Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122/13.8TELSB.L1-D.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPEDIMENTOS
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
Data do Acordão: 07/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I. É facto notório, por ser do conhecimento geral por via da publicação oficial dos respetivos despachos de nomeação, que o Requerente da escusa foi nomeado pelo ... de então, em outubro de 200..., Director ... e, em fevereiro de 20..., Secretário ....

II. À confiança pessoal e política manifestada nas nomeações, acrescia a legal dependência hierárquica que daí resultava perante quem o nomeou.

III. Como o Requerente alega, durante todos esses anos, “por força das referidas funções, privou institucionalmente e em eventos sociais” com o Requerente.

IV. Apesar de já terem decorrido alguns anos sobre tais contactos, dado o forte escrutínio social a que a realização da justiça e a ação dos seus incumbentes estão sujeitas, não será certamente difícil à opinião pública e à opinião publicada fazerem uma associação entre o ora Requerente nas funções de Juiz Desembargador e o ... na qualidade de recorrido num processo em recurso na Relação ..., e a cujo julgamento em Conferência, coube àquele Magistrado Judicial presidir.

V. Assim, do ponto de vista objetivo, de um cidadão médio, a participação do ora Juiz Desembargador Requerente na presidência da Conferência que vai julgar o recurso, é suscetível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

VI. Pelo que se deve deferir o seu pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO

I.1. O Ex.mo Juiz Desembargador AA, a exercer funções no Tribunal da Relação ..., ... Secção, veio requerer a sua escusa de intervir no proc. n.º 122/13.8TELSB.L1, concretamente “presidir à Conferência”, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º n.ºs 1 e 4, 44.º e 45.º, do Código de Processo Penal, apresentando para o efeito requerimento datado de 10/07/2023, com o seguinte teor:

“No processo nº 122/13.8TELSB.L1, por impedimento da Senhora Juíza Desembargadora Presidente da ... Secção, o signatário, na qualidade de seu substituto legal, tem que presidir à Conferência em relação ao referido processo;

É recorrido no referido processo o ..., BB;

O signatário foi nomeado pelo recorrente, na qualidade de ...:

- Em Outubro de 200..., Director ... ...;

- Em Fevereiro de 20..., Secretário ...;

No exercício das referidas funções, o signatário dependia hierarquicamente do recorrente enquanto ...;

Durante o referido período o signatário, por força das referidas funções, privou institucionalmente e em eventos sociais com o recorrente, não tendo, contudo, com o mesmo, qualquer relação de amizade;

Estes factos podem criar, do ponto de vista objectivo, suspeições e gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade;

Apesar do que fica dito, do ponto de vista subjectivo, o signatário não duvida da sua capacidade para presidir, com imparcialidade e isenção, à referida Conferência; (…).”[1].

I.2. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS

Atento o teor da certidão do processo e da petição de escusa do Ex.mo Juiz Desembargador AA consideramos assente que:

O ora requerente foi nomeado, por BB, então ... e nessa qualidade, Diretor Geral ... ..., em outubro de 200..., e Secretário ..., em fevereiro de 20....

No exercício dessas suas funções, durante aquele período, dependia hierarquicamente do então ... e privou com este institucionalmente e em eventos sociais.

No processo de recurso penal a que lhe cabe presidir à Conferência na Relação ..., é recorrido o então ....

Por impedimento da Ex.ma Juíza Desembargadora Presidente da ... Secção, cabe ao aqui Requerente, na qualidade de seu substituto legal, presidir à Conferência que julga o recurso.

II.2. DIREITO

O presente pedido, com os mesmos fundamentos, é igual àquele que foi decidido por este Supremo Tribunal de Justiça em 09/03/2023, no processo nº 122/13.8TELSB-BQ.L1-B.S1, CC, pelo que, na correção e acerto da fundamentação e decisão, aqui iremos seguir de perto o dito aresto[2].  

Citando-o:

“A independência dos tribunais, consagrada constitucionalmente no art.203.º, implicando a sujeição dos juízes apenas à lei, bem como a inamovibilidade e a irresponsabilidade, com as exceções previstas na lei, é complementada com a imparcialidade dos juízes, pois só assim fica assegurada a confiança geral na objetividade da jurisdição.

