punidos, cada um deles, com penas de 3 anos e 4 meses de prisão.

II. O recurso não se destina a proceder a uma nova determinação da pena, mas apenas a verificar da observância dos fatores e critérios que se lhe impõem, procedendo, se for caso disso, à necessária correção.

III. Com a fixação da pena única – cuja determinação obedece aos critérios da culpa e prevenção dos artigos 40.º e 71.º e ao critério especial do artigo 77.º, n.º 1, do CP – pretende-se sancionar o agente pelos factos considerados no seu conjunto, nas suas concretas circunstâncias, pelo «grande facto» revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. Há que atender ao «fio condutor» presente na «repetição criminosa», às relações entre os factos praticados reveladas pelas circunstâncias destes e pelas circunstâncias do agente que permitam identificar caraterísticas da personalidade com projeção nesses factos, levando-se em consideração a natureza destes e a identidade, semelhança e conexão entre os bens jurídicos violados, «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais».

IV. Não se suscitam questões de qualificação jurídica dos factos, cuja verificação se compreende no primeiro momento de determinação das penas; em particular, relevam, em concreto, a idade da vítima (8 anos), inferior a 14 anos, e o grau de aproveitamento da relação entre o agente e a vítima, circunstâncias que abstratamente concorrem para o preenchimento do tipo fundamental e do tipo agravado (artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1), com respeito pela proibição da dupla valoração.

V. Os factos que preenchem o ilícito global, com repetida ofensa do mesmo bem jurídico, foram praticados no mesmo contexto de vida familiar, de forma idêntica, na casa de morada de família, tendo a ofendida, filha da sua companheira, apenas oito anos de idade, no quarto e na cama em que esta dormia, aproveitando-se o arguido destas circunstâncias. É elevado o grau de ilicitude revelado pela forma e circunstâncias da conduta criminosa e pela repetida violação dos especiais deveres de proteção, confiança, educação e respeito que se impunham ao arguido na relação com a vítima, e também elevada a persistência e a intensidade da intenção criminosa, indiferente às consequências dos factos praticados, centrados na satisfação egoísta dos seus desejos sexuais sobre a criança.

VI. Manifestam-se fatores de agravação de elevada intensidade, dadas as circunstâncias dos tipos de crime, praticados na reserva da intimidade do seio da família, expressos na multiplicidade e frequência dos factos, nos sentimentos revelados na sua prática, no modo e no elevado grau de violação dos deveres impostos ao arguido. O comportamento do arguido, apesar da falta de antecedentes criminais e das suas condições pessoais, que não o impediram de praticar os factos descritos, e os sentimentos manifestados na execução dos crimes revelam uma personalidade particularmente desvaliosa, com manifesta falta de preparação para manter uma conduta lícita, denotando elevadas necessidades de prevenção especial relativamente a estes tipos de crime.

VII. Tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em  concurso, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido revelada na sua prática (artigo 77.º, n.º 1, do CP) e os limites impostos pelas circunstâncias relevantes para a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, e 71.º do CP), não se identifica fundamento que justifique uma intervenção corretiva na medida da pena única, a qual não desrespeita os critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação, em vista da realização das suas finalidades (artigo 40.º, n.º 1, do CP).

VIII. É, assim, negado provimento ao recurso.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 11.4.2024 do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que o condenou:

a) Pela prática em autoria material e concurso efetivo de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1, agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses para cada um deles e,

b) Em cúmulo, na pena única de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão, e ainda

c) Na pena acessória de proibição de assunção da confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do artigo 69.º-C, n.º 2 do Código Penal, e na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, pelo período de 8 (oito) anos, nos termos do art.69.º-C n.º 3 do Código Penal.

2. Discordando do decidido quanto à medida da pena única, apresenta motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

«A) Por acórdão proferido em 1.ª instância nos presentes autos, foi o Arguido e ora Recorrente julgado autor material de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.ºs 1, agravados pelo artigo 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses para cada um deles.

B) E, consequentemente, condenado à pena única de cinco anos e quatro meses de prisão efetiva.

C) Pelo que o presente recurso versa sobre a discordância da escolha da pena, máxime a desproporcionalidade da medida e da escolha da pena.

D) Por este motivo, o presente recurso versa somente sobre matéria de direito.

E) No que respeita à medida da pena, entende o Recorrente que o Tribunal a quo falhou na determinação da medida concreta da pena e, consequentemente, arredou a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão a que foi o Arguido condenado.

F) Com efeito, e não obstante a gravidade dos crimes, o Arguido não tem antecedentes criminais, está inserido social e profissionalmente e a pena de prisão irá resultar numa quebra irreversível que contraria os mais elementares pressupostos de ressocialização.

G) Realçando-se as finalidades subjacentes à aplicação da pena, sem olvidar a gravidade dos factos imputados ao Recorrente, julgamos que a ponderação das suas condições de vida, a sua idade, a sua integração profissional e familiar, a sua conduta anterior e posterior aos factos e a inexistência de antecedentes criminais, permitem concluir que as finalidades da pena serão alcançadas através da fixação de uma pena única de até 5 anos de prisão.

