Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | CONTRATO DE MÚTUO EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA BANCO DEVEDOR OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO VENCIMENTO | ||
Data do Acordão: | 01/18/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO / PRAZO DA PRESTAÇÃO. DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / VENCIMENTO IMEDIATO DE DÍVIDAS. | ||
Doutrina: | -Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª Edição, p. 1014 e 1015; -Ana Prata, Código Civil Anotado, 2017, Volume I; -Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume 1, 4.ª Edição, p. 698 ; Volume II, 4.ª Edição, p. 54; -Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª Edição, p. 250 e 251; -Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª Edição, 2015, p. 186; -Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, Edição de 1968, p. 25. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 779.º, 780.º E 781; CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 91.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA : -DE 10-05-2007, PROCESSO N.º 07B841, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : | I - A obrigação solidária de restituição do capital mutuado e respectivos juros, nos prazos estabelecidos nos contratos de mútuo com hipoteca, celebrados entre o banco exequente e a recorrente e o executado, constitui uma obrigação a prazo, em que a exigibilidade do cumprimento é diferida para um momento posterior. II - Esta possibilidade constitui um benefício, em regra, do devedor (cfr. art. 779.º do CC): o credor não pode exigir a prestação antes do fim do prazo, embora assista ao devedor o direito de proceder à sua realização a todo o tempo, renunciando a esse benefício. III - Contudo, para além dos casos de exigibilidade antecipada previstos nos arts. 780.º e 781.º, ambos do CC, prevê o art. 91.º, n.º 1, do CIRE, que, com a declaração judicial de insolvência, a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação do credor ao devedor: dá-se o vencimento automático antecipado. IV - A perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda. V - Ao proceder ao bloqueamento do acesso à conta bancária onde era processado o pagamento das prestações, o banco exequente impossibilitou que continuassem a ser pagas as prestações mensais e sucessivas relativas aos dois contratos de mútuo, razão única pela qual os pagamentos não foram efectuados, não dispondo, consequentemente, de fundamento legal para considerar vencidas todas as prestações ainda em dívida e exigi-las da co-executada recorrida. | ||
Decisão Texto Integral: |
PROCESSO N.º 123/14.9TBSJM-A.P1 REL. 13[1]
* ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
AA deduziu oposição, mediante embargos, à execução que lhe moveu BB, S.A., alegando, em síntese, que: - o executado CC foi declarado insolvente com carácter limitado, pelo que manteve poderes de disposição sobre os seus bens, contestando que tal facto pudesse levar ao vencimento da dívida; - os contratos de mútuo celebrados com o exequente sempre foram cumpridos; - mesmo após o bloqueamento da conta bancária respeitante aos ditos contratos de empréstimo, o executado diligenciou junto do exequente para que a conta bancária fosse desbloqueada para poder depositar mensalmente as prestações, o que o exequente não permitiu; - por outro lado, a executada não foi declarada insolvente; - o vencimento da totalidade da dívida é uma possibilidade, não se tratando de uma cláusula automática, podendo o exequente exigir uma outra garantia, pelo que a actuação do exequente é excessiva e desproporcionada. Concluiu pedindo a extinção da execução por inexigibilidade da obrigação. Contestou o exequente, alegando que o contrato nem sempre foi cumprido escrupulosamente, e que, apesar do carácter limitado da insolvência, o executado requereu a exoneração do passivo restante, o que lhe foi indeferido. Acrescentou que a insolvência foi declarada, o que o legitimou a considerar antecipadamente vencida a dívida, nos termos do artigo 780° do CC e da cláusula 16Q do contrato de mútuo. Na audiência prévia, foi determinada a apensação dos apensos A e B (reportando-se este à oposição do executado CC), passando a tramitação a ser efectuada no apenso A. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi depois proferida decisão que julgou improcedente a oposição do executado CC e procedente a da executada AA, determinando-se a extinção da execução quanto a ela e o levantamento da penhora da metade da fracção da executada. Recorreu o exequente, tendo o Tribunal da Relação do Porto confirmado a decisão recorrida. Novamente inconformado, interpôs o exequente recurso de revista excepcional, admitido por acórdão da formação, datado de 12.10.2017 (fls. 271/272).
