Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048675
Nº Convencional: JSTJ00030532
Relator: LOPES ROCHA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
ACTA DE JULGAMENTO
PRESENÇA DO ARGUIDO
ROGATÓRIA
DOCUMENTO
EXAME
CONSTITUCIONALIDADE
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
Nº do Documento: SJ199607100486753
Data do Acordão: 07/10/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N459 ANO1996 PAG188
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO. PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC PENAL. DIR CONST - DIR FUND / PODER POL.
Legislação Nacional:
Legislação Estrangeira: CPP ART546 - ITÁLIA.
Referências Internacionais: CEDH ART6 N3 B D ART7 N2 ART8 N2.
Jurisprudência Nacional:
Sumário : I - Na esteira da jurisprudência reiterada quer do STJ quer do TC é infundada a alegação de inconstitucionalidade do artigo 433 do CPP.
II - Nunca o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou violado o artigo 6 da Convenção pelo facto de as legislações internas dos diferentes Estados Partes se contentarem com um único grau de jurisdição, desde que sejam observados os requisitos da imparcialidade da independência, da publicidade e do processo equitativo, exigidos naquele artigo.
III - O direito/dever de presença do arguido em julgamento não é um direito absoluto, prevendo a lei as respectivas excepções e assegurando o conhecimento dos factos praticados e da prova produzida, nas suas ausências temporárias.
IV - No que toca a actos a serem realizados em território estrangeiro, a soberania só pode sofrer limitações se as correspondentes ordens jurídicas nisso consentirem pela via tratadística ou convencional ou por razões de cooperação internacional fundadas em interesses da reciprocidade. Assim, nenhum tribunal português pode exigir de uma jurisdição estrangeira que aceite a comparência de um arguido detido numa diligência processual que lhe solicite ou impôr a assistência ao acto de determinadas pessoas.
V - A leitura de carta rogatória em audiência é permitida pelo artigo 358 n. 1 alínea a) conjugado com o artigo
318 do CPP, entendido este em termos hábeis, pois não se vislumbra qualquer razão lógica para excluir aquela modalidade de comunicação de actos processuais da leitura em audiência, em ordem à efectiva sujeição desse meio de prova ao princípio do contraditório.
VI - O processo sob que assenta a cooperação judiciária internacional releva em parte da função administrativa e em parte da função judicial. Consequentemente não se pode dizer que o Governo na condução da primeira se intrometa na segunda em termos de esvaziar as funções materiais específica e principalmente atribuídas aos Tribunais, tanto mais que estes não têm competência para decidir da cooperação de acordo com critérios de oportunidade e conveniência relacionados designadamente com princípios de protecção de interesses de soberania.
VII - O artigo 135 do Decreto-Lei 43/91 de 22 de Janeiro não viola o artigo 141, n. 1, da Constituição da República.
VIII - As razões de política legislativa que presidiram à revisão do texto do artigo 342 do CPP, embora justificáveis pelo desígnio de fortalecer as garantias de defesa do arguido, não significam que o legislador tenha querido remediar uma norma que aos seus olhos estaria ferida de inconstitucionalidade material.
IX - A lei processual não obriga que a acta de audiência faça menção especificada à produção e exame da prova documental existente no processo.
Decisão Texto Integral: II. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, após a vista a que se refere o artigo 416 do Código do Processo Penal, efectuou-se o exame preliminar, no qual se verificou serem os recursos próprios, tempestivamente interpostos e motivados, dispondo os recorrentes de legitimidade, recebidos no efeito e com o regime de subida adequados, nada obstando ao seu conhecimento.
Foram produzidas alegações por escrito, a seu requerimento, pelo arguido Domenico Festa, e, mais tarde, pelo arguido Isidro Bandeira Carvalho Martins, apresentando o Ministério Público as suas contra-alegações.
No exame preliminar foi o processo considerado de excepcional complexidade, nos termos e para os efeitos do n. 3 do artigo 215 do Código do Processo Penal.
O recorrente David Re reclamou do despacho de folhas
5825 que indeferiu o requerimento de folha 5785, no qual pedia fosse requisitado a fim de estar presente na audiência de julgamento, tendo sido proferido o acórdão de folhas 5887-5896, em 14 de Fevereiro de 1996, que confirmou o despacho recorrido.
Seguiram-se vários actos e diligências para esclarecimento de dúvidas suscitadas no exame do processo pela Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta.
Finalmente, correram os vistos legais e procedeu-se à audiência, com estrita observância do formalismo imposto no Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
III. De acordo com a jurisprudência corrente pacífica e bem estabelecida deste Supremo Tribunal, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações (cf., por exemplo e por último, o acórdão proferido em 5 de Junho de 1996, Processo n. 46789, com remissão para vários outros arestos anteriores no mesmo sentido.
Tal não obstará o conhecimento oficioso de vícios e nulidades, se for caso disso. Assim, começaremos por elencar as questões litigiosas a apreciar e a resolver e que emanam das motivações apresentadas pelos recorrentes, por ordem lógica, já que as respostas dadas a umas podem repercutir-se no exame das restantes.
Ora, das conclusões das motivações dos recorrentes, os pontos litigiosos a apreciar são os seguintes:
1- O artigo 433 do Código de Processo Penal está ferido de inconstitucionalidade? (Este meio de impugnação foi deduzido pelos recorrentes Domenico Festa, Guglielmo
Di Giovine, Emílio Di Giovine, Antonino Palamara e
David Re).
2- Foram violados os artigos 32 da Constituição da
República Portuguesa e 327 do Código do Processo Penal, por falta dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades judiciárias espanholas em que foram ouvidas testemunhas?
(Este meio foi deduzido pelos recorrentes Guglielmo,
Palamara, Carvalho Martins, Lorenzo, Emílio e David
Re).
3- Foram violados, do mesmo modo, os artigos 129 e 128, n. 1 do Código de Processo Penal, por admissão do depoimento indirecto de uma testemunha? (Meio de impugnação dos recorrentes Guglielmo e Palamara).
4- Foi violado o artigo 356, 2, alínea c) do Código de
Processo Penal - leitura na audiência da carta rogatória? (Meio deduzido pelo recorrente Emílio Di
Giovine).
5- Com a emissão da carta rogatória às autoridades espanholas foi violado o princípio da separação de poderes, do artigo 114, 1, da Constituição da República
Portuguesa, pelo n. 6 do artigo 135 do Decreto-Lei n.
43/91, de 22 de Janeiro?
(Meio deduzido pelo recorrente Emílio Di Giovine).
6- A ponderação dos antecedentes criminais de um arguido, não constantes da acusação e da pronúncia, viola os artigos 358 e 359 do Código do Processo Penal?
(Meio deduzido pelos recorrentes Emílio Di Giovine,
David Re, Guglielmo e Federico Lorenzo).
7- Foi violado o artigo 355 n. 1 do C.P.P. - falta de exame em audiência de documentos oferecidos pelo
Ministério Público?
(Meio deduzido pelo recorrente Emílio Di Giovine).
8- Enferma o acórdão impugnado da nulidade do artigo
374, n. 2, do Código do Processo Penal?
(Meio deduzido pelo recorrente Emílio Di Giovine).
9- O mesmo acórdão enferma dos vícios das alíneas a) e c) do n. 2 do artigo 410 do Código do Processo Penal?
(Meio deduzido pelos recorrentes Guglielmo, Festa,
Palamara, Giuseppe Re, Isidro Martins).
10- Houve erro de julgamento no tocante à qualificação dos factos como crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 287 do Código Penal?
(Meio deduzido pelos recorrentes Guglielmo, David Re,
Emílio, Palamara).
11- A pena de expulsão foi decretada ilegalmente?
(Meio deduzido pelo recorrente Festa).
12- A declaração de perda de bens a favor do Estado foi ilegal?
(Meio deduzido pelos recorrentes Giuseppe Re, Henry
Peralta e Valéria Urba).
13- Foi ilegalmente aplicado o perdão da Lei n. 15/94, de 11 de Maio?
(Meio deduzido pelo Ministério Público).
Relativamente aos recursos interlocutórios:
1- Recurso do despacho de folha 3936, Vol. XVII, que declarou conforme à Constituição o artigo 342 do Código do Processo Penal.
2- Recurso do despacho de folhas 4199, Vol. XVIII que ordenou a emissão de carta rogatória às autoridades espanholas, com eventual violação dos artigos 61, 318 e
322 do Código do Processo Penal, 4 da Convenção
Europeia de Auxilio Mútuo em Matéria Penal, artigos 13 e 32, 1 e 5 da Constituição da República e artigo 6 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
IV. A questão litigiosa da constitucionalidade (ou da inconstitucionalidade) do artigo 433 do Código de
Processo Penal não é nova. Já foi várias vezes apreciada, tanto por este Supremo Tribunal de Justiça como pelo Tribunal Constitucional. E sempre no sentido da conformidade constitucional do referido preceito.
Cfr., entre outros: acórdão de 9 de Maio de 1990, in
B.M.J. 397, página 332; de 13 de Maio de 1992, ibidem,
417, página 308; de 9 de Julho de 1992, ib 419, página
589; de 7 de Outubro de 1992, ib. 420, página 204; de
26 de Maio de 1994, in Colectânea de Jurisprudência, II
- 2, página 233; e de 11 de Outubro de 1995, Processo n. 45540. Neste último, observou-se que, na esteira da implícita constitucionalidade do mesmo artigo 433, e a propósito da eliminação do duplo grau de recurso, aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição e garantias de defesa do arguido se podiam ver o Prof.
Figueiredo Dias, em conferências publicadas no B.M.J.
369, 18 e in "Para uma nova justiça penal", Livraria
Almedina, páginas 237 e seguintes; Cunha Rodrigues e
Gonçalves da Costa, in "Recursos", na obra colectiva "O novo Código do Processo Penal", Almedina, 1988, páginas
379 e seguintes e 401 e seguintes; e também no sentido da constitucionalidade, daquele primeiro Autor, in
"Revisão Constitucional, Processo Penal e os
Tribunais", página 51.
Quanto ao Tribunal Constitucional podem ver-se, entre outros, os acórdãos n. 234/93, de 17 de Março de 1993, in Diário da República, 2. Série, de 2 de Junho de
1993; n. 322/93, de 5 de Maio de 1993, in Diário da
República, 2. Série, de 19 de Outubro de 1993; e n.
141/94, de 26 de Janeiro de 1994, in Diário da
República, 2. Série, de 7 de Janeiro de 1996.
Consequentemente, sendo desnecessárias mais desenvolvidas considerações, temos por infundada a alegação de inconstitucionalidade do artigo 433 do
Código de Processo Penal, na esteira da jurisprudência que fica citada e que não vemos razões para abandonar.
Em abundanti, não deixaremos de dizer que nunca o
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou violado o artigo 6 da Convenção Europeia pelo facto de as legislações internas dos diferentes Estados Partes se contentarem com um único grau de jurisdição, desde que sejam observados os requisitos da imparcialidade, da independência e da publicidade e do processo equitativo, exigidos naquele artigo.
Iguais princípios terão de ser respeitados, obviamente nos casos em que as legislações internas prevêem mais do que um grau de jurisdição. Mas ainda aqui não haverá violação mesmo no caso de ausência de debates públicos em segundo ou terceiro grau, desde que os tenha havido na primeira instância. E tratando-se de Tribunais de revista, como as Cassações existentes em vários países, sem competência para estabelecerem os factos, mas unicamente para interpretar as regras jurídicas litigiosas, nem sequer é obrigatória a comparência do interessado perante elas.
Neste sentido e para mais pormenores, veja-se "La
Convention Européenne des Droits de L'Homme -
Commentaire article par article", sob a direcção de Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Pierre - Henri
Imbert, Económica, página 262 e seguintes.;
"Jurisprudence de la Cour Européenne des Droits de
L'Homme", 3éme ed., de Vincent Berger, Sirey, páginas
143 a 145; "La Convention Européenne des Droits de L'
Homme", de Jacques Velue Rusen Ergec, Bruxelles, 1990, espec. página 402; e "Lineamenti di diritto europeo dei diritti dell'Uomo", de Michele de Salvia, Instituto Intemazionale di Studi sui Diritti Dell'Uomo, página
144.
Certo que o artigo 2 do Protocolo n. 7 à Convenção
Europeia garante a qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação, como acontece com o artigo 14, n. 5 do
Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e
Políticos.
Mas logo aquele artigo dispõe que o "exercício do direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei".
Assim, não impõe qualquer obrigação aos Estados Membros de assegurarem em absoluto o duplo grau de jurisdição, podendo o legislador interno limitar o recurso à matéria de direito ou a esta e a certos pontos da matéria de facto, como se julgou no acórdão n. 117/94, do Tribunal Constitucional, D.R. 2. Série de 19 de
Julho de 1994. Veja-se no que se refere à Comissão
Europeia dos Direitos do Homem, em Ireneu Cabral
Barreto, "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem",
Ed. Aequitas/Ed. Notícias, página 273.
Podemos, por isso, passar ao exame da questão seguinte, ou seja, a alegada violação dos artigos 32 do C.R.P. e 327 do Código de Processo Penal, por falta dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas em que foram ouvidas testemunhas.
V. Na sua contra motivação, o Senhor Procurador da
República junto da 1. instância chamou a atenção para o facto de o tribunal colectivo ter explicado com toda a plausibilidade e coerência as razões por que valorizou positivamente o depoimento de Jaime Gonzalez Garcia, designadamente em contraposição ao de Claudio Rivera
Fenandez; e que tal depoimento foi feito em Espanha com a presença do Tribunal, Ministério Público e advogados de defesa, apenas não estando presentes os arguidos pelas razões legais, invocadas na alegação-resposta do
Ministério Público ao recurso subordinado interposto pelos arguidos, sendo certo que tal depoimento foi lido em audiência onde os arguidos puderam contraditá-lo, sem qualquer ofensa, por isso, ao princípio contraditório.
Já neste Supremo Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral
Adjunta, nas suas alegações escritas (recurso do arguido Domenico Festa) produziu desenvolvidas considerações em ordem à demonstração da improcedência do meio de impugnação agora em análise. Em particular, chama a atenção para a circunstância de os arguidos
Isidro, Giovani Marra, Frederico Lorenzo, Guglielmo Di
Giovine e Domenico, não terem requerido previamente a sua presença, quando o tribunal decidiu que tendo em conta que se trata de recolha de depoimento em sede de julgamento e em obediência ao princípio contraditório, entendeu que a acusação e a defesa deviam pronunciar-se sobre as perguntas a fazer às testemunhas cujo depoimento se rogava, designando o dia 28 de Maio de
1995 para formulação de tais perguntas a constar da carta rogatória, daí que tenham carecido de legitimidade para recorrer.
