Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ORLANDO DOS SANTOS NASCIMENTO | ||
Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MATÉRIA DE FACTO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO PODERES DA RELAÇÃO RENOVAÇÃO DA PROVA DIREITO ADJETIVO UNIÃO DE FACTO PRESSUPOSTOS RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CONJUGES VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES ECONOMIA COMUM PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 04/23/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | Preenche os pressupostos da união de facto definida pelo n.º 2, do art.º 1.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, a factualidade segundo a qual, entre janeiro e 2017 e 10 de junho de 2019 o Recorrido residiu em permanência na casa da de cujus, relacionando-se publicamente como marido e mulher e assim sendo tratados pelos vizinhos, tendo-lhe feito companhia no hospital até à data da morte. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. RELATÓRIO. CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, I.P, propôs contra AA esta ação declarativa de simples apreciação negativa, com processo comum, pedindo que declare não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre o R e a ex beneficiária BB, falecida a ... de junho de 2019, com fundamento, em síntese, em que, tendo o R requerido pensão de sobrevivência, juntando atestado da junta de freguesia para comprovar a convivência conjugal maritalmente há mais de 4 anos, a filha da de cujus informou que a mãe e o requerente não chegaram a constituir união de facto. Citado, contestou o R, dizendo que manteve relacionamento amoroso com a de cujus desde 1999, tendo vivido com a mesma em comunhão de leito e habitação durante dois anos e meio antes do seu falecimento, que lhe prestou assistência e companhia quando esteve internada no hospital, que passaram férias juntos e que a partir de 2016, passaram a viver em permanência. * Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a ação procedente, declarando não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre o R e a ex beneficiária à data da morte desta. * Inconformado com a sentença, o R dela interpôs recurso, recebido como apelação, o qual foi julgado procedente, tendo o Acórdão da Relação revogado a sentença e julgado a ação improcedente. * Inconformada, a A interpôs a presente revista, pedindo a revogação do acórdão e a procedência da ação, formulando as seguintes conclusões: 1ª O presente recurso é admissível nos termos do nº1 do artigo 671º do Código de Processo Civil, uma vez que das decisões proferidas pelos Tribunais da Relação, que conheçam do mérito da causa, como é o caso, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça. 2ª O recurso tem como fundamento, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 674º do Código de Processo Civil, a violação da lei substantiva, a saber os artigos 1º e 3 da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, e a errada aplicação da lei de processo ( nºs 1 e 2 do artigo 662º do CPC). 3ª A Relação de Lisboa julgou mal a matéria de facto e também a matéria de direito. 4ª A Relação deu como provado um facto – que o Réu, a partir de Janeiro de 2017, passou a residir na casa da BB – em relação ao qual não foi feita qualquer prova, o que, à luz do disposto no nº3 do artigo 674º do CPC, por maioria de razão, justifica a apreciação do STJ. 5ª Um facto só pode dar-se como provado no confronto com a prova produzida, incluindo as declarações de parte. 6ª Não se pode dar como provado um facto só porque uma das partes o invocou. A Relação deu como provado um facto só porque o Réu o invocou na contestação aperfeiçoada. 7ª Nos termos do nº 1 do artigo 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 8ª A Relação tem o poder/dever de reapreciar os meios de prova sujeitos à livre apreciação, mas isso não impede que se questione o modo como exerce esse poder/ dever, devendo o STJ sindicar essa utilização quando haja abuso. 