Nas respectivas alegações o recorrente conclui do seguinte modo:
1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão da Relação do Porto que confirmou, unanimemente, a sentença proferida pelo Tribunal da 1ª instância que julgou procedente a oposição à execução deduzida pela executada/recorrida. 2. Apesar da verificação da situação de dupla conforme prevista no artigo 671º, n.º 3, do CPC, o dito acórdão encontra-se em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09.02.2017, relatora Maria Purificação Carvalho, proferido no âmbito do processo 59/14.3T8BGC-A.G1 (Acórdão-fundamento), debruçando-se ambos sobre a mesma legislação e temas jurídicos e registando um quadro fáctico essencialmente idêntico – é, portanto, o presente recurso de revista excepcional (artigo 672º, n.º 1, alínea c), do CPC), encontrando-se preenchidos todos os pressupostos para que o mesmo seja acolhido, tal como melhor ficou exposto no requerimento de interposição. 3. A execução dos autos principais foi instaurada, pelo Banco recorrente, contra os executados, tendo por base dois contratos de mútuo com hipoteca e uma livrança subscrita por aqueles (a livrança não será relevante para o que aqui se discute). 4. Um dos mutuários/executados foi declarado insolvente por sentença proferida com carácter limitado, sem que tenha sido requerido o complemento da sentença, o que, porém, não o fez abster-se de requerer a exoneração do passivo restante (pedido que, após decisão da Relação, lhe foi negado). 5. Desde já adiantamos que foi precisamente a declaração de insolvência daquele que determinou o vencimento imediato da dívida, nos termos da lei e do contrato, especificamente nos termos do artigo 91º do CIRE ou, no limite, nos termos do artigo 780º do CC e da Cláusula Décima-Sexta, ponto Três dos contratos de mútuo. 6. A co-mutuária deduziu oposição à execução, a qual veio a ser julgada procedente, tendo sido considerado que a perda do benefício do prazo não se estende ao co-obrigados do devedor, nos termos do artigo 782º do CC, entendimento seguido também no acórdão recorrido, que considerou que as partes não estipularam, nos contratos dos autos, que a perda de benefício do prazo se estenderia ao co-obrigados. 7. Ora, determina o artigo 91º, n.º 1, do CIRE que, com a declaração de insolvência, vencem-se imediatamente todas as obrigações do insolvente não subordinadas a condição suspensiva, não fazendo a referida norma qualquer distinção entre as dívidas em que o insolvente figure como devedor singular, condevedor ou garante. 8. Nos contratos dados à execução prevê-se, na Cláusula Décima Sexta, ponto Três, que, verificando-se a declaração de insolvência de qualquer um dos mutuários, ao Banco assiste o “direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo”. 9. Estamos perante uma situação de solidariedade passiva em que temos uma única obrigação (ao menos no plano das relações externas, credor/devedores), obrigação que não é divisível, logo, que não se pode repartir em tantas quotas-partes quantos devedores haja. 10. Assim, verificando-se a insolvência de qualquer um dos devedores, a obrigação vence-se de forma imediata e automática, na sua totalidade, efeito que, inevitavelmente, afecta todos os demais devedores, na medida em que não se pode considerar que a obrigação se venceu, naqueles termos, em relação a um dos devedores e já não quanto aos demais. 11. Além disso, estabelece o artigo 780º do CC que “[e]stabelecido o prazo a favor do devedor, pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada (…)”, norma a que se alude na possibilidade – que não se concebe – de, no presente caso, não se admitir o vencimento nos termos acima expostos, por a insolvência ter sido declarada com carácter limitado. 12. A situação de insolvência de um dos mutuários é evidente (e não colocada em causa), pelo que estamos no âmbito de aplicação do artigo 780º do CC ou do artigo 91º do CIRE. 13. Ora, sendo um dos devedores solidários declarado insolvente ou encontrando-se, simplesmente, numa situação de insolvência de facto, é manifesta a existência de uma quebra de confiança, a qual justifica o direito de o credor exigir, de todos eles, o imediato pagamento do valor total da dívida que, ou se venceu de forma imediata e automática (artigo 91º do CIRE), ou se tornou antecipadamente exigível (artigo 780º do CC). 14. No caso presente, a executada recorrida é co-mutuária, condevedora solidária, razão pela qual arca com o risco de insolvência do condevedor, portanto, com o vencimento imediato da dívida, que lhe pode ser antecipadamente exigida, tendo a solidariedade passiva, no caso, fonte do contrato, uma vez que os mutuários se constituíram como devedores solidários, respondendo cada um pela integralidade da dívida. 15. Assim, o risco de insolvência de um dos condevedores recai sobre os demais, podendo o credor exigir destes a totalidade da dívida. * II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Estão provados os seguintes factos:
a) O exequente celebrou com os executados, em 31.05.2007, um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual lhe emprestou a quantia de 134.700,00 €, a liquidar em 480 prestações mensais e sucessivas, vencendo juros à taxa Euribor a 3 meses, acrescida de um spread de 2,5%.