Aliás, o recorrente esteve no acto que teve lugar em
Espanha, representado por advogado que previamente apresentou as perguntas a efectuar às testemunhas detidas naquele País e o teor das respostas destas foi posteriormente lido em sessão da audiência de julgamento do dia 9 de Junho de 1995, a folhas 4930 e seguintes, na qual esteve presente o mesmo recorrente, podendo este contrariar pessoalmente ou pelo seu advogado a prova produzida (despacho de folhas 4931).
Enfim, o direito/dever de presença do arguido em julgamento não é um direito absoluto, prevendo a lei excepções e assegurando, por outro lado, que o arguido tome conhecimento dos factos praticados e da prova produzida na sua ausência temporária (artigos 332, n. 7 e 343, n. 4 do C.P.P.).
Vejamos concretamente o que se passou.
Conforme consta da acta da audiência de julgamento de
27 de Abril de 1995 (18 volume, folhas. 4197 e seguintes), o Senhor Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho:
"Foi recebido neste momento um fax da Procuradoria-Geral da República que trazia anexo um despacho de Sua Excelência o Sr. Ministro da Justiça a autorizar a deslocação do Tribunal a Espanha para recolha de depoimento conforme o solicitado.
Dê pois conhecimento com cópia à acusação e à defesa do teor do fax recebido e documento que o acompanha".
Segue-se outro despacho do seguinte teor:
"A autorização do Sr. Ministro da Justiça conforme despacho enviado por fax a este Tribunal é concedida ao abrigo do artigo 135, n. 6 do Decreto-Lei n. 43/91, de
22/1, no que respeita à deslocação deste Tribunal para recolha e depoimentos das testemunhas Jaime Gonzalez
Garcia e Cláudio Rivera Fernandez, deverá em nossa opinião, materializar-se através de carta rogatória, como claramente resulta do artigo 142 daquele diploma legal e dos artigos 3 e 4 da Convenção Europeia de
Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal.
Assim haverá que emitir Carta Rogatória dirigida às
Justiças de Espanha, da qual constem os elementos referidos no artigo 21 do D.L. 43/91 e 14 da Convenção, solicitando-se a presença deste Tribunal, da acusação e da defesa no acto que se pretende rogar.
Tendo em conta que se trata de recolha de depoimentos em sede de julgamento e em obediência ao princípio do contraditório previsto no artigo 327 do Código de
Processo Penal, entendemos dever a acusação e a defesa pronunciarem-se sobre as perguntas a formular às testemunhas cujo depoimento se roga.
Assim, designa-se o dia de amanhã pelas 10.30 horas para formulação por parte da acusação e da defesa e do próprio Tribunal das perguntas que deverão constar da
Carta Rogatória e às quais as testemunhas deverão depor".
Notificados os presentes, logo os arguidos Isidro
Martins, Gianni Marra e Federico Lorenzo interpuseram recurso do despacho, para subir conjuntamente com eventual recurso a interpor da decisão final.
Pelo defensor do arguido Guglielmo Di Giovine, foi requerido o seguinte:
"O douto despacho que acaba de ser proferido não contempla a presença dos arguidos na diligência em questão e por isso não observa, na sua amplitude possível, os direitos de audiência e do contraditório.
Assim, não se conformando, nessa parte, com o mesmo despacho, deste pretende interpor recurso para o
S.T.J."
A defensora do arguido Domenico Festa, interpôs idêntico recurso, por entender que a presença deste é obrigatória na diligência a efectuar em Espanha para poder exercer os direitos que lhe são conferidos no artigo 61 do C.P.P..
Por seu turno, o defensor do arguido Emílio disse que este sempre desejou ser confrontado com as testemunhas
Jaime Gonzalez Garcia e Claudio Rivera Fenandez, cidadãos espanhóis e outras pessoas que veio indicar igualmente como suas testemunhas de defesa.
O artigo 323 do C.P.P. define com clareza o princípio do contraditório.
O arguido Emílio não se conformando, pois, com o douto despacho e por ter legitimidade e estar em tempo dele pretende interpor recurso para o S.T.J. nos termos do artigo 407 e seguintes do C.P.P..
Segue-se o despacho que admitiu os recursos, para subirem nos autos com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa.
Posteriormente, o Exmo. Procurador da República juntou as perguntas pertinentes (folha 4213), o mesmo fazendo os arguidos Emílio Di Giovine (folhas 4214 e seguintes), Guglielmo Di Giovine, António Palamara
(folhas 4220 a 4222), David Re (folha 4223), Federico
Lorenzo (folha 4225), outra vez o arguido David Re
(folha 4227), o arguido Gianni Marra (folha 4229), o arguido Domenico Festa (folha 4232), e o arguido Isidro
Bandeira Carvalho Martins (folha 4236).
A folhas 4806 e seguintes do 19 volume do processo está junta uma extensa Acta de Interrogatório, do "Juzgado
Central de Instruccion Número Uno da Audiencia Nacional
(Madrid)", que menciona a presença dos membros do
Tribunal de Justiça de Loulé "para la pratica de las pruebas interesadas en la Comision rogatória librada por dicho Tribunal", do Senhor Procurador e de diversos advogados, com excepção dos de Federico Lorenzo e de
David Re.
Mas o Sr. Advogado Helder Fernando declarou que actuava também como defensor destes arguidos, como substituto autorizado do Sr. Advogado Vítor Carreto.
Seguem-se as respostas às perguntas formuladas às testemunhas Jaime Gonzalez Garcia (duas) e Cláudia
Rivera Fenandez (uma) e uma Acta de Confronto
(Acareação) entre estas duas testemunhas.
Na sessão de julgamento de 9 de Junho de 1995, o
Presidente do Tribunal procedeu à leitura da Carta
Rogatória (entretanto traduzida para português), invocando o disposto no artigo 355 do Código de
Processo Penal em conjugação com os artigos 111 n. 3, b) e 356, n. 2 c) do mesmo Código.
O defensor do arguido Emílio Di Giovine, após a leitura, fez um protesto, o arguido Isidro Martins pediu a palavra, que lhe foi concedida, para prestar declarações, fazendo-as de imediato; o mandatário do arguida Gianni Marra fez suas as considerações do seu colega defensor do arguido Emílio e acrescentou mais algumas, de sua autoria e finalmente o Senhor
Procurador da República foi ouvido para pedir entrega de certidão e participação à ordem dos Advogados.
A seguir, vê-se um despacho do Exmo. Presidente indeferindo o requerido pelo Sr. Advogado e deferindo o requerido pelo Exmo. Procurador.
Descrito, ainda que sucintamente, o desenrolar dos acontecimentos relacionados com a expedição de Carta
Rogatória às Justiças de Espanha, seu cumprimento, sua devolução e sua leitura e demais incidentes que o acto suscitou, cumpre ver se de tudo isto resultou violação dos preceitos constitucionais e da lei de processo, que está na base dos recursos atinentes a esta questão.
O tema principal da arguição de violação reside, obviamente, na não comparência pessoal dos arguidos ao acto em que consistiu a execução da Carta Rogatória, que constitui também uma diligência probatória intercalada no curso da audiência de julgamento.
É indiscutível que o artigo 325 do Código de Processo
Penal consagra o princípio da assistência do arguido à audiência, livre na sua pessoa e que a sua presença é obrigatória, salvo nos casos do artigo 334, ns. 1 e 2, que não se verificam no presente processo.
Para reforçar a execução deste princípio o n. 2 do artigo 332 prescreve que "o arguido que deva responder perante determinado tribunal, segundo as normas gerais da competência, e estiver preso em comarca diferente pela prática de outro crime, é requisitado à entidade que o tiver à sua ordem.
Todavia, o citado n. 1 do artigo 325 contempla uma excepção: "salvo se forem necessárias cautelas para prevenir o perigo de fuga ou actos de violência". Já se tem entendido que a disciplina deste artigo é mero afloramento da disposição geral do artigo 140 (cf. Maia
Gonçalves, no "Código de Processo Penal Anotado", 7.
Ed., 1996 pág. 492, que sublinha, por isso, a sua dispensabilidade). Pode haver uma razão para isto: vincar a particular importância do princípio.
Mas é de toda a evidência que tal regime foi pensado para a realização de audiências em território português, onde a jurisdição dos tribunais nacionais não sofre qualquer contestação. No que toca a actos a realizar em território estrangeiro, a soberania só pode sofrer limitações se as correspondentes ordens jurídicas nisso consentiram, pela via tratadística ou convencional ou por razões de cooperação internacional fundadas em interesses da reciprocidade. Quer isto dizer que nenhum tribunal português pode exigir de uma jurisdição estrangeira que aceite a comparência de um arguido detido numa diligência processual que lha solicite.
Isto por um lado. Por outro, a possibilidade de assistência ao acto de execução da carta rogatória, das autoridades e das pessoas em causa, depende do consentimento da parte requerida (artigo 4 da Convenção
Europeia de Auxilio Mútuo em Matéria Penal), logo a parte requerente não pode impor essa assistência.
Segundo o relatório explicativo desta Convenção, a expressão "assistir" significa "estar presente" (ver a publicação com esse título, do Conselho da Europa,
1969).
Acresce que o artigo 11 da mesma Convenção, providenciando pela transferência de pessoas detidas, estabelece um outro princípio muito importante, o da possibilidade de recusa dessa transferência em diversos casos: a) se o detido não consentir; b) se a presença
é necessária em processo penal em curso no território da parte requerida; c) se a transferência é susceptível de protelar a detenção; d) se outras razões imperiosas se opuserem à transferência para o território da parte requerente.
Claro que esta disposição provê para a hipótese de haver uma parte requerente que solicita a comparência de uma pessoa detida para o seu território.
Mas não se vê que não possa aplicar-se na hipótese inversa: transferência de um detido para participar em acto processual no território da parte requerida. As razões de recusa podem verificar-se igualmente nesta hipótese, mas agora pela parte requerente, ou, melhor dizendo, se esta se vir confrontada com semelhantes motivos de recusa.
Um deles, porventura o mais importante, é a falta de consentimento do próprio detido.
O outro pode ser o perigo de fuga. Como se diz no referido "Relatório explicativo", a derrogação prevista na alínea d) do artigo 11 é uma cláusula geral, logo pode abarcar a hipótese de perigo de fuga. E no caso dos autos, esse perigo não era de modo algum hipotético, mas real.
Acontece, como bem sublinha nas alegações a Exma.
Procuradora-Geral Adjunta, que os arguidos recorrentes, não obstante entenderem que as suas presenças eram obrigatórias na diligência rogada, não requereram previamente a sua presença, dai que não tenha havido qualquer decisão do tribunal sobre esta questão concreta.
Se passarmos agora à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relacionada com esta questão, observamos o seguinte:
Quanto à comparência pessoal, a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem não garante expressamente ao acusado o direito de estar presente no processo, embora tal direito decorra, pelo menos em determinadas circunstâncias, do princípio do direito a um processo equitativo. Mas tal direito de comparecer "em pessoa" não é absoluto. Importa considerar o processo no seu conjunto (ou na sua globalidade) e a questão da comparência pessoal deve ser encarada a par dos outros direitos da defesa.
O princípio estabelecido no artigo 6, 3, alíneas c) e d) da Convenção Europeia, suscitando uma série de problemas particulares, no que concerne ao respeito, pelas legislações internas, quanto à administração das provas, deve ser avaliado tendo em conta o conjunto do processo e as circunstâncias concretas de cada caso, em ordem a verificar se a igualdade de armas e o direito ao processo equitativo são respeitados.
A referida alínea d) do n. 3 do artigo 6, consagrando o direito do acusado a interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das de defesa nas mesmas condições das primeiras, implica certamente o direito não só de assistir mas de ouvir e seguir os debates.
Mas a recolha de provas releva, antes de mais, das regras do direito interno, competindo às jurisdições nacionais apreciar os elementos probatórios recolhidos.
Assim, a tarefa dos órgãos de Convenção consiste em examinar se o "processo no seu conjunto", incluindo o modo de apresentação das provas, reveste um carácter equitativo, sancionando toda a recusa abusiva ou arbitrária.
Deste modo, as referidas garantias não assumem uma natureza absoluta e o direito de citar e interrogar testemunhas de defesa e de acusação não implica que o acusado possa exigir a convocação de qualquer pessoa.
E se os elementos de prova devem ser produzidos em audiência pública, tendo em vista um debate contraditório, tal não impede a utilização de provas recolhidas na instrução do processo, desde que as regras do contraditório tenham sido observadas, no momento da produção da prova ou mais tarde.
A produção da prova, nomeadamente a testemunhal, deve, certamente, revestir um carácter contraditório, concedendo-se à defesa a possibilidade de contestar todo o elemento de prova produzido perante o tribunal e invocado por este para fundamentar a sua decisão, de modo a combater eficazmente as acusações que lhe são feitas.
Mas podem existir razões várias para que uma testemunha seja ouvida fora da presença da pessoa contra quem presta o seu depoimento, desde que o defensor esteja presente e a possa interrogar.
Aliás, a falta de comparência das pessoas pode derivar de razões admissíveis e o seu testemunho ser recolhido por carta precatória ou rogatória, desde que seja lido e aceite e desde que o acusado não conteste a sua veracidade ou se ele for corroborado por outros dados na posse do tribunal.
O próprio testemunho indirecto e, nomeadamente, o dos próprios elementos da polícia (agentes infiltrados ou outros) ou o dos seus informadores que queiram guardar anonimato, parece não violar a referida alínea d), desde que as garantias de defesa sejam asseguradas.
Sobre o que vem exposto, cf. as acima citadas obras de
Pettiti, Decaux e Imbert (páginas 274 e 275), de
Velu/Ergec (páginas 422 e 423), de Michele de Salvia
(páginas 166 a 170), e de Irineu Barreto (páginas 120 a
122).
No caso dos autos, o princípio do contraditório foi regularmente observado e o processo, considerado na sua globalidade ou no seu conjunto, não pode ser razoavelmente criticado por ter menosprezado os cânones de um processo equitativo, da igualdade de armas, da imparcialidade e da independência do tribunal.
Releve-se, ainda nesta sede, que um dos mais significativos aspectos da valorização do princípio do contraditório consistiu no facto de os arguidos terem formulado as perguntas a fazer às testemunhas ouvidas no tribunal espanhol, a par da presença dos seus mandatários na diligência rogada.