9ª A Relação só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser uma decisão diversa. Ou seja, ainda que tenha uma convicção diferente, a Relação não deve alterar os factos se a decisão da primeira instância for racional, lógica, possível e estiver correctamente motivada. 10ª No artigo 662º, o legislador optou pelo verbo “impor” e não pelos verbos “permitir” ou “admitir”. 11ª No caso em apreço, a prova até podia permitir/admitir uma decisão diferente sobre a matéria de facto, mas decididamente não impunha/obrigava uma decisão diferente. 12ª Na decisão sobre a matéria de facto, o Juiz do Juízo Local Cível da ..., não se limitou a enumerar os factos provados e não provados, fez referência a que concreta prova lançou mão para considerar cada facto como provado ou não. 13ª A fundamentação da decisão da matéria de facto foi clara, lógica, a decisão é possível e o magistrado teve o cuidado de especificar detalhadamente os meios de prova que foram decisivos para a formação da sua convicção. 14ª Em todo o caso, se, não obstante a análise da prova, a Relação tinha dúvidas fundadas sobre a verdade material dos factos, em vez da decisão proferida, deveria ter lançado mão do nº 2 do artigo 662º do CPC e ordenar a renovação da prova. 15ª Ainda que se admita a correcção da decisão sobe a matéria de facto, nunca o Tribunal da Relação podia declarar a procedência do recurso. 16ª A união de facto, tal como o casamento, exige uma plena comunhão de vida (artigo 1577º do Código Civil) que se traduz na comunhão de leito, habitação e mesa. 17ª A comunhão de mesa traduz a obrigação de partilhar os recursos económicos, de contribuir para os encargos da vida em comum. A união de facto pressupõe assim uma comunhão que se traduz numa partilha integrada de vida, não ocasional, na existência de projetos de vida comuns, duradouros, numa entreajuda e partilha de recursos. 18ª Nos autos, em face dos factos também dados como provados pela Relação de Lisboa, ficou provada a comunhão de habitação e leito, mas não ficou provada a comunhão de mesa, já que se deu como não provado que “AA e BB contribuíam para as despesas comuns do agregado, da casa onde viviam, partilhavam os rendimentos e despesas” e que “Tomavam decisões conjuntas”. 16ª Não tendo ficado provada existência de uma economia comum entre o Réus e a BB, não podemos dizer que entre ambos existia uma plena comunhão de vida (neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ proferido no processo nº 6380/16.9T8CBR.C1.S1). 17ª O Acórdão recorrido violou os seguintes preceitos normativos: artigo 342º e 343º do CC, alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 674º do Código de Processo Civil. nºs 1 e 2 do artigo 662º do CPC. Nestes termos, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e revogada a douta decisão recorrida, com as legais consequências. * O R/recorrido contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido. * 2. FUNDAMENTAÇÃO. A) OS FACTOS. O acórdão recorrido julgou: A.1. Provados os seguintes factos: 1- BB, filha de CC e DD, nasceu no dia ... de ... de 1938 e faleceu no dia ... de junho de 2019, no estado civil de viúva de EE; 2- BB casou civilmente com EE a ... de ... de 1964, tendo o casamento se dissolvido por óbito do cônjuge marido a ... de ... de 1990. Deixou duas filhas: FF e GG; 3- AA nasceu no dia ... de ... de 1929, filho de HH e II; 4- AA casou civilmente com JJ a ... de ... de 1954, tendo o casamento se dissolvido por óbito do cônjuge mulher a ... de ... de 2014; 5- BB era subscritora n.º ....26 da Caixa Geral de Aposentações; 6- Em consequência do falecimento de BB o réu AA requereu junto da autora, em 5 de julho de 2019, a atribuição de pensão de sobrevivência na qualidade de “unido de facto” da falecida. 