b) O exequente celebrou com os executados, em 31.05.2007, um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual lhe emprestou a quantia de 24.900,00 €, a liquidar em 480 prestações mensais e sucessivas, vencendo juros à taxa Euribor a 3 meses, acrescida de um spread de 2,5%.
c) Nos termos da cláusula décima sexta, n.° 3, "assiste ainda à "IC" o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o "Mutuário" deixar de cumprir qualquer outra obrigação contratual, ou se se verificar qualquer das situações previstas no Artigo 780° do Código Civil, designadamente se o "Mutuário" se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ora concedido".
d) O teor dos contratos de mútuo constantes de fls. 3-13 dos autos principais que aqui se dá por reproduzido.
e) O teor da certidão predial constante de fls. 14-21 dos autos principais que aqui se dá por reproduzido.
f) O teor da livrança constante de fls. 25 dos autos principais que aqui se dá por reproduzido.
g) O executado foi declarado insolvente, a 09.07.2013, por sentença proferida no processo n.° 626/12.0TBSJM.
h) A sentença foi proferida com carácter limitado, não tendo sido requerido o complemento da sentença.
i) O executado requereu, a 10.07.2013, a exoneração do passivo restante (alegando, entre outras coisas, que só não se apresentou à Insolvência porque sempre achou que conseguiria pagar os seus créditos só se tendo apercebido da sua situação de insolvência com o presente pedido) o que lhe veio a ser indeferido por despacho de 11.07.2013, tendo o executado recorrido e perdido o recurso por decisão sumária a 13.02.2014.
j) O teor deste requerimento e do despacho de fls. 51-55 que aqui se dá por reproduzido.
k) O exequente reclama o vencimento imediato da dívida a partir de 01.10.2013 (por ser a data da última prestação paga pelos executados), quanto ao primeiro contrato, e a partir de 02.10.2013 (por ser a data da última prestação paga pelos executados), quanto ao segundo contrato.
l) Os executados sempre cumpriram os contratos de mútuo, nomeadamente quanto ao pagamento atempado das respectivas prestações.
m) No mês de Setembro de 2013, ocorreu o bloqueamento da conta bancária relativa àqueles contratos, por iniciativa do exequente o que impossibilitou os executados de continuar a efectuar o pagamento das prestações mensais apesar das diversas tentativas.
n) Para tentar pagar, o executado DD comunicou com a Administradora de Insolvência, solicitando-lhe que enviasse comunicação ao exequente para desbloqueamento da conta bancária.
o) Os executados sempre cumpriram os contratos de mútuo, nomeadamente quanto ao pagamento atempado das respectivas prestações.
p) Conforme solicitado, a Administradora de Insolvência comunicou ao exequente a ordem de desbloqueamento, emitindo o respectivo certificado em 24 de Setembro de 2013.
q) Nessa sequência, o desbloqueamento da conta foi momentâneo (durante um dia), voltando a conta a estar bloqueada, pelo que a movimentação da conta não era possível.
r) Os executados contactaram o gestor da conta, sendo informados que todos os processos de crédito mantinham-se bloqueados e sob gestão da Direcção de Crédito, impossibilitando, assim, não só a movimentação da conta bancária, como o depósito das prestações e consequente amortização do crédito.