E se é certo que o Código do Processo Penal, no seu artigo 318, não se refere expressamente à carta rogatória para inquirição de testemunhas no curso da audiência de julgamento, não é menos certo que esta forma processual se impõe pela natureza das coisas e é a que, pela sua solenidade e pelas formalidades observadas no seu cumprimento, a que mais garantias oferece ao arguido.
E quanto à garantia da defesa relacionada com a participação do defensor, também não é despiciendo sublinhar, ainda que de forma abreviada, o que sobre o assunto tem sido ponderado na jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
O direito à assistência de um defensor, consagrado no artigo 6, 3, c) da Convenção Europeia é alternativo da modalidade de auto-defesa ("se défendre lui-même").
Só que a auto-defesa ("l'avocat de soí-même") comporta o risco de se tornar ilusória, tendo em conta a inexperiência judiciária ou a tecnicidade das questões em causa, o que explica o dever do juiz de exigir a intervenção de um advogado constituído ou oficiosamente nomeado.
Em qualquer dos casos, a intervenção de advogado implica a obrigação, para o Estado, de tomar todas as medidas que assegurem a livre comunicação do advogado com o seu cliente (Cf. Pettiti, Decaux e Imbert, cit., página 275).
Donde se deve concluir que a presença dos mandatários dos arguidos nas diligências rogadas às autoridades espanholas constituiu garantia sólida e suficiente de defesa eficaz, na justa medida em que ficaram assegurados todos os meios de controlo da correcção da inquirição e do contraditório.
E, como técnicos do direito, podiam fazer melhor do que os próprios representados. Claro que o modo de execução da carta rogatória é da exclusiva competência da autoridade judiciária do Estado rogado (artigo 3 da citada Convenção) sendo por isso a única competente para decidir se as testemunhas devem ou não depor sob juramento.
Também por este lado não se vê que tenham sido violados o artigo 32 da Constituição e as normas de direito ordinário na matéria, em particular as dos artigos 111,
3, e 356, 1, do Código do Processo Penal.
Com o que passamos ao exame da questão seguinte.
VI. Esta questão concerne à admissão do depoimento
(indirecto) da testemunha Manuel Virgílio. Entre os meios de prova referidos no acórdão impugnado que concorreram para formar a convicção do tribunal com vista ao estabelecimento dos factos, figura o depoimento da testemunha Manuel Virgílio Dias Ribeiro, pescador de Setúbal, "o qual declarou ter descarregado, a Sul de Setúbal, haxixe do barco que era pertença de
Alfredo Tavares". E mais adiante, refere: "Por outro lado, o desembarque em Setúbal é, também, indirectamente confirmado pelo depoimento de Manuel
Virgílio, o qual ajudou a descarregar haxixe de um barco de Alfredo Tavares, este não ouvido em audiência".
Mas tratar-se-á de um verdadeiro depoimento indirecto, nos termos do artigo 129 do Código do Processo Penal?
Afinal, a testemunha depôs sobre um facto concreto, - descarga de haxixe a Sul de Setúbal - em que colaborou, não constando dos autos que tal depoimento haja resultado de algo que tenha ouvido dizer a pessoas determinadas, em ordem a que o juiz tivesse que chamar estas a depor. O que não parece estar correcta é a dedução do tribunal de que tal desembarque foi indirectamente confirmado pelo depoimento da testemunha. Por isso tem toda a razão o Exmo.
Procurador da República quando, na sua contra-motivação, observa que os factos sobre que a mesma depôs não lhe advieram por conhecimento indirecto, mas sim directo e que tal testemunha não depôs sobre o que ouviu dizer mas sim sobre o que tinha conhecimento directo.
É manifesto que não foram violados os artigos 128, 1 e
129 do Código do Processo Penal, pelo que podemos passar, sem necessidade de mais considerações, à questão seguinte.
VII. E esta, que consiste na violação do artigo 356, 2, alínea c) do C.P.P., constituída pela leitura em audiência da carta rogatória, já foi essencialmente considerada na resposta à anterior questão.
O artigo 356, n. 2, alínea c) permite a leitura em audiência das declarações de testemunhas obtidas mediante precatórias legalmente permitidas, tendo sido prestadas perante o juiz.
É óbvio que as precatórias são modalidades de comunicação entre vários serviços de justiça na espécie de "carta" quando a prática do acto tenha de fazer-se fora dos limites da comarca. E a rogatória é uma espécie de "carta" quando a prática do acto deva concretizar-se no estrangeiro (artigo 111, 3, alínea b). Foi esta, como vimos, a modalidade de inquirição adoptada. E não só não era proibida como até aconselhável no afã de levar até às últimas consequências a produção da prova disponível e cuja legalidade resulta do conjunto dos artigos 229, 230 e
318 do Código de Processo Penal e dos artigos 3 e 4 da
Convenção Europeia sobre Auxilio Mútuo em Matéria
Penal.
A leitura da carta rogatória em audiência é, por outro lado, permitida pelo artigo 358, 1, alínea a), conjugado com o artigo 318, do Código de Processo
Penal, entendido este em termos hábeis, pois não se vislumbra qualquer razão lógica para excluir aquela modalidade de comunicação de actos processuais da leitura em audiência em ordem à efectiva sujeição desse meio de prova ao princípio do contraditório, segundo o comando do artigo 327, n. 2 do mesmo Código.
Aliás, não deve esquecer-se que a execução da carta rogatória foi determinada em curso de audiência de julgamento, por iniciativa do tribunal, na presença de uma autoridade judiciária, dos membros do próprio tribunal, do Ministério Público e da defesa.
A sua leitura até poderia considerar-se dispensável, mas obedeceu, muito judiciosamente, ao intuito de proporcionar, mais uma vez, o direito de contraditar o seu conteúdo pelos sujeitos processuais. Logo, em lugar de ser criticada como ilegal, representou uma garantia adicional para a própria defesa, abrindo-lhe uma nova oportunidade de contradizer os depoimentos, que, no seu entender, lhe seriam desfavoráveis. Com o que concorreu para a efectivação do direito a que refere o artigo 6,
3, d) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (v., mais uma vez, Pettiti, Decaux, e Imbert, o cit., página
277).
Improcede, por conseguinte, este novo meio de impugnação.
VIII. A questão seguinte é a da alegada violação do artigo 141, 1 da Constituição da República, pelo artigo
135 do Decreto-Lei n. 43/91, de 22 de Janeiro.
Convém recordar que este diploma obedeceu ao propósito de preencher uma lacuna no relacionamento com Estados estrangeiros, em tema de cooperação judiciária internacional, baseada no princípio da reciprocidade
(artigo 4). Este princípio vigora na falta de tratados, convenções e acordos internacionais vinculativos do
Estado português ou na sua insuficiência (artigo 3). E, como se diz no preâmbulo do diploma, baseou-se na experiência de outros países europeus que introduziram nas respectivas ordens jurídicas disposições destinadas a regular as diferentes formas de cooperação, todas subordinadas a um conjunto de princípios e disposições gerais comuns.
Aliás, os tratados, convenções e acordos internacionais nunca prevêm disposições específicas relativamente ao processamento interno das formas de cooperação, deixando, nesse aspecto, uma larga liberdade aos Estados partes.
E como também se diz no referido preâmbulo, o carácter subsidiário relativamente aos tratados e convenções implica o princípio da reciprocidade, concebida como acto político unilateral do Governo, enquanto instrumento de cooperação internacional. Sendo condição de aplicação de qualquer tratado, a reciprocidade regulada no diploma vale especialmente para os casos de ausência do mesmo; e, uma vez que reflecte o princípio da igualdade entre os Estados, justificado está que se atribua a sua ponderação ao Governo, como responsável pela condução da política geral do País e pela negociação e ajuste das convenções internacionais.
A Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal, não contem, como é normal nesta sede, qualquer norma sobre quem é a entidade competente para solicitar ou dar cumprimento às formas de cooperação nela previstas.
O compromisso das Partes Contratantes cinge-se a assegurar o auxílio judiciário mais lato possível em qualquer processo que vise infracções cuja repressão é, no momento em que ele é solicitado, da competência das autoridades judiciárias da Parte requerente (artigo 1).
A própria Convenção Europeia de Extradição, que tem servido de paradigma para outras formas de cooperação internacional em matéria penal é muito clara quando diz que, salvo em disposição em contrário, a lei da Parte requerida é a única aplicável no processo de extradição.
O que é inversamente aplicável à Parte requerente como
é óbvio.
Daí que Decreto-Lei n. 43/91, muito impressivamente, tenha estatuído que o pedido de cooperação formulado por uma autoridade portuguesa é remetido ao Ministro da
Justiça pelo Procurador-Geral da República ou por quem legalmente o substitua; e que se o Ministro da Justiça considerar admissível o pedido, o remeta ao Ministro da
Justiça do Estado estrangeiro, pela via diplomática ou directamente se aquela primeira via não for exigida
(artigo 20). Esta normação é aplicável a todas as formas de cooperação previstas no diploma.
Este artigo reflecte o princípio de que a cooperação internacional e seus requisitos, relevando do direito internacional público, são da competência do Governo.
No entanto, porque os actos de cooperação são também de natureza jurisdicional, o n. 3 dispõe que a decisão do governo não víncula a autoridade judiciária, norma, com carácter geral, inspirada no direito extradicional
(artigo 24, n. 4, do Decreto-Lei n. 437/75).
Mas não vale para a cooperação solicitada pelas autoridades portuguesas, como resulta do n. 5 do artigo, relativamente às quais a lei reserva o direito do Governo de ponderar as condições globais de política externa que escapam à competência das autoridades judiciárias.
Em tema de extradição, a forma clássica e mais antiga da cooperação judiciária internacional em matéria penal, o processo compreende duas fases: a administrativa e a judicial, sendo a primeira destinada
à apreciação do pedido pelo Governo para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se deva ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência (artigo 49 do
Decreto-Lei 43/91, cuja fonte foi o Decreto-Lei n.
437/75, artigo 24). Nunca se discutiu, que se saiba, a desconformidade de tal preceito com a Constituição. E num acórdão do Tribunal Constitucional (n. 45/84, de 23 de Maio de 1984, publicado no B.M.J. n. 347, página
114) foi assim caracterizado o processo de extradição passiva:
"O procedimento de extradição passiva decorre em dois campos: no campo das relações internacionais e no campo da actividade interna do Estado requerido. Ao organizar o processo extraditivo no segmento que decorre no interior do Estado português, o Decreto-Lei n. 437/75, de 16 de Agosto, adoptou um sistema misto: entre uma série de actos que se desenvolvem em sede administrativa insere-se uma fase que se desenvolve em sede judiciária".
Ora, a fase administrativa destina-se à apreciação do pedido de acordo com critérios de oportunidade e conveniência. Na sua apreciação, o Governo terá presentes os princípios de protecção dos interesses de soberania, da segurança, da ordem pública e outros interesses da República Portuguesa, constitucionalmente definidos (artigo 2, n. 1, do D.L. 43/91).
Por seu turno, no acórdão deste Supremo Tribunal de
Justiça, de 25 de Junho de 1987, publicado no B.M.J. n.
368, página 459, observou-se que a deliberação do
Governo, no sentido de autorizar o prosseguimento do processo de extradição funda-se em razões de ordem política, de oportunidade e conveniência, só sendo sindicável no âmbito do contencioso administrativo, não vinculando por qualquer forma o tribunal.
(Notas extraídas da obra "Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal", Ed. Aequitas/Ed.
Notícias, páginas 97 e 98).
Todas estas considerações são pertinentes para as restantes formas de cooperação internacional, incluindo a que de que se trata no presente processo.
E não se diga que o sistema ofende o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania estatuído no artigo 114 da Constituição.
Como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a definição do princípio constitucional da separação e interdependência através de critérios orgânicos e funcionais - cada função básica é atribuída a um órgão ou titular principal - é importante para a cooperação da teoria do núcleo essencial, nos termos da qual a nenhum órgão de soberania podem ser reconhecidas funções atribuídas a outro órgão. Isto significa que nenhum dos órgãos de soberania pode intrometer-se no núcleo essencial das funções pertencentes a outro
órgão. A manifestação prática mais relevante deste princípio é a indisponibilidade essencial de funções pelo próprio legislador (cf. "Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3. Ed., página 497).
Ora, dado que no sistema da cooperação judiciária internacional há, como vimos, um processo que releva, em parte, da função admnistrativa e, noutra parte, da função judicial, não pode dizer-se que o Governo, na condução da primeira fase, se intrometa na segunda em termos de esvaziar as funções materiais específica e principalmente atribuídas aos tribunais, que não dispõem de competência para decidir da cooperação de acordo com critérios de oportunidade e conveniência, relacionados com princípios de protecção de interesses de soberania, ordem pública e outros da República
Portuguesa, constitucionalmente definidos.
E não podemos ser particularmente críticos neste domínio, quando tivermos em conta as legislações estrangeiras que serviram de modelo à nossa lei interna de cooperação judiciária internacional em matéria penal, como a lei Suiça sobre entreajuda internacional nesta matéria (EIMP), de 10 de Março de 1981, em que a decisão sobre os pedidos de cooperação releva em primeiro lugar do Departamento Federal de Justiça e
Polícia, justamente pela razão de que a aplicação da lei releva da soberania, da ordem pública e de outros interesses essenciais da Suiça (artigos 1, 2 e 17); e como a lei italiana, em particular no que se refere às rogatórias para o estrangeiro, requeridas pelos juizes e magistrados do Ministério Público, em que intervém o
Ministro da Justiça, a quem são transmitidas, o qual pode não lhes dar seguimento se entender que possam comprometer a segurança e outros interesses essenciais do Estado (V. Código de Processo Penal, artigo 727). E, nestes Países, tanto quanto sabemos, o princípio da separação dos poderes entre órgãos de soberania também está consagrado.
Para terminar, observemos que o despacho autorizador do
Ministro da Justiça, longe de constituir, no caso concreto, uma intromissão entorpecente da função judiciária, antes representou um modo de colaboração entre a Administração e a Justiça, sendo certo que a deslocação do tribunal a Espanha envolvia necessariamente despesas e dependia, finalmente, da vontade de cooperação das autoridades judiciárias rogadas, que desse modo se mostrou assegurada nas relações entre Governos. Se o resultado da diligência não foi favorável ao recorrente, é outra questão, que nada tem a ver com a legalidade do acto, da forma da sua transmissão e da intervenção do Ministro.