7- Para tanto, o réu juntou um atestado da Junta de Freguesia de ..., datado de ... de ... de 2019, onde declara que, em relação a AA, “Confirma-se por prova testemunhal que o requerente vivia maritalmente com BB há mais de 4 anos, nesta Freguesia, na Praceta ... ... ..., até à data do seu falecimento ocorrido a ... .06.2019. O presente atestado destina-se exclusivamente para efeitos de confirmação de Residência para ser entregue na Agência Funerária .... (…) 8- Em data próxima do ano de 1997, o réu AA e BB conheceram e começaram a relacionar-se afetiva e sexualmente como namorados; 9- Ocasionalmente, com frequência não concretamente apurada, tomavam refeições juntos, passeavam juntos e ele pernoitava na casa dela; 10- Conviviam um com o outro e relacionavam-se com amigos e familiares de um e de outro e eram reputados como namorados; 11- AA tinha uma boa relação com os familiares de BB; 12- Passavam férias juntos, reservando o mesmo quarto de hotel; 13- Não obstante, BB vivia na sua casa na ... e AA vivia na sua casa em ..., onde tinha animais e uma horta; 14- Com a morte da mulher, no ano de 2014, AA e BB passaram a estar mais tempo um com o outro. 15- Quando BB ficou doente e hospitalizada, AA fez-lhe companhia no hospital até á sua morte. 16- AA passou a residir em permanência na casa de BB na Praceta ..., na ..., a partir de janeiro de 2017, e ali permaneceu até à morte desta última. 17- O relacionamento como se de marido e mulher se tratassem era publicamente conhecido, sendo assim tratados por todos vizinhos que com eles se relacionavam. A. 2. Não provados os seguintes factos: a) O R colocou na residência de BB as suas coisas pessoais. b) AA e BB contribuíam para as despesas comuns do agregado, da casa onde viviam, partilhavam os rendimentos e despesas; c) Tomavam decisões conjuntas; d) AA recebia correspondência na casa de BB; e) AA declarou a sua residência junto de entidades oficiais na morada referida em a). f) Era AA quem suportava o custo das viagens de férias. * B) O DIREITO APLICÁVEL. O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil. Atentas as conclusões da revista, acima descritas, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pela Recorrente consistem em saber se a) o Tribunal da Relação não podia declarar provado que o Réu, a partir de Janeiro de 2017, passou a residir na casa da BB, porque a Relação só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser uma decisão diversa, ou seja, ainda que tenha uma convicção diferente, a Relação não deve alterar os factos se a decisão da primeira instância for racional, lógica, possível e estiver corretamente motivada (conclusões 1.ª a 13.ª), b) se não obstante a análise da prova a Relação tinha dúvidas fundadas sobre a verdade material dos factos, em vez da decisão proferida, deveria ter lançado mão do n.º 2 do artigo 662.º do C. P. Civil e ordenar a renovação da prova (conclusão 14.ª), c) o acórdão recorrido deve ser revogado e a ação proceder porque tendo ficado provada a comunhão de habitação e leito, não ficou provada a comunhão de mesa, inexistindo uma plena comunhão de vida, pelo que inexiste união de facto, tendo o acórdão recorrido violado os art.ºs 1.º e 3.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (conclusões 2.ª e 16.ª e segts.). Conhecendo. 1) Quanto à primeira questão, a saber, se o Tribunal da Relação não podia declarar provado que o Réu, a partir de Janeiro de 2017, passou a residir na casa da BB porque a Relação só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser uma decisão diversa, ou seja, ainda que tenha uma convicção diferente, a Relação não deve alterar os factos se a decisão da primeira instância for racional, lógica, possível e estiver corretamente motivada. Na apreciação desta questão importa, antes de mais, precisar que, como dispõe o art.º 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) este Supremo Tribunal de Justiça, em regra, só julga de direito e que, no que respeita à decisão da Relação no âmbito da apreciação da decisão da primeira instância em matéria de facto, o seu conhecimento no âmbito do recurso de revista se limita a sindicar o respeito pela Relação das normas de direito probatório aplicáveis, como decorre do disposto nos art.ºs 674.º, n.º 1, al. b) e n.º 3 e 682.º, n.º 2, do C. P. Civil1. A Recorrente imputa ao acórdão recorrido a violação do disposto no n.º 1, do art.º 662.