H) Caso a pena a que o Arguido foi condenado seja reduzida e não ultrapasse os 5 (cinco) anos de prisão, entendemos que a mesmo deverá ser objeto de suspensão da respetiva execução mediante sujeição a regime de prova, assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo e duração da suspensão, dos serviços tecnicamente especializados para o efeito, in casu, os Serviços de Reinserção Social, nos termos e para o efeito do art. 53.º, n.º 2 do CP,

I) Permitindo, assim, alcançar todos os fins subjacentes à aplicação de uma pena e garantindo, de forma cabal, o cumprimento das necessidades de prevenção geral e especial do caso concreto.

J) A jurisprudência dos Tribunais Portugueses já concedeu, por diversas vezes, a suspensão de pena de prisão relativamente a Arguidos condenados pela prática de crimes de natureza sexual, porquanto se entende que “a censura do facto e a ameaça de cumprimento de uma pena de prisão constituirão uma suficiente advertência”, permitindo aos Arguidos adotar um comportamento conforme às normas consensualizadas pela comunidade (vg. Ac. STJ de 12/11/2014, Proc. 1287/08.6JDLSB.L1.S1, Ac. TRL de 15/06/2005, Proc. 4604/2005-3 e 11/02/2021, Proc. 1773/19.2T9LSB.L1-9).

K) E, o Arguido encontra-se completamente inserido social e profissionalmente, assim como familiarmente. Pelo que, a aplicação de uma pena de prisão irá representar um esforço, sobejamente penoso, de reintegração aquando do termino da pena, quer laboral, social e familiarmente.

L) Entendemos que a pena aplicada ao Arguido deverá ser reduzida para uma pena não superior a 5 (cinco) anos de prisão, devendo a mesma ser suspensa na sua execução por igual período, mediante a sujeição a regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo e duração da suspensão, dos serviços tecnicamente especializados para o efeito.»

3. O Ministério Público no tribunal recorrido apresentou resposta, defendendo a rejeição ou a improcedência do recurso, nos seguintes termos (conclusões):

«(…)

2 – Impugna a medida da pena única, que pretende ver fixada em 5 anos de prisão e substituída por suspensão da execução eventualmente com regime de prova, mas o recurso não deve ser conhecido, ou, a sê-lo, deve improceder.

3 – Impugnando o recorrente só a pena única e não as penas parcelares deveria, em cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 412.º do CPP enunciasse na motivação especificamente os fundamentos do recurso e terminasse pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resumisse as razões do pedido (n.º 1), e que versando, como é o caso, matéria de direito, «as conclusões indicassem ainda: (a) As normas jurídicas violadas; (b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e (c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.»

4 – O que não fez, sendo certo que, sobre as regras de punição do concurso de crimes rege o art.º 77.º do Código Penal, nos n.ºs 1 e 2, normas que o recorrente, ignorou completamente, não lhes faz qualquer referência nas conclusões da motivação de recurso, nem sequer, aliás, no texto dessa mesma motivação.

5 – Incumprimento de ónus que leva à rejeição do recurso, ao seu não conhecimento quanto a essa questão (objecto primário de apreciação, cujo não conhecimento obsta à apreciação da segunda questão suscitada, pela natureza das coisas), não se podendo dizer que deva ter lugar o formulação do convite à correcção das conclusões a que alude o n.º 3 do art.º 417.º do CPP, pois que esse convite tem como limite absoluto o texto da motivação e, como se disse já, nesse texto, o recorrente não faz qualquer referência aos elementos em falta (n.º 4 do art.º 417.º do CPP).

6–Para a hipótese de se entender diferentemente, por dever funcional, dir-se-á que deve manter-se o decidido no acórdão recorrido.

7 – Em causa está somente a pena única, que não merece censura, encontrando-se perto do valor, um pouco abaixo, do que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sugere.

8 – Já entendeu o STJ que, no nosso sistema de pena única conjunta, o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares (numa concessão minimalista ao princípio da exasperação ou agravação – a punição do concurso correrá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave) mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes, sem que possa ultrapassar a soma das penas concretamente que seriam de aplicar aos crimes singulares (princípio da acumulação – a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária). Nessa óptica e num esforço para evitar as disparidades injustificadas detectadas naquelas penas, tem vindo a considerar como ponto de partida na determinação dessas penas, a agravação da pena parcelar mais grave com um coeficiente do remanescente das restantes penas parcelares, que se situa em princípio entre um terço e um sexto da sua soma total, a precisar em função das circunstâncias do caso e a personalidade do agente.