O princípio da imparcialidade, na realização da justiça, postulando uma intervenção equidistante, desprendida e descomprometida, repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada.

A imparcialidade implica, pois, que o juiz não seja parte no conflito ou tenha nele um interesse pessoal em virtude de uma ligação a algum dos sujeitos processuais nele envolvidos.

Como assertivamente esclarece o Prof. Cavaleiro de Ferreira não importa que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial, mas sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. É este o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar para voluntariamente declarar a sua suspeição, ou seja, deve declarar a sua suspeição se admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem o fundamento de suspeição.

Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem[3], aplicável na nossa ordem interna por força do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, consagra a imparcialidade do juiz, como exigência fundamental de um processo equitativo, ao estabelecer no seu art.6.º, nº 1, que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei...».

O que está em jogo é a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar no público e, acima de tudo, nos sujeitos processuais.

As garantias de imparcialidade do juiz, geradoras de abstenção de julgar, são estruturadas no art.39.º e seguintes do Código de Processo Penal, de três modos:

- impedimentos, taxativamente enumerados na lei;

- recusa, desencadeada pelo Ministério Público, arguido, assistente ou pelas partes civis; e

- escusa, desencadeada pelo próprio juiz.

Os impedimentos verificam-se por força da própria lei e os factos que os determinam, encontram-se tipificados nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal.

Fora dos casos dos impedimentos, complementarmente, como proteção da garantia da imparcialidade do juiz, prevê a lei a categoria das suspeições, que podem assumir a natureza de recusas e escusas.

Sobre recusas e escusas estatui o art.43.º do Código de Processo Penal, nomeadamente, o seguinte:

«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.40.º.

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.».

Não estando o juiz autorizado a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante, conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo – uma suspeição que a lei qualifica como escusa (art.43.º, n.º 4 do C.P.P.).

Na articulação entre os princípios do juiz natural - que encontra expressão no art.32.º, n.º 9 da C.R.P.: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» - e da imparcialidade do juiz (e do tribunal), aquele princípio deve ceder quando existam circunstâncias sérias, no sentido de ponderosas, cuja verificação não se coaduna com a leviandade de um juízo, e graves, porque de forte relevo na formulação do juízo de desconfiança.

No dizer do acórdão do STJ de 5 de abril de 2000, as circunstâncias muito rígidas e bem definidas, ou seja, sérias e graves, devem ser “…irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.”.

No entanto, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade do juiz peticionante da escusa, bastando, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades.

O dispositivo do n.º 2 do art.43.º do C.P.P. foi introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, solucionando dúvidas anteriormente suscitadas a propósito da intervenção do juiz de instrução no inquérito.

Os fundamentos de recusa aí enunciados, como resulta do seu contexto, devem ser interpretados nos termos nº 1 do mesmo preceito, isto é, só são caso de recusa se dos mesmos resultar em concreto motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Na interpretação deste art.43.º do C.P.P. importa atender ainda ao art.6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estatui que o direito a que a causa seja decidida por um tribunal imparcial.

Tem sido uma constante da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjetivos e objetivos.

Jurisprudência também seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, nos acórdãos de 6 de setembro de 2013 (proc. n.º 3065/06) e de 13 de fevereiro de 2013 (proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1).

No respeitante ao primeiro critério, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima; no segundo, se independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade.

E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a ótica do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objetivamente justificadas.

O que conta é a natureza e extensão das medidas tomadas pelo juiz.

É necessário indicar, com a devida precisão, factos verificáveis que autorizem a suspeita.

O TEDH, como o Supremo Tribunal de Justiça, têm entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário.

Em suma, a lei confere ao juiz a faculdade de pedir escusa quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se, duvidar-se, da sua imparcialidade, mas não basta um convencimento subjetivo por parte do juiz para que seja deferida a escusa, é objetivamente que, na escusa, tem de ser considerada a seriedade e gravidade do motivo de suspeição invocado, causador da desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

De um modo geral, pode dizer-se que a causa da suspeição há de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo.

Enquanto os motivos de impedimento mencionados nos artigos 39.º e 40.º do C.P.P. afetam sempre a imparcialidade do juiz, que deve declará-lo imediatamente nos autos por despacho irrecorrível, ficando-lhe vedada a intervenção no processo, no caso de escusa tudo depende das concretas razões de suspeição invocadas pelo juiz que admite o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade no processo.”