º, do C. P. Civil, fazendo-o na pressuposição de que este preceito processual consagra um segundo grau de jurisdição em matéria de facto que assenta na persistência da decisão da primeira instância, a não ser que a mesma sofra na sua construção de vícios de ilogicidade, irracionalidade e falta de fundamentação, quando é certo que a doutrina e a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça se têm uniformemente pronunciado em sentido contrário, a saber, que na apreciação da impugnação da decisão da primeira instância em matéria de facto, o Tribunal da Relação deve apreciar o conjunto dos elementos e prova, formar a sua própria convicção e decidir em conformidade, confirmando ou alterando, justificadamente, essa mesma decisão. Esse paradigma, de pleno segundo grau de jurisdição em matéria de facto consta, aliás, da Proposta de Lei n.º 113/XII, que depois de aprovada veio a constituir a Lei n.º 41/3013, de 26 de agosto, a qual expressamente se reporta à convicção que deve ser formada pela Relação, como decorre do seguinte excerto “…cuidou-se de reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios - que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória -, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material. Com efeito, se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para a Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade, mesmo oficiosamente, de ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.”. E como refere Abrantes Geraldes,2 “… a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência”. Este Supremo Tribunal de Justiça instituiu esta mesma orientação, decidindo univocamente no sentido de que, no exercício do poder/dever que lhe é conferido pelo n.º 1, do art.º 662.º, do C. P. Civil, a Relação deve formar a sua própria convicção3. Como exarado na fundamentação do recente acórdão deste Supremo Tribunal de 27-02-20254 “…o Tribunal da Relação deve “formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”. No mesmo sentido, também, o acórdão deste Supremo Tribunal de 13-03-20255 expende que “…o regime do art. 662.º do CPC estabelece um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da prova produzida, sendo imposto ao Tribunal da Relação, por força da previsão do art. 607.º, n.º 4, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC, que aprecie criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação de modo a formar a sua própria convicção.”. Ora, compulsado o acórdão recorrido constatamos que o mesmo procedeu a uma análise exaustiva da prova produzida na audiência de julgamento, confrontou-a com a análise que também dela fez o tribunal de primeira instância e concluiu pela alteração parcial das als. a) e g) dos factos não provados, declarando provados os factos acima descritos sob os números 16 e 17 da respetiva espécie, a saber, que: “16- AA passou a residir em permanência na casa de BB na Praceta ..., na ..., a partir de Janeiro de 2017, e ali permaneceu até à morte desta última. 17- O relacionamento como se de marido e mulher se tratassem era publicamente conhecido, sendo assim tratados por todos vizinhos que com eles se relacionavam.”. Para além da sua própria conceção sobre os contornos do segundo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrado no n.º 1, do art.º 662.º, do C. P. Civil, que diverge da orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão, não demonstra a Recorrente que, ao formar a sua própria convicção quanto a tais factos, a Relação o tenho feito com violação de qualquer outra norma processual. Improcede, pois, esta primeira questão. 2) Quanto à segunda questão, a saber, se não obstante a análise da prova, a Relação tinha dúvidas fundadas sobre a verdade material dos factos, em vez da decisão proferida, deveria ter lançado mão do n.º 2 do artigo 662.º do C. P. Civil e ordenar a renovação da prova. Esta segunda questão encontra-se em conexão com a anterior, inserindo-se também no âmbito do instituto do segundo grau de jurisdição em matéria de facto e neste já na fase da modificabilidade dessa decisão, a que se reporta o art.º 662.º, do C. P. Civil. Como resulta do seu próprio texto e da sua conjugação com um vasto conjunto de princípios processuais, de que destacamos os princípios do dever de decisão, consagrado, entre outros, nos art.