9 – O recorrente foi condenado a 3 penas parcelares de 3 anos e 4 meses para cada um deles e, em cúmulo dessas penas parcelares na pena unitária de 5 anos e 4 meses anos de prisão, dentro de uma moldura com o limite mínimo de 3 anos e 4 meses de prisão e com o limite máximo de 10 anos de prisão e com o remanescente (somas das penas parcelares – a pena mais grave) de 6 anos e 8 meses.

10 – Aplicando o factor de compressão de 1/3 desse remanescente, o mais usado pelo STJ teríamos 26 meses e 20 dias, que adicionados ao limite mínimo (ou seja à pena mais grave) daria 5 anos 6 meses e 20 dias, muito próximo, pois, da pena de 5 anos e 4 meses de prisão aplicados pela douta decisão recorrida e que assim não merece qualquer censura.

11 – E, na verdade, ponderando os factos na sua globalidade e a personalidade do arguido espelhada nos mesmos, e o limite legal, afigura-se justo, adequado e necessário adoptar o factor de compressão de 1/3, o mais utilizado, aliás, pelo STJ.

12 – Assim, não mereceria, no entendimento do Ministério Público, censura a pena única fixada, a ser o recurso apreciada, nesta dimensão.

13 – Dada a posição que se assumiu quanto à questão da pena única colocada pelo recorrente, que se entende que não deve ser conhecida, igualmente se considera que sequentemente não deve ser conhecida esta questão, por se tornar imutável a pena única que, pela sua medida não consente a suspensão da sua execução.

14 – No entanto, por dever funcional, dir-se-á, que a entender-se diferentemente, não assiste razão ao recorrente.

15 – Face ao teor do art.º 50.º do C. Penal, importa ter em conta que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se: –atendendo à personalidade do agente; – às condições da sua vida; – à sua conduta anterior e posterior ao crime; e às circunstâncias deste [do crime] – concluir que a simples censurado facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (n.º 1).

16 – Para a conclusão de que as finalidades da punição, que como se sabe consistem na protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art.º 40.º) são realizadas de forma adequada e suficiente, devem ser ponderados todos aqueles elementos, o que inclui a personalidade do agente e as circunstâncias do crime.

17 – Mas o recorrente limita-se a invocar na conclusão K a sua inserção social e profissional, o que é manifestamente insuficiente para desencadear uma conclusão positiva quanto à aplicação da pretendida medida substitutiva da pena de prisão.

18 – O que resulta, segundo cremos, desde logo da personalidade do agente e das circunstâncias do crime.

Termos em que não deve ser conhecido o recurso do recorrente, ou a não ser entendido assim, deve ser-lhe negado provimento e confirmada a decisão recorrida (…)»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«(…)

Não concorda o recorrente com a pena única aplicada, que considera desproporcionada, porque devia ser mão superior a 05 anos de prisão.

3. No pressuposto, em síntese conclusiva – para além da alegação de generalidades e categorias abstractas – de não ter sido levado em linha de conta, no essencial, que:

F) Com efeito, e não obstante a gravidade dos crimes, o Arguido não tem antecedentes criminais, está inserido social e profissionalmente e a pena de prisão irá resultar numa quebra irreversível que contraria os mais elementares pressupostos de ressocialização

4. Contrapõe, contudo, o Ministério Público, que as concretas circunstâncias da prática dos crimes, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos nas disposições dos arts. 71.º e 77.º/1 do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena única concretamente aplicada não se mostra, adentro da moldura abstracta do concurso (03 anos e 04 meses a 10 anos de prisão) excessiva, desnecessária e desproporcionada, dando, aliás, com todo o respeito, expressão mínima às exigências do princípio da culpa e da prevenção geral e especial – sempre na consideração da globalidade dos factos e da personalidade do arguido.

5. Nomeadamente:

A expressiva amplitude da moldura penal do concurso;

O acentuado grau de ilicitude a culpa do arguido;

As elevadas exigências da prevenção geral e especial;

A idade do arguido (nascido em ...) – sendo já um adulto maduro à data da prática dos factos –, ter-lhe-ia permitido (assim o quisesse) procurar abraçar uma vivência no respeito pela sexualidade na menoridade, especialmente de uma criança que também lhe estava confiada e a que devia especial respeito e pudor;

6. Quanto à valorada ausência de antecedentes criminais e inserção familiar e social:

Sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios essenciais na valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poder conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.

Não violou a douta decisão recorrida o disposto nos arts. 71º e 77º do Código Penal.

B) Suspensão da execução da pena de prisão. (…)

8. A natureza e circunstâncias dos actos cometidos sobre a menor (com total ausência de factores de inibição), a quem devia especial respeito e reserva, deixam antever o risco de no futuro o arguido cometer factos da mesma natureza.

9. Embora a estatística criminológica demonstre que os agentes de crimes sexuais cometidos no recato do lar, contra familiares ou pessoas próximas, não cometem normalmente outros crimes da mesma natureza fora da “segurança” do seu meio de origem, por normalmente se “acovardarem” na confrontação face a potenciais vítimas de um meio que não é o do seu conforto, também é de ter presente a facilidade com que os abusadores sexuais logram recompor um novo meio “familiar”, em cujo seio se voltarão a sentir capazes e seguros para novo atentado a tais valores, com novas vítimas.