Releve-se também aqui que da Lei-Quadro do ..., aprovada pela Lei n.º 30/84, de … de setembro, alterada, sucessivamente, pelas Leis n.ºs 4/95, de 21/02, 15/96, de 30/04, 75-A/97, de 22/07, 4/2004, de 06/11 e 4/2014, de 13/08, resulta que o ... ... e, posteriormente, o ..., dependem diretamente do ..., que os nomeia.

E, nos termos da Lei Orgânica n.º 4/2004, de 6 de novembro, que alterou aquela Lei-Quadro, «o Secretário-Geral é equiparado, para todos os efeitos legais, exceto os relativos à sua nomeação e exoneração, a Secretário de Estado» (art.19.º, n.º1).

Por sua vez, a Lei n.º 9/2007, de 19 de Fevereiro, que estabeleceu a orgânica do ..., do ... (...) e do ... ..., consigna também que «o Secretário-Geral é um órgão do DD diretamente dependente do ... e equiparado para todos os efeitos legais, exceto os relativos à sua nomeação e exoneração, a secretário de Estado» (art.2.º, n.º1, alínea a).

A atividade desenvolvida pelo ... e, posteriormente, pelo ..., nos termos da legislação então em vigor, embora de natureza pública, pressupunha a existência de relações de confiança política e mesmo pessoal, embora estas não tenham de passar por relações de amizade.

Também neste caso se pode repetir que, apesar de já terem decorrido alguns anos desde que o ora Requerente privou institucionalmente e participou em eventos sociais com o ora recorrido e ..., dado o forte escrutínio social a que a realização da justiça e a ação dos seus incumbentes estão sujeitas, não será certamente difícil à opinião pública e à opinião publicada fazerem uma associação entre o ora Requerente nas funções de Juiz Desembargador e o ... na qualidade de recorrido num processo de recurso que corre na Relação ..., e a cujo julgamento em Conferência, coube àquele Magistrado Judicial presidir.

Que a sociedade, particularmente através daqueles meios sociais, segue os processos judiciais do ... é uma afirmação que também não é contestável.

Sabendo-se que o ora Requerente da escusa foi nomeado pelo ..., para cargos públicos, por nele ter confiança política, que dele já dependeu hierarquicamente, privando os dois institucionalmente e em eventos sociais durante vários anos, do ponto de vista objetivo, de um cidadão médio, a participação do ora Juiz Desembargador Requerente na presidência da Conferência que vai julgar o recurso, é suscetível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Embora, em termos subjetivos, o requerente ofereça garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima, na medida em que afirma “… que não duvida da sua capacidade para presidir, com imparcialidade e isenção, à referida Conferência”, em termos objetivos, a conduta do Ex.mo Desembargador não fica livre de suspeição, de perda da equidistância, que deve caracterizar o exercício da função judicial de presidir à Conferência.

Ou seja, existe no caso concreto, na medição de um cidadão médio, um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do requerente da escusa na participação, como Juiz Desembargador, no julgamento do recurso do processo n.º 122/13.8TELSB.L1 que corre no Tribunal da Relação ....

Como tal, deve a presente escusa ser deferida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4 e 44.º do Código de Processo Penal.

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o pedido de escusa do Sr Juiz Desembargador AA de intervir no citado processo n.º 122/13.8TELSB.L1, que corre no Tribunal da Relação ....

Sem custas.


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Lisboa, 13 de Julho de 2023

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira Adjunta)

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[1] Certamente por desatenção no copy paste o Requerente depois de ter afirmado que o então ... é recorrido no processo passa depois a identifica-lo processualmente como recorrente. Para o caso decidendo a solução seria mesma para o caso de o então ... ser recorrente.
[2] No processo de escusa que sob o nº 16017/22.... correu termos neste Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 06/07/2023, EE, foi também, com os mesmos fundamentos, deferido o pedido de escusa do mesmo Desembargador para intervir num processo em que também era recorrente o então ....
[3] Nota do aqui Relator: agora Convenção Europeia dos Direitos Humanos, ex vi da L. 45/2019, de 27/06.