ºs 202.º e 203.º, da Constituição da República Portuguesa, no art.º 152.º, do C. P. Civil e no art.º 8.º, do C. Civil, do dever de fundamentação e suficiência das decisões judiciais, consagrados, entre outros, no art.º 205.º, n.º 1, da C. R. Portuguesa e no art.º 154., do C. P. Civil e da celeridade processual consagrado, entre outros, no art.º 2.º, do C. P. Civil, os poderes/deveres conferidos ao Tribunal da Relação pelo art.º 662.º, do C. P. Civil, apresentam uma gradação descendente que estabelece a ordem de decisão do Tribunal da Relação. Primeiramente, sob o impulso do recorrente, nos termos estabelecidos pelo art.º 640.º, do C. P. Civil, a Relação deve sindicar a decisão proferida pela primeira instância e alterá-la se a sua convicção formada sobre os elementos de prova produzida assim o determinar, como no caso sub judice aconteceu. Em segundo lugar, a impulso do recorrente ou por sua ação oficiosa pode/deve utilizar um dos outros instrumentos que em relação à decisão em matéria de facto se encontram previstos no n.º 2, do mesmo art.º 662.º, do C. P. Civil, sendo os previstos nas als. a) e b), a operar na própria Relação, como decorre da al. a), do n.º 3, do mesmo preceito, e os previstos nas als. c) e d), com a baixa dos autos à primeira instância, nos termos previstos nas als. b) a d), mesmo n.º 3. Ora, no caso sub judice a ação do Tribunal da Relação ficou confinada ao cumprimento do poder/dever previsto no n.º 1, do art.º 662.º, do C. P. Civil, tendo formado a sua própria convicção sobre o objeto da apelação perante os elementos de prova produzidos em audiência, sem necessidade de qualquer outro ato instrutório, quer na Relação, quer na primeira instância. Não evidenciam, pois, os autos, que ao Tribunal da Relação se tenham suscitados as dúvidas determinantes da renovação da prova, antes a mesma tendo considerado que os elementos de prova produzidos em julgamento eram de molde a determinar a alteração da decisão em matéria de facto, nomeadamente, declarando provado o facto a que se reporta a questão anterior e que na decisão da primeira instância integrava os factos não provados. Nestas circunstâncias, não tendo a Relação, depois de reapreciados todos os elementos de prova produzidos em audiência, aportado a qualquer estado de dúvida determinante da renovação da prova, não tem este instrumento processual que ser chamado à colação pela Recorrente, por sequencial em relação ao previsto no n.º 1, do art.º 662.º, do C. P. Civil. Improcede, pois, também esta segunda questão. 3) Quanto à terceira questão, a saber, se o acórdão recorrido deve ser revogado e a ação proceder porque tendo ficado provada a comunhão de habitação e leito, não ficou provada a comunhão de mesa, inexistindo uma plena comunhão de vida, pelo que inexiste união de facto, tendo o acórdão recorrido violado os art.ºs 1.º e 3.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio. O art.º 2020.º, do C. Civil, na redação do Dec. Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, apresenta-se no plano de jure condito como precursor na medida em que reconheceu/conferiu ao unido de facto supérstite o direito a receber alimentos da herança do elemento de cujus. Inexistindo ao nível do direito constituído uma definição legal da união de facto, a mesma surgiu no léxico do cidadão comum bem informado (bonus pater familae) como um casamento (realidade social existente e apreensível) sem casamento (celebração do respetivo contrato típico). No âmbito do objeto da presente ação, grosso modo, relativo à proteção social por morte/pensão de sobrevivência que decorre do disposto no art.º 63.º, n.º 3, da Constituição, no art.º 52.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 4/2007 e no art.º 3.º, al. e), da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (Proteção das Uniões de Facto), a definição do que deva entender-se como união de facto é dada pelo n.º 2, do art.º 1.º, da lei n.