10. Donde:

Num esforço de prognose, revelar-se-ia, de todo o modo, claro que a prevenção especial não resultaria acautelada, pois que o arguido não ofereceria, ao nível do risco aceitável, garantias de se afastar, no futuro, da criminalidade, caso a punição se ficasse por uma advertência de prisão.

11. Ou seja:

A própria socialização e reintegração, através da prevenção especial, assim como a prevenção geral, passam, no momento certo, pela efectiva sujeição a prisão, como necessária alternativa a uma postura pessoal de fácil e ligeiro atentado ao livre desenvolvimento da sexualidade.

III. Em síntese:

Não se mostra excessiva e desproporcionada a pena única de prisão concretamente aplicada;

Revelar-se-ia, no caso, desajustada, ao nível do risco aceitável, a suspensão da execução da pena de prisão decretada (no pressuposto, aliás, de que pena única viesse a ser fixada em medida não superior a 05 anos de prisão).

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.»

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso prosseguiu para julgamento em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

Factos provados

7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. O arguido viveu com BB, como se de marido e mulher se tratasse, desde o ano de 2016 e, residiam na Rua ..., em ..., ....

2. Juntamente com o arguido e a BB, viviam CC, nascido em ... de ... de 2019, filho de ambos e, a menor, DD, nascida em ... de ... de 2013, filha de BB.

3. O arguido desde que passou a viver com a sua companheira, passou também a ser responsável pela educação, assistência e cuidados da menor DD.

4. Durante a noite do dia ... de ... de 2021, quando a menor DD, se encontrava a dormir no seu quarto, o arguido foi ter com ela ao quarto.

5. Fê-lo por duas vezes, numa primeira vez, a menor acordou e disse-lhe “sai daqui”, ele saiu.

6. Na segunda vez, quando a menor lhe volta a dizer “sai daqui”, o arguido fez um gesto com o dedo, colocando-o à frente da boca e nariz, indicando-lhe que se calasse e deitou-se ao seu lado, retirando o seu pénis de dentro das calças de fato de treino, que vestia nesse momento.

7. Puxou as calças do pijama e as cuecas da menor até ao meio das pernas.

8. Pegou na mão da menor e colocou-a no seu pénis.

9. A menor tentou resistir em fazê-lo, dizendo-lhe que não gostava e que queria tirar a mão, mas o arguido agarrava-lhe a mão e voltava a pô-la no seu pénis, sendo que igualmente lhe tinha colocado a mão na zona genital.

10. De seguida encostou o seu pénis à vagina da menor, e através de movimentos ascendentes e descendentes friccionou-o na vagina até ejacular, molhando as cuecas e as calças do pijama da menor.

11. Factos semelhantes aos relatados em 6 a 10 tinham já acontecido anteriormente, em datas não concretamente apuradas, pelo menos em duas outras ocasiões distintas.

12. O arguido AA, agiu livre, voluntária e conscientemente, em todas as situações descritas, com o propósito conseguido de apalpar a zona genital da menor, colocar a mão da menor no seu pénis e friccionar com o seu pénis a vagina desta até ejacular, para satisfazer os seus desejos libidinosos, com perfeito conhecimento da idade da menor, nomeadamente, que era muito inferior a 14 anos, bem sabendo que isso ofendia gravemente a moral sexual, atentando contra a liberdade de determinação sexual, prejudicando, dessa forma, o desenvolvimento da personalidade da menor.

13. O arguido aproveitou-se do facto de coabitar e de fazer parte do agregado familiar da menor, da relação de proximidade e do ascendente sobre a menor, sabendo que também era responsável pela sua educação e assistência, para cometer os factos supra descritos.

14. Sabia ainda que todas as suas condutas descritas eram proibidas e punidas por lei;

15. Neste momento, a menor não apresenta sintomatologia compatível com a existência de danos ou sequelas derivadas dos actos acima descritos.

16. Mais se provou em relação ao arguido:

No período dos factos subjacentes ao presente processo, correspondente ao hiato temporal 2018 e 2021, AA residia na Rua ..., .../..., correspondente a uma habitação de tipologia dois, arrendada por 300€/mês e localizada em zona urbana e residencial do concelho de .... Vivia com a companheira BB, com a filha desta, DD, menor ofendida nos presentes autos, nascida em ...-...-2013, e com CC, o único filho em comum do casal e do arguido, nascido em ...-...-2019. AA trabalhava, com vínculo profissional, como ...; a companheira laborava, de modo mais precário, na área ..., subsistindo uma conjuntura socioeconómica modesta.

Atualmente, e desde ...-...-2021, AA reside na Rua ..., ..., ... ..., correspondente à casa onde cresceu com o núcleo familiar de origem.