Segue-se que não foi violado o artigo 114 da Constituição nem o artigo 135, ns. 3 e 6, do
Decreto-Lei n. 43/91, de 22 de Janeiro, nem por último, qualquer disposição da Convenção Europeia de Auxílio
Judiciário Mútuo em Matéria Penal.
IX. A questão seguinte: A violação dos artigos 358, 359 e 378, alínea b) do Código do Processo Penal (tomada em consideração dos antecedentes criminais do arguido).
O artigo 342 do Código do Processo Penal, na versão anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei n. 317/95 de 28 de Novembro, mandava ao presidente do tribunal que perguntasse ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele nesse momento corra, lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o certificado de registo criminal. Já este Supremo Tribunal teve oportunidade de apreciar a questão da inconstitucionalidade desse preceito, discorrendo a propósito dela nestes termos, respigados do acórdão 20 de Maio de 1995, Processo n. 47568:
"O artigo 342 e, do C.P.P., ao permitir que o arguido seja perguntado sobre os seus antecedentes criminais não viola as suas garantias de defesa porque não se intromete nos factos que são objecto da acusação.
Não viola a presunção de inocência porque as declarações sobre os antecedentes criminais não traduzem, em regra, um princípio de prova dos factos da acusação. Entender que a revelação do passado criminal do arguido numa fase que antecede a produção da prova afecta o juízo de imparcialidade do julgador é não só ofensivo para os julgadores como é a implantação da demagogia no processo penal porque estabelece a confusão com um ponto de vista minoritário e sem base séria, baseado numa mera suposição. Levado às últimas consequências, todo o processo penal seria inconstitucional porque o julgador, ao iniciar o julgamento, conhece os elementos que fundamentaram a acusação.
A intimidade da vida privada, o bom nome e a reputação do arguido não são afectados com a revelação do seu passado criminal porque não diz respeito à sua vida pessoal íntima mas sim a uma série de actos que já foram apreciados publicamente em audiências de julgamento. A intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, compreende aqueles actos que, não sendo secretos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a natureza dos cargos e a elevação das posições sociais em suma, tudo: os sentimentos e acções, e actuações que podem ser meritórias do ponto de vista da pessoa a que se referem mas que, vistos do exterior, tendem a apoucar a ideia que delas faz o público em geral - Parecer da
P.G.R., B.M.J., 309, pág. 142.
O passado criminal de um cidadão, depois de apreciado pelos tribunais em audiências públicas, saiu da esfera da intimidade da sua vida privada. Não é a sua revelação pelo arguido numa outra audiência pública que vai afectar o seu bom nome porque já era conhecido do público.
Também não há violação do princípio de igualdade e não discriminação. O que a Constituição pretende é que situações desiguais não tenham o mesmo tratamento. O conhecimento dos antecedentes criminais permite que se dê cumprimento ao princípio de igualdade.
Por isso é tão importante a identificação criminal do arguido como a sua identificação civil. O preceituado nos ns. 2 e 3 do artigo 342 nada tem a ver com os factos relativos à culpa.
Não havendo inconstitucionalidade dos ns. 2 e 3 do citado artigo 342, também a junção aos autos do C.R.C., determinada pelo artigo 13 do Decreto-Lei n. 39/83, de
25/1, não viola o artigo 92 da C.R.P.".
Certo que o citado Decreto-Lei n. 317/95 eliminou a disposição relativa às perguntas sobre os antecedentes criminais do arguido.
Mas o respectivo preâmbulo não indica, especificamente, a razão dessa eliminação, que parece encoberta na afirmação genérica de que as alterações se prendem com o fortalecimento das garantias de defesa do arguido e da sua dignidade, o que assenta em claros imperativos constitucionais.
Acontece que o Código, na sua versão originária, foi sujeito, enquanto projecto, a minucioso exame do
Tribunal Constitucional que, na altura, não detectou qualquer inconstitucionalidade da norma aqui em discussão.
E como sublinhou Figueiredo Dias, o Código encontra-se em excelente situação quanto ao problema da legitimação, colocado como está mesmo no ponto de confluência da legitimidade material com a legitimidade formal: "Ele é produto, por um lado, de um longo processo de formação de consenso - julgo que sem precedentes na história moderna da construção legislativa portuguesa, em que participaram e se comprometeram a Comissão, cooperações jurídicas especializadas, o Governo, a Assembleia da República, o
Tribunal Constitucional" (cf."O novo Código do Processo
Penal", Sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.
369, página 22).
É impensável admitir que nova norma como a aqui em causa, se fosse contrária à Constituição, escaparia ao olhar atento de tantas entidades que intervieram na sua preparação e adopção.
Assim, as razões de política legislativa que presidiram
à revisão do texto do artigo 342, embora justificáveis pelo desígnio de fortalecer as garantias de defesa do arguido, não significam que o legislador tenha querido remediar uma norma que, a seus olhos, estaria ferida de inconstitucionalidade material.
E, por conseguinte, que o texto anterior deva considerar-se "à posteriori" como inconstitucional.
Enfim, deve dar-se o devido revelo à consideração do
Exmo. Procurador da República quando, na sua contra-motivação, sublinha que o facto de no acórdão recorrido se terem ponderado os antecedentes criminais dos arguidos, nada tem a ver com a condenação deles, mas tão só com o carácter ético-penal dos mesmos, perfeitamente enquadrado na previsão do artigo 72 do
Código Penal, designadamente alíneas d), e) e f) do seu n. 2, não sendo por isso necessário que constassem da acusação ou da pronúncia. Diga-se, por último que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem, em tema de presunção de inocência, já teve ocasião de dizer que a ela é estranha a pena anteriormente aplicada, onde o juiz, convencido da culpabilidade, pode considerar a personalidade do acusado e, nomeadamente, os seus antecedentes judiciários (V. Velu - Ergec, ob. cit., 471 e Ireneu
Barreto, ob. cit., página 113).
Segue-se que a inquirição do arguido sobre os seus antecedentes judiciários, permitido e até imposto pelo artigo 342 do C.P.P. ao tempo em vigor não violou qualquer preceito constitucional nem os artigos 358 e
359 do mesmo Código: os dados decorrentes das respostas dos arguidos não continham alteração não substancial ou substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, e a sua ponderação em terreno de qualificação ou para efeito de determinação da medida da pena não envolve nulidade da sentença nos termos do artigo 379 alínea b): é evidente que a condenação não foi "por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia". Uma coisa são os factos que o tribunal considerou provados e que foram relatados no capitulo I do presente acórdão, outra são os antecedentes criminais dos arguidos, relevantes para formar a convicção do tribunal no que respeita ao estabelecimento dos mesmos factos, ou seja, enquanto provas ou elementos de prova atendíveis. De resto, tais antecedentes constituem simples elementos de convicção, conjugados com muitos outros, não tendo sequer autonomia visível e preponderante.
Como se disse acima, referindo-se a jurisprudência do
Tribunal Europeu, tanto a personalidade como os antecedentes judiciários dos acusados interessam para o juízo sobre a culpabilidade, sem ofensa ao princípio da presunção de inocência.
O tribunal não pode ser censurado por se deixar influenciar pelos antecedentes criminais dos arguidos enquanto elementos de convicção que, com muitos outros, serviram para o estabelecimento dos factos e o juízo de culpa.
Foi unicamente para este fim que o tribunal considerou os referidos antecedentes criminais; cuja materialidade, aliás não vem contestada. Os factos constitutivos de tais antecedentes não foram, em si, objecto de punição. A convicção do tribunal assentou sobre um conjunto de elementos de prova, tidos por concordantes, e não sobre um desses elementos autonomamente considerado. Deste modo, o tribunal não incorreu em violação dos preceitos legais invocados.
(Cf. a situação descrita como as apreciadas nas sentenças do T.E.D.H. proferidas nos casos Engel e Al. e Albert e Le Compte, de 8 de Novembro de 1966 e de 24 de Outubro de 1983, respectivamente, Serie A, volumes
22 e 68, também respectivamente das "Publications de la
Cour Européenne des Droits de L'Homme").
Enquanto não houver decisão, com força obrigatória geral, sobre a inconstitucionalidade do artigo 342 do
C.P.P. na versão originária, este S.T.J. continuará a seguir a sua jurisprudência na matéria.
X - Segue-se o exame da 7. questão do elenco, ou seja sobre a pretendida violação do artigo 355, n. 1 do
Código Processo Penal: falta de exame, em audiência, de documentos oferecidos pelo Ministério Público.
Na contra motivação do Senhor Procurador diz-se:
A corrente jurisprudencial que se tem desenhado a este respeito é perfeitamente clara, como diz o recorrente
Emílio: não há que ler documentos em audiência, nem sequer fazê-lo constar da acta (Ac. do S.T.J. de 24 de
Fevereiro de 1993, CJ., Tomo I, 1993, 206; Acórdão do
S.T.J. de 10 de Novembro de 1993, CJ, Tomo III, de
1993, 233).
A questão nem sequer levanta qualquer polémica, como pretende o recorrente Emílio, uma vez que, apesar de não constar das actas, todos os arguidos foram confrontados com todos os documentos do processo, como se pode confirmar pelas gravações da audiência.
Que documentos são esses a que se refere a motivação do recorrente?
Não o diz o mesmo recorrente na sua motivação: alude apenas a cerca de duzentos documentos que "contribuíram para formar a convicção do tribunal", como se lê no acórdão recorrido.
Com efeito, na motivação dos factos que deram como provados, o acórdão enumera (e identifica) uma extensa série de documentos enquanto meios de prova que serviram para formar a sua convicção, com menção das folhas do processo onde se encontram.
Mas onde está a prova de que esses documentos não foram examinados na audiência?
Observa Maria Gonçalves que tem reinado alguma confusão sobre este ponto, havendo, portanto, que esclarecer que os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta se fazer a sua leitura desde que se trate de caso em que tal leitura não seja proibida (ob. cit., página 521).
E se estavam no processo, obviamente que eram acessíveis ao conhecimento de uma defesa diligente e eficaz, apta a discutir o respectivo valor e a consequente pertinência enquanto elementos probatórios.
E se o tribunal os enumerou especificadamente, enquanto peças de convicção, necessariamente que os examinou em sede de deliberação. Por outro lado, as alegações orais servem precisamente para expor as conclusões de facto e de direito, que se extraiam da prova produzida
(artigo 360 do Código do Processo Penal).
Assim sendo, como acreditar que a defesa se tenha demitido do dever de referência aos documentos constantes do processo, de os comentar e do seu próprio exame retirar as devidas conclusões quanto ao respectivo valor (ou não valor) probatório?
Ora, a acta de audiência de julgamento de folhas 4980 a
4982 (20. volume), atesta que foram produzidas alegações orais tanto pelo Magistrado do Ministério pelos senhores representantes da defesa. Findas as alegações, o Senhor Juiz Presidente perguntou aos arguidos se tinham algo mais a alegar em sua defesa, ouvindo-os em tudo o que disseram a bem dela, findo o que designou o dia 14 de Julho de 1995 para leitura do acórdão.
A referida acta não foi arguida de falsa.
Enfim, em 14 de Julho de 1995, foi lido o acórdão.
Não faltaram, pois, oportunidades para que o arguido
Emílio tivesse podido discutir o valor probatório dos documentos juntos ao processo, em sede de alegações ou antes destas.
Não lhe assiste, pois, qualquer razão quando vem agora dizer que tais documentos não foram examinados em audiência, quando é certo que a acusação ofereceu, como prova, "todos os documentos".
A circunstância de as actas serem omissas quanto aos documentos que contribuíram para formar a convicção do
Tribunal é irrelevante. O que a lei de processo obriga
é que na sentença se indiquem, para mais de forma concisa, as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, o que foi feito no acórdão, logo também a prova documental (artigo 374, 2, do C.P.P.).
Mas não obriga que a acta da audiência faça menção especificada de toda a prova constante dos autos. A invocação da alínea e) do artigo 362 do C.P.P. no sentido proposto pelo recorrente, isto é de na acta dever constar referência expressa à produção e exame, na audiência, da prova documental existente no processo, não é convincente. Trata-se de uma fórmula genérica visivelmente preordenada ao registo de qualquer evento que tenha ocorrido e mereça especial referência para controlo do exacto cumprimento da lei, designadamente pelo tribunal de recurso. A referência a "decisão" e "quaisquer outras indicações" é elucidativa nesse sentido.
Se com esta formulação genérica quisesse abranger-se a produção e exame da prova por documentos já existentes no processo, não faltariam ao legislador as palavras adequadas.
A ser como requer o recorrente, também o legislador deveria exigir que se dissesse, na acta, sobre que matérias teriam deposto as testemunhas e os peritos e qual o objecto da intervenção dos consultores técnicos, sendo certo que a única exigência a esse propósito consiste na respectiva identificação (alínea d) do mesmo artigo).
Como quer que seja, não se mostra, quanto aos documentos, que tenha sido violado o princípio do contraditório, pois não pode este Supremo Tribunal presumir, sem incorrer em ofensa grave, que a defesa, em audiência, tivesse sido privada do direito de discorrer sobre o valor desses documentos, exercendo sobre ele a correspondente crítica quanto ao mérito.
Aliás, na fase da apresentação das contestações, já o processo lhe fora facultado para organizar a defesa, e dele constavam os documentos que haviam sido indicados como prova, na acusação. Se acaso o não fez só de si própria pode queixar-se.
Enfim, não se invoque o princípio da imediação com as provas. Poderá entender-se, razoavelmente, que tal princípio, no que se refere aos documentos, ficaria melhor assegurado se o Presidente do tribunal dissesse qualquer coisa como isto:
"Meus senhores: estão no processo mais de duas centenas de documentos indicados como provas pela acusação; convido-vos a examina-los um por um e a dizerem o que se vos oferecer sobre o valor probatório desses documentos"? Isto é, convidar os sujeitos processuais para um exercício que se continha nos poderes processuais da acusação e da defesa independentemente de qualquer lembrança da parte do tribunal. É manifesto que não.
Improcede, por conseguinte, o meio de impugnação que a propósito foi deduzido pelo recorrente e não se verifica o alegada vício de inexistência jurídica. Em reforço do entendimento que fica exposto, cfr. o
Acórdão deste Supremo Tribunal, de 5 de Setembro de
1993, B.M.J. 429, página 736.