O DIREITO
Dos dois contratos de mútuo com hipoteca descritos nas alíneas a) e b) dos factos provados, celebrados entre o exequente BB e a embargante (ora recorrente) e executado DD, resultou para estes últimos a obrigação de restituição do capital mutuado e respectivos juros nos prazos ali estabelecidos. Essa obrigação tem indiscutível natureza solidária, o que significa que o credor pode exigir a prestação integral de qualquer dos devedores, sendo que a prestação efectuada por um destes libera o outro perante o credor comum – artigo 512º, n.º 1, do CC. Fixou-se, nesses contratos, que a restituição do capital mutuado e respectivos juros seria feita ao longo de 480 prestações mensais e sucessivas. Não estamos, portanto, na presença de uma obrigação pura, mas de uma obrigação a prazo, em que a exigibilidade do cumprimento se mostra diferida para um momento posterior. A possibilidade de a prestação ser realizada ou exigida em momento posterior constitui um benefício, em regra, do devedor. Assim o estatui o artigo 779º do CC: “O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente”. Não pode o credor, portanto, exigir a prestação antes do fim do prazo, embora assista ao devedor o direito de proceder à sua realização a todo o tempo, renunciando a esse benefício. Em caso de atribuição do benefício ao devedor, este pode perder esse benefício em determinadas situações. A este respeito escreve Galvão Telles[2]: “A perda, pelo devedor, do benefício do prazo não reveste sempre o mesmo significado ou alcance. Não produz sempre os mesmos efeitos. Há a distinguir duas situações. Nuns casos aquela perda traduz-se numa simples exigibilidade antecipada; noutros casos traduz-se num antecipado vencimento automático. Além a obrigação torna-se pura, o credor pode portanto exigi-la desde logo, mas ela não se vence enquanto o credor não interpelar o devedor, nos termos gerais. Aqui o vencimento dá-se ipso iure, como consequência imediata da circunstância superveniente. A necessidade ou desnecessidade de interpelação marca pois a diferença entre as duas modalidades de perda do benefício do prazo”. A exigibilidade antecipada dá-se nos dois casos referidos no artigo 780º do CC, ou seja, quando ocorra insolvência do devedor[3], ainda que esta não tenha sido judicialmente declarada, ou quando, por causa imputável ao devedor, se mostrem diminuídas as garantias do crédito ou não prestadas as garantias prometidas. Nestas duas situações, fica ao critério do credor fazer vencer a dívida mediante a interpelação do devedor. Dá-se, ainda, na situação prevista no artigo 781º do CC, com a falta de pagamento de uma prestação nas dívidas a prestações, desde que, neste último caso, as partes não tenham clausulado coisa diversa[4]. Existe, contudo, uma situação em que a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação (vencimento automático antecipado). É o que se passa com a declaração judicial de insolvência (artigo 91º, n.º 1, do CIRE). No caso dos autos, um dos devedores – o DD – foi declarado insolvente – cfr. alínea g) dos factos provados. Conforme dispõe o artigo 91º, n.º 1, do CIRE, a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva. Bem se compreende a razão de ser desta disposição, pois não fará sentido manter-se o prazo da prestação quando o tribunal confirma, através da sentença declaratória da insolvência, a impossibilidade de o devedor solver as suas obrigações. Nessa hipótese, não obstante a estipulação de prazo a favor do devedor, o credor pode exigir o cumprimento imediato da obrigação. Baseada nesse facto, entende a recorrente que o vencimento automático da obrigação abrange a condevedora AA, aqui embargante/recorrida, devendo considerar-se também vencida a totalidade da obrigação quanto a ela. Torna-se, portanto, necessário averiguar se a circunstância da insolvência do devedor DD tem algum efeito no âmbito das relações externas entre a embargante condevedora e o credor exequente. A obrigação solidária é hoje vista não como uma só obrigação com pluralidade de sujeitos, mas antes como uma pluralidade de obrigações, ligadas entre si por um certo nexo, que procede não só da identidade da prestação, como da comunhão de fim das várias obrigações[5]. Por isso se diz que existe, na obrigação solidária, uma multiplicidade de vínculos, sendo distinto ou independente o que une o credor a cada um dos condevedores e o que liga cada um destes àquele. Consonante com esta configuração da natureza da obrigação solidária, dispõe o artigo 782º do CC que a perda de benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia. Pires de Lima e Antunes Varela[6], com a clareza expositiva que todos conhecem, anotam esse preceito do seguinte modo: “Esta disposição tem carácter genérico: refere-se a todos os casos, previstos na lei, de perda do benefício do prazo. Pode tratar-se ou não de uma obrigação solidária. Em qualquer caso, só ao devedor que der causa ao vencimento imediato da obrigação pode ser exigido o cumprimento (total ou parcial) antes de terminar o prazo. E, cumprida a obrigação, o solvens não pode exercer o direito de regresso, sendo a obrigação solidária, antes do vencimento. É o que resulta não só deste artigo 782º, como do n.