AA vive, assim, com o seu pai e com a sua mãe, em habitação própria dos progenitores, ambos com 64 anos de idade e reformados.

O supradito agregado subsiste com a reforma do pai do arguido, cerca de 400€/mês, e com o vencimento de AA, de 950€/mês (valor líquido), sendo que o arguido comparticipa nas despesas domésticas com 300€/mês. Descreve e perceciona uma situação socioeconómica ajustada, sem problemas de relevo.

AA possui como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade, concluído quando contava 20 anos. As primeiras experiências profissionais foram a coadjuvar o progenitor, em serviços de eletricidade. Posteriormente, em 2006, principiou-se no ramo da hotelaria como empregado de balcão e mesa. Desde o ano de 2010, trabalha no estabelecimento “E..., Lda”, localizado na Rua ..., ..., ... .... Exerce funções como ... e neste contexto patenteia inserção e boas relações com colegas, superiores hierárquicos e clientes.

AA, no seu percurso de vida, refere duas relações afetivas mais significativas e com coabitação. A primeira relação, em união de facto, perdurou cerca de 3/4 anos. A segunda, com a mãe da ofendida, decorreu entre 2016 e 2021. Descreve estes relacionamentos sem identificar problemáticas.

Com o filho, atualmente com 5 anos, AA mantém contactos regulares, por intermédio dos pais, que são elementos ativos e envolvidos na vida do menor. AA também mantém contactos, cordiais e pacíficos, com a ex-companheira, mãe do seu filho e mãe da ofendida, e pese embora não pague pensão de alimentos, situação acordada entre o ex-casal, contribui ativamente para as despesas do filho.

AA revela um quotidiano com base no exercício da atividade laboral, com horários que alternam semanalmente (11h-19h ou 16h-23h) e folga à terça-feira. Nos tempos livres fica por casa, não identificando qualquer atividade estruturada de tempos livres.

AA, nas suas relações sociais, apresenta-se discreto e introvertido.

O arguido refere repercussões face à presente situação jurídico-penal na sua vida pessoal e familiar. Destaca a saída da habitação, em setembro/2021, devido aos presentes autos. Foi acolhido em casa dos pais, que lhe manifestam apoio independentemente do desfecho dos presentes autos, mas com alguma tendência à desvalorização da alegada prática criminal.

17 - O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.»

Âmbito e objeto do recurso

8. O recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que, em 1.ª instância, aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos. Visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, da competência deste tribunal (artigo 434.º do CPP), não vindo invocados vícios ou nulidades que podem constituir fundamento do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro].

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que não se verificam.

9. Tendo em conta as conclusões da motivação, não se destinando o recurso a proceder a uma nova determinação da pena, mas apenas a verificar da observância dos fatores e critérios que se lhe impõem, procedendo, se for caso disso, à necessária correção, este Tribunal é, pois, chamado a apreciar e decidir: (a) se o acórdão recorrido, ao aplicar a pena única de 5 anos e 4 meses de prisão, violou o regime de determinação da medida da pena, em desrespeito pelos critérios de adequação e proporcionalidade que lhe presidem; (b) se, sendo o caso, a pena deve ser reduzida para medida não superior a 5 anos de prisão e (c) se, nesse caso, deverá a pena de prisão ser suspensa na sua execução.

Diferentemente do que defende o Senhor Procurador da República na resposta ao recurso, considera-se que, não obstante a não indicação da norma violada, não se verifica motivo que, nos termos do n.º 1 do artigo 420.º do CPP, determine a rejeição de recurso.

10. O acórdão recorrido encontra-se assim fundamentado:

«(…) O crime em apreço visa proteger a autodeterminação sexual, face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual. (…)

Com a presente incriminação, tutela-se a liberdade e a autodeterminação sexual associada ao livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, de modo que se poderá mesmo falar na protecção de um bem jurídico complexo denominado de desenvolvimento sem entraves da identidade sexual do menor - neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, págs. 711 e 712. (…)

Elemento decisivo do tipo objectivo de ilícito é o conteúdo sexual do acto que vem a ter lugar e que pode ser de diversa natureza consoante os diversos números e alíneas em que o artigo se divide.

O crime previsto no nº. 1 do artigo 171º funciona como crime matricial ou tipo fundamental relativamente às demais condutas tipificadas nos nºs. 2 a 4 desse mesmo artigo. (…)

Resulta da redacção legal que se o agente do crime pode ser qualquer pessoa (independentemente da idade ― desde que maior de 16 anos ― relação de parentesco com a vítima ou sexo), a vítima é sempre uma criança ou jovem com idade inferior a 14 anos, de qualquer sexo, sendo de todo irrelevante que seja ou não iniciada sexualmente, tenha ou não capacidade de discernimento do acto sexual em que se envolveu, ou que tenha uma parte activa (mesmo a iniciativa) ou puramente passiva.

Da redacção do tipo legal ― e desde já voltando a nossa atenção para o caso sub iudice ― mostra-se que se pune a prática de acto sexual de relevo com menor de 14 anos.