XI. Questão seguinte: nulidade consistente na inobservância do artigo 374, n. 2 do Código do Processo
Penal, por o recorrente ter invocado, na contestação, um facto que prejudica nessa parte a acusação e faz contra-prova dela, juntando um documento comprovativo de que não vivia no País indicado pelo Ministério
Público, daí a necessidade de o Tribunal incluir o facto invocado pela defesa no tema da prova.
Nos termos do artigo 379, alínea a), sentença só é nula se não contiver as menções referidas no artigo 374, ns.
2 e 3, alínea b). Ora o número 2 prescreve que "ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal".
Esta disposição, como muitas outras do C.P.P. português, inspirou-se no preceito homólogo do Codice di Procedura Penale (italiano), artigo 546 (Contenuto e forma della sentenza penale), mas não reproduziu o seu texto na integra. Em particular, não reproduziu o segmento final da alínea e) do seu n. 1, que impõe, na fundamentação, "L'enunciazione delle ragioni per le quali il giudice ritiene non attendibili le prove contrarie".
E mesmo aí, a jurisprudência italiana interpreta com prudência e lógica meridiana, o alcance desta injunção.
Exemplo, a sentença do Tribunal da Cassação, de 21 de
Maio de 1992: "Nella motivazione della sentenza il giudice di merito non e tenuto a compieri un'analisi approfondita di tutte le deduzioni delle parti e a prendere in esame dettagliatamente tutte le risultante processuali, essendo in vece sufficiente che, anche una valutazione globale di quelle deduzioni e resultanze, spieghi, in modo logico e adequato, le ragioni che hano determinato il suo convincimento, dimonstrando di aver tenuto presente ogni fatto decisivo, nel qual caso debbono considerarsi implicitamente disattese le deduzioni difensive che, anche se non expressamente confutate, siano logicamente incompatibili con la decisione adottata".
E ainda: "II difetti di motivazione, quale causa di nullita della sentenza, non puó essere ravvisato sulla base di uma critica frammentaria del singoli punti di essa. La sentenza, infatti, constituisce um tutto coerente e organico, onde, ai fini dei controllo critico sulla sussistenza di una valida motivazione, ogni punto di essa puó anche resultare da altri punti della sentenza di quali sia fatto richiamo, sia puro implícito".
(V. Mass. Cass. Pen. 1993, 2909).
Como diz o Senhor Procurador na sua contra-motivação, o tribunal foi muito além do que se dizia apenas na acusação, pronúncia e contestação do arguido Emílio, pois deu a conhecer variadíssimos passos dados pelo mesmo arguido em vários países, pelo que a referência à estadia deste num hotel de Zurique perde qualquer relevância ou sentido de seriedade quanto aos factos vertidos na acusação e pronúncia e os referidos no douto acórdão de condenação.
Assim sendo, o problema desloca-se para o exame da suficiência da insuficiência dos factos, não sendo de considerar em tema de fundamentação e não se verifica a invocada nulidade.
XII. Com o que passamos à análise da questão 9., a saber se o acórdão enferma dos vícios das alíneas a) e c) do n. 2 do artigo 410 do Código do Processo Penal.
Mas esta questão está intimamente relacionada com a seguinte do elenco, ou seja do pretenso erro de julgamento no tocante à qualificação dos factos como crime de associação criminosa do artigo 287 do Código
Penal, pelo que os trataremos sucessivamente.
O vício da alínea a) - insuficiência de factos para a decisão - para proceder, tem sempre de resultar do texto da decisão em si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum. (Neste sentido, entre outros, o
Ac. deste S.T.J., de 18 de Outubro de 1995, Processo n.
45529).
Já quanto ao da alínea c) - erro notório na apreciação da prova, é necessário fazer algumas considerações suplementares: será ou não possível o recurso àquelas regras da experiência comum?
Aqui, em princípio, essas regras só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a inexistência do aludido erro, pois que a lei exige que ele, para ser válido, tenha a veste de "notório", ou seja quando contra o que resulte de elementos que constem dos autos e cuja força probatória não haja sido infirmada, ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.
Fora de hipóteses de todo o ponto excepcionais, o erro notório da apreciação da prova só pode resultar do texto da própria decisão recorrida, em virtude de o conhecimento da prova oralmente produzida em audiência se encontrar subtraído, pela sua intrínseca natureza, a qualquer reapreciação pelo tribunal de recurso.
Daí que, quando tal erro seja invocado e a sua
Invocação se baseie em contradição entre depoimentos orais prestados na audiência ou no resultado de diligências efectuadas perante o tribunal colectivo, seja, em regra, manifesta a sua improcedência, em virtude de não se tratar de situação em que seja possível o recurso às regras da experiência comum e de o vício não resultar do próprio texto da decisão que se pretende impugnar, e só excepcionalmente isso se verificará se e quando os autos puderem demonstrar, por forma inequívoca, a existência do alegado erro vício.
O que de modo algum pode confundir-se com qualquer crítica ao julgamento de facto, pois são irrelevantes as considerações que os recorrentes fazem no sentido de pretenderem discutir a prova feita no julgamento e de solicitar que este Tribunal Supremo modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder no sentido de que teria resultado do aludido julgamento.
Esta a jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal.
Vejamos, então, em pormenor, o que dizem os recorrentes a propósito dos aludidos erros.
O recorrente Guglielmo, na última conclusão da sua motivação, invocou como fundamento do recurso os vícios das alíneas a) e c) do artigo 410 do Código do Processo
Penal, mas não específica em que consiste a insuficiência da matéria de facto nem o erro na apreciação da prova, excepto, quanto a este, a propósito do crime de falsificação agravado, por a conclusão da utilização repetida não decorrer dos pressupostos de facto deduzidos.
No restante, limita-se a criticar o recurso às provas indirectas, a afirmação de juízos de valor conclusivos como o de que os arguidos se dedicavam "em exclusivo à organização" ou a partipação dele, recorrente, na "organização", acrescendo que nos factos dados como provados não está especificada a sua "participação na organização".
Adiante, crítica o acórdão por não explicitar a relação orgânica e sistemática com a "organização" nem enumerar as tarefas específicas do recorrente, e por abandonar os critérios da singularidade, da especificidade e das imputações concrectas, optando por conclusões genéricas e abstractas, numa petição de princípio sem processo demonstrativo válido.
A motivação assenta essencialmente na tese de que a factualidade provada não preenche o tipo legal de crime de associação criminosa e, para tanto, desenvolve larga argumentação jurídica para demonstração dessa tese, confundindo esta questão com os vícios da insuficiência da matéria e erro notório na apreciação da prova.
Logo, a verdadeira questão a resolver não é a dos vícios da sentença mas a adequação dos factos ao tipo legal, em juízo subsuntivo, de que adiante nos ocuparemos.
Por seu turno, o recorrente Domenico Festa, nas conclusões da motivação, alude a erro nos pressupostos de facto nos termos relatados a páginas 19 e 20, e mais tarde, nas suas alegações escritas, além de repetir o conteúdo daquelas conclusões, adiciona outras também para defender o erro na apreciação da prova e a consequente violação do n. 2 do artigo 410 do Código do
Processo Penal, conforme o relato de folhas 44 a 46 do presente acórdão.
O Exmo. Procurador da República, na contra-motivação, refuta as conclusões, deste e de outros recorrentes, sublinhando que foi com base em toda a prova produzida, valorada directa e indirectamente, devidamente referida e fundamentada, que o tribunal deu como evidente a associação criminosa e a pertença dos arguidos à mesma.
E a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, nas suas alegações, pronuncia-se, a propósito da questão da errónea avaliação da matéria de facto, pela sem razão do recorrente dizendo, em particular, o seguinte:
"Esquece o recorrente que o Supremo Tribunal decide tão só de direito, nos termos do artigo 433 do C.P.P., sem prejuízo, porém, do disposto no artigo 410 do mesmo diploma, sendo que conforme o n. 2 deste normativo, os vícios de que pode conhecer o Supremo Tribunal têm de resultar da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência.
Tais vícios não se verificam na decisão ora sub júdice e o que o recorrente contesta, afinal, é a matéria fáctica dada como provada, esquecendo que o tribunal a quo aprecia livremente a prova, atento o que dispõe o artigo 127 do C.P.P."
Estas proposições estão basicamente certas.
Compulsando a matéria de facto, na parte que especificamente concerne ao recorrente, concretamente os pontos 47, 48, 55, 56, 57, 58, 94, 95 e 114, não se vê onde está o vício da insuficiência dela para a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.
Os elementos probatórios que levaram à convicção do tribunal constituem um conjunto, composto de prova testemunhal e documental e, quanto a esta última, referem-se vários documentos, nomeadamente os de folhas
95 a 105, mas também apreciados quanto aos factos atinentes à conduta do co-arguido David Re; o de folha
192 referente a guia de depósito de quantias e objectos apreendidos ao recorrente e ao dito David Re; o de folha 451, referente à estada do recorrente no dia 8 de Julho de 1992 no Hotel Ampalius; fotocópias de folhas 1464 a 1468, referentes a um filme que se encontrava no interior de uma máquina Minolta, apreendidas no Apartamento 113, e nos quais são visíveis os arguidos Guglielmo, Domenico Festa e Gianni
Marra; fotografias de folhas 1782, 1783 e 1784, apreendida em Setúbal e nas quais são visíveis, além de outros arguidos justamente o Domenico Festa.
Não se vê no texto do acórdão, que o tribunal tenha declarado "que o recorrente tem uma enorme mobilidade porque viajou de Málaga para Barcelona com um bilhete de avião não utilizado". Apenas aí se diz que "os próprios autos nos demonstram o quanto errada está esta tese dada a demonstrada mobilidade dos arguidos e a natureza transnacional da organização em que estavam inseridos". Não se trata, evidentemente, de matéria de facto mas de uma dedução do tribunal, em sede de avaliação do conjunto daquela matéria e das provas, que nada tem de temerária nem contrária às regras da experiência. E não foi unicamente por causa do bilhete de avião (dito de não utilizado) de Málaga para
Barcelona que o tribunal deduziu a referida "mobilidade". Muitos outros factos convergem para essa avaliação. E já agora, diga-se que não é seguro que o bilhete que se encontra a folha 292, não tenha sido utilizado - faltam no caderno as primeiras folhas.
Aliás, trata-se de pormenor sem importância, pois não se contestam os factos de que o recorrente foi encontrado em Portugal em 31 de Julho de 1992, e detido na zona de Ourique (ponto 47) e que veio para o
Algarve e esteve hospedado em 8 e 9 de Julho do mesmo ano no Hotel Ampalius, em Vilamoura (ponto 56) e esteve a viver com o arguido David em Casa Costa, também de Vilamoura, desde 18 ou 19 de Julho até 31 desse mesmo mês (ponto 57).
Quanto ao facto da passagem de avião em nome do recorrente, o tribunal limitou-se a dizer que tinha sido encontrado no Solar Golf 113, ocupado pelo
Guglielmo e outros membros da organização e a dizer a data desse bilhete (7 de Julho de 1992), véspera da sua chegada a Portugal (ponto 58). A admitir que não tivesse sido utilizado, tal circunstância não exclui que o recorrente estivesse em Portugal no dia seguinte.
O relevo probatório do facto reside na circunstância de tal bilhete "ter sido encontrado" no dito Solar Golf
113, ocupado Guglielmo e outros membros da organização, que o recorrente nem se dá ao trabalho de explicar.
Quanto à aliança, a expeculação a esse respeito é totalmente irrelevante. Em sede factológica não consta esse pormenor. O tribunal só se refere a ela na indicação das provas e nem sequer diz que a mesma pertencia ao recorrente. Em conclusão, as deduções do recorrente são inconcludentes para convencer este
Supremo Tribunal do que o tribunal da 1 instância errou na apreciação da prova. Tal erro não tem a veste de
"notório" quer do ponto de vista do texto da decisão recorrida quer do ponto de vista das regras da experiência comum, pelo que corresponde vício não se verifica. Quanto à insuficiência da matéria de facto, que veio invocada quanto à perfeição dos elementos constituintes do crime de associação criminosa, voltaremos a falar quando apreciarmos esta questão, suscitada por outros recorrentes e que envolve principalmente matéria de direito.
Também o recorrente Guglielmo invoca os mencionados vícios da sentença, mas confunde a matéria de facto com a qualificação jurídica. De concreto, crítica a decisão na parte relativa ao crime de falsificação de documento (passaporte) com duas utilizações no Hotel
Ampalius e perante agentes da P.J. e daí inferiu a utilização repetida de tal documento, acrescentando que esta conclusão não decorre dos pressupostos de facto aduzidos, traduzindo-se em erro de avaliação de prova.
Basta atentar no que se deu como provado nos pontos 18,
19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25 do relato da matéria de facto, para se concluir pela sem razão do recorrente, que não contesta estes factos, que têm de ser avaliados em conjunto com o facto (não provado) de que apenas utilizou o passaporte com o nome de "Pasquale Pinto" a fim de evitar ser capturado pelas autoridades italianas
(ponto 23 do elenco da matéria não provada).
Ora, o facto constante do ponto 25, da matéria provada não é uma dedução o extraída pelo tribunal dos factos descritos nos pontos 19 a 24. É um facto que o tribunal considerou provado no exercício da sua faculdade de apreciação segundo as regras da experiência e da sua livre apreciação (artigo 127 do C.P.P.), e que este
Supremo não pode censurar, por isso.
Para constituir um erro (notório) na apreciação da prova, tal erro teria de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência. Mas não resulta. A utilização repetida do passaporte falso como forma de ocultar a verdadeira identidade nada tem de impossível ou de não plausível, pois é para isso mesmo que serve, à luz de qualquer regra de experiência comum. E no contexto global da factualidade provada, a resposta do tribunal mais se nos apresenta dotada de coerência e de plausibilidade, pelo que a notoriedade do erro, mesmo para um observador de mediana inteligência, não é perceptível.
Segue-se que também quanto a este recorrente, tem de sossobrar a reinvindicação dos vícios alegados.
Também o recorrente Palamara vem invocar os vícios das alíneas a) e c) do artigo 410 do C.P.P. mas sem grande precisão. Na essência, pretende discutir a questão da insuficiência de factos para a decisão relativa ao crime de associação criminosa, misturando o que não deve ser misturado: questões de facto e de direito.
Deste modo, a análise do presente meio de impugnação será retomada quando apreciarmos a questão fundamental dos recursos, que é a de saber se a factualidade apurada pelo tribunal da instância serve ou não para o preenchimento do tipo legal da associação criminosa.