º 7/2011 como “…a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”. Nos termos deste preceito legal, a união de facto relevante para efeitos de proteção social por morte de um dos unidos é definida por dois parâmetros distintos, quais sejam, (1) a equiparação à situação dos cônjuges no casamento, sob a expressão vivam em condições análogas às dos cônjuges, e (2) o tempo de duração dessa vivência, por mais de dois anos. Sendo pacifico nos autos que a relação entre o R/recorrido e a de cujus se prolongou por mais de dois anos, como, aliás, decorre dos factos provados sob os números 15 e 16 (e também dos art.ºs 8 a 10 e 12 a 14) da respetiva espécie do acórdão, o cerne desta terceira questão situa-se em saber se esse relacionamento se pode equiparar ao relacionamento dos cônjuges, na expressão legal, se decorreu em condições análogas às dos cônjuges. Como resulta da noção de casamento consagrada no art.º 1577.º do C. Civil segundo a qual, “Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, as condições de vivência dos cônjuges são balizadas por uma “plena comunhão de vida” e pelo respeito no exercício dessa comunhão plena das disposições legais que a regulam. Entre estas disposições releva, como núcleo dessa vivência, o cumprimento dos deveres recíprocos estabelecidos pelo art.º 1672.º, do C. Civil, quais sejam, os deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, cuja violação poderá constituir fundamento para a dissolução da sociedade conjugal pelo divórcio, nos termos previstos no art.º 1781.º, do C. Civil. Com o respeito desses deveres, a plena comunhão de vida entre os cônjuges pode por eles ser exercida nas múltiplas graduações que se depreendem, desde logo, da definição dos deveres de coabitação, cooperação e assistência, consagrados nos art.ºs 1573.º a 1575.º, do C. Civil. Por força do disposto no n.º 2, do art.º 1.º, da Lei n.º 7/201, estas mesmas graduações, limitadas no limite mínimo da sua extensão pela não violação dos deveres recíprocos, são também aplicáveis à sociedade familiar constituída entre os unidos de facto. Assim delimitadas as condições análogas às dos cônjuges que definem a união de facto, podemos agora aquilatar da pretensão da Recorrente no sentido de que no relacionamento entre o Recorrido e a de cujus, não ficou provada a comunhão de mesa, inexistindo entre eles uma plena comunhão de vida. Na execução deste exercício importa analisar separadamente o que constituirá mero relato histórico do desenvolvimento da sociedade dos unidos de facto e o que constitui o cerne da vivência que permitirá, ou não, qualificá-la como união de facto juridicamente relevante para efeitos da pensão de sobrevivência, que foi requerida pelo Recorrido e não deferida pela Recorrente. Enfrentando diretamente esta vexata questio, como resulta do confronto entre os factos sob os n.ºs 1, 15, 16 e 17 da matéria de facto provada do acórdão, entre janeiro e 2017 e 10 de junho de 2019 o Recorrido residiu em permanência na casa da de cujus, relacionando-se publicamente como marido e mulher e assim sendo tratados pelos vizinhos, tendo-lhe feito companhia no hospital até à data da morte. No devir histórico desta relação, o Recorrido e a de cujus tiveram as suas vidas organizadas nas respetivas sociedades conjugais (factos sob os n.ºs 2 e 4), iniciaram e desenvolveram uma relação afetiva pessoal em 1997 (factos sob o n.º 8), convivendo entre eles, amigos de ambos e familiares da de cujus (factos sob os n.ºs 9 a 12) e continuando cada um a viver na sua casa (factos 13 e 14). Entre a história deste relacionamento e a residência na mesma casa, como se marido e mulher fossem, não se provou nos autos que o Recorrido tenha colocou na residência da de cujus suas coisas pessoais (al. a) da respetiva espécie), que ambos partilhavam os rendimentos e despesas e tomassem decisões conjuntas (als. b) e c)), que o Recorrido recebesse correspondência, tenha declarou a sua residência em casa da de cujus (als. d) e e)) e suportasse o custo das viagens de férias (al. f)). Como apodítico é, a circunstância de tais factos não terem sido declarados provados, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 1, do art.º 343.