Acto sexual é aquele que, “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem o sofre ou pratica”, sendo irrelevante “o motivo da actuação do agente”, não assumindo relevo típico a intenção libidinosa com que o agente actua, antes sendo indispensável que o acto seja susceptível de “ser reconhecido por um observador como possuindo uma conotação sexual” (isto considerando o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia), não sendo necessário que a vítima o reconheça como sexualmente significativo” - (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., T I, pág. 719).

Todavia, o acto sexual que assume importância típica é o “de relevo”, assim se excluindo os actos considerados insignificantes ou bagatelares, apenas se considerando os actos que representam um entrave com importância para o desenvolvimento da personalidade do menor na esfera da sexualidade. E aqui, convém não esquecer que coisa diversa do acto sexual de relevo é o acto que revela uma mera importunação sexual (artigo 170º e, relativamente a menores, a alínea a) do nº. 3 do artigo 171º). (…)

Assim por acto sexual de relevo entende-se, a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima. Estão abrangidos actos em que a vítima assume uma posição sexual activa (constranger a praticar) ou passiva (constranger a sofrer) mas não os actos sexuais diante da vítima, que constituem “atos exibicionistas” (REIS ALVES, 1995:13, e FIGUEIREDO DIAS, anotação 14ª ao art. 163, in CCCP, 1999). O acto sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objectos ou partes do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca, sendo irrelevante se a vitima tinha ou não experiencia sexual ou mesmo capacidade para entender o acto sexual; (…).

Cabe, ainda, dizer que o crime em apreço é doloso, isto é, necessário se torna que o agente represente todos os elementos do tipo objectivo acima descrito e actue, ao menos conformado com a sua realização.

No art.º 177.º do C.P. estabelece-se uma agravação do crime de abuso sexual de crianças quando a vítima se encontrar numa relação familiar com o agente e o crime for praticado com aproveitamento dessa relação (cfr. art.º 177.º, n.º 1, al. b), do C.P.), por tal situação denotar um maior desvalor do tipo de ilícito.

A utilização do conceito “relação familiar” visa abranger toda a relação entre o agente e a vítima que se traduza numa proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, e que o agente se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da ação. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação dessa proximidade (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-05-2016, processo n.º 155/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt). (…)

Em face da matéria de facto provada temos que a ofendida, então menor de 8 anos, convivia com o arguido, sendo este o companheiro da mãe, com quem esta vivia em comunhão de leito e habitação e logo tendo uma relação de extrema proximidade com a menor, estabelecendo-se, por força disso, uma relação de confiança, mas também de dependência, subordinação, submissão e obediência da menor ao arguido.

Resulta igualmente evidente que que os comportamentos para com a ofendida DD se traduzem-se em “actos sexuais de relevo”, na definição supra efectuada, pelo que sendo esta menor de 14 anos estamos perante o preenchimento do crime de abuso sexual de crianças, previsto no n.º 1 do art.171.º do Código Penal.

Tendo em atenção que tais factos ocorreram em pelo menos três momentos distintos, forçoso se terá que entender que estamos perante três resoluções diversas, e logo o preenchimento do referido tipo legal igualmente por três vezes.

Sob o ponto de vista subjetivo, é de exigir o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito (cfr. art.º 14.º do C.P.) e, por conseguinte, também quanto à circunstância de ser menor de 14 anos.

Ora, resulta da matéria de facto considerada provada que o arguido agiu em cada uma das referidas situações com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.).

Deverá assim o arguido ser condenado pela prática de três crimes de abuso sexual de crianças, nos termos do art.171.º n.º 1 do Código Penal, com a agravação decorrente da al. b) n.º 1, do art. 177.º, todos do CP.

Assim:

O crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, agravado pelas als. a) e c) do n.º 1, do art. 177, todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.

A determinação concreta da pena faz-se de acordo com os critérios fixados no artigo 71º, n.º 1 e n.º 2 do C. Penal, pelo que, numa primeira aproximação, a pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento.

A medida concreta da pena há-de encontrar-se no espaço de liberdade fornecido por uma moldura que tem como limite máximo a culpa do agente e como limite mínimo as exigências de prevenção geral positiva (Vide F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências do Crime, Editorial Notícias, p. 227 e ss).

Na verdade, importa precisar que:

- A culpa do agente assinala o limite máximo da moldura penal, dado que não pode haver pena sem culpa, nem a pena pode ser superior à culpa, de acordo com princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa – art.1º, 13º e 25º-, do Código Penal – art.40º - e no respeito pela dignidade inalienável do agente;

- As exigências de prevenção geral (traduzidas na necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, no respeito pelas legitimas expectativas da comunidade) têm uma medida óptima de protecção, que não pode ser excedida, e um limite mínimo, abaixo do qual não se pode descer, sob pena de se pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nos institutos jurídico-penais; trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que, a pena a aplicar não pode ultrapassar os limites de prevenção geral, uma vez que, como dispõe o artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P., só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reacções criminais; e

- Dentro desses dois limites actuam, na graduação da pena concreta, os critérios de prevenção especial de ressocialização, pois só se protege eficazmente os bens jurídico – penais se a pena concreta servir a reintegração do agente ou não evitar a quebra da sua inserção social.