Quanto ao recorrente Giuseppe Re, a insuficiência da matéria de facto é invocada igualmente para discutir subsunção dela no referido tipo legal, com argumentação semelhante à de outros recorrentes.
Mas crítica ainda o acórdão por ter baseado a sua convicção - relativamente ao perdimento do veículo
Chevrolet Corvet, nos documentos de folhas 95 a 105,
113, 118, dos mesmos concluindo que o seguro foi efectuado em 20 de Julho de 1992 dez dias antes da sua apreensão e detenção do recorrente.
Ora - continua - sendo o veículo Corvet oriundo dos
Estados Unidos e propriedade de terceiro - Henry
Peralta - e segurado pelo recorrente sob o falso nome de "Houghton", dez dias antes de ser apreendido - período de tempo em que viajou de avião entre Amesterdão/Madrid/Marbella, sem que se provasse que o veículo nesse período de tempo tivesse ficado na posse de outrem e com ele circulasse ao serviço da "organização". Logo, há erro notório na apreciação da prova pois o recorrente não podia circular no Corvet e viajar de avião simultaneamente ao serviço de uma "pseudo-organização". Aliás, no ponto 87 do acórdão não se específica para que locais, em que dias e que actividades foram executadas pelo recorrente transportado no Corvet. Sendo certo que, entre os dias
20 de Julho de 1992 e 30 de Julho de 1992 o recorrente também viajou de avião segundo o mesmo sem especificar que actividade desenvolveu para a "organização" e por ordem de quem e em que circunstâncias.
O recorrente labora em equívoco. Não consta da matéria de facto provada que tenha viajado de avião entre Amesterdão/Madrid/Marbella dez dias antes de o veículo ter sido apreendido.
Os documentos relativos àquela viagem vêm indicados unicamente como meio de prova que o tribunal apreciou, conjuntamente com outros, para formar a sua convicção quanto ao estabelecimento dos factos. Um deles refere-se ao seguro do Chevrolet Corvet efectuado em
Málaga, pelo recorrente, sob o nome falso de "Houghton" em 20 de Julho de 1992.
O seguro do carro foi efectuado, em nome do recorrente
(ou antes, em nome de "Houghton", que falsamente usava, em S.Pedro Alcântara/Malaga).
Onde está a contradição entre o que consta de tal documento e que consta dos documentos relativos a compras em Amesterdão entre 27 e 29 de Julho de 1992 para que possa dizer-se que o tribunal errou na apreciação da prova?
Certo é que foi detido em Portugal em 31 de Julho de
1992 (pontos 46 a 48 do relato da matéria de facto) e tal facto não é negado nem o poderia ser facilmente.
Não há também qualquer contradição entre os factos constantes dos pontos 31 e 32 referentes a contratos de arrendamento, em Portugal, em 7, 9, 10 e 11 de Julho de 1992 e o facto de aqui se encontrar em 31 de Julho, data em que foi detido pela G.N.R. (ponto 47). Tudo isto é plausível e se é verdade que o recorrente viajou de avião após a data do seguro e a data da sua detenção
(ponto que não consta da matéria de facto, repete-se) tal actividade viageira não exclui a veracidade dos factos dados como provados.
Até milita contra o recorrente, reveladora da dedução feita no acórdão, da mobilidade característica dos arguidos, que nada tem de temerária. As regras da experiência comum também corroboram o acerto da convicção do tribunal, quanto às datas da permanência do arguido em Portugal (cf. pontos 29, 30 a 33 do relato da matéria de facto), e do juízo sobre a sua mobilidade, que é característica do tipo criminológico de agente de que se trata. Como quer que seja é totalmente irrelevante o argumento de que não se apurou que o veículo Corvet tivesse, no período de tempo das viagens ao estrangeiro, ficado na posse de outrem e que circulasse ao serviço da "organização". Como é totalmente irrelevante o argumento de que o recorrente não podia circular no Corvet e de viajar de avião simultaneamente ao serviço de uma "pseudo-organização".
O primeiro facto está provado, o segundo não mas, mesmo na hipótese de ser verdadeiro, não se vê qualquer incompatibilidade, que sugira o alegado erro na apreciação da prova, muito menos manifesto, pelo que improcede a alegação do vício. Enfim, também o arguido
Isidro Martins veio invocar a insuficiência da matéria de facto provada e erros notórios na apreciação da prova, mas dispensou-se de citar a norma do Código de
Processo Penal que os contempla. Limitou-se a dizer que
"com o cometimento de tais vícios, violou o Tribunal recorrido o disposto nos artigos 91, 132, 348, 368 e
374 do Código de Processo Penal, o artigo 287 do Código
Penal e o artigo 28 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de
Janeiro. "Com isto errou o tiro crítico disparado contra o acórdão recorrido. Os artigos 91 e 132 não definem qualquer vício da decisão, o artigo 132 tão pouco, o artigo 348 refere-se à inquirição de testemunhas, os artigos 368 e 369 versam sobre a questão da culpabilidade e da determinação da sanção e o artigo 374 sobre o conteúdo da sentença. Os artigos
287 do Código Penal e 28 do Decreto-Lei n. 15/93, são normas incriminadoras.
É já por por aqui se evidência a pouca firmeza da argumentação.
Nas alegações por escrito apresentadas neste Supremo, depois de uma longa dissertação sobre a insuficiência da matéria de facto e a existência de erro notório na apreciação da prova, volta a omitir, nas conclusões, qualquer referência ao artigo 410, 2, do C.P.P. que define tais vícios e precisa as condições em que podem ser relevantes e insiste na violação de novos artigos do mesmo Código, concretamente os artigos 61, 318, 322, e ainda o artigo 4 da Convenção Europeia de Auxílio
Mútuo em Matéria Penal; e, por fim, cita o artigo 119 daquele Código para defender a ilegalidade do acto executado em Espanha.
Razão tem, por isso, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta quando nas suas alegações, observa que o recorrente invoca vícios elencados no artigo 410, ns. 2 e 3, do
C.P.P. sem minimamente identificar as concretizar, acrescentando: "É que não basta referi-los, para que existam necessário se mostre, face ao que dispõe o corpo do n. 2 do artigo 410 referido, e de acordo com a jurisprudência pacífica deste S.T.J., que os vícios em causa resultem da decisão recorrida, por si só conjugada com as regras da experiência comum, o que no caso dos autos não sucede". Não vamos aqui repetir o que já dissemos anteriormente sobre a legalidade do acto rogado às Autoridades Espanholas, em particular no que toca à presença dos arguidos no acto de inquirição das testemunhas, bem como o que se referiu a propósito do artigo 4 da Convenção Europeia e dos princípios da imediação e do contraditório.
Não deixaremos, contudo, de ponderar o argumento tirado da Recomendação R (80) 8 do Comité de Ministros do
Conselho da Europa, adoptada em 27 de Junho de 1980.
O recorrente devia saber que tal Recomendação não tem efeitos vinculativos para os Estados Membros.
Depois, o trecho reproduzido começa, justamente por dizer que a faculdade nele referida ressalva "as disposições da lei interna". Finalmente, quando alude
"à assistência das pessoas em causa" não especifica de quem se trate. É uma expressão de conteúdo genérico que bem pode querer referir-se aos representantes da acusação e da defesa, o que é perfeitamente normal. Não significa forçosamente "as pessoas" dos arguidos ou acusados.
Relativamente ao artigo 61 do C.P.P. o texto que interessa é o da alínea a) do n. 1: Estar presente em actos processuais que directamente lhe digam respeito.
Mas tal não exclui que possa ser representado pelo seu defensor. A obrigatoriedade da presença, em pessoa, do arguido só existe, rigorosamente, à luz do preceito, quando ele tenha que ser ouvido pela autoridade judiciária que presida ao acto. Daí que a lei só considere nulidade insanável a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exija a sua comparência (artigo 119, alínea c)).
Quanto ao artigo 318 refere-se à tomada de declarações ao assistente, às partes civis, a testemunhas, a peritos ou a consultores técnicos. Neste preceito não se faz qualquer referência à obrigatoriedade da presença do arguido, em pessoa.
E acontece até que o n. 2 dispõe que a solicitação é de imediato comunicada ao Ministério Público bem como aos representantes do arguido, do assistente e das partes civis. Ora, se a lei, no preceito em causa, tivesse querido determinar a presença obrigatória do arguido, na diligência deprecada, mandaria também comunicar-lhe pessoalmente, posto que ele devia encontrar-se na audiência, que é obrigatória, conforme dispõem os artigos 332 e 325, este com excepção da parte final do n. 1.
É interessante notar que esta disposição é tradução literal do artigo 474 do Código de Processo Penal
Italiano: "salvo in questo caso (ou seja de arguido detido) siano necessarie cautele per prevenire il pericolo di fuga o di violenza".. É evidente que, como no caso da lei portuguesa, estas medidas cautelares não se resumem a algemas, "gaiolas de vidro à prova de bala" e outras do mesmo género.
Pois bem, se isto é assim quando o arguido comparece perante um tribunal da ordem interna, em que se presume ser mais fácil dispor de meios de prevenção de perigo de fuga, como não ver que as medidas cautelares são mais prementes quando se tratar de comparência perante uma autoridade judiciária sediada em território estrangeiro?
No caso dos autos, tratando-se de pessoas que vinham acusadas de pertencerem a uma organização criminosa, na maior parte cidadãos estrangeiros, alguns já perseguidos criminalmente por factos cometidos no estrangeiro e com processos de extradição pendentes, por isso mesmo requerendo fortes medidas de prevenção, designadamente carros celulares e agentes de polícia, de eficácia sempre aleatória, é razoável que o tribunal português não tenha querido arriscar a sua deslocação, sem que isso comprometesse as garantias de defesa, posto que assegurou a presença dos seus defensores e cuidou de se inteirar precisamente das perguntas a fazer às testemunhas, livremente formuladas pelos próprios arguidos e com a garantia de que os depoimentos a recolher seriam, como o foram, oportunamente lidos nas sessões seguintes da audiência, logo sujeitos ao contraditório.
Quanto à violação do artigo 4 da Convenção Europeia do
Auxílio Mútuo já dissemos oportunamente quanto baste.
Também aí se fala das autoridades e "pessoas em causa", fórmula genérica que, em si, não significa que se trate de arguidos ou acusados. De qualquer modo, trata-se de uma faculdade da Parte requerente, que dela usará entender, de acordo com a sua legislação interna e as circunstâncias do caso.
Enfim, cabe sublinhar a argumentação do Magistrado do
Ministério Público na contra-motivação ao recurso interlocutório dos arguidos Emílio, Isidro e Festa
(folhas 55 e 56) na parte em que defende que, por se tratar de diligências rogadas, não é obrigatória a presença dos arguidos, por não se aplicar o artigo 332 do C.P.P. mas antes o artigo 318.
Desenvolvendo este raciocínio, diz o mesmo Magistrado que o referido artigo 332 apenas se aplica ao Tribunal de julgamento (o que tem o poder decisório sobre a resprasabilidade criminal do arguido) mas não no caso de diligências de inquirição de testemunha, cujo depoimento segue as regras da audiência a que o arguido tem apenas o direito de estar presente (artigo 318, n.
4, 342, 344, 345, 271, 356, n. 2 a) e 61, n. 1 a); que a lei prevê excepções ao direito de o arguido estar presente em actos processuais que directamente lhe disseram respeito (artigo 61, n. 1), que o artigo 193, n. 3 dispõe que a execução das medidas de coacção não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer; e que os arguidos não têm o direito de ser acareados sem mais, tendo antes e outrossim, o direito de requerer a acareacão que apenas deve ser deferida caso se afigure útil à descoberta da verdade (artigo 146, n. 1, parte final, do C.P.P.); deduções que se nos antolham essencialmente correctas e estão de harmonia com as razões anteriormente expendidas quanto à legalidade de utilização da carta rogatória e sua execução nos termos e nas circunstâncias em que o foi. XIII. E passemos à questão verdadeiramente fulcral dos recursos, a de saber se existe erro de julgamento no tocante à qualificação dos factos como crime da associação criminosa que, como se disse anteriormente, está indissoluvelmente ligada à questão da suficiência ou insuficiência da matéria de facto, razão pela qual as temos que examinar conjuntamente.
Foram os arguidos Emílio Di Giovine, Guglielmo Di
Giovine, David Re, Domenico Festa, Federico Lorenzo,
Antonio Palamara e Isidro Martins, condenados como autores de um crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 28 do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro.
É o seguinte o texto desta disposição na parte que interessa:
"1. Quem promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21 e 22 é punido com pena de prisão de 10 a 20 anos.
2. Quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3. Incorre na pena de 12 a 20 anos de prisão quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação referidas no n. 1".
Não vamos tomar partido na querela doutrinária sobre a interpretação das disposições legais incriminadoras da associação criminosa, designadamente as do Código Penal
(artigo 287 da versão de 1982, artigo 299 na versão de
1995), chamada a debate nas motivações de alguns dos recorrentes. Nem vamos adoptar um método de análise de tipo popperiano, "falsificando" as teorias que se confrontam na matéria em ordem a ver qual delas resiste melhor à crítica. Por muito interesse teórico que tenha tal método, não é esse propriamente o objectivo de uma sentença judicial.
Adoptaremos, por isso, uma abordagem pragmática, baseada na jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Claro que não desconhecemos as teorias do Prof. Beleza dos Santos e do Prof. Figueiredo Dias que podem resumir-se deste modo. Para o primeiro, os elementos típicos do crime de associação criminosa são a existência de uma associação e a sua finalidade criminosa (cf. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 70).
No preenchimento do conceito de "associação", o essencial é que diversas pessoas pessoas se unam voluntariamente para cooperar na realização de um fim ou fins comuns e que essa união possua ou queira possuir uma certa permanência ou estabilidade.
A mesma deve viver ou ao menos propor-se viver como união estável de diversas pessoas ligadas entre si pelo propósito de delinquir e tendo em vista a actuação de um programa criminoso. E dada a fluidez que estas estruturas criminógenas assumem em ordem a revelarem-se o menor possível a estranhos senão mesmo àqueles inclusive que delas fazem parte, a organização basta-se com a demonstração de acordo de vontade de duas ou mais pessoas para a consecução de fins criminosos e uma certa estabilidade, ou ao menos o propósito de ter estabilidade. Relativamente ao segundo elemento, é necessário que exista o propósito genérico de praticar uma pluralidade de crimes, da mesma espécie ou de espécies diferentes.