º 1 do artigo 525º” Na verdade, a perda do benefício do prazo, tendo carácter pessoal, não se estende aos co-obrigados[7] do devedor, nem aos terceiros que garantam o cumprimento da obrigação, salvo se, por convenção das partes, houver estipulação que afaste a aplicação da disciplina do artigo 782º, dada a natureza supletiva deste preceito[8] - cfr. artigo 405º, nº 1, do Código Civil. Ora, contrariamente ao que sustenta a recorrente[9], a aplicação do artigo 782º não se mostra afastada pelo clausulado nos contratos de mútuo com hipoteca, designadamente pelo ponto 3 da cláusula décima-sexta (cfr. fls. 152, verso e 157). O que aí se diz é que “assiste ainda à IC (BB) o direito de pôr termo ao contrato e exigir o integral reembolso daquilo que lhe for devido por força do mesmo, se o ‘Mutuário’ deixar de cumprir qualquer obrigação contratual, ou se se verificar qualquer das situações previstas no artigo 780º do Código Civil, designadamente se o ‘Mutuário’ se tornar insolvente ou se, por causa que lhe seja imputável, diminuírem as garantias do crédito ora concedido”. Como judiciosamente se afirma na sentença recorrida, com integral acolhimento no acórdão recorrido, “na referida cláusula não se explicita que é exigível o integral reembolso a todos os mutuários, mesmo aos não insolventes. Aliás, fala-se em mutuário como se fosse singular pelo que a mesma não é unívoca. Por fim, supletivamente aplica-se o previsto no art. 782º do CC, salvo quando as partes expressamente estipulem um regime diverso o que, a nosso ver, não resulta, aos olhos do normal declaratário – cfr. art. 236º, nº 1, do CC”. A perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores, quando a dívida seja solidária, não se estende aos outros co-obrigados, desde que, entenda- -se, não tenha sido estipulada convenção em contrário ou não se verifique, também quanto a eles, causa determinante dessa perda. Antunes Varela adianta, a este propósito, que esta seria a solução imposta pelos princípios fundamentais da solidariedade, em matéria de meios pessoais de defesa, sendo que o artigo 782º não deixou de a consagrar, aberta e directamente, dizendo que a perda do benefício do prazo não se estende ao co-obrigados do devedor[10]. A alusão à obra de Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, não constitui qualquer contributo para reforço da tese do recorrente, uma vez que o que aí vem afirmado não a corrobora. Quando esse autor refere[11] que um dos principais riscos que a solidariedade passiva pretende afastar é o da insolvência de um dos condevedores e que, se tal se verificar, o credor poderá exigir o cumprimento integral da obrigação ao outro condevedor, isso não é mais do que sublinhar um dos traços caracterizadores da solidariedade passiva: a extensão integral do dever de prestar em relação a todos os devedores. Coisa diferente é o tempo em que se será exigível essa prestação por parte do credor em relação ao devedor não insolvente. Esse tempo será o que estiver convencionado no contrato, até que surja – se surgir – qualquer evento que produza efeito antecipatório no vencimento. O BB, apesar disso, reclamou da condevedora AA a totalidade da dívida em falta e, em Setembro de 2013, promoveu o bloqueamento da conta bancária relativa àqueles dois contratos de mútuo, o que impossibilitou o pagamento das respectivas prestações mensais – cfr. alínea m) –, sendo que, até essa ocasião, as obrigações decorrentes dos contratos vinham a ser pontualmente cumpridas – cfr. alíneas l) e o) dos factos provados. Para tentar pagar, o executado DD comunicou com a Administradora de Insolvência, solicitando-lhe que enviasse comunicação ao exequente para desbloqueamento da conta bancária. A Administradora de Insolvência comunicou ao exequente a ordem de desbloqueamento, emitindo o respectivo certificado em 24 de Setembro de 2013. Nessa sequência, o desbloqueamento da conta foi momentâneo (durante um dia), voltando a conta a estar bloqueada, pelo que a movimentação da conta não era possível. Os executados contactaram o gestor da conta, sendo informados que todos os processos de crédito se mantinham bloqueados e sob gestão da Direcção de Crédito, impossibilitando, assim, não só a movimentação da conta bancária, como o depósito das prestações e consequente amortização do crédito – cfr. alíneas n), p), q) e r) dos factos provados. Como se vê, foi o exequente que, ao proceder ao bloqueamento do acesso à conta bancária onde era processado o pagamento das prestações, impossibilitou que continuassem a ser pagas as prestações mensais e sucessivas relativas aos dois contratos de mútuo, tendo sido só essa a razão por que tais pagamentos não foram feitos. De qualquer modo, o que importa reter é que o exequente não dispunha de fundamento legal para considerar vencidas todas as prestações ainda em dívida e exigi-las da recorrida. Por isso, improcederá o recurso.
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III. DECISÃO
Termos em que se nega provimento à revista e se confirma o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente.
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LISBOA, 18 de Janeiro de 2018
Henrique Araújo (Relator) Maria Olinda Garcia Salreta Pereira
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