Em suma, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena (Vide Anabela Rodrigues, "A determinação da medida concreta da pena..., R.P.C.C., nº2 (1991); "Sistema Punitivo Português, Sub Judice, 1996, nº11; da mesma autora vide também “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 12,n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182 e F. Dias, Direito Penal Português, ob. cit., pág. 243)

Para graduar concretamente a pena há que respeitar ainda, como supra foi dito, o critério fornecido pelo n.º 2 do artigo 71º do C. P., ou seja, atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Este critério é fornecido, exemplificativamente, nas suas alíneas e podem e devem ajudar o tribunal a concretizar, no sentido de vir a quantificar, quer a censurabilidade ao facto a título de culpa, quer as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.

A exigência de as referidas circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes), não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio ne bis in idem.

Tendo em conta os referidos princípios, consideremos agora as circunstâncias relevantes em termos da medida da pena concreta.

Há a considerar o grau de ilicitude dos factos, que se situam num patamar elevado, atenta a multiplicidade de actos diversos praticados e face ao modo de execução, que culminava com ejaculação por parte do arguido sobre a menor.

As consequências dos actos são igualmente muito elevadas, porquanto as vítimas são apanhadas numa fase muito frágil do seu desenvolvimento ficando com uma marca emocional negativa cujo desfecho é de difícil previsão, sendo pouco relevante que neste momento não seja possível descortinar sequelas.

Não pode, pois, o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança e de reposição de confiança na norma jurídica violada, em particular aqueles que mais precisam dessa protecção: as crianças e jovens.

No que concerne ao grau de violação de deveres impostos ao agente, e dado que nada indica que o mesmo não seja capaz de se autodeterminar, era e é-lhe exigível, que vivenciasse a sua sexualidade com homens e/ou mulheres que estejam dentro dos parâmetros ético-penais consentidos em sociedade.

Ao não o ter feito, a sua culpa está a agravar-se.

A culpa do arguido é assim intensa, dado radicar na sua vertente mais grave – a do dolo directo.

As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, fazem-se sentir, principalmente no quadro actual da sociedade, com fortíssima intensidade, uma vez que tal tipo de crime tem vindo a causar grande perplexidade quanto à sua difusão.

A sociedade assiste impotente, quando se apercebe que as crianças vivem verdadeiros pesadelos no interior das suas famílias, em que o agressor é alguém muito próximo.

Em súmula, a necessidade da reafirmação contrafáctica de tal norma, é muito elevada no caso concreto.

Para além do que se referiu, importa atender:

- A ausência de antecedentes criminais do arguido;

- Todo o seu passado, nele se incluindo as habilitações literárias, as condições sociais, familiares e económicas, etc, designadamente as existentes na data da prática dos factos, bem assim as suas condições de vida actuais. Assim, quanto a este aspecto, regista-se o considerado como supra provado dos factos provados que aqui escusado será reproduzir, pelo que para aí se remete.

Face a todo o exposto, entendem-se como justas e adequadas as seguintes penas:

- Por cada um 3 crimes cometidos de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e al. b), do n.º 1, do art. 177.º, todos do Código Penal, as penas parcelares de 3 anos e 4 meses de prisão.

Tendo em conta o preceituado no art. 77.º n.º 2 Código Penal, deverá ser construída uma moldura penal entre os 3 anos e 4 meses e os 10 anos, onde o Tribunal deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado”, apontando este autor como critério avaliativo a seguir o da “conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” para além de uma “avaliação da personalidade unitária” reconduzível ou não a uma tendência criminosa (in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pag.421).

Deste modo, tendo em conta o nexo espacio-temporal existente entre os crimes, os motivos envolventes da sua prática, em que os mesmos estão ligados por um determinado enquadramento historio-sucessivo somos levados a concluir que tal pluriocasionalidade radica na personalidade do arguido, impedindo que a pena se possa situar junto de qualquer limite mínimo, sendo aliás crível que o arguido possa voltar a praticar actos semelhantes.

Face ao exposto, reputa-se como necessária a pena unitária de 5 anos e 4 meses de prisão.»

11. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir de uma moldura definida, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigos 40.º e 71.º, infra), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (critério especial do n.º 1 do artigo 77.º, in fine).

Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1).

12. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, com a fixação da pena única pretende-se sancionar o agente pelos factos considerados no seu conjunto, nas suas concretas circunstâncias, isto é, pelo «grande facto» revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento.