Para o segundo, também resumidamente, para haver crime de associação criminosa, é necessário se verifiquem os seguintes elementos: a) uma pluridade de pessoas, isto é duas pessoas pelo menos; b) uma certa duração, que não tem de ser a priori determinada, mas que tem forçosamente de existir para permitir a realização do fim criminoso pela associação; c) um mínimo de estrutura organizatória, isto é, para haver associação criminosa, exige-se o mínimo de estrutura organizatória que sirva de substrato material à existência de algo que supere os simples agentes; d) uma qualquer formação de vontade colectiva; e) tem de haver um sentimento comum de ligação por parte dos membros da associação (não ou não só ao chefe se o houver), mas ou também a algo que, transcendendo-os, se apresenta como uma unidade diferente de qualquer uma das individualidades componentes a que eles referem a sua actividade criminosa.
Só haverá associação onde o encontro de vontades dos participantes - um qualquer pacto mais ou menos explícito entre eles - tiver dado origem a uma realidade autónoma, diferente e superior à vontade e interesses dos singulares membros.
(Considerações respigadas do estudo sobre Associações
Criminosas no Código Penal de 1982, Sep. da R.L.J.,
Coimbra Editora, 1988).
Quanto à jurisprudência deste Supremo Tribunal, podem indicar-se algumas espécies mais significativas.
Assim, no Acórdão de 31 de Outubro de 1991, B.M.J. 410, página 418:
"1. O que caracteriza o cerne do crime de associação e o distingue da co-autoria, onde se toma, a cada momento, a decisão de cometer determinado crime, é um projecto a prazo estável, a permanência de pessoas cooperando entre si na realização desse fim criminoso.
São este fim abstracto e aquela ideia de permanência que distinguem a associado da comparticipacão, simples acordo conjuntural para se cometer um crime em concreto.
2. Tendo-se provado que pelo menos três arguidos, voluntariamente e com consciência do que faziam, acordaram entre si desenvolver, de forma não limitada no tempo e estável, actividade de tráfico de estupefacientes, só esse projecto constitui, de per si, o crime de perigo do artigo 28 do D.L. n. 430/83, de 13 de Dezembro, pois que tais arguidos fundaram associação de delinquentes e isto independentemente de levarem ou não à prática o seu projecto".
E no acórdão de 27 de Janeiro de 1993, Proc. 43030, ponderou-se: "1. O artigo 28 do Decreto-Lei n. 430/83 que prevê o crime de associações criminosas para a prática de crimes de direito penal secundário de tráfico de estupefacientes, abrange maior número de situações e traduz uma menor exigência de transpersonalidade fáctica do que o artigo 287 do
Código Penal de 1982 para crimes comuns.
2. Não basta para a sua verificação qualquer acordo prévio de conjugação de esforços, sendo, necessário que a constituição do grupo seja feita em termos que vão além da co-autoria e tenha o mínimo de estabilidade e duração".
Por seu turno, no Acórdão de 30 de Junho de 1994,
Processo n. 45271, entendeu-se o seguinte:
"1. Para a existência de um crime de associação criminosa devem existir uma pluralidade de pessoas com um mínimo de estrutura organizatória e certa permanência e com um sentimento comum de ligação entre os seus membros a um qualquer processo de formação da vontade colectiva.
2. Verifica-se esse crime quando duas pessoas decidiram criar uma estrutura de carácter permanente, organizada e estável, com vista a dedicar-se ao furto de veículos, de que alteravam os elementos identificativos, para os introduzir no mercado, criando, para o efeito, uma verdadeira estrutura empresarial eficiente, coesa e dinâmica.
3. Na co-autoria não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar para a obtenção do resultado, bastando que cada um seja elemento componente do todo; por maioria de razão, nos casos de associação criminosa para a prática de determinados crimes, são co-autores dos crimes praticados as pessoas por tal forma associadas."
Como se vê dos exemplos citados, a jurisprudência não está em conflito aberto com os ensinamentos da doutrina.
E não deixa de ser interessante a referência feita por
Lourenço Martins à lei italiana, citando Mauro Ronco, em que se sublinham como características essenciais da associação: a) o acordo para a comissão de um número indeterminado de delitos, sem fixação de qualquer limite temporal ou quantitativo, portanto convivência histórica autónoma em relação a outros episódios delituosos; b) a existência de qualquer estrutura objectiva que permita a realização do programa criminoso.
E a respeito deste segundo requisito, a doutrina mostra-se mais exigente que a jurisprudência. Esta basta-se com um perfil mínimo organizativo, dispensando um conjunto de técnicas operativas elaboradas, diferenciação de tarefas, predeterminação com vista à subdivisão de proveitos.
Enfim, cita uma sentença do T.Cass. Penal, particularmente elucidativa, segundo a qual admite-se a existência de uma associação criminosa para o tráfico de estupefacientes através de uma união paralela de várias pessoas, operando para a realização de proventos pelo comércio de drogas, valorizando-se os vínculos que, de maneira durável, ligam fornecedores, vendedores e pequenos distribuidores; não constituindo obstáculo ao vínculo associativo a diversidade de escopos pessoais e diferentes utilidades que cada um se propõe receber, sempre que da parte de todos haja a consciência de operar no âmbito de uma organização e de contribuir com a sua acção para o fim comum de tirar proveito do comércio da droga.
(Cf., do autor, a obra Droga e Direito, Aequitas/ Ed.
Notícias, páginas 165 e seguintes).
No caso dos presentes autos, todos os elementos constitutivos da associação criminosa estão presentes: pluralidade de pessoas, integradas num grupo organizado e dirigido pelo arguido Emílio di Giovine, dedicado ao tráfico de haxixe desde Marrocos que fazem desembarcar na costa portuguesa e daqui transportam em camião para
Itália, designando aquele as funções a exercer por cada um dos demais, cumprindo estes essas funções, dirigindo o mesmo Emílio, desde Espanha, as actividades da organização em Portugal até Junho de 1992 (pontos 1 a 6 e 94, da matéria de facto); um mínimo de estrutura organizatória, que não era tão mínimo com isso (pontos
26, 27, 29, 30, 31, 32, 34, 46, 48, 51, 52, 53, 55, 56,
59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 72, 73, 74, 75, 77,
78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 93,
110, ibidem; formado de vontade colectiva (pontos 1 e
3, 78, 80, 82, 94, 95, ibidem; sentimento comum de ligação por parte dos membros da associação (pontos de facto já referidos); encontro de vontades destinado a dar origem a uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades internas dos singulares membros
(pontos referidos e matéria de facto apurada no seu conjunto); enfim permanência da associado (matéria de facto no seu conjunto).
Avaliando toda a matéria de facto, o acórdão recorrido cita muito judiciosamente um conjunto de contributos doutrinários, nacionais e estrangeiros e abundante jurisprudência para fundamentar, de direito, a conclusão a que chegou sobre a existência da associação criminosa, em todos os seus elementos típicos.
Em particular, sublinhou que, não obstante não ter sido possível determinar a estrutura da organização chefiada pelo arquivo Emílio Di Giovine nem os demais componentes internos da mesma organização, tal circunstância não impediu que o Tribunal pudesse dar como provada a referida organização. A propósito, citou o estudo do Prof. Beleza dos Santos e um acórdão deste
Supremo Tribunal, no sentido de que tais elementos têm relevância em sede de medida concreta da pena e nunca para averiguar da existência ou não da organização.
Cremos que o acórdão recorrido, nesta parte, se conduziu por excessivo rigor crítico na apreciação da matéria de facto, já que esta, como se disse, revela aquele mínimo de estrutura organizativa de que fala a doutrina. E muito judiciosamente disse que também não é necessário que todos os membros da organização se conheçam entre si ou que todos conheçam o chefe, sendo esse não conhecimento como válvula de segurança para a própria organização. Está certo e corroborado pelas regras da experiência comum, como está correcta a dedução de que mais do que um não requisito o não conhecimento é uma garantia da sobrevivência da própria organização e não pode servir como obstáculo ao investigador ou ao julgador para não dar por existente a organização.
Ainda nos parece judiciosa a asserção de que não é necessário que o grupo ou a organização tenha "sede" ou
"principal estabelecimento" em Portugal. Estas expressões adequam-se mal ao tipo de associação criminosa, a menos que sejam entendidas em sentido vulgar, como equivalentes a uma localização particular, não necessariamente um poiso certo, permanente e único.
E quanto ao não conhecimento mútuo dos membros da organização, hñ elementos bastantes na matéria de facto que sugerem o contrário (cf. especialmente os pontos
16, 17, 28, 47, 56, 57, 58, 61, 67, 70, 71, 72, 74, 76,
82, 83, 93, 104, 110 e os pontos 24, 25 e 30 do repertório dos factos não provados).
Como transparece das precedentes considerações, a factualidade provada não se revela insuficiente para a decisão. Contem elementos objectivos e subjectivos dos crimes por que foram condenados os arguidos, sendo totalmente irrelevante a crítica fundada na não individualização e especificação da conduta particular de cada um em prol da consecução dos objectivos da organização (v. acórdão de 30 de Junho de 1994, acima citado e o de 13 de Maio de 1992, B.M.J. 417 - 308).
Com o que não existe vício da alínea a) do n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal.
XIV. Questão seguinte: da ilegalidade da pena acessória de expulsão.
Decretou-a o acórdão recorrido relativamente aos arguidos Emílio, Guglielmo, David, Domenico, Federico e
Antonino Palamara, nos termos dos artigos 34, n. 1, do
Decreto-Lei n. 15/93 e 12, n. 1 do Decreto-Lei 60/93 de
3 de Março.
Fundamentou-a no facto de terem sido condenados pelo crime de associação criminosa para o tráfico de estupefacientes e ainda o Emílio, Guglielmo e David por um crime de falsificação do documento agravado e por dos autos não resultar que tenham qualquer profissão no nosso Pais nem aqui tenham residência habitual, existindo, pois, fundado receio, atenta a natureza e a gravidade dos ilícitos e as referidas condições pessoais, de colocarem em risco a segurança e tranquilidade públicas caso aqui continuem. E ponderou a circunstância de serem nacionais de Estado Membro da
Comunidade Europeia, gozando, nessa qualidade do direito de livre circulação e estabelecimento previstos no tratado de Roma.
Mas acrescentou que esse direito tem limitações e condições, por isso que o legislador do Decreto-Lei n.
60/93, de 3 de Março veio estabelecer no seu artigo 12 derrogações ao princípio de livre entrada e permanência de cidadãos da Comunidade Europeia em território nacional, sendo um dos fundamentos da derrogação as razões de ordem ou segurança pública; e, por isso, ser possível em cada caso concreto e expulsão do território nacional de cidadão de Estados Membros da mesma
Comunidade.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem recordado, em várias decisões, que incumbe aos Estados contratantes assegurar a ordem pública, em particular no exercício do seu direito de controlar, em virtude de um princípio de direito internacional público bem estabelecido e sem prejuízo de compromissos que decorram para eles dos Tratados, a entrada e a permanência de não-nacionais, e nomeadamente de expulsar delinquentes estrangeiros (v. casos Nasri de
França, sentença de 13 de Julho de 1995 e Boughanemi de
França, sentença de 24 de Abril de 1996 e Ireneu
Barreto, ob. cit., páginas 126 e seguintes.
De resto, o artigo 8, n. 2, da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, que garante o direito ao respeito da vida privada e familiar, admite a ingerência da autoridade pública no exercício deste direito quando estiver previsto na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública... para a defesa da ordem e a prevenção de infrações penais... ou a protecção do direito e das liberdades de terceiros. É neste quadro que se tem discutido a compatibilidade das medidas de expulsão de estrangeiros com a norma em causa.
A jurisprudência do T.E.D.H., neste particular, pauta-se, em regra, por critérios de necessidade e proporcionalidade, consistindo a sua tarefa em determinar se a expulsão respeita um justo equilíbrio entre os interesses em presença, a saber, por um lado o direito ao respeito da vida privada e familiar e, por outro, a protecção da ordem pública e a prevenção de infracções penais.
Ora, no caso destes autos, não se vê que a pena decretada pelo acórdão recorrido seja desnecessária ou desproporcionada, tanto mais que não há interesses da vida privada ou familiar ou mesmo profissionais a ponderar.
De resto, só o recorrente Domenico Festa suscitou concretamente esta questão, cuja decisão interessa também aos restantes a quem a pena de expulsão foi aplicada.
Mas fá-lo em termos nada convincentes, invocando a dignidade humana e a negação das possibilidades de regeneração e reinserção. Ora, o princípio da dignidade humana, se tivesse a extensão que o recorrente entende levaria a que nem sequer pudesse ser punido com a pena principal. E quanto às possibilidades de regeneração e reinserção, não se vê que sejam melhores em Portugal do que no Pais de origem. Improcede, por isso, o meio de impugnação por ele deduzido. E como a situação dos outros arguidos também punidos com a pena de expulsão não se apresenta substancialmente diferente, não vemos qualquer razão para censurar o acórdão recorrido nesta parte.
XV. A questão da perda de objectos apreendidos, incluindo os veículos Mercedes 500 e Chevrolet Corvet.
Recorreram o Henry Ramon Peralta e a Valéria Urba, como se relatou a folha 37.
A perda foi decretada com invocação dos artigos 35 e 36 do Decreto-Lei n. 15/93. Dispõe o primeiro (perda de objecto):
"1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tivessem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. As plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado.
3. O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto".
E dispõe o segundo (perda de coisas ou direitos relacionados com os factos):
"1. Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infracção prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2. São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé, os objectos, direitos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
4. Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5. Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna".
O recorrente Henry Peralta faz valer que é um terceiro de boa fé e alheio a quaisquer factos ilícitos descritos no acórdão recorrido; este não concretiza factualmente nem justifica nos termos dos artigos 35 e
36 do Decreto-Lei 15/93, o perdimento do veículo a favor do Estado; o acórdão recorrido violou aqueles artigos e o artigo 107 do Código Penal, desrespeitando ostensivamente os direitos do recorrente. Contrapõe o Excelentíssimo Procurador da República, dizendo que bem andou o acórdão recorrido, pois todos os objectos e valores foram apreendidos aos arguidos, de quem se provou a actividade criminosa e com os quais foram encontrados, sendo regra de experiência comum que, se se encontravam com eles é porque lhes pertenciam - não pesando, sobremaneira, estarem registados os passíveis de registo, em nome de outrem, para arguidos que usavam documentos falsos, até de identificação pessoal - ou eram usados no seu interesse e para os seus fins.