º, do C. Civil, não significa, não pode significar, que se encontra provado o seu contrário. Aliás, no que respeita a rendimentos e despesas, como se escreve na fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27-02-20256 “Não sobressaindo qual a dinâmica da contribuição recíproca nas receitas e divisão de despesas, a sua repartição é inerente à vivência comum, mesmo que com escassa expressividade”. Nestas circunstâncias processuais, os factos pertinentes para decisão da presente questão são, pois, apenas os declarados provados sob os n.ºs 1, 15, 16 e 17 da matéria de facto provada do acórdão, a saber, que entre janeiro de 2017 e 10 de junho de 2019, portanto durante mais dos dois anos estabelecidos na parte final do n.º 2, do art.º 1.º, da Lei n.º 7/2001, o Recorrido viveu com a de cujus em condições análogas às dos cônjuges até que a mesma faleceu, tendo-lhe prestado assistência na doença. Perante tais factos, estando reunidos os respetivos pressupostos, não deixará de assistir ao Recorrido o direito que ao elemento supérstite da união de facto é conferido pela al. e), do art.º 3.º, da Lei n.º 7/2001. Este direito encontra também plena correspondência ao nível dos valores sociais que subjazem a esta prestação social, de pensão de sobrevivência. Com efeito, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2017, de 6 de julho,7 “Como decorre do disposto no art. 63.º, n.º 3, da CRP (e art. 52.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 4/2007) no direito à segurança social está incluído o direito à pensão de sobrevivência, constituída por prestações pecuniárias que têm por objectivo compensar os familiares do beneficiário da perda de rendimentos de trabalho determinada por morte deste (art. 4.º, n.º 1, do DL 322/90, de 18/10).”. E citando o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2007, de 27.02.20078, como compensação, “A pensão de sobrevivência corresponde, no sistema português, "a uma forma de tutela previdencial destinada a acautelar as implicações económicas do falecimento do beneficiário, isto é, as consequências geradas por um facto natural do qual «a lei presume a decorrência de uma situação de necessidade para os 'familiares' sobreviventes”. No caso presente a pensão de sobrevivência em benefício do Requerido, que tem a idade constante dos autos, propõe-se atingir o escopo que lhe é próprio, com incidência na compensação, material mas também moral, pela solidariedade familiar que decorre dos factos provados sob os n.ºs 1 5 e 16 da respetiva espécie do acórdão. Estando, pois, reunidos os pressupostos da união de facto relevante para efeitos desta ação, que são os estabelecidos pelo n.º 2, do art.º 1.º, da Lei n.º 7/2001, não pode esta terceira questão da revista deixar de improcede, o que se declara, e em consequência não deixará de ser negada a revista. 3. DECISÃO. Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, assim confirmando o acórdão recorrido. Custas pela recorrente, que lhes deu causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil. Lisboa, 23-04-2025 Orlando Nascimento (relator) Fernando Batista de Oliveira Isabel Salgado __________ 1. Neste sentido, cfr, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal Justiça de 2017-12-20, proferido no P.º 3018/14.2TBVFX.L1.S1, 2022-11-30, proferido no P.º 2583/20.0T8VFR.P1.S1, 2022-02-24, proferido no P.º 11/13.6TCFUN.L2.S1, 2023-09-14, Relatora: proferido no P.º 895/21.4T8FNC-A.L1.S1 e 11-03-2025 proferido no P.º 18502/20.0T8PRT.P2.S1. 2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7.ª ed. atualizada, págs. 333-334. 3. Cfr, entre outros, os acórdãos de 17.12.2019, P. º, n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1, 16.12.2020, P.º, n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3, 1.7.2021, P.ª 4899/16.0T8PRT.P1.S1, 29.3.2022, P.º 893/19.8T8BJA.E1.S1, todos publicados in dgsi.pt. 4. Proferido no P.º n.º 1104/23.7T8VRL.G1.S1 e publicado in dgsi.pt. 5. Proferido no P.º n.º 2476/21.3T8LRS-A.L1.S1 e publicado in dgsi.pt. 6. Proferido no P.º n.º 191/22.1T8GDM.P1.SI e publicado in dgsi.pt. 7. Publicado no Diário da República n.º 129/2017, Série I, de 2017-07-06, páginas 3400 – 3411. 8. Publicado in www.tribunalconstitucional.pt. |