Há que atender ao «fio condutor» presente na «repetição criminosa», às relações entre os factos praticados reveladas pelas circunstâncias destes e pelas circunstâncias pessoais do agente que permitam identificar caraterísticas da personalidade com projeção nesses factos, levando-se em consideração, nomeadamente, a natureza destes e a identidade, semelhança e conexão entre os bens jurídicos violados, «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» (assim, por todos, entre os mais recentes, o acórdão de 17.4.2024, Proc. 251/22.7PCRGR.L1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada).

“Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).

13. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada nesse facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigo 71.º do CP).

Como se tem afirmado em jurisprudência reiterada, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)].

O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos, que devem pautar a sua aplicação, em juízo distanciado das opções legislativas expressas na definição do tipo legal de crime e na moldura da pena correspondente (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; assim, por todos, o citado o acórdão de 17.4.2024, Proc. 251/22.7PCRGR.L1.S1).

14. Não se suscitam quaisquer questões relativas à qualificação jurídica dos factos, que preenchem por três vezes o tipo de crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, cuja verificação se compreende no primeiro momento de determinação das penas.

Em particular, relevam para a determinação da pena a idade concreta da vítima, inferior a 14 anos, e o grau de aproveitamento da relação entre o agente e a vítima, ou seja, a ponderação, em concreto, de circunstâncias que abstratamente concorrem para o preenchimento do tipo fundamental (artigo 171.º, n.º 1) e do tipo agravado do crime (artigo 177.º, n.º 1), com respeito pela proibição da dupla valoração.

15. Em síntese, invoca o recorrente, a seu favor, as suas condições pessoais (condições de vida, idade e inserção social, profissional e familiar) e o comportamento anterior ao crime (ausência de antecedentes criminais), que, como se viu, foram considerados no acórdão recorrido, na determinação das penas parcelares, que definem a moldura da pena única.

16. Aos crimes cometidos, que se posicionam numa relação de concurso (artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal), corresponde a pena de 1 ano e 4 meses (pena parcelar mais elevada) a 10 anos e 8 meses de prisão (soma das penas aplicadas aos crimes em concurso).

17. Os factos que preenchem o ilícito global, com repetida ofensa, por três vezes, do mesmo bem jurídico, foram praticados no mesmo contexto de vida familiar, de forma idêntica, na casa de morada de família, tendo a ofendida, filha da sua companheira, de apenas oito anos de idade, no quarto e na cama em que esta dormia, aproveitando-se o arguido destas circunstâncias.

É elevado o grau de ilicitude revelado pelo número de vezes em que os factos foram praticados, pela forma e circunstâncias em que se materializou a conduta criminosa e pela repetida violação dos especiais deveres de proteção, confiança, educação e respeito que se impunham ao arguido na relação com a vítima, e também elevada a persistência e a intensidade da intenção criminosa, indiferente às consequências dos factos praticados, centrados na satisfação egoísta dos seus desejos sexuais sobre a criança.

18. Manifestam-se, assim, fatores de agravação de elevada intensidade, dadas as circunstâncias dos tipos de crime, praticados na reserva da intimidade do seio da família, expressos na multiplicidade e frequência dos factos, nos sentimentos revelados na sua prática, no modo e no elevado grau de violação dos deveres impostos ao arguido.

O comportamento do arguido, apesar da falta de antecedentes criminais e das suas condições pessoais, que não o impediram de praticar os factos descritos, e os sentimentos manifestados na execução dos crimes revelam uma personalidade particularmente desvaliosa, com manifesta falta de preparação para manter uma conduta lícita, denotando elevadas necessidades de prevenção especial relativamente a estes tipos de crime.

19. O acórdão recorrido avalia estas circunstâncias, relevantes por via da culpa e da prevenção, dando particular relevância às necessidades de prevenção, nomeadamente de prevenção geral, tendo em conta a frequência de crimes desta natureza.

Não se mostra, porém, que esta avaliação não se comporte, no caso concreto, nos limites impostos pelos fatores reveladores da censurabilidade dos factos e inerentes às condições pessoais do arguido concorrendo por via da culpa, que devem ser adequadamente valorados em função do limite imposto por esta nos termos do artigo 40.º, n.º 2, do CP (supra, 15).

20. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido revelada na sua prática (artigo 77.º, n.º 1, do CP) e os limites impostos pelas circunstâncias relevantes para a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, e 71.º do CP), não se mostra presente fundamento que justifique uma intervenção corretiva na medida da pena única, a qual não desrespeita os critérios de adequação e proporcionalidade que presidem à sua aplicação, em vista da realização das suas finalidades (artigo 40.º, n.º 1, do CP).

É, assim, negado provimento ao recurso.

21. Sendo a pena aplicada de medida superior a 5 anos de prisão, prejudicada se mostra a apreciação da questão da suspensão da sua execução, por a isso se opor o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que apenas a admite relativamente a penas não superiores àquela medida.

Quanto a custas

22. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

23. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de setembro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Antero Luís (Adjunto)

Horácio Correia Pinto (Adjunto)