A única referência concreta ao veículo Chevrolet Corvet está no ponto 87 da matéria de facto, conjugado com o artigo 47, mas neste último sem expressa menção daquele veículo.
O acórdão é omisso na fundamentação da declaração de perda desse veículo, limitando-se a citar as disposições legais referidas. Interessa pouco especular sobre quem era o proprietário, aspecto que não vem esclarecido na matéria de facto. E este Supremo
Tribunal não pode substituir-se ao tribunal da instância para suprir deficiências de facto. E estas deficiências não nos permitem considerar verificados os requisitos da segunda fase do n. 1 do artigo 35 do
Decreto-Lei 15/93 "quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso puserem em risco a segurança das pessoas ou a ordem pública" ou "oferecerem sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes".
No primeiro caso, é excessivo admitir que uma viatura automóvel possa pôr em perigo a segurança das pessoas ou da ordem pública. E no segundo, não há factos que autorizem um juízo de probalidade sobre o "risco" ai referido.
Dadas as penas aplicadas aos arguidos e a expulsão dos mesmos, não é provável que haja "sério risco" de servir para cometimento de novos crimes até porque nada se apurou a respeito do Henry Peralta (quem é, o que faz, como é que o carro foi cedido aos membros da associação criminosa, etc.) Também do lado do artigo 36 não há factos que possam preencher a respectiva previsão, nomeadamente que esse automóvel tenha sido "adquirido" pelos agentes do crime. Procede, por isso, o recurso.
Já é menos líquida a situação dos bens cuja entrega vem reinvindicada pela recorrente Valéria Urba. Sabe-se apenas que o "Mercedes 500" está registado em seu nome e que ela era "companheira" do arguido Emílio e que permitia as deslocações rápidas de uns locais para outros (ponto 87).
Todavia não lhe foi imputada qualquer forma de comparticipação nos crimes. É também pouco para podermos ter como certo que foi "adquirido" pelos arguidos ou que ofereça "sérios riscos" de ser utilizado para o cometimento de novos crimes, por razões idênticas às expendidas a propósito de outro automóvel.
Os restantes bens apreendidos à recorrente estão referidos, no acórdão, a "conhecimentos de depósito", sem especificação.
A folha 55, há referência a uma guia n. 184/92 de depósito de 1047500 escudos, pertencente a Valéria Urba e a folha 552, outra guia, n. 185/92 de 23952000 liras,
33000 pesetas e 120 francos franceses. A folha 1747 há uma guia, n. 9/83, de depósito de relógios, medalhas de metal amarelo e uma referência a outras guias (ns. 186,
186-A e 188/92).
Também não vem fundamentada a decisão de perda destes valores, para além da citação das disposições legais.
Em matéria de facto, apenas de relevante se provou que
"os outros arguidos, bem como a companheira do arguido
Emílio, tinham na sua posse quantias em dinheiro português e estrangeiro que lhes foram apreendidos e depositados à ordem dos outros (folhas 549 a 552 - ponto n. 92).
Temos convir que é muito pouco para nos convencermos de que essas quantias, no que respeita à recorrente
Valéria, tenham sido directamente adquiridas através da infracção ou estivessem destinadas a servir para a prática de crimes.
Daí que proceda também o seu recurso.
XVI. A questão do perdão da Lei 15/94 de 11 de Maio.
Diz o Ministério Público, que limitou o recurso a esta questão, que ao perdão se opõe o artigo 9, n. 3, alínea c) daquela Lei, visto que os arguidos Emílio, Guglielmo e David foram condenados em penas superiores a sete anos de prisão (pelo crime de associação criminosa) e que, além disso, praticaram factos integradores do crime de tráfico de estupefacientes através da associação, factos esses constantes da acusação e da pronúncia.
Quanto ao arguido Emílio foram declarados perdoados 2 anos de prisão e a totalidade da pena de multa e correspondente prisão alternativa.
Relativamente ao Guglielmo, o perdão foi de 1 ano e seis meses abrangendo também a totalidade da multa.
Idem, quanto ao David.
O acórdão invoca, a propósito, o artigo 8, n. 1, alíneas b) e d) da referida lei, começando por dizer que os crimes foram praticados antes de 16 de Março de
1994.
É defensável a teoria de que, nos casos de associação criminosa para a prática de determinados crimes, sejam os autores dos crimes praticados as pessoas por tal forma associadas (Acórdão S.T.J. de 30 de Junho de
1994, acima citado).
No entanto, temos de considerar que a este resultado só pode chegar-se se a matéria de facto apurada fornecer elementos seguros da concrecta participação de uma ou mais pessoas que constituem a organização.
Não é razoável partir de uma presunção de que todos os membros da associação ou do grupo, só por o serem, tenham de ser responsabilizados por todos os crimes em concreto para cuja prática se constituiu a mesma associação ou o mesmo grupo.
Podem ocorrer circunstâncias que contrariem uma tal presunção, as mais variadas.
É necessário um mínimo, em terreno fáctico, que permita definir a co-autoria no que toca a esses crimes, que eventualmente constituem o desenvolvimento do plano ou do programa que presidiu à constituição da realidade ou unidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros.
Ora se, como acima se disse, há suficiência, em terreno fáctico, para se poder concluir pela existência de todos os elementos integrantes da figura da associação criminosa, já o mesmo não acontece com a participação no concreto crime de tráfico de estupefacientes a que se refere o ponto 4 do elenco dos factos provados
(operação de transporte de haxixe entre Fevereiro e
Abril de 1992). Ai se diz simplesmente que foi a "organização" quem levou a cabo essa operação, sem individualização dos agentes, pessoas singulares, que concretamente participaram no facto, o que é manifestamente pouco para que possa formar-se um juízo de certeza relativamente à responsabilidade individual.
É certo que se provou que o "grupo" se dedicava ao tráfico de haxixe desde Marrocos, a desembarcar na costa portuguesa com destino a Itália e que o arguido
Emílio D'Giovine designava as funções a exercer por cada um dos demais e estes cumpriam essas funções
(pontos 1 a 3, ibidem). Mas tudo isso é, a nosso ver, insuficiente para imputar individualmente, em concreto, a cada um dos membros do "grupo", o referido crime. É uma hipótese credível mas cuja verificação não dispensa outros desenvolvimentos na ordem dos factos.
Por razões similares todos os elementos do grupo teriam de ser responsabilizados pelos crimes de falsificação e uso de documentos de identificação.
Deste modo, temos de reconhecer a prudência dos julgadores da primeira instância, revelada na não imputação geral do crime de tráfico em causa. Para o tribunal, este facto nada mais constituiu do que um dos aspectos da actividade da "organização" ou "do grupo", com interesse para a configuração do crime de associação criminosa.
Por conseguinte, não se trata aqui de um fenómeno consunção ou de absorção, como se defende na contra-motivação do recorrido Domenico Festa, mas simplesmente de uma impossibilidade, em sede factológica, de aquisição de um juízo de certeza que permita a este Supremo Tribunal divisar que arguido ou arguidos, em concreto, participaram no facto.
Por isso mesmo, também não vemos que tenha sido violado o artigo 30 do Código Penal, como quer o Magistrado recorrente.
Aliás, na sua motivação, começa por dizer que, pessoalmente, está de acordo com a fundamentação da sentença no que toca à aplicação do perdão.
E depreende-se da mesma motivação que o recurso é limitado a este ponto da mesma sentença, não tendo por objecto específico a questão da imputação individual do crime de tráfico de estupefacientes. Quer isto dizer que não discute propriamente a decisão no tocante à não condenação dos arguidos por esse crime, apenas invoca aquele crime para questionar a legalidade da aplicação do perdão, enquanto razão obstaculizante deste.
Em boa lógica, deveria ter começado por impugnar a decisão recorrida na parte em que não condenou os arguidos pelo crime de tráfico de estupefacientes e, para a hipótese de obter provimento, questionar então o decidido quanto ao perdão, só dessa maneira colocando os recorridos em posição de poderem contradizer os seus argumentos e facultar a este Supremo Tribunal uma apreciação conjunta e ponderada da questão de fundo, cuja resolução é indispensável, porque seu pressuposto,
à análise da legalidade do dispositivo na parte em que aplicou a Lei n. 15/94.
Dito de outra maneira, preferindo discutir a questão jurídica do perdão, temos de convir em que o recurso não tem por objecto específico aquela questão de fundo e está, por isso, desprovido da base sólida indispensável à análise do tema da legalidade do perdão.
Em suma, a questão da não-condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes é um argumento e não um tema concretamente suscitado no recurso enquanto matéria específica de impugnação da decisão recorrida.
Por isso, tem de improceder o recurso.
XVII. Como resulta do relatado em I, folhas 49 a 55, os recursos interlocutórios versam sobre matérias que depois foram também objecto dos recursos da decisão final e que já foram apreciadas. Está por isso, prejudicado o exame desses recursos, face às respostas dadas a idênticas questões no quadro de análise e de apreciação dos recursos da decisão final. Aliás, teriam de improceder.
E quanto ao recurso do despacho que ordenou a expedição da carta rogatória às autoridades espanholas, os arguidos Federico Lorenzo, Guglielmo e David Re nem sequer motivaram e o arguido Gianni Marra também não
(este arguido veio a ser absolvido).
XVIII. Relativamente às penas principais e sua medida, apenas o arguido David Re, questionou a aplicada pelo crime do artigo 228, n. 1, alínea c) e 2 do Código
Penal, propondo que lhe não seja aplicada pena superior a 1 ano pelo uso de documento falso, atentos os critérios de determinação e o princípio da reinserção social.
O acórdão recorrido considerou-o autor material, em concurso real e na forma continuada, do crime de falsificação de documento agravado previsto e punido pelo referido artigo e com referência aos artigos 30, n. 2 e 78, n. 5, na pena de três anos e seis meses de prisão e na multa de setenta e cinco dias à taxa diária de 5000 escudos.
Sendo a moldura punitiva abstracta, a de prisão de 1 a
4 anos e multa até 90 dias, não vemos que a pena concretamente aplicada seja injusta ou desporporcionada, tendo em conta a intensidade da culpa
(dolosa) e o elevado grau da ilicitude e as exigências de prevenção de futuros crimes.
Nada em seu favor se provou no tocante aos sentimentos manifestados na preparação do crime nem quanto os fins ou motivos determinantes: o uso dos documentos referidos tinha como objectivo, censurável, de se subtrair à acção da justiça e assegurar a sua impunidade, não hesitando em servir-se desses documentos para ocultar a sua verdadeira identidade mesmo perante a autoridade judiciária.
As condições pessoais e a sua situação económica, não tendo sido apuradas com precisão, não têm qualquer relevo atenuativo, considerando o tipo de crime de que se trata.
Nada fez para reparar as consequências do crime nem a conduta anterior e posterior ao crime é de molde a conduzir a um juízo atenuativo.
E o que se conhece do seu passado só pode conduzir a um juízo sobre a personalidade altamente censurável.
Assim, foram observados correctamente os critérios dosimétricos do artigo 72 do Código Penal.
Quanto ao objectivo da reinserção social agora expressamente referido como finalidade da pena (artigo
40 do mesmo Código, versão de 1995) tem obviamente de ser considerado em confronto com a outra finalidade, de protecção de bens jurídicos. Não pode ser estimado como preponderante, acrescendo que o bem jurídico protegido na norma incriminadora é muito valioso e, no caso concreto, foi ofendido em alto grau, face ao comportamento do arguido e motivos que o determinaram, como resulta da matéria de facto provada.
Daí que o seu recurso também tenha de improceder nesta parte.
Posteriormente ao tempo dos factos, entrou em vigor a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.
48/95, de 15 de Março.
A disposição incriminadora é agora o artigo 256, ns. 1 e 3 do artigo 256.
Mas a pena correspondente foi elevada no limite máximo para 5 anos, embora preveja a multa alternativa de 60 a
600 dias.
E como não há razões para se optar por esta última à luz do disposto no artigo 70 do Código Penal - por não se ver que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição temos de concluir que o regime concretamente mais favorável era o da lei em vigor no momento da prática do facto, na perspectiva da aplicação do n. 4 do artigo 2 do mesmo Código.
Estas considerações valem, mutatis mutandis, para o arguido Guglielmo Di Giovine, também condenado pelo crime de falsificação. Aliás, as multas complementares
(e são alternativas como actualmente), encontram-se perdoadas na totalidade.
No que concerne ao crime de associação criminosa, já o acórdão recorrido se ocupou do tema da sucessão de leis penais no tempo e o decidido não constitui objecto dos recursos. Para além disso não nos merece censura.
XIX Pelo exposto, decidem: a) Negar provimento aos recursos dos arguidos Emílio Di
Giovine, Guglielmo Di Giovine, David Giuseppe Re
Domenico Pierfrancesco Festa, Antonino Palamares e
Isidro Bandeira Carvalho Martins; b) Considerar prejudicado o conhecimento dos recursos interlocutórios dos arguidos Guglielmo Di Giovine,
Federico Lorenzo e David Re, interpostos do despacho de folha 3936, volume XVII, que declarou constitucional o artigo 342 do Código de Processo Penal, admitidos pelo despacho de folha 3943, volume XVII; c) Considerar prejudicado o conhecimento dos recursos interlocutório dos arguidos Emílio Di Giovine, Isidro
Martins e Domenico Festa interpostos do despacho de folha 4199, volume XVIII, que ordenou a emissão de carta rogatória às autoridades espanholas; e não tomou conhecimento dos recursos, também interpostos desse despacho, pelos arguidos Gianni Marra, Federico
Lorenzo, Guglielmo Di Giovine e David Re por falta de motivação; d) Negar provimento ao recurso do Ministério Público; e) Conceder provimento aos recursos interpostos por
Henry Peralta e Valéria Urba, revogando nessa parte o acórdão recorrido; f) Manter, quanto ao restante, o dispositivo da decisão impugnada.
Pelo decaimento, pagarão os arguidos Emílio Di Giovine,
Guglielmo Di Giovine, David Giuseppe Re, Domenico
Festa, Antonino Palamara e Isidro Carvalho Martins, cada um 40 UCS de taxa de justiça e o arguido Federico
Lourenzo 10 UCS de taxa de justiça; e todos, solidariamente, as custas que couberem, fixando-se a procuradoria em 1/3.
Fixam-se em 15000 escudos os honorários do Senhor
Defensor nomeado em audiência.
Lisboa, 10 de Julho de 1996
Lopes Rocha,
Augusto Alves,
Andrade Saraiva,
Leonardo Dias.
Decisão impugnada: 